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OMITO DA PROPRIEDADE Os impostos ea justiga Liam Murphy e Thomas Nagel MARCELO BRANDAO CIFC Martins Fontes Sa0 Paulo 2005 Chri, Ltr te, Acompantamente ‘wt de ppd pss © as Ln Margy Thome Naga: toeagh Mate Bandi C ot, ¥30% Te ne Tos sets dest ei po Bro serene icra Martins Fontes Etitora Le, Const Rawat, 130 125-00 S59 Paulo SP. Brasil Te (11132473677 Fax (7) 3103.2082 Ingots on Br pews nartinsfonts.com br Indice Preffcio 1 Introducao. 2. Critérios tradicionais de eqitidade tributaria. I. A moralidade politica no sistema tributétio: justi I. Egiiidade vertical: a distribuigao dos dnus fiscais ML © principio do beneficio IV. Capacidade contributiva: talento pessoal V. Capacidade coniributiva: igualdade de sa- crificios. VI. A capacidade contrisutiva coma uma idéia igualitaria VIL. O problema do libertarismo vulgar. VIL. A eqiiidade horizontal 3. A justica econdmica na teoria politica 1. Legitimidade politica Il. Conseqiiencialismo e deontologia IIL. Os bens piblicos IV. Beneficios para es individuos V. Eficiéncia e utilitarismo, VI. Justiga distributiva, imparcialidade e priori- dade dos mais necessitados. 16 16 18. 22 28 39 44 52 55 55 57 62 65) 67 n VIL. Igualdade de oportunidades VII. Os meios legitimos e a responsabilidade in- dividual IX. Recompensas e punigdes. X. Liberdade e libertarismo, XI. O significado moral do mercado. XII. Motivacdes pessoais e valores politicos: a di- visio moral do trabalho XIIl. Conelusio 4. Redist icdo e aco piiblica direta 1. As duas funcGes da tributaco. IL. Quem paga pelos bens paiblicos IIL. Quais bens $0 piblicos? .... IV. Redistribuigio. V, Transferéncia ou agao publica? VI. Os deveres piblicos Vil. Conclusao, 5. A base tributaria 1. Eficiéneia e justiga Tl. Resultados, nao cargas... TL. O consumo como base e o justo tratamento dos poupadores IV, Ajustica como igualdade de liberdade V. Omerecimento e a acumulagio de capital: 0 “fundo comum”. VI. Riqueza e bem-estar VIL. Riqueza e oportunidade VII. © talento e o valor da autonomia. 1X, Exclusdes e créditos X. Transigdes 6. Progressividade. 1. Gradagio, progressio, incidéncia e resultados. IL, Avaliagdes dos resultados. 78 81 85 a9 93, 7 101 101 105 13 16 8 122 124 126 126 129 131 138 146, 149) 160 162, 168, 173 176 176 179 VL A tributagio étime IN, Reforma tributaria 7. Heraneas: 1. O“imposto sobrea morte” IL A base tributaria do beneficiério Il. Nenhuma deduco para os doadores IV, Detalhes e objecdes. V. A igualdade de oportunidades e a tributasao de transferéncias VI. Conclusio 8, Discriminagio tributaria I. Justificativas do tratamento diferenciado IL. Umexemplo: a malta matrimonial TI. Os efeitos de incentivo e a arbitrariedade 9, Conclusao: a politica I. Teoria e pratica IL Justica e interesse proprio. ID. Sistemas tributarios plausiveis IV. Idéias morais eficazes. Referéncias bibliograficns Indice remissivo 184 189 194 194 199 204 206 213 220 223 223 229 238 238 243 248 258 261 273 Prefacio No quarto trimestre de 1998, oferecemos juntos um semindrio sobre Justia e Politica Tributéria na Faculdade de Direito da Universidade de Nova York (NYU). Quando o trimestre texminou, ocorreu-nos que talvez dispuséssemos de material suficiente para escrever um livro sobre 0 as~ sunto, Comecamos a escrevé-lo no verdo de 1999 e é este o resultado. ‘Temos uma grande divida de gratidio para com os que participaram daquele seminério, tanto os estudantes quanto os colegas professores, que nos ajudaram a ex- plorar um campo e ums bibliografia ainda desconhecidos. Nossos alunos nos ofereceram titeis comentarios criticos e fizeram com que dar aulas fosse para nds um motivo de prazer. Nao temos como agradecer, pela indispensavel ajuda que nos prestaram, a seis membros ou ex-membros do cor po docente do departamento de direito tributério da NYU, ‘95 quais, com toda paciéncia e generosidade, cuidaram de nos educar nesse campc quando éramos simples amadores: referimo-nosa David Bradford, Noel Cunningham, Deborah Paul, Deborah Schenk, Daniel Shaviro e Miranda Stewart Além deles, Barbara Fried, de Stanford, estava trabalhando como professora-visitante na NYU no ano em que demos nosso curso; seus conselhos e criticas nos foram utilissimos no decorrer de todo © processo. 2 (OMITO Da PROPRIEDADE Depois de comecarmos a escrever, apresentamos par- tes do material para diversas platéias e estuclamos suas rea- bes. Fizemos isso no Coléquio de Politica Tiibutatia da NYU, conduzico por David Bradford e Daniel Shaviro; no Colé- quio de Direito e Filosofia da NYU; e a platéias das Univer- sidades Hanvard e Duke, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, do University College de Londres, da Universidade Centro-Européia de Budapeste e do Cen- tro di Ricerca e Studi sui Diritti Umani, em Roma Janos Kis, Marjorie Kornhauser e Daniel Shaviro nos ofereceram por escrito seus comentarios a diversas par- tes do manuscrito; Ronald Dworkin e Lewis Kornhauser 0 fizeram ao vivo, através de conversas. Agradecemos imensamente a quatro pessoas que fizetam comentarios detalhados sobre 0 manusctito inteiro: Barbara Fried, Eric Rakowski, Joel Slemrod e Lawrence Zelenak. Suas criticas penetrantes e mordazes, ao lado das sugestdes construtivas, nos permitiram deixar o livro muitissimo me~ hor do que teria sido, Sem a generosa atengio que nos foi dispensada por esses especialistas em direito ¢ economia tributdria, o resultado de nossos esforgos ficaria abaixo da cxitica Enquanto escreviamos o livto, nés dois recebemos bol- sas de apoio a pesquisa do Fundo Filomen d’Agostino e Max E, Greenberg da Faculdade de Direito da NYU. Durante 0 ano académico de 2000-2001, Liam Murphy esteve associa~ do ao National Humanities Center. Originalmente, déramos ao livto 0 titulo de A justiga na tributagdo, mas decidimas depois adotar o titulo mais pro- vocativa que ele leva agora, gracas, em parte, 4s instancias da nossa diretora editorial na Oxford University Press, Dedi Felman, Achamos que convinha jé deixar claro desde o ti- tulo qual & a nossa posicio. O livro, porém, nao foi escrito somente para defender uma tese: tem o intuito de ser um compéndio preciso de todas as questdes e dos argumentos apresentados por todas as partes envolvidas nesta discus si0; e esperamos que até os que discordam de nés acerca PREFACIO 3 da maneita correta de entender a justiga tributétia encon- trem seus pontos de vista representados aqui de modo cor~ reto ¢ imparcial Nova York, setembro de 2001 LM. TN. 1. Introducao Numa economia capitalista, os impostos nao sao um. simples método de paganento pelos servigos pablicos e go- vernamentais: sao também o instrumento mais importante por meio do qual o sistema politico pde em pritica uma de- terminada concepgio de justia econdmica ou distributiva. por isso que a discussio desse tema gera paixdes tao For- tes, exacerbadas nao s6 pelos conflitos de interesses econd- micos como também po: idéias conflitantes acerca de o que & a justica ou imparcialidade. Diante de um gréfico que mostre a variacio das alf- quotas, ou a porcentagem de renda paga em impostos pe- las diversas faixas de renda, ou a porcentagem da carga tri- butaria total que recai sobre os diversos segmentos da po- pulacdo, qualquer cidadio tende a perder a paciéncia. Em- bora as pessoas nao concordem quanto ao que é justo e o que nao é, todos percebem que a questdo da justica se apre- senta de maneira crua ¢ imediata na definigao de um siste~ ma tributdrio. Quanto cada qual deve pagar? Para que deve ser usado 0 dinheiro? Quais produtos ou servigos devem ser isentos de impostos ou dedutiveis da base tributaria? Quais sao as desigualdades legitimas e admissiveis na renda li- quida da populacao ou nos impostos pagos por pessoas di- versas? Sao essas as peiguntas - carregadas de implicagdes morais ¢ ardentemente disputadas ~ acerca das obriga- «es que temos uns paracom os outros através das operacoes fiscais do governo que nos rege a todos. 6 (0 MITO DA PROPRIEDADE Mas, embora esteja claro que essas questdes tém algu- ma relagdo com a justica, elas nao tém dado azo, do ponto de vista moral, a uma discussio tio sofisticada quanto a que foi desencadeada por outras questées piblicas dotadas de uma dimensao moral - questdes acerca da liberdade de e pressio, da pornogratfia, do aborto, da igualdade de prote- fo legal, da acto afirmativa, da regulamentac3o da condu- fa sexual, da liberdade religiosa, da eutandsia e do suicidio assistido, E certo que nos uiltimos anos, depois que Lima teoria da justica de John Rawls chamou a atengao do mundo académico para 0 assunto, a questéo da justica socioecond- mica tem sido muito debatida num nivel altamente abstra~ to; mas essas discussdes acerca das teorias gerais da justica nao chegaram a vincular-se de modo expressivo com os combates ideolégicos acerca do sistema tributatio que sio 0 “artoz.e felja0” da politica nacional. Isso ocorre, em parte, porque o sistema fiscal é marca- do por um alto grau de incerteza empirica acerca das con- seqiiéncias econdmicas das diversas opcoes que se apre- sentam, e é dificil desvincular as discordancias sobre a jus- tica das discordancias sobre o que poder acontecer. Uma teoria da justiga, por si mesma, ndo pode nem aprovar nem condenar uma reducao de impostos, por exemplo; € preci- so fazer uma estimativa dos efeitos dessa mudanga sobre os investimentos, o nivel de emprego, a arrecadacdo do gover no €a distribuicdo da renda depois de deduzidos os impos- tos. Por outro lado, nas grandes questdes relativas aos di- reitos individuais é bem mais facil distinguic a dimensao moral, mesmo que também existam questées empiticas a ser resolvidas. A diferenca tem também uma outta razdo possivel: as batalhas sobre a tributagdo sao travadas no contexto da po- litica eleitoral, em que as alegagées retéricas tém uma impor- tancia tremenda, e nao nos tribunais, onde prevalecem os argumentos detalhados e demorados. E certo que os tribu nais norte-americanos, na medida em que definem os di- reitos individuais mediante a interpretagao da Constituigao, INFRODUCAO a colaboraram imensamente para introduzir a teoria da mo- ral e da politica nesses outros camoos de debate piiblico, Seja qual for a razao, parece haver uma lacuna ou pelo menos uma drea de “baixa densidade” na discussao filos6fi- ca sobre as dimensdes éticas das estratégias de governo; este livro tem 0 objetivo de comeger a ocupar esse territério. Isso é mais importante ainda numa época em que a discus- sao publica e séria sobre a justica econdmica foi substituida, em grande medida, por uma retér ca enganadora acerca da imparcialidade tributéria. Queremos descrever as questées mais importantes, criticar algumas abordagens jé adotadas e defender as conclusdes que formos capazes de tirar ‘Muitos problemas de que trata debate politico tém relagio com 0 projeto do sistema tributério, mas ha tam: bém uma questo geral acerca do objetivo desse sistema - acerca de quais s4o as coisas que o governo deve fazer ¢ que devem ser pagas com o dinheiro dos impostos. Bens piiblicos como a defesa externa ea ordem interna nao sao objeto de controvérsia, mas, quando se passa desse mini- mo, a disputa comeca. Até que panto a educacao, a satide, os transportes piiblicos e as artes devem ser financiaclos pot meio da arrecadagao de impastos? Acaso a tributagao deve ser usada para redistribuir os recursos dos ricos para 5 pobres, ou pelo menos para aliviar a situagdo daqueles que nao conseguem se sustentar em virtude de uma defi- ciéncia, do desemprego ou de uma baixa capacidade pro- dutiva? E preciso determinar a melhor forma de tributacao — se os impostos devem ser cobrados dos individuos, das em- presas ou sobre as transagdes econdmicas especificas, como € 0 caso de um imposto sobre as vendas ou sobre o valor agregado, A base tributaria deve ser a riqueza e a proprie- dade ow 0 fluxo de recursos no decorrer co tempo ~ e, nes- te caso, a medida deve ser a rencla ou 0 consumo? Como o sistema tributério deve tratar a transferéncia de recursos dentro das familias e de uma geracao 8 outra, particular- mente quando alguém morte? 8 (OMITO DA PROPRIEDADE E preciso saber o que ndo deve ser objeto de tributagao qual o nivel de renda, se houver, que deve ser isento de tributagdo, e quais os gastos que devem ser decuzidos da base de célculo ou devem gerar um crédito tributirio. Exis- te a eterna questo da tributago proporcional ou “fixa"” contra a tributac3o progressiva, e de qual seria a taxa ade- quada de progressividade. E existem questdes bastante co- nhecidas sobre as diferencas no tratamento de diversas ca- tegorias de contribuintes ~ os casados e os solteiros, por exemplo, ¢ os proprietdrios e inquilinos de iméveis - e so- bre o que é necessério pata justificar essas diferencas. £ preciso, por fim, saber se temos de vencer um pre- conceito generalizado contra a tributagio e a favor de que 65 recursos permanegam nas maos daqueles que os criaram ou adquiriram — uma presungdo contra a interferéncia do governo e a favor de que as pessoas possam fazer o que bem entenderem com os recursos que adquiriram median- te a participagao numa livre economia de mercado. Se exis- te essa presungdo, ou seja, essas razbes aceitas de anteméo, isso significa que as alegacdes em favor dos diversos proje- tos e abjetivos dependentes da receita dos impostos tém de ser muito mais fortes do que de outro modo seriam, Muitas dessas questdes relativas aos impostos se colo- cam em todos os niveis de tributacdo — nacional, estadual e municipal; por isso, os impostos sio um dos principais ob- jetos de discussdo moral e politica onde quer que haja elei- Bes, € as vezes chegam até a ser decididos em plebiscito. Para complicar ainda mais 0 quadro geral, existem outros meios pelos quais o governo pode arrecadar dinhelro: taxas de importacao e de concessao de licencas, pedagios, lote- rias e, 6 claro, empréstimos; mas teremos de deixar esse as sunto de lado. Numa economia nao socialista, em que os meios de produgéo ndo estdo nas méos da administragao piiblica, 05 impostos e os gastos do governo sia os focos principais de todas as discussdes sobre a justia econémica. Essas discusses nos conduzem ao territério das con- trovérsias mais absiratas da filosofia politica e social, e 0 invrRODUCAO 9 nosso tema é exatamente a relagao que existe entre essas controvérsias filoséficas e a politica tributéria. As ditas con- trovérsias nascem todas da tentativa de se definir os direi- tos e deveres de um Estado democratico em relagio a seus cidadios, e os direitos e deveres desses cidadaos em rela a0 a0 Estado e uns em relagao aos outros © governo demoeratico limitado impée certas obriga- des ou constrangimertos aos individuos, deixa-os livres em outros campos e concede-Ihes certos beneficios, tanto positivos quanto negativos. E geralmente por meio das obri- gages ou constrangirrentos impostos que ele cria esses beneficios ~ a conservacdo da paz e da seguranca publica, por exemplo, ou a obtercao de receitas para o cuidado das criangas, a educagéo piblica e os beneficios concedidos aos idosos. As discordancias sobre o Ambito legitimo dos bene- ficios e constrangimentos governamentais, e sobre a rela- cdo entre esse ambito e os direitos individuals, esto geral- mente por trés das divergéncias sobre a tributacdo, mesmo quando aquelas questdes nao se explicitam. Essas questoes dizem respeito & extensio e aos limites da autoridade cole- tiva que, por meio de nossas instituigdes comuns, temos uns sobre os outros. Hoje em dia, muitos créem que a fungao do governo vai muito além do fornecimento de seguranca interna e ex- tetna através da prevengao da violencia entre pessoas, a pro- tecio da proptiedade privada e a defesa contra ataques ex- ternos. O problema é: vai além, mas quanto? Poucos nega- riam que certos bens piblicos positivos, como a alfabetiza~ <0 universal e a proteco do meio ambiente, exigem uma Intervencao do govemne. Existem diferengas politicas acerca de qual ¢ o nivel adequado de intervengao publica nesses dominios. Porém, as maiores controvérsias giram em torno do uso do poder goverramental nao s6 para fornecer coisas, que so boas pata todos, mas também para providenciar recursos para as mais pobres, a partir da idéia de que certas, espécies cle desigualdade social e econdmica sao injustas ov de algum modo maléficas e de que todos nés temos, para 10. 0 MITO DA PROPRIEDADE ‘com nossos concidadlaos, a obrigacao de corrigir ou aliviar esses problemas. Em grande medida, 0 objeto dessa controvérsia é a su- posta justia ou injustica dos resultados produzidos por uma economia ce mercado ~ a medida real em que esses resul- tados sio uma recompensa efetiva pela contribuigao pro- dutiva, ou o grau em que os determinantes do sucesso ou. fracasso econémico séo arbitrétias do ponto de vista moral. Qual é 0 fundamento moral do direito do cidadio de reter aquilo que ganhou? Num pais onde a maior parte da eco- nomia esta nas maos da iniciativa privada e o governo é de~ mocratico, ser4 no dominio da politica tributaria que se tra~ vara o embate entre essas diversas concepcbes Como cada um de nés é, por um lado, um individuo particular que participa da economia de mercado, e, por ‘outro, um cidadao que participa — ou pelo menos pode pat- ticipar ~ do processo das decisdes governamentais através da politica, temos de estabelecer um meio-termo entre nos- sas conviccdes de justica social e legitimidade politica e nossas motivagbes mais pessoais para formar uma concep- Gao estavel de o que queremos que o governo faca. Quando nos posicionamos contra ow a favor de uma reduce nos impostos, no pensamos somente nos efeitos dessa redu- ‘cao sobre a tenda que teremos a disposicio, mas também em suas consequiéncias sociais e econémicas mais amplas. © tema se complica ainda mais pelo fato de que o sistema tributario no deve ser decidido por forgas que se encon- tram fora da sociedade, mas, de algum modo, pelas forgas que a compdem, sendo portantoa resultante politica de dis- cordancias inevitavelmente profundas. Por isso, 0 meio-ter- mo que se estabelece entre as motivagoes piiblicas e pessoais 6 um elemento importante da discussio ‘Antes, porém, de entrar no dominio da filosofia moral e politica, temos de dizer algo acerca do modo pelo qual as questdes de avaliagao foram — e em grande medida ainda sao ~ tratadas na literatura classica sobre politica tributatia, Certos conceitos foram desenvolvidos especificamente para iyrRODUCAO u ser aplicados & avaliagdo das propostas teibutarias: sao exem- plos disso 2 eqiiidade vertical, a eqitidade horizontal, o prin- cipio do beneficio, a igualdade de sacrificios, a capacidade contributiva e por af afora. Comecaremos por examinar es se5 conceltos € procuraremos explicar por que eles no abarcam suficientemen:e as considleragdes que devem ser levadas em conta para uma avalia¢do normativa da politica tributéria Se existe um tema dominante que se faz presente em toda a nossa dliscussdo, ele é 0 seguinte: a propriedade pri- vada é uma convengao juridica definica em parte pelo sis- tema tributério; logo, o sistema tributério ndo pode ser avaliado segundo seus efeitos sobre a propriedade privada, concebida como algo dotado de existéncia e validade inde- pendentes. Os impostos tém de ser avaliados como um ele- mento do sistema geral de direitos de propriedade que eles ‘mesmos ajucam a criar- A justiga ou injustica na tributagao ndo pode ser outa coisa sendo a justiga ou injustica no sis- tema de direitos e concessdes proprietarias que resultam de um determinado regime tributaro. A natureza convencional da propriedade é ao mesmo tempo perfeitamente dbvia ¢ facilima de ser esquecida. To- dos nés nascemos no contexto de um sistema juridico mi nuciosamente estruturado que rege a aquisig&0, o intercdm- bio e a transmisséo dos direitos de propriedade; por isso, a propriedade ov a posse pessoal de bens matetiais nos pare- ce ser a coisa mais natural do mundo. Porém, a economia moderna na qual ganhamos nosso salario, compramos nos- sa casa, temos 2 nossa conta bancéria, economizamos para a aposentadoria e acunulamos bens pessoais, e na qual uusamos nossos recursos para consumir ou investir, seria impossivel sem a estrutura fornecida pelo governo, que é sustentado pelos impostos. Isso ndo signitica que os im- postos nao devem ser objeto de avaliagao ~ significa apenas que 0 alvo da avaliagao deve ser o sistema de direitos de propriedade cuja existéncia eles possibilitam. Nao pode- mos tomar uma distribuigSo inicial qualquer dos bens ma- 12 (OMITO DA PROPRIEDADE tetiais - os bens que as pessoas tém sob sua posse, que so delas, antes de qualquer interferéncia do governo — como um daclo imutavel, que ndo precisa ser nem justificado nem submetido a uma avaliagdo critica Qualquer convengao, se estiver suficientemente difun- dida no meio social, pode chegar a ser universalmente vis- ta como uma espécie de lei da natureza — um nivel bésico visto como o eritério de qualquer avaliagéo e nao como algo a ser avaliado. Os direitos de propriedade sempre tiveram 0 poder de provocar essa ilusio. No sul dos Estados Unidos, 08 proprietérios de escravos de antes da Guerra de Seces- sio ficaram indignados com a violagao dos seus direitos de propriedade quando se procurou proibir a importagao de escravos para 0s territérios norte-americanos ~ sem men- cionar as agdes abolicionistas propriamente ditas, como as daqueles que ajudavam os escravos fugidos a entrar no Ca~ nada. Porém, a propriedade de escravos era uma criagao do sistema juridico, protegida pela Constituicio norte-ameri- cana; ¢ 0 cardter justo ou injusto das intervengdes abolicio- nistas nao podia ser avaliado sem que se levasse em conta a justica ou injustica da prOpria instituigdo escravocrata Quando esto suficientemente arraigadas, a maioria das convenes adquire a aparéncia de normas da nature- za: seu carater convencional se torna invistvel. E por esse motivo, entre outros, que elas tém tanta forga ~ uma forga {que nao teriam se ndo fossem a tal ponto interiorizadas pe- Jas pessoas. Podemos tomar outro exemplo bastante difun- dido: as convengdes que definem os papéis diferenciados dos homens e das mulheres em qualquer sociedade. A exis- téncia dessas convencdes pode ter motivos bons ou ruins, mas isso nao nos importa agora; o essencial é que, ao ava- lid-las, evite-se cometer o erro de apresentar como justifi~ cativa aqueles mesmas direitos ou normas aparentemente “ naturais” que na verdade nao passam de efeitos psicol6gi- cos da interiorizagao das prdprias convengies. Se as mu- Iheres esto sempre subordinadas aos homens, é inevitével que a submissdo passe a ser considerada uma caracteristica INTRODUGAO 13 e uma virtude natural das mulheres € que essa percepedo seja por sua vez utilizada para justificar o dominio masculi- no, Aristételes confundiu as consequiéncias de uma institui- io com os fundamen:os naturais da mesma instituicao quando afirmou que cettas pessoas nasclam para ser escra~ ‘vos, ¢ também em suas teses sobre as mulheres. Fazer ape- lo as conseqiiéncias de uma conven¢ao ou instituiggo social, considerando-as como 1m fato natural que justifica a pré- pria convengao ou instiluicao, é sempre uma tautologia. No caso dos impostos ¢ da propriedade, a situagio & mais complicada e pode chegar a ser até mais absurda. A nogao de direito natural gerada pela assimilacao irrefletida de direitos de propriedade que na verdade so definidos por convengio pode gerar por sua vez uma certa satisfagao com 0 status quo, entendido entao como algo que de certo modo se justifica a si mesmo. Pode também, porém, dar origem a uma critica ainda mais confusa do sistema exis- tente, que, sob essa dtica, violaria certos direitos naturais de propriedade, quando na verdade esses direitos “naturais” do metas conseqiiéncias juridicas do sistema que est sen- do criticado. € ilegftimo, para fins de avaliagéo de um siste- ma tributério, fazer apelo a um nivel basico de direitos de propriedade numa suposta “cenda bruta pré-tributaria”, pois essa renda é 0 produto de um sistema do qual os im- postos so um elemento inaliendvel. Nao se pode nem jus tificar nem criticar um regime econdmico tomando-se como norma independente algo que, na verdade, ¢ uma conse~ giiéncia desse regime, Como dissemos, nio ha nada mais ébvio do que isso; mas, como fentaremos demonstrar, também nao ha nada que se esqueca com tanta facilidade. E dificil saber qual deve ser a forma aprogriada de um sistema de direitos de propriedade e como ele deve ser moldado pela estrutura tributéria; para tentar resolver essas questdes, temos de re- solver também certas questdes relativas & liberdade indivi- 1. Ver a Politica de Aristtees,livro 1 capitulo, 4 O-MITO DA PROPRIEDADE dual, 8 obrigag3o dos cidadaos uns para com 0 outros © & responsabilidade pessoal e coletiva. Os direitos de proprie~ dade nao sio 0 ponto de partida dessa discussao, mas sua conclusao. ‘Nosso objetivo & que as questées tedricas aqui discisti- das possam ter uma aplicacio universal; porém, para dis- cuti-las, faremos referéncia a exemplos mais ou menos co- nhecidos do piiblico norte-americano. Falaremos mais so- bre a tributacio federal do que sobre a estadual e a munici- pal, € mais sobre os impostos cobrados de pessoas fisicas do que os de pessoas juridicas — muito embora o imposto sobre a renda da pessoa fisica e os impostos relativos a Pre~ vidéncia Social e a0 Medicare* componham apenas meta- de da receita total dos impostos norte-americanos. E evi- dente que os impostos especificos devem ser avaliados & luz do quadro econémico geral, que inclui também os demais impostos. Porém, as questées gerais de que nos ocupamos surgem em toda patte. (O livro esté organizado da seguinte maneira: nos dois capitulos seguintes, tratamos dos princfpios gerais, primei- ro na opiniao dos tedricos em tributagdo e depois na opi- nido dos fildsofos. No capitulo 2 examinamos os principais ctitérios propostas na literatura tributarista para se avaliar a justica dos impostos. Trata-se de um trabalho ligado as dis- ciplinas da economia e do direito, e a esta altura jé tem uma Tonga hist6ria, No capitulo 3 fazemos um exame critico das diversas teorias de justiga social, politica e econdmica pro- postas pelos fildsofos morais e politicos no decorrer de um perfodo ainda mais longo, tearias essas que tém conse- qiiéncias para a avaliagao do sistema tributario ~ mesmo que essas conseqiiéncias nao tenham sido afirmadas expli- citamente. Apesar da grande variedade interna de ambas, as duas abordagens — a dos especialistas em tributacao e a dos fildsofos ~ sao bastante diferentes. No capitulo 4, expli- * Sistema de cuidados médicos gratuits fornecido pelo governo norte americana, endo por alvo prineipalmente a populagio idosa, (N. do.) snTRODUGA 15 amos uma distingdo fundamental entre duas fangdes da tributagao, distingao essa que é muito importante para se identificar os valores que devem ser levados em conta na avaliagdo dos miltiplos efeitos do sistema tributario. Nos capitulos §, 6 e 7 tratamos, segundo o ponto de vista da jus- tiga, de trés questdes essenciais para o projeto do sistema tributario: a base tributéria (sobre 0 que se devem cobrar impostos); se as alfquotas de impostos devem ser progres- sivas e, em caso afirmativo, em que proparcio; e a tributa~ io da riqueza herdada. No capitulo 8 discatimos algumas acusagdes especificas de discriminacao entie os contribuin- tes efetuada por determinadas formas de tributagio. No decorter de todo o livro, procuramos apresentar com impar- cialidade toda uma gama de concepgdes ciferentes acerca dessas questdes, sem porém ocultar nossas preferéncias. No titimo capitulo, recapitulamos os resultados das discus- ses precedentes, resumimos nossas conce2gdes € dizemos quais so, 20 nosso ver, os resultados pratizos que elas po- deriam ter se fossem aplicadas e submeticas as limitagdes politicas do mundo real 2. Critérios tradicionais de eqitidade tributaria 1. A moralidade politica no sistema tributério: justica Ha muito se reconhece que o sistema tributério tem de levar em consideracao a moralidade politica ou justiga'. Em- bora a teoria econdmica forneca informacdes essenciais acer- ca dos efeitos provaveis de diversos esquemas tributérios possiveis, ela nao pode, por si s6, determinar uma escotha entre eles. Todo aquele que defende um sistema tributétio que seja simplesmente “o melhor para o crescimento econd- mico” ou “o mais eficiente” tem de fornecer nao somente uma explicagdo de por que o sistema de sua predilego tem essas virtudes, mas também um argumento de moralidade politica que justifique a busca do crescimento ou da eficién- cia sem que se levem em conta outros valores sociais, Além da eficiéncia econdmica, o valor social a que tra~ dicionalmente se da peso na formulagao de um sistema tributdrio é a justiga; a tarefa daquele que formula o siste- ma é a de inventar um esquema que seja ao mesmo tempo eficiente e justo®. A justica, em sua acepgao tradicional, & concebida especificamente como um critério para que se 1. Para uma apresentacio hstérica da corrente poliico-moral de andl se dos sistemas tributéies até o final do século XDX, ver Seligman (1908). 2. As vezes, a simplicdade & apresentada como um enittio a mais, con- sideramo-Ja um aspecto da efciéncia entendida em sentido amplo. CcRITERIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA w avaliem as diferengas no tratamento tributario de pessoas diferentes: o principio de que as pessoas que se encontram rna mesma situago devern arcar corn 0 mesmo nus, e que ‘a pessoas em situacOes diferentes devem arcar com énus diferentes, No decorrer da histéria, as discussdes sobre a justica na tributagdo muitas vezes tomara;n a forma de tentativas de se interpretar essa exigéncia, e essa maneira de encarar a questo continua a exercer grande influéncia sobre os de- bates politicos (ver, por exemplo, a insisténcia do presidente Bush em que, por ocasiio de uma reducio dos impostos, a carga tributéria de todos fosse reduzida aproximadamente ‘na mesma proporcio) Desde o comeco houve aqueles que discordaram dessa maneira de encarar o problema; atualmente, varios tributa- risias eminentes a rejeitam, Nao obstante, comecaremos por explicar detalhadamente 0 que, a nosso ver, ha de errado com esse enfoque exclusivo na distribuic3o das cargas tri- butétias, e por que outros valores politicos t8m obrigatoria- mente de ser levados em conta em qualquer discussao ade- quada sobre a justica na tributago, Com isso, poderemos também distinguir nossas objecdes das de outros criticos contemporaneos da abordagem tradicional ‘Também dentro do seu préprio quadro conceitual se levantam objecdes decisivas contra a discussio tradicional sobre a justica. Nao obstante, o exame dessas idéias tradi- cionais é um meio excelente para se pdr em relevo a natu- reza € a complexidade das questdes de moralidade politica que tém de ser contempladas pele sistema tributario?, Por 3, Entre os economists especializados em finangas pablicas, ainda pa- fedominar a idéia de que a justca na tibutacéo consste na justacistei- buigso das cargos wibutéras; ver, p. ex, Slemrod e Bakija (2000), cap. 3; Brad ford (1986), cap. 8; Stiglitz (2000), cap. 17. A mesma idéia 6 um pressuposto implicito de textos polemicos como o de Halle Rabushka (1995), Essa mesma abordagem, porém, tem sido objeto de fortes critica, pelo menos desde o final do século XIX; ver Wictsll (1896). Em se tratando de ‘obras mais recente, ver, p. ex, Gordon (1972); Bankman e Griffith (1987); Griffith (1993); Komhauser(1936a); Frid (2999). 18. OMITO DA PROPRIEDADE isso, comegaremos nossa discussio a partir de dentro da es- trutura tradicional. IL. Eqitidade vertical: a distribuicao dos énus fiscais Todos concordam com a idéia de que o sistema tributd- tio deve tratar os contribuintes de maneira eqiiitativa, mas discordam quanto ao que seja esse tratamento eqiiitativo. Ao se tratar dessa questo, é costume tracar-se uma distin- do entre eqilidade vertical e eqtiidade horizontal. Segundo essa concepcao, a eqiiidade vertical so as exigéncias da jus- tiga quanto ao tratamento tributério de pessoas com niveis diversos de renda (ou de consumo, ou de qualquer que seja a base tributaria), e a eqiiidade horizontal sao as exigéncias da justiga quanto ao tratamento de pessoas com rendas iguais. Do ponto de vista analitico, a equiidade vertical é mais, importante, uma vez que a igualdade de renda sé tem sig- nificado para a formulagéo do sistema tributério quando temos a crenca de que as pessoas com rendas diversas de- vem ser tributadas de maneira diversat, For isso, trataremos primeiro da eqiiidade vertical. Consideremos, como caso-limite, a forma mais simples de imposto, que é 0 imposto fixo individual: cada pessoa aga de imposto a mesma quantia em délares, indepen- Ver tambérm Kaplow (1989, 1995 e trabalho a ser publicado). Embora concordemos com Kaplow em que as normas tadicionais de eqiidade tribu- tiria devem ser abandonadas, ndo acetamos sua idéia de que 0 utiltarismo ‘4 qualquer outra medida ponderada do bem-estar individval total seja a Sinica diretriz da politica uibutéria. Hi pouco tempo, Kaplow ampliow sua defesa do “bem-estarismo" (tzlfarism) de modo a abarcar com ela todos os campos de acio do governo; vide Kaplow e Shavell (200%). No capitulo se- {uinte deixaremos claro que, embora cancordemos com Kaplow e Shavell fem que os resultados sociais slo extremamente importantes, ndo pensamos = como pensam eles ~ que a tiica questdo a ser levada em conta em qual quer avaliagio de uma ii ou plano de aco social 6 0 seu efeito sobre o bern ‘estar dos individuos. 4. Ver Musgrave (1959), 160, CCRITERIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBLTARIA 19 dentemente de sua renda. Além de ser sim2les, 0 imposto fixo individual tem a pretensao formal — e superficial, bem entendido ~ de ser equitativo, uma ver. que trata todos os contribuintes literalmente da mesma maneita. Se isso fos- se justo, seria fécil resolver a questio da eqiidade vertical: as pessoas com rendas diferentes nao devem pagar de im- posto quantias diferentes, mas todas a mesma quantia, Po- rém, mesmo os adversarios mais ferrenhos de toda redis- tribuigdo que ndo a garantida pela renda pré-tributaria re- cusam-se a aceitar 0 imposto fixo individual; quase nao ha quem o defenda como forma apropriada pera um imposto de renda nacional® Dada a eqitidade superficial de um esquema que tira de cada pessoa a mesma quantia em dinheiro, por que 0 imposto fixo individual é visto por quase todos como evi- dentemente injusto? Uma das respostas é que existem di- ferencas pertinentes entre os contribuintes que justificam que se Ihes dé um tratamento diferenciado ~ com efeito, injusto seria traté-los da mesma maneira®. E ai que entra em cena a questio da eqiiidade vertical ~ quando nos per- guntamos quais sio essas diferencas pertinentes entre os contribuintes que podem justificar uma carga tributéria di- ferenciada ‘Vamos examinar algumas respostas tradicionais a essa pergunta. Nosso objetivo, porém, é explicar por que a pr6- pria pergunta esté mal formulada. A injustica do imposto fixo individual tem raizes mais profundas. Convém esbogar desde jd dois grandes temas de nossa discussio. Em primeiro lugar, as teorias da eqiiidade verti- 5, Schoenblum (1995) é, como ele mesmo reconhece (270), uma rarissi= rma excegio. E até ele defende uma isen¢io para os cidasSos de balxa renda (270-1), Em 1990, a tentativa do governo briténico de introduzir o imposta fixe individval, mesmo na limitadaesfera do gaverno municgal, provocou turmul= tos violentos e, segundo © consenso geral colabarou paraque Margaret That cher viesse por fim a perder o cargo de primeito-ministra 45, Para uma discussio geral da idéia de diferengas pertinentes, ver Hart (1994), 158-63, 20 (OMITO DA PROPRIEDADE cal costumam sofrer de “miopia”, na medida em que ten- tam tratar a justiga na tributagdo como um assunto politico isolado e auto-suficiente. O resultado nao é simplesmente uma nosao parcial da justica governamental, mas uma no- cao falsa’. Isso porque a justica tributéria nao pode ser de- terminada sem que se examine o destino que o governo da a seus recursos. Nos Estados Unidos cle hoje em dia, 0 processo legis- lativo é afligido por essa miopia de modo simples e drama tico, sob a forma de tabelas que determinam a distribuigao das cargas de impostos associadas a diversas reformas tri- butdrias®. A maioria das transferéncias do governo sao ex- cluidas dessas tabelas de cargas; 0s casos mais importantes de exclusio so os dos pagamentos da Previdéncia Sacial e do Medicare’. Essa pratica tem sido severamente criticada Como escreve David Bradford, “ha muito que os economis- tas reconhecem a equivaléncia essencial entre as impostos e 0s pagamentos de transferéncias”™. Parece evidente que ‘uma carga tributéria associada a uma transferéncia equiva- ente ndo é, nesse sentido, uma carga de modo algum Porém, o problema nao seria resolvido nem mesmo se todas as transferéncias monetdias fossem incluidas nas ta~ belas de cargas. Isso também seria arbitrario, na medida em que ficariam de fora os beneficios fornecidas em espécie, como estradas, escolas e policiamento, sem falar no siste- ma juridico como um todo, que define e protege os direitos a propriedade de cada um. Entretanto, se fossem levados 7. Ver Graete (1998), 63-8, que citca © Joint Committee on Taxation (2999), 8. Ver os ensaios em Bradford (1995); essas tabelas so preparadas pelos prafisionais do Departamento do Tesouro, da Comité Conjunto de Tributa ‘gia do Congresso e da Secretiria de Orgamento do Congresso. 9. Ver Gractz (1995), 65-6. O que tipicamente se inclu nas tabelas é 0 Ceédito Tributario sobre @ Renda (Earned Incame Tar Credit ~ EITC). Graetz excreve que “a explicacio mais provével dessa pratica & que os pagamentos do EITC sio regidos por uma cliusula clo eddigo da Receitae nda por outros tit los do cédigo civil norte-americano” (66-7). 10, Bradford (1995), 3 cerTéRIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBLTARIA a em conta todos 0 beneficios prestados pelo governo, sem fexcegio alguma, constatarfamos que quase ninguém tem de arcar com um 6nus liqiiido imposto pelo governo. Serfa- mos obrigados a concluir que a questo da justa distribui- ao das cargas tributérias ndo poce ser separada de uma questo mais getal: a de saber se o zoverno efetua ou nao a justice distributiva®, Poderiamos descrever 0 problema ge- ral como uma questo acerca da distribuicao entre os cida- dos dos diversos beneficios da tritutacao, dos gastos e de ‘outras politicas governamentais, mas isso nos afastaria mui- to de nossa questo original. A tnica maneira de evitar essa conclusdo consiste em adotar uma distribuicao hipotética de bem-estar ou de re- cursos, 4 qual se atribui uma espécie de privilégio moral, e em tomé-la como a base a partir da qual sao avaliados os 6nus impostos pelo governo. E a segunda grande objecao que levantamos contra as teorias de equiidade vertical & que, em geral, elas fazem exatamente isso. Nessas teorias estd implicita uma concepgio do governo como um prestador de servicos cujas exigncias de pagamento intrometem-se indevidamente numa economia de mercado capitalista do tipo laissez-faire, a qual supostamente produziria uma dis- tribuicdo legitima dos direitos de propriedade. Entao, a jus- tiga na tributagdo é vista como a justa partillha dos énus tri- butérios entre os individuos, uma partilha avaliada a partir daguela base. ‘A suposigéo de que 0s resultados pré-tributatios do mercado so justos e de que a justica tributdria trata daqui- lo que pode justificar um desvio em relagio a essa base pa- rece nascer de uma nogao libertéria irrfletida ou “vulgar” acerca dos direitos de propriedade. F certo que a aplicagio cabal de uma teoria politica liberté-ia sofisticada teria resul- tados profundamente implausiveis, que quase ninguém 11. Ea essa conclusio que Graetzchega em sua critica do uso de tabe las de distribuigio. Ele recomencia que os esquemastrbutios sejam avalia dos pelos seus efeitos sobre a distibuigio derenda depois de cobrados os im- postos ver Grae (1995), 30. 22 0 MITO DA PROPRIEDADE aceitaria; mas em sua versio ingénua e vulgar, o libertaris- mo é tacitamente aceito em muitas anidllises de politica tri- butaria. Ensaiamos um diagnéstico dessa situagao na seco VII, onde apresentamos nossas objedes tedricas mais ge- rais & doutrina das cargas tributarias. Embora nosso principal objetivo seja o de que explicar que, com a exigéncia de um prinefpio de eqiiidade vertical, a questo foi erroneamente formulada desde o inicio, nas quatro segbes seguintes desenvolveremos estas criticas da idéia de eqiidade vertical examinando diversas respostas ttadicionais dadas a essa pergunta ~ ou seja, diversas con cepgdes acerca de quais caracteristicas dos contribuintes de- vem ser usadas para determinar a diferenciacao das cargas tributdrias. Na seco Ill, falaremos do principio segundo 0 qual os impostos devem corresponder aos beneficios rece bidos do governo, e nas secdes IV, V e VI trataremos de trés interpretacdes do principio de que os impostos devem estar subordinados a capacidade de pagé-los. ILL. O principio do beneficio Hi uma diferenca entre os contribuintes que sem da- vida parece pertinente: o quanto eles se beneficiam dos ser- vigos governamentais. Muitos chegaram a conclusio de que a justia na tributacdo requer que os contribuintes pa- guem impostos na proporgao dos beneticios recebidos do governo!*, Em geral, pensa-se que as conseqtiéncias prati 12, No decoreer cla histéria,o apelo aos beneficios do governo serviu a ois interesses muito diferentes. Nas mos de sous primeiros defensores ~ um grup muito seleto, do qual faziam parte Grécio, Pufendart, Hobbes, Locke, Rovsseau e Smith (Seligman (1908), 198-204; Musgrave [1959], 61-8) 0 prin- cipio do benefico era compreendido como ama solace para 0 problema da Justa distibuigio das cargas tnbutéris ~ o problema com que nos defconta mos neste capitulo. Esse uso da principio durou até o século XX; ver, p. ex, Hayek (1960), 315-16. Mas, a pari do final do séeulo XIX, os economistas co rmegaram a invocar o principio do beneficio de maneira mais restrita para pro~ curar resolver um outra problema, de determinar o ambito correto da agao cpaTéfJ0S TRADICIONANS DE EQUIDADE TRIRUTARIA 2B cas do principio do beneficio nao so muito claras, uma vez {que nao dispomos nem sequer de uma medida aproximada gos beneficios governamentais que cada individuo recebe. Na verdade, porém, uma vez corre:amente interpretada a jdéia de benelicios do governo, a avaliagao aproximada des- ges beneficios j4 nao parece tao problemética. Para chegar a uma medida ou mesmo uma simples compreensio de qualquer tipo de beneficio (ou énus), temos de nos perguntar: “Em relago a qué2” Precisamos tomar ‘algo como base. A magnitude de um beneficio recebido é a diferenca entre esse nivel basico de bem-estar, antes do be~ neficio, e 0 nivel de bem-estar da mesma pessoa uma vez transmitido o beneficio. Neste caso, a base para a avaliagao dos beneficios do governo é 0 bem-estar de que a pessoa gozaria se 0 governo simplesmente nao existisse; o benefi- Gio dos servigos governamentais tem de ser compreendido comoa diferenca entre o nivel de bem-estar de alguém num mundo sem governo e o seu bem-estar com a existéncia do governo. Que tipo de vida levarfamos se nao houvesse governo? Seria errado imaginar a vida mais ou menos como ela é hoje, com empregos, bancos, casas e cartos, caracterizada apenas pela auséncia dos servicos governamentais mais evidentes, como a Previdéncia Social, o Funde Nacional para as Artes ea policia. © mundo sem governo é0 estado de natureza de Hobbes, que ele apropriadamente definiu como uma guerra de todos contra todos. E, nesse estado de coisas, nao ha dit- vida de que o nivel de bem-estar de todos seria muito baixo e-o que é importante ~ aproximadamente 0 mesmo". Nao piblica, entendida como oposta 3 agio privada ~ quais os beneficios diretos {que o governo dove proporcionar,e em quais ives. Discutimas esse segun- {tipo de principio do benefiio no cap. 4, Para uma visdo geral dos dois tipos de principio do beneficio, com uma apresentacio clara das diferengas entre eles, ver Musgrave (1959), cap. 4 13. Ver Gibbard (1993). Essa idéia no é contrariada pela possbilidade de cooperagia em vista da prategio de todasina estado de natureza ~ pois & ‘exatamente esse 0 carninho que leva a0 govem; ver Nozick (1974), cap. 2 24 OMITO DA PROPRIEDADE podemos nos arriscar a dizer que as diferengas de capacida- de, personalidade e riqueza herdada que geram grandes de- sigualdades de bem-estar numa economia de mercado or- ganizada teriam os mesmos efeitos se ndo houvesse 0 g0- verno para criar e proteger os direitos legais a propriedade e o seu valor e para facilitar as trocas reciprocamente benéfi cas. (Nem sequer mencionamos 0 fato de que, sem o gover- no, a Terra s6 poderia sustentar uma pequena fracao da sua atual populagao humane, de modo que a maioria das pe soas sequer existiria no estado de natureza de Hobbes.) Se a base cabivel para a avaliacao dos beneficios é esse nivel de bem-estar muito baixo, mais ou menos igual para todos, que as pessoas teriam se o governo nao existisse, podemos entao usar o nivel atual de bem-estar das pes- soas, dada a existéncia do governo, como medida aproxi- mada dos beneficios que este thes confere. E se a renda (definida de algum mado) fosse uma medida aceitavel do bem-estar das pessoas, deduziriamos do principio do be- neficio 0 seguinte principio simples de eqiidade vertical para um imposto de renda: as pessoas devem pagar impos- tos proporcionais a sua renda, ou seja, devem pagar todas a ‘mesma porcentagem — uma taxa fixa™. Mesmo deixando de lado as diividas acerca da renda como medida admissivel de bem-estar, essa conclusio no se aplica, Ora, a afirmagao de que é justo cobrar impostos na proporcao dos beneficios nao significa que cada pessoa deve pagar uma determinada quantia em délares em pro- porgio aos beneficios que recebeu, mas sim que cada pes- soa deve ser onerada em termos reais na proporcao dos be- neficios recebidos"®. E uma vez levado em conta 0 fato co- 14, Muitos chegaram a essa conclusio, Ver, . ex, Hayek (1960), 315- 16, Para uma discussdo geral da argumento segundo a qual atributagdo pro- porcional é deduzida do principio do benefici, ver Fried (19993), 15. Fried (199%) discute uma interpretacio muito diferente do principio do beneficio (entendido como um principio de justica na teibutagio}: oi ppostos devem ser compreendidos como as presas pagos a0 governo pelos seus servigos, de tal modo que, como no mercado dos bens privadas, pouco Jmporta © quanto & dil para urna pessoa o consume de uma daca quantidade ‘cRITERIOS TRADICIONAIS DE EQUICADE TRISUTARIA 25 rnhecido da decrescente utilidade marginal do dinheito, nao fica clara qual é a estrutura de aliquotas de imposto de ren- da recomendada pelo principio do beneficio. Dependendo do modo pelo qual diminui a utilidade marginal do dinhei- ro, 0 principio pode recomendar uma tributacdo progressi- va, proporcional ou até mesmo regressiva®. Logo, mesmo que fosse aceito como um ideal, o principio do benefficio ha~ veria de deparar-se com um problema pratico: sua imple- mentagao exige um conhecimento da taxa de declinio da utilidade marginal do dinxeiro e de o quanto esse declinio varia de pessoa para pessca"®, Trata-se de um problema en- dk servos governamentas¢ 0 quant he € peu opagamen de uma eva qmta em dares lace imposing pesson vem page sunhe ta de Ulster proporconas 8 uanficade de seregos consumios, Ma Como ela mena demonsra Se mao mutoconeincente, nan se sabe qual 6 panpo de justin que poder esac ports da visto ds imposts como Pregot “secrctoe" cates pele “serigx” do governo, Blum e Kalven (152), 454 referee 3 "wth ergata: se os seo pobre pa 5m 0 mesmo por um pedagn depo) por que nao deve pag © Mesto pelo govern?” Pac, comfeoto pasn de erica pots govern to verdad no uma meron quests ends, Se ces deato om mos tv pra se pensar que uso coneeber-seogoveno tomo sel fs Una etcadora,precsamos cect esse motivo Fed econsto alguns ag menios em favor dena a, concrdamos con sun impugn ses a fumenton A inepetago mate trade! do pnp do benefoo en {wont principio de niga ma rags) depend, pela conta de umain= tig simples econencene 35 persoas deve sr onerndas pelos Impos tesa mea proporgaodosbereos que ecebem Sago gos impoates roman posse Peden se que adeqund visio ent os sens pablics os pi vodos poss ser determina por a congo doe sengos governamen tis como meeadois cus ofa dove ser determinada pele proc, Mos Como j cisemos (er not 12), ea questo € mato afernte da queso da iis catia das args tbttas em ger * a ibutagdo€ progres sa aliqota ma aumnta com arenda (oucomaualquer air base ribtr),proprconl se quota mea pe Imanee constant 3 medida qa ends umenta © veges se 9 alquot india imine end (O tan itt pogetsv usados 2s num semdo dierent nos tetas sre tua eeindose eto a Alqutas argos cess) 16.0 paraipio do benef tal come et send interpreted ag Bena verdade gue spss sm onerads pels mpsios a me Fata AT 26 O MITO DA PROPRIEDADE frentado por muitas medidas de eqiiidade vertical; adiante, voltaremos a falar dele num contexto diferente. ‘Mas 0 principio do beneficio tem um problema ainda mais fundamental: quer nos recomende a tributagao pro porcional, quer nao, ele nao pode nos dizer nada acerca de quais devem ser as aliquotas, pois nada nos diz acerca de qual o nivel adequado de gastos do governo. Toma 0s gastos como dados e distribui os impostos proporcional- mente aos beneficios resultantes. Esse é um exemplo da- quilo que chamamos de miopia. A primeira vista, esse problema passa facilmente desa- percebido. Acaso nao devem as aliquotas ser fixadas num nivel suficiente para pagar pelos servicos governamentais, considerados desejaveis pelo processo democratico? £ a po- litica comum que determina 0 que o governo deve fornecer; @ principio do beneficio nos diz. como financiar de maneira justa os gastos governamentais. O problema dessa linha de pensamento, porém, é que ela pretence que a discussio da natureza e da extensio dos servigos governamentais nao suscita, por si s6, questdes de justica. Uma vez admitida a existéncia dessas questies, fica claro que o principio do be- neficio ndo pode servir como um critério de justiga tributaria ‘A confusdo se evidencia quando consideramos que, se gundo a maioria das teorias de justiga social, um dos princi- pais objetivos do governo é o de fornecer (pelo menos) uma enda minima e servigos de satide aqueles que de outra ma- neira seriam indigentes"”, Porém, se esse 6 um dos objetivos porcio do seu bem-estar; na prica, portant, ele éequivalente 20 principio de «que 0s impostos devem cobrar de cada pessoa o mesmo sactifcio proporcional de bern-estar (discutido na se¢o VI, abaiyo). J demonstramos que esse crite rio pode acarrelar uma tributagio progressiva, proporcional ou regressva de pendendo di taxa de dectinio da utlidace marginal do dinheiro. Para uma dis- cussio sucinta a esse respeto, com referéncis, ver Musgrave (1958), 100 17. Mesmo a Lei de Responsabilidade Pessoal e Oportunidade de Tra- batho, que determinou o “fim do bem-estar social” nos Estados Unidos em 1996, nio tocau nas vales-limentagio e no Medicaid [servigo de auxtio~ sade & populagdo de baixa renda ~N. do}; quanto 2s mudancas introdu zidas por essa le, ver Hershkaif e Loffredo (1997) para relatrios atuaiza CcRrTERIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA 7 do governo justo, ele entra em conflito com o principio do beneficio. Isso porque, se 05 muito pobres abtém menos be- neficios do governo do que os ricos, eles ainda assim se be- neficiam deveras em comparacao com seu estado na guerra de todos contta todos — especialmente num pais que possui pelo menos um sistema mfnimo de bem-estar social. Se gundo o principio do beneficio, portanto, os pobres tém de pager pelo beneficio recebido na proporgio do tamanho deste, Por outro lado, é absurdo fornecer uma renda mini- ma e depois exigir um pagamento por esse servigo*. No fi- nal, 0 principio do beneficio, enquanto principio de morali- dade politica, ¢ incompativel com qualquer teoria de justiga social segundo a qual o governo é obrigado a oferecer aos pobres um tipo qualquer de complementagio de renda ou servigo de bem-estar sociel (isso sem falar das teorias que postulam objetivos distributivos ainda mais igualitarios) Ora, existem teorias dz justica social que rejeitam todo tipo de apoio avs pobres, ntendendo-o como uma forma ilegitima de redistribuicao nao determinada pelos retornos do mercado, Nesse contexto, pade parecer que o principio do beneficio nao sofre de miopia de modo algum, mas an- tes nasce de uma teoria libertéria mais ampla da moralida- de politica segundo a qual a distribuicdo de bem-estar pro- Ss soe cht ne ie do Un ies, Mp ttn oriaewafoasfocuswelne al shad por ns plana et ‘em 30 de maio de 2001). ‘ a a - “Noah Felman ama que exe abd pera ser contornado por tum pinpio do Benefoencaado de maneia mais ampla¢compresndice ro somente como um pnp depois Ibu, as ates como um prio gerald jut, el qualosnvidvs sho digas a page pots Benetton governameniasnios aves dosimestos as por ure com tagio de aad, obedéni dss apoio de sent 90 Estado (oe do oreeatarena em eno de gue por sep), Nese as, Imsmo o que recebern una red do Estado nio pagar imposts team de pagar em expec, por asim das, pels benef eehdon No preter demos alr es inetessate Ke omo uo tear desig dtu, De quslguer mone nose sabe elo pera ser deemed de el odo ue este result noma propos defini pra a tbo de carga 28 DO MITO DA PROPRIEDADE porcionada pelo mercado é supostamente justa e nao deve ser perturbada pelo governo. Na verdade, porém, 0 principio do beneficio é incom- pativel com todas essas teorias da justiga. Isso porque, se partirmos do pressuposto de que a base pré-tributdria é um dos retornos do mercado que nao sofreram a interferéncia do governo, e supusermos ainda que a distribuigio resul- tante é justa, teremos de considerar injusto o principio do beneficio na tributagdo, uma vez. que ele distorce essa dis- tribuicao. Pelo principio do beneficio, aqueles que recebem muito do mercado tém de pagar muito mais, em termos reais, do que os que recebem pouco"*. Se os resultados de mercado sio justos por pressuposto, isso nao se justifica; é preciso entao encontrar outro método mais eqiiitativo para pagar pelos custos do governo e da protecao juridica da eco: nomia de mercado. Examinaremos esse critério ~ 0 princi pio da igualdade de sacrificios ~ na segao V, abaixo. Nao se pode, entretanto, procurar salvar da incoeréncia 0 principio do beneficio inserindo-o numa teoria mercadolégica dos direitos de propriedade. Ele é incoerente com todas as prin- cipais teorias da justiga social e econémica. IV. Capacidade contributiva: talento pessoal No decorrer da histéria, a principal alternativa ao prin- cipio do beneficio sempre foi o principio de que o imposto deve ser cobrado de acordo com a “capacidade contributi- va" dos cidadaos. Atualmente, 6 esse o critério de eqitidade vertical mais difundido; na Alemanha, na Itélia e na Espa- nha adquiriu carter constitucional”. 18, Mais uma vez, estarnosfalando da forma mais geral do principio do beneficio, baseada no benefico total recebido do governo ~ e ndo da forma restrita pela qual ele é usado para determiner a quantidade adequada de ser vigos a ser aferecida pelo poder publica. Ver nota 12 e cap. 4 19, Ver Vanistendael (1996), 22-4 ican cana cprTéRi0S TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBLITARIA 29 ob este ponto de vista, a iniqiiidade do imposto fixo in- dividual esta em que ele ignora o fato de que as pessoas si0 Giferentes em sua capacidade de arcar com o énus do paga~ mento de impostos. claro que a nogio de capacidade con- tributiva € muito vaga e foi interpretada de diferentes manei- ‘as. Bis uma das primeiras ambigilidades: acaso ela se refere 2 capacidade das pessoas de pagar impostos em vista de sua situagao econémica atual - dadas as decisdes que tomaram, na vida e a renda e a tiqueza que agora possuem? Ou se re- fere & sua capacidade contributiva em vista das decises que poderiam tomar e, portanto, da renda e da riqueza possivel- mente maiores que teriam a capacidade de obter? Segundo esta tiltima interpretacio, a idéia de capacidace contributiva leva a idéia de tributagao pelo talento: as pessoas devem pagar 0s tributos de acordo com os talentos que possuem, defini- dos como sua capacidade de obter renda ¢ acumular rique- 2as, E evidente que a renda potencial pode ser maior do que arenda atual. Por esse principio, a pessoa que abandona uma carreira de sucesso nos negocios para se tornar um escritor fracassado ganha menos do que poderia ganhar. Sob o prin- ipio da tributacao pelo talento, os impostos cobrados dessa pessoa no diminuiriam quando sua renda diminuisse Ninguém propée a implementacao efetiva da tributa- Gao pelo talento ~ um dos problemas mais evidentes é a di- ficuldade de medir a renda maxima potencial de uma pes- soa". Entre os economistas, porém, nao é incomum que a idéia de tributagdo pelo talento seja apresentada como 0 principio fundamental de justificagao da politica tributaria. O pensamento é que um esquema tributatio iceal, ouo me- Thor de todo os esquemas, faria uso do principio do talento; 6s esquemas tributdrios efetivamente propos:os seriam op- ges secundarias na medida em que, embcra tendam ao ideal, tém de desviar-se dele em virtude de diversas consi- deracdes praticas® * Outra problema éa possvelinteomissio.na autonoria dos contibuin tes ~ ver capitulo 5, sogdo Vill 20. Ver, p. ee, Minlees (1986), 1197-8, 1209-17; Atkinson e Stiglitz (1980), 986-62, 30 (OMITO DA PROPRIEDADE A origem do principio do talento est nas primeirissi- mas verses da teoria da capacidade contributiva. Segundo essa idéia original, a capacidade contributiva das pessoas, chamada também de “faculdade’, era entendida como uma funcdo da propriedade ou da riqueza”", Nao ha nada de es- tranho nisso ~ no sentido literal, a pessoa mais rica ¢ mais, capaz de transferir dinheiro para 0 Estado. Porém, além dos bens materiais, as pessoas tém 0 que 0s economistas cha~ mam de "capital humano”: os recursos de conhecimento, habilidade, personalidade, relacionamentos etc. que as ha- bilitam a agir produtivamente ~ sendo o caso mais impor- tante dessa acao a obtengao de salérios numa economia de mercado. Por isso, nao surpreende que ja no século XIX al- guns analistas fossem de opiniao de que a correta definigao da capacidade contributiva era o talento no sentido pleno da palavra, o que inclui a renda potencial da pessoa” Uma vez, porém, que a “liquidagio” do capital huma- no nao acontece sem o trabalho, a interpretagio da idéia de capacidade contributiva como talento s6 guarda uma rela Gio inditeta com o valor da justiga. Uma coisa é acreditar que as diferengas na renda atual devem determinar a distri- bbuigdo das cargas tributérias porque as pessoas de mais ren- da tém mais dinheiro & disposi¢ao ~ e actediitar também que cobrar 0s mesmos impostos de todos ¢ injusto porque quem tem mais dinheiro deve pagar mais. Como veremos, essa idéia simples e imprecisa ndo basta como fundamento de uma teoria da justiga na tributagdo, mas pelo menos tem uma certa plausibilidade intuitiva inicial. Nao podemos di- et o mesmo da idéia ~ muito diferente - de que a renda po- tencial deve determinar a distribuigdo das cargas tributérias. Se duas pessoas, Bert e Kurt, ganham atualmente a mesma coisa, mas Bert a ganha em sua plena capacidade € 21, Quanto 3 histria da idéia de capacidade contributiv, ver Seligman (1908), 204-9; Kiesling (1992), cap. 2. 22, Ver Walker (1888), 14-16, Paro uma reafirmacio recente dessa inter- pretacio da eapacidade contributiva, ver Bradford (1986), cap 8. _exrr#pu0s TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA 31 arta ganha abaixo de sua capacidade, o que haveria de in- "justo em cobrar de ambos a mesma quantia absoluta? Nao ‘podemos dizer que Kurt tem mais dinheiro a disposicéo, | pois ndo tem. Talvez ele tenha mais tempo livre e por isso es- ~_eja em melhor situacio de que Bert”, Mas isso nao é neces- “sariamente assim: pode ser que Kurt e Bert trabalhem o mes- x0 mimero de horas, mas Kurt ganha menos do que pode- ‘sia ganhar porque decidiu ser professor e no advogado. ‘Porém, quer tenha rrais tempo livre, quer tenha uma ‘profissdo menos bem paga, Kurt leva uma vantagem sobre Bert no sistema tributario normal: ele tem algo de que gos- ~ ta e que lhe custa alguma renda, mas s6 uma renda que ele ‘nao chega a ganhar. Por isso, na medida em que os impos- tos sao cobrados sobre a tenda atual, Kurt goza dessas van- tagens sem ter de pagar impostos por elas, por assim dizer. Nao se the cobram impostos sobre a renda de que ele abre mao por trabalhar menos ou por ser professor em vez de advogado — ao passo que se cobram impostos de Bert sobre a renda que tem de ganhar para comprar um BMW. Essa distingo pode parecer infqua e arbitraria. Pode-se pensar que, pelas exigéncias do tratamento eqiiitativo, essa dife- renga tem de ser levada em conta no esquema tributario e 05 impostos nao sejam cobrados somente sobre os rendi- ‘mentos em dinheiro, a fim de negar a Kurt o “passe livre” que ele ndo merece ter". A eqiiidade, contudo, nao é 0 principal motivo que os economistas contempordeos apresentam em favor do ta- 2. Ver também capitulo 5, nota 67. * Huma outrarazio pela qual se pode pensar que, por justia, Kurt ‘em de pagar uma quanta asoluta maior. Denando de ganar toda a nda ue poderia ele esté de ceta maneia fogindo as suas responsabilidades ‘Wilker (1888, argumentando exencialmente dessa mancia,conchi acerca de Kurt e seus iguais: "Sua delingiéncia sociale produiva, longe de alivi-lo «de uma porgio qualquer de sua cbrigacio, justia antes que se lancem sobre ses obo rds ads mais pon racers pen aes seu mau exemple seu péssimo compoctamenta infigam a comunidad” (15) Waker fal o pens rendered ston tain Nore Americ a patie de 1885, 32 OMITO DA PROPRIEDADE lento como principio ideal de tributagdo. A defesa que eles fazem desse principio nao gira em torno da justiga ou da obrigaco moral’, mas sim do fato de que um imposto co- brado scbre o talento, ao contrario do cobrado sobre a ren- da atual, ndo desestimula o contribuinte a trabalhar mais* O imposto cobrado sobre a renda real tem dois tipos ‘opostos de influancias comportamentais. O primeiro é 0 de encorajar as pessoas a trabalhar mais ou a optat por profis- sdes mais bem remuneradas; é devido ao que os economis tas chamam de efeito de renda — os impostos deixam o con- tribuinte mais pobre e assim reduzem suas oportunidades de consimo. © segundo, chamado de efeito de substitui- Gio, € que os impostos, na medida em que diminuem a re- compensa por unidade de trabalho, encorajam as pessoas a trabalhar menos. Sem o imposto, uma hora a mais de tra- balho pode valer mais do que uma hora de écio; com o im- posto, ahora a mais de trabalho pode valer menos do que a hora de écio. O imposto cobrado sobre o talento ou a ren- da potencial, por sua vez, é um imposto de valor fixo €, a8- sim, s6 tem 0 efeito de renda. O efeito de substituigao néo existe, pois, quer se trabalhe uma hora a mais, quer nao, 0 mesmo imposto tem de ser pago. E por que é preferivel um imposto sem o efeito de substituicio? A resposta nao tem nada que ver com a jus- tiga. Antes, baseia-se num argumento essencialmente uti- litério®. O utilitarismo como teoria moral exige que cada pessoa [aca o que for necessério para promover 0 bem-es- tar do maior ntimero. Porém, aplicado & politica tributéria, © utilitarismo nao quer saber se as pessoas esto cumprin- doo seu dever enquanto tal, e na verdade nao da nenhuma importancia 4 questdo da responsabilidade moral indivi- 24, Bradford constitu uma notivel excegdo a essa regra; ver nota 22. * No capitulo 5, seco VII, discutimos os argumentos baseados na jus- tiga em favor de um imposto sobre o talento, 25, Ignoramos aqui as diferencas entre a tearia politica utilitarista e os pressupostos da economia de bem-estar. Para uma discussdo desse ponto, ves, es, Atkinson e Stiglitz (1980), 333-65; ver também capitulo 3, seqio V cRITERIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA 33 dual. Procura, isto sim, determinar a forma das instituiges como meio de afetar 0 comportarrento das pessoas. © utilitarista tem um interesse puramente instrumen- tal pelo comportamento humano. Aplicado ao problema do projeto tributério, o utilitarismo nos diz que o melhor siste- ma tributério é 0 que promove de maneira mais eficaz 0 pbem-estar do maior niimero, quer por meio de incentivos, quer por outros meios: 0 objetivo é projetar um esquema tributdrio que estimule as pessoas a agir da maneira que melhor sirva a esse bem conjunte. Sob esse ponto de vista, o efeito de substituicdo é sempre mau, pois pode fazer com que uma pessoa que em outras condigées decidiria traba~ Ihar uma hora a mais prefira nao fazé-lo, desestimulando assim uma troca reciprocamente kenéfica. Assim, no que diz respeito aos efeitos sobre 0 comportamento, o imposto de valor fixo é 0 ideal. £ claro que o imposto fixo individual também é um imposto de valor fixo, mas é facil perceber por que 0s utilitaristas preferem o imposto sobre o talento: ele da as pessoas mais produtivas mais incentivo para tra- balhar do que &s pessoas menos produtivas. Do ponto de vista utilitarista, é melhor que 05 mais produtivos renun- ciem ao dcio®, Como jé varias vezes se observou, 0 utilita- rismo é compativel com 0 que Manx disse na “Critica do Pro- grama de Gotha”: “de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades” Podemos concluir que a defzsa econémica cléssica do principio do talento como princfpio ideal para a politica tri- butdria nao deve ser compreendida como uma interpreta- so do principio de “capacidade contributiva”, uma vez que este dltimo termo pretende set uma resposta ao problema da eqiiidade vertical ~ 0 problema de determinar a justa distribuicdo dos nus fiscais entre pessoas em situagdes di- ferentes. A justificativa classica ndo é a justiga, mas a utili- dade coletiva 26. Ver, p- x, Tuomala (1990), 51-7; Stghte (1987), 983-6. 34 (0 MITO DA PROPRIEDADE V. Capacidade contributiva: igualdade de sacrificios Ja vimos que, se a base tributdria é a renda obtida de fato, a eqiiidade de se cobrar mais impostos dos que tém mais renda pode ser defendida por um raciocinio simples: 0s que tém mais dinheiro tém mais capacidade de contri- buir. Embora pareca perfeitamente plausivel, essa idéia nao deixa de ser ambigua. Ha pelo menos dois sentidos dit rentes segundo os quais se pode dizer que 0 rico tem mais capacidade contributiva do que o pobre. Em primeiro lugar, poclemos dizer que as pessoas mais endinheiradas pocem se dar ao luxo de se desfazer de mais dinheiro porque 0 ex- cedente de dinheiro que possuem vale menos para elas em termos reais. Assim, elas podem pagar mais do que os po- bres ~ as vezes, muito mais - sem sofrer uma perda maior de bem-estar, Por outro lado, podemos dizer que as pessoas mais encinheiradas podem se dar ao luxo de se destazer de mais dinheiro porque, mesmo que facam um sacrificio real maior, a quantia que lhes vai sobrar ser também muito ‘maior: em certo sentido, elas ainda terao o suficiente ~ e ain- da serdo mais ricas do que os que tinham menos desde 0 comeco. John Stuart Mill declarou-se explicitamente a favor da primeira dessas possibilidades; é a ele que devemos a ‘dia da famoso principio da igualdade de sacrificios®”. (Vol- taremos i segunda possibilidade na prdxima seco.) De acordo com o principio da igualdade de sacrificios, © justo esquema tributério distingue os contribuintes de acordo com sua renda e pede mais dos que t&m mais, de modo a garantir que cada contribuinte arque com a mesma perda de bem-estar ~ ou seja, de modo que o custo real, ¢ no 0 custo monetério, seja o mesmo para todos. Neste caso, a suposigdo factual fundamental é a da diminuigao do valot marginal do dinheiro; o prinefpio da igualdade de sa- criffcios pode motivar um esquema tributério progressivo 27 Ner Mil (1871, veo 5, cap. 2 ner | i} cRITERIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBLTARIA 35 on proporcional dependendo da taxa segundo a qual dimi- ui'a utilidade marginal da renda ‘Nao sabemos 0 quanto essa utilidade marginal dimi- nui, mas 0 fato de o principio da igualdade de sacrificios exigi talvez um tanto de especulagao empirica para ser im- plementado nao é sinal de que de é incorreto. Toda teoria plausivel de justia tributéria tera como uma de suas partes tim célculo aproximado, e é um erro grave preferir uma teo- ria da justiga a outra pelo simples fato de a primeira pare- cer mais fécil de implementar, Como disse 0 economista Amartya Sen, “é melhor acertar aproximadamente do que errar com precisio” Por enquanto, nossa questo é um pouco mais funda mental: queremos saber se 0 prinefpio da igualdade de sa- crificios € plausfvel enquanto princfpio de moralidade pol tica. Um sactificio é uma carga ou um énus; como no caso dos beneficios, nossa compreensio da natureza dos dnus depende da base que tomamos como critério de compara- Gio, Estd claro que a base de comparacao para o principio da igualdade de sacrificios ndo é 0 mundo sem governo e a guerra de todos contra todos, Seria essa a base corteta se 0 principio visasse a igualdade de sacrificios ligitidos — os onus do governo menos 0s seus beneficios. Entretanto, sabemos que 0 governo, na verdade, nao impée um sacrificio liqitido a ninguém; em se tratando dos governos que nao escravi- zam, assassinam nem perseguert partes da populagio, cada cidadao de uma sociedade dotaca de governo esta em me- thor situacdo, depois de pagar seus impostos, do que esta- ria se nao houvesse governo. Por isso, evidentemente, ndo €a igualdade de sacrificios Iiqiiicos em relagao ao nivel mi- serével do mundo sem governo que é defendida pelos adep- tos do principio de justiga tributaria pela igualdade de sacri- ficios. A idéia deles é que a justa tributagio cobraré de cada qual o mesmo sacrificio, medio este pela base da renda pré- tributaria, sendo essa renda possivel somente com a exis- téncia do governo, ‘Nossa principal objecao a essa idéia é que ela trata a jus- tiga das cargas tributérias como se esta pudesse ser separa 36 O-MITO DA PROPRIEDADE da da justica dos padrées de gastos do governo — 0 proble- ma que j chamamos de miopia. Trata “o conjunto dos im- postos como se eles fossern somente uma calamidade pt blica ~ como se o dinheito dos impostos, uma vez coletado, fosse langado ao mar”8, Na verdade, os impostos s80 co- brados em vista de um objetivo, e todo critério adequado de justiga tributdria deve levar em conta esse objetivo. O {que importa nao 6 se os impostos ~ considerados em si s30 cobradas justamente, mas se é justa a maneira global pela gual 0 governo trata os cidadaos ~ os impostos cobrados ¢ 0s gastos efetuados Em geral, 0s tributos nao s4o como as multas criminais, que, segundo uma interpretag3o possivel, impéem custos simbélicos ou morais que superam seus custos monetérios. Assim compreendidas, as multas criminais consideradas em si mesmas devem ser impostas com justiga, uma vez que as multas injustas ofendem ou defraudam uma pessoa mes- mo que esta nao tenha dificuldade para paga-las ou que elas sejamn compensadas, em matéria de dinheiro, por fun- dos transferidos pelo Estado. E certo que existem certas pre ticas tributarias posstveis que sdo intrinsecamente injustas em virtude de seus objetivos ou efeitos discriminatérios; nenhuma transferéncia monetéria compensaria suficiente- mente as vitimas desse tipo de injustiga fiscal. Porém, esses casos excepcionais ~ falamos deles no capitulo 8 ~ nao de- vem ser considerados representativos em relagio ao assun- to de que ora tratamos; no que diz respeito aos seus efeitos puramente econémicos, a justiga na tributagao é uma ques- to que deve ser inserida na categoria mais geral da justica social como um todo. Uma vez que a justica na tributagdo nao é uma reali- dade isolada, ndo podemos afirmar com seguranca que 0 Estado deve cobrar sactificios tributérios iguais de todas as pessoas, tendo por base a renda pré-tributéria, e ao mes- mo tempo nao nos pronunciar acerca de qual seria a justa 28. Blum e Kalven (1952), 517. onsen ‘cRFTERIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA 37 olitica de gastos. Como escreveu Pigon ha mais de cin- giienta anos: O bem-estar econdmico das pessoas depende de todo o sistema juridico, que nao inclui somente a legislagao tribu- trio, mas as leis que regem a propriedade, os contratos e as herancas. E perleitamente arbitrévio exigir que a legislagio tributétia afete igualmente as satisfacSes de pessoas diferen- tes e debar que o restante do sistema juridico as afete de maneira totalmente desigual Entretanto, o principio da igualdade de sacrificios nao pode ser rejeitado tio sumariamente quanto o principio do beneficio, uma vez que, ao contrario deste ultimo, ele de fato é coerente com uma teoria mais ampla da justiga se- gundo a qual nenhum gasto ou tributo cobrado pelo gover- no pode alterar a distribuigéo de bem-estar produzida pelo mercado. Essa teoria libertéria da justiga, tipicamente ba- seada numa nogao quer de merecimento dos frutos do tra- ball, quer do tigido direito moral aos resultados de mer- cado pré-tributérios, limita o papel do Estado a protegao desses e de outros direitos e, talv2z, ao fornecimento de al- guns bens publicos incontroversos. Se (e somente se) for essa a teoria de justia distributiva por nds aceita, o prinet- pio da igualdade de sacrificios tem sentido. Ele tem sentido porque a teoria limita os servigos do go- verno aos servicos necessadrios para garantir os direitos de todos de uma forma que s6 0 Estado pode fazer. O paga- mento por esses servigos minimos que beneficiam a todos 6 entio compreendido naturalmente como uma divisdo dos custos de um 6nus comum Sob esse panto de vista, o governo nao deve se dedicar aalterar a distribuicdo de bem-estar, mas seus servicos (po- liciamento, estradas, regulamentagdo financeira etc.) tén de ser pagos mesmo assim. Como deve ser distribuido esse 29, Pigou (1947), 44 38 (0 MITO DA PROPRIEDADE mus? Para 0 adepto do libertarismo, o prinefpio da igual- dade de sacrificios parece proporcionar a solugao natural para esse problema da justica na tributagdo — se partimos do pressuposto de que a distribuigdo de bem-estar produ- zida pelo mercado é justa, 0 que poderia ser mais justo do que cobrar de todos 0 mesmo tanto em termos reais (e nao em dinheiro)? Coma vimos, a principio do beneficio nao se justifica a partir desse ponto de vista. Extraindo de todos a mesma proporcio do beneficio total que tiram da existéncia do go- verno, ele cobra muito mais, em termos reais, dos mais ri- cos, ¢ assim altera a distribuigdo supostamente justa produ- zida pelo mercado livre. [4 © imposto fixo individual nao pode ser defendido como uma maneira justa de financiar um governo imposto a todos independentemente dos dese- jos de cada um, uma vez que ele prejudica alguns mais do que 08 outros e, na verdade, prejudica mais aqueles que jé so mais pobres. Assim, o principio da igualdade de sacrifi- ios ~ a cobranca de impostos diferenciados de modo que todos partilhem igualmente o nus em termos reais — deve a principio ser levado a sério, uma vez que pelo menos eris- fe uma teoria da justiga na qual pode se encaixar. Entretanto, convém deixar bem claro que nao se pode dizer 0 mesmo de outras teorias da justiga. A consideragao isolada da justiga na tributagéo como uma partilha equita- tiva do fardo comum entre os cidadaos depende direta- mente do pressuposto libertério de que nao existe a ques- 80 correlata da justica distributiva nos gastos pablicos ou no fornecimento de servigos governamentais. Uma vez re- jeitado esse pressuposto, j4 nao é possivel tratar os impos- tos como uma “calamidade puiblica” que atinge igualmen- tea todos, Uma forma irrefletida do libertarismo projeta sua som- bra sobre muitas discussdes de politica tributaria; mais adiante falaremos sobre 0 quanto isso tem sido prejudicial, Por enquanto, observamos somente que so poucos os que se comprometem conscientemente com a teoria libertaria sxe pavi0$ TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA 39 da justice. Quase ninguém acredita realmente na suposta justia dos retomos co me:cado; quase ninguém pensa que, por ustiga, © governo nao deve fornecer apoio aos cidadaos Piserdveis que nao tém acesso a alimento, abrigo e cuida- dos de satide. Assim, embora o principio da igualdade de sacrificios tenha sido defendido por muitos no decorrer dos ‘itimos 150 anos, a teoria da justiga da qual ele depende nao foi Essa dissondncia no nivel dos primeiros prinefpios ge- ralmente desaparece no nivel das propostas concretas de reforma tributdria. Quando se chega a esse estégio, o prin- cipio da igualdade de sacrificios é sempre abandonado na pratica: ninguém propde um esquema tributério que nao contemple uma substancial isen¢ao pessoal ou ndo estabe- Jega um nivel de tenda livre de impostos. Além disso, prati- camente todos 0s tributaristas defendem uma forma ou outra de transferéncia de divisas para 0s que realmente nao conseguem se sustentar. Nao obstante, a dissonancia no nivel dos primeiros principios tem importantes conseqitén- cias politicas; discutiremos extensamente esse ponto na se gio VIL Enquanto isso, vamos rever algumas outras interpreta des da idéia genérica de que os impostos devem set cobra~ dos de acordo com a capacidade contributiva do cidadao ~ interpretagdes que nao tém as ressondncias radicais do prin- cipio da igualdade de sacrificios VIA capacidade contributiva ‘como uma idéia igualitaria Tal como o entendemos até agora, 0 principio da igual- dade de sacrificios exige que a tributagao imponha a cada contribuinte a mesma perda real de bem-estar. Na literatu- ra tributatista, dé-se as vezes a isso o nome de principio da igualdade de sacrificios absolutos, 0 qual se distingue de dois Outros prinefpios, o da igualdade de sactificios proporcio- 40 (OMITO DA PROPRIEDADE nais e 0 da igualdade de sactificios marginais®. O costume de apresentar esses trés principios como interpretacdes de uma mesma idéia basica de igualdade de sacrificios nao é muito corto, uma vez. que os dois tiltimos nada t&m que ver com aidéia de que um sistema tributario justo deve im- por os mesmos sactificios a todos; antes, devem ser com- preendidos como contestagdes dessa idéia e de suas conse- qliéncias -adicais. Nao precisamos discutir aqui principio da igualdade de sacrificios marginais, uma vez que ele representa uma idéia essencialmente utilitéria e ndo tem nenhuma relagdo com a justa distribuigdo das cargas tributdrias®. Jé o princi- 30, Ver, p. ex, Musgrave e Musgrave (1988), 28-31. A iddia& discutida ‘em Musgrave (1958), 95-8; Blume Kalven (1952), 455-71; ried (1998), 153-5 (Um das primeiros defensores do principio da igualdade de sarilicios propor cionais foi economista holandés A.J. Cohen-Stuart; ver Musgrave (1958), 98, Em Edgeworth (1897) temos urna das primeiras defesas do principio da ‘gualdade de sacrficios matginais, 31, Isso € posto em evidéncia por Edgeworth (1897). O principio da igualdade de sacrifiios marginais preconiza que o lime délar que cada pes- soa paga de mposto exija dela 0 mesmo sactifco real que exige das demais. Se © valor marginal da renda diminui com a aumento da quantidade de dinheio, ‘a consequéncia hima do principio da igualdade de sacrifcios marginais & que ‘enum déler deve ser pago por uma pessoa mais pobre enquanto ainda hou- ver conteibuintes mais rcos ~ uma vez que o délartributario do mais pobre sempre Ihe custard mais bem-estat de que a perda de um dela custatia pes 9 mais rica. Uma vez que todas as rendas remanescentes forem iguais, po- rm, todas as pessoas devem pagar a mesma quantia em impostos (Como dalates s30 sempre tirados primeira daqueles para quem tém ‘menos valor real, esse esquema tibutario também minimiza 0 sacifico rea ‘otal com que arcam todos os contibuintes. Seria esse, na verdade, © objetivo de um tal esquema, No se pode crer que a idéia de que cada pessoa faca o mesmo saesficio com seu iltimo délar pago de imposto seja uma exigencia da justiga. O verdadeiro motivo que explica 8 acetacio dessa doutina tibutatia a minimizagd0 do sacifco total assim, o melhor é cham-a pelo seu nome alternativ, “principio do minimo sacifcio" (Edgeworth, 1897, 131) A idéa de que a tributagdo deve ser cobrada de modo a minimizar 050 crificio total é sem dlivida uma ida wiltaista, posto que, a0 que parece, nio seja uma iia muito boa, uma vez que, a rigor, © objetivo do governo segun- {6000 utiltarismo é 0 de maximizar 0 bem-estar total. Pode ser que, para tan- to, soja necessirio dispor os trbutos de tal modo que o saeifco total seja mi- nimmo (dads uma certa receita), mas também pode ser que nao, uma vez leva~ ' t | i cparéfs0S TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA “1 io da igualdade de sacrificios proporcionais é importante Poste contexto, Ma Vez que expressa uma interpretacZo ipualitéria da idéia de capacidade contributiva. Embora esse principio ja nao seja quase nanca mencionado explici tamente, ele corresponde a ume concepgio bastante co- mum de justiga tributaria principio da igualdade de sacrificios proporcionais estipula que 0s individuos arquem com cargas tributdrias proporcionais ao seu nivel de bem-estar®. Isso significa que, quanto mais rica é a pessoa, tanto maior o sacrificio real que lhe deve ser imposto pela tributagao. A tinica coisa igual para todos nesse esquema tibutdrio é a proporcao de tbem-estar perdida pelos contribuintes. E, como é ébvio, proporgées iguais nao sao quantidades iguais; se todos dao a mesma proporcéio, 0s mais ricos dio mais em termos reais (muito embora também fiquem com mais). Por isso, a palavra “igualdade” é redundante no rétulo “igualdade de sacrificios proporcionais” — a expresso "sacrificios propor- cionais” denota a mesma idéia. Como observamos no comego da seo anterior, a idéia de capacidade contributiva nao precisa necessariamente set interpretada em fungio da diminuicéo da utilidade mar- ginal do dinheiro; pode ser entendida como a afirmacao politica de que os mais ricos padem “se dar ao luxo” de sa~ crificar mais, em termos reais, do que os mais pobres, uma vez que ainda Ihes sobrara mais. Essa interpretagao da no- gio de capacidade contributiva, exigida pelo principio dos sactificios proporcionais, é diametralmente oposta ao prin- cipio da igualdade de sacrificios. A idéia de que os mais ri- cos podem arcar com um sacrificio real maior admite a tri- butagdo como um meio legitimo de redistribuigao separada das em conta as questes relacionadas aot incentivos e outros fatores perti- entes. Contudo, 0 problema do melhor esquema tributirio segundo 0 ponto de vista tlitarista nao nos interessa aqui (voltaremos a esse problema no c2- Pitulo 8) 32, Como observamos na nota 16, iso equivale a uma determinada in ‘expretagio da principio do beneticio, a2 OMITO DA PROPRIEDADE dos retoros do mercado, beneficiando os mais pobres as expensas dos mais ricos. Assim, o principio dos sacrificios, proporcionais contrapée-se a teoria libertaria da justica que esta por trds do prinefpio da igualdade de sacrificios Uma vez que a idéia-mae do principio de sacrificios proporcionais é simplesmente a de que a tributagao deve exigir mais, em termos reais, daqueles que tém mais, a f6r- mula da proporcionalidade estrita nao tem nenhuma prer- rogativa especial. A mesma idéia geral poderia motivar, por exemplo, uma concepgao ainda mais igualitéria, segun- do a qual os impostos devem ser recolhidos em proporcoes cada vez mais alias & medica que cresce o nivel de bem~es- tar. Com isso, chega-se a uma concepgao da justiga tributé- ria cujo principal atrativo é a flexibilidade: a tributacdo jus- ta impée fardos maiores aos mais ricos, mas a taxa exata de aumento desses fardos deve ser decidida por um critério 53, Certs defeses do principio de sacifcios proporcionais partem da idsia de que a trbutagie proporcional ao bem-estar nao altera os wives ela tvos de bem-estr. Assim, duas pessoas, urna com nivel de bern-estr 10 @ ‘outta com nivel de bemestar 100, tibutadas ambas numa redugo de bem= estar de 10%, terminam com niveis de bem-estar 9@90, de modo que a pro- porgio de 1 para 0 entre sous nveis de bem-estor nao & alterada Iss0 ten tera a uma eerta nogdo de igualdade de tatamentos ova “uma nogae iden titcsvel de igualade” (Witte 1981, 535). Cohen Stuart também fea apelo a esses consderagies em suo defesa do principio de sacifcios proporcionals ver Musgrave (1959), 98, ¢ Edgeworth (1897), 129-30, De todas as afirmagaes esttanhas que ise izeram em nome da equidade wbutiis, esta é sem do <2 uma das mais bizaras, Uma coisa cre que as pessoas merecem ox tem a ireito de ser to reas, em termos absolutes, quanto conseguem ger no mer cad, de tal modo que a distnbuigo de bem-esaegerada pelo mercado pos- 59 ser considera a base adequada paca a aalialo da justa distribu das corgas tributes. Quta coisa, muito diferente daqula & erer que o8 aves ‘lations de bem-siar propiciacos pela distribuigia gerada pelo mercado 580 Gotados de um sigaticado moral ntrinseco, de fl modo que, para que a jus tiga seja preservada,é necessrio transfamar peoporcionalmente ees di buigde. Teato-e de um caso exremo de moralizasio do mercado, pois pate do principio de que este tem o por de gerar uma hierarquia apropriada das pessoas de acoréo com o seu grau relatva de merecimento, € provivel que sa defesa do eritévio de sactifcios proporcionss eja motivada pela deseo 4e nio afimar de modo explicto que aredistrbuigso em beneficio dos mais pobres é uma exigéncia da justia ‘cairéRIOS TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBLITARIA 43 olitico intuitivo. Nao hi divida de que uma concepeao eecse tipo ~ pocemos chamé-la de “principio do sacrificio ada vez maior” ~ ¢ tacitamente aceita por muitas pessoas Ge tendéncia igualitéria eas leva a preferic os esquemas tri- butarios progressivos. Mas também essa abordagem como um todo é falha em seus fundamentos. Se a distribuiggo produzida pelo mer cado nao é justa por pressuposto, os retos critérios de justi- sa distributiva ndo fardo referéncia alguma a essa distribui- Gio, nem mesmo tomando-a como base. A justica distribu- tiva no é a aplicacao de ama funcao aparentemente eqiii- tativa a uma distribuigo inicial de bem-estar moralmente arbitréria. Apesar dos pressupostos implicitos de muitas pessoas, a justica de um esquema tributério ndo pode ser avaliada pelo fato de as aliquotas médias aumentarem sufi- cientemente a medida que a renda cresce. Além disso, como ja vimos, uma vez rejeitaco o pressuposto de que a distri- buigdo de bem-estar produzida pelo mercado justa, ja nao podemos defender principios de justia tributdria sem fazer apelo também a principios mais amplos de justica go- vernamental. Se a distribuicao produzida pelo mercado nao é justa por pressuposto, o governo deve empregar os meios tributétios e as politicas de gastos que mais atendem aos ctitérios corretos de justiga; nao ha sentido em fazer ques- to de que a politica bributaria seja justa em si e ao mesmo tempo ignorar a justica dos gastos governamentais. Podemos resumir es:a se¢do e a anterior em duas ob- servages: (1) Se a idéia de tributagio segundo a capacida~ de contributiva se concretiza pelo prinetpio da igualdade de sacrificios, ela depende da nogao radical de que a distribui- cio de bem-estar produzida pelo mercado é justa por pres- suposta. (2) Se, pelo contrdrio, a idéia de tributagio de acor- do com a capacidade contributiva é entendida em fungao da nogao de que a justiya exige uma redistribuico outra que nao a efetuada pelos retornos de mercado, 0 objetivo da equiidade vertical da tributagdo ndo tem sentido fora do contexto mais geral da ustiga dos gastos do governo. E, 44 O.MITO Da PROPRIEDADE quando passamos a tentar resolver essa outra questo, de quais so as metas distributivas de um governo justo, a idéia vaga de uma “capacidade contributiva” jé nao tem mais nada a nos dizer. VII. O problema do libertarismo vulgar Dissemos que o principio da igualdade de sacrificios depende da idéia de que a distribuigdo de bem-estar efe- tuada pelo mercado é justa por pressuposto. Essa idéia, por sua vez, acarreta a nogdo de que a justica nao exige que 0 governo corrija nem mesmo as desigualdades mais graves que o mercado pode produzir, nem que fomega uma sub- sisténcia minima aos que nao tém acesso a comida, abrigo e servicos de satide ou aqueles a quem faltam os meios de adquitir essas coisas. Pouquissimas pessoas defendem abertamente essa vi- sao radical da justica distributiva, mas uma versao disfarga- da da mesma teoria infecta muitas idéias vulgares de politi- ca tributaria, Mesmo os que créem que o principio da igual- dade de sacrificios nao é suficientemente igualitatio em suas conseqiiéncias permanecem com a nogo de que a jus- tiga na tributacdo consiste em se garantir uma justa distri- buigao dos sacrificios, avaliados estes de acordo com a base dos resultados do mercado. A dissondncia entre essa ma- neira de conceber a politica tributéria e as crencas que as pessoas efetivamente tém acerca da justica distributiva (e, a fortiori, as crencas cuja plausibilidade é mais evidente) nado simplesmente uma confusdo intelectual inécua. Infeliz~ mente, ela tem conseqiiéncias politicas importantes. ‘Vamos examinar de perto a visio mercadolégica de jus- tiga distributiva que tem de servir de base para o principio da igualdade de sacrificios. (As questées levantadas aqui serdo discutidas de modo mais profundo no capitulo se- guinte)) As doutrinas libertarias assumem formas diversas, mas as duas mais importantes pata nossos propésitos po- | I eguréRt08 TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBUTARIA 45 em ser chamadas de libertarismo de direito e libertarismo Ge merecimento™. A primeira é comprometida com a idéia ‘de um rigoroso difeito maral 8 propriedade; insiste em que Cada pessoa tem um direito moral inviolével & acumulagao de bens resultante de trocas verdadeiramente livres. ‘Aplicado & politica tributaria, o libertarismo de direito, em sua forma pura ou absoluta, acarreta a idéia de que ne- nhuma tributacao compulséria é legitima; para que © go- verno exista, ele deve ser financiado por arranjos contra~ tuais voluntérios®®. Nessa versio extrema do libertarismo, a questio da justa distribuigdo das cargas tributarias obriga- trias jamais se levantaria, uma vez. que todas essas cargas seriam ilegitimas. Entretanto, como explicamos na secao anterior, uma posigdo libertétia menos absoluta autorizaria a tributaggo compulséria a fim de sustentar um governo que possibilite a operaao do mercado, e isso justificaria a divisdo da carga por igual entre tados®. Segundo © libertarismo de merecimento, por outro lado, o mercado dé s pessoas o que elas merecem, recom- pensando suas contribuigdes produtivas eo valor que elas tm para os outros, Essa doutrina implica que a distribuigao efetuada pelo mercado é justa, mas nao opde nenhuma ob- jecio a tributagdo compulséria ~ desde que, também neste aso, as cargas sejam partilhadas por igual Nos capitulos 3 e 5 discutiremos as teorias da justiga baseadas no merecimento. Por enquanto, faremos apenas uma observagao, A nogao de merecimento pressupoe a de responsabilidade; ninguém merece algo pelo qual nao foi responsavel de modo algum. Assim, na mesma medida em que os resultados de mercado so determinados pela sorte genética, médica ou social (em cuja categoria se inclu 5H, Paca uma visio geral excelent, que trata também de versbes do li- bertarismo que aqui ignoramos, ver Kymlicka (1990), cap. 4 35, Conclusao explicitamente adotada par Nozick (1974), 110-3, 169- 72, 265-8, 36, essa a opnido de Epstein (1985 ¢1987) 46 OMITO DA PROPRIEDADE a heranga), 0 mérito moral deles nao recai sobre ninguém Como ninguém nega que esses tipos de sorte determinam, 40 menos em parte, o sucesso de cada pessoa numa econo- mia capitalista, o libertarismo de merecimento, em sua for- ma simples e nao-qualificada, pode ser rejeitado desde ja ‘Ambas as formas de libertarismo tém conseqiiéncias radicais demais para serem aceitéveis. Forém, essa visdo da justica tributaria tem um problema ainda mais fundamen- tal - um problema conceitual. O uso do libertarismo para explicar o principio da igualdade de sactificios baseou-se, até agora, no seguinte pressuposto: enquanto © governo no leva a cabo uma politica de gastos redistributiva, a dis- tribuigio pré-tributéria de recursos pode ser concebida como a distribuigdo produzida por um mercado livre. Na verda- de, porém, essa idéia é profundamente incoerente. Nao existe mercado sem governo e nao existe governo sem impostos; o tipo de mercado existente depende de leis e decisdes paliticas que o governo tem de fazer e tomar. Na auséncia de um sistema juridico sustentado pelos impos- tos, nao haveria dinheiro, nem bancos, nem empresas, nem bolsas de valores, nem patentes, nem uma moderna eco- nomia de mercado ~ ndo haveria nenhuma das instituicdes, que possibilitam a existéncia de quase todas as formas con- temporaneas de renda e riqueza Por isso, é logicamente impossivel que as pessoas te- nham algum tipo de direito sobre a renda que acumulam antes de pagar impostos. S6 podem ter direito ao que Ihes sobra depois de pagar as impostos sob um sistema legiti- mo, sustentado por uma tributacdo legitima — e isso de- monstra que nao podemos avaliar a legitimidade dos im- postos tomando como critério a renda pré-tributéria. Pelo contratio, temos de avaliar a legitimidade da renda pés-ti- butéria tomando como critério a legitimidade do sistema politico e econdmico que a gera, o qual inclui os impost que so alias uma parte essencial desse sistema. A ordem logica de prioridade entre os impostos ¢ os direitos de pro- priedade € inversa a ordem suposta pelo libertarismo. | pir ROs TRADICIONAIS DE EQUIDADE TRIBLTARIA 47 Nao se pode, para evitar esse problema, mudar de base: da renda teal pré-tributétia para uma hipotética base de anda num mercado sem governo. O mercado natural ou jdeal nao existe. Existem muitos tipos de sistemas de mer-

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