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HISTORIA DA FILOSOFIA. Tdéias, Doutrinas Plano da obra Volume 1 2 3 A FILOSOFIA PAGA Do Século Vra.C. ao Século itt d.c A FILOSOFIA MEDIEVAL Séculos 1a0 XV A FILOSOFIA DO MUNDO NOVO Sécwios XVe XVI OILUMINISMO Séeuio x vat A FILOSOFIA E A HISTORIA 1786-1880 AFILOSOFIA DO MUNDO CIENTIFICO E INDUSTRIAL 1860-1940 A FILOSOFIA DAS CIENCIAS SOCIAIS. de 1860 aos nossos dias OSECULO Xx HISTORIA DA FILOSOFIA Idéias, Doutrinas sob a direcdo de FRANCOIS CHATELET do Universidade de Paris Vill 2 A FILOSOFIA MEDIEVAL Do século | ao século XV Segunda edicdo por Anouar Abdel-Malek ‘ Mestre de Pesquisas no CN.R.S. Abdurraman Badawi de Universidade Nacional da Lfbla Benedykt Grynpas Diretor da Sepi0 do Extremo Oriente dos Museus Recis de Arte ‘e Historia de Bélgica Patrick Hochart Attaché na Escola Normal Superior Jean Pépin Diretor de Pesquists no CNRS. Tradugao: Maria José de Almeida ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO “wr lea¢ Histoire de la Philosophie ~ Idées, Doctrines La Philos Traduzido da primeira edigo, publicada em 1972, por Titulo original: sophie Médiévale (du I® au XV° Siecle) Librairie Hachette, de Paris, Franca © Copyright, Librairie Hachette, 1972 Todos os direitos reservados. A reprodugio ndo-autorzada | desta publicagao, no todo ou em parte, constitui violagao do copyright. (Lei. 5.988) Eddigdo para o Bras. Nao pode circular em outros paises Primeira edigdo brasileira: 1974 Direitos para a edigdo brasileira adquiridos por Capa: Brico WY 1983 ZAHAR EDITORES S.A Caixa Postal 207 (ZC-00) Rio de Janeiso que se reservam a propriedade desta verso Impresso no Brasil A FILOSOFIA MEDIEVAL HISTORIA DA FILOSOFIA Idéias, Doutrinas Sob a diteeso de FRANCOIS CHAT (Professor na Universidade de Paris VII) com 4 colaboraeao de Anouar ABDEL-MALEK, Mestre de pesquisas no Contze National de la Recherche ‘Scientifique Jacqueline ADAMOV-AUTRUSSEAU, Encarregada de cursos na Universidade de Panis IIL [André AKOUN, Mestze-assistente na Universidade de Paris V I, Professor na Universidade de Paris IV "AUBENQUE, Professor na Universidade de Paris IV Abdureaman BADAWI, Professor na Faculty of Arts, National Univesity of Libya, de Benghazi Wands BANNOUR, Prafessora no CN.TE. Michel BERNARD, Mestreassstente na Universidade de Paris X Jean BERNHARDT, Encarregado de pesquisas no Centre National de ts Recherche Scientifique Jean-Marie BEYSSADE, Mestrossistente na Universidade de Paris 1V Jacques BOUVERRESSE, Mestre-assistonte na Universidade de Paris 1 JTeat-Luc DALLEMAGNE, Professor na Universidade de Nantes Gilles DELEUZE, Professor na Universidade de Paris VIIT Jean-Toussaint DESANTI, Professor na Universidade de Pats 1 Christian DESCAMPS, Encarregado de cursos na Universidade de Paris VIL Roland DESNE, Enearregado de ensino na Universidade de Reims Frangois DUCHESNAU, Professor na Universidade de Ottawa Miche! FICHANT, Mestreassistente na Universidade de Paris | Gérard GRANEL, Professor na Universidade de Toulouse Benedykt GRYNPAS, Professor no Instituto de Altos Estudos da Bélgica Louis GUILLERMIT, Encarzegado de Ensino na Universidade de Aix-Marseille Patrick HOCHART, Attaché 8 Escola Normal Superior Pierre KAUFMANN, Professor na Universidade de Paris X ‘Yves LACOSTE, Mestze de conferéncias na Universidade de Paris VIL Daniéle MANESSE, Avtachée de pesquisas na LN.R.DP. Sam NAIR, Encarregada de cursos na Universidade de Paris Vit Jean PEPIN, Diretor de pesquises no Centre National de la Recherche Scientifique ‘Alexis PHILONENKO, Professor na Universidade de Caen Evelyne PISIER- KOUCHNER, Mestre de confezéncias na Universidade de Reims Rafael PIVIDAL, Mestze-assistonte na Universidade de Paris V Nicos POULANTZAS, Mestre de conferéneiss na Universidade de Paris VIIT Jean-Michel REY, Encarregad de cursos na Universidade de Paris VIL Chiite SALOMON-BAYET, Attachée de pesquisas no Centze National dela Recher che Scientifique Marianne SCHAUB, Attachée de pesquisas no Centre National dela Recherche Scientifique Reng SCHERER, Mestre de conferénctas na Universidade de Lovis-Vincent THOMAS, Professor na Universidade de Paris V Helene VEDRINE, Mestze de conferéncias na Universidade de Paris René VERDENAL, Encarregada de ensino 1a Universidade de Tunis vit INDICE, INTRODUGAO GERAL PREPACIO, por Frangois Chatelet L UL IV. HELENISMO E CRISTIANISMO, por Jean Pepin Os dados do problema, — As duas atitudes eristas. — A filosofia religiosa; os mistérios. — A expres sio filosotica: @ diatribe, — A expresso fllosofiea: 1 alegoria. A. FILOSOF A PATRISTICA, por Jean Pepin Os Padres da Igveja e as correntes da filosofia grega (0 platonismo; © aristotelismo; 0 estoicismo). — Os grandes nomes da filosofia patristica SANTO AGOSTINHO E A PATRISTICA OCIDEN- TAL, por Jean Pépin cee Os padres ntinos ea filosfia, — Filosofia ¢ teologia em Santo Agostinho (a filosofia da ordems a teologin da grays) TEOLOGIA E FILOSOFIA NA IDADE MEDIA, por Jean Pepin sercveeee 5 con Bitimos padres ou primeiros medievais? — 0 renas- cimento carolingio, — 0 século XL — O renasel- mento do séeulo X11 FILOSOF{A E TEOLOGIA DO ISLA NA BPOCA CLASSICA, por Abdurruman Badawi Introdugio da filosofia_grega entre os mugulmanos. — AlKindi, — ALParabi (a filosofia primeira; ‘a psicologin; a politica), — Os Irmdos de pureza, “— Avicena (a metafisica; desenvolvimento da teolo- gia especulativa), — Alguzel. — Averrois 96 108 VI, IBN KHALDON, FUNDADOR DA CIfNCIA HIs- TORICA B DA SOCIOLOGIA, por Anouar Abdel. ole ee Nascimento de uma problemitica, — Do realismo ti- loséfico a elgnele da historia, — Advento da sociolo- gia. — Sociedade ndmade e ‘arabiyyak. — A socie- dade-Estado em face da crise. — O problema da dislética social VII. SANTO TOMAS E A FILOSOFIA DO SBCULO XIII, por Jean Pépin ieee eoet aaa As cireunstancias novas. — Os mestres de Oxford e de Paris, — Santo Tomis de Aquino. ~ 0 fim da Idade Média. VII. GUILHERME DE OCKHAM: 0 SIGNO E SUA DU- PLICIDADE, por Patrick Hochart 1X. 0 PENSAMENTO CHINES, por Benedykt Grynpas CONCLUSAO NOTAS BIOGRAFICAS DOS PRINCIPAIS AUTORES ANA- LISADOS .....-.+ GudeoucaGo0K QUADRO SINOPTICO INDICE DOS NOMES CITADOS A Finosoria Meoievat. 130 as 219 229 Introducio Geral © TiruLo DESTA oBka coletiva é Historia da Filosofia — Idéias, Dowtrinas. Cumpre tomélo no rigor dos termos. ‘Trata-se, certamente, de uma his:ria: a ordem adctada 6 cronclégica, & medida que a cronologia é intelectual mente mais eficaz que a classificagao alfabética, por exemplo, e em que permite freqtientemente localizar filia- cOes, onde estas existem. ‘Dito volumes sao previstos: 9 primeiro 6 dedicado & filosofia pagd (de Tales de Mileto a Plotino); este, o se gundo, tem por objeto o pericdo dito medieval (dos Padres da Igreja a Santo Torés e a Guilherme de Ockham); o terceiro analisa a fil9sofia do mundo moder- no (de ‘Th. Munzer e G. Bruno a Leibniz); 0 quarto estu- da o Iluminismo (de Berkeley a J.J. Rousseau); 0 quin- to é intitulado A Filosofia e a Historia (de Kant a Marx. Engels); o sexto se prende & filosofia em face do desenvol- vimento das ciéncias e da industria (de Nietzsche ao po- sitivismo logic); 0 sétimo situa as relagdes das idéias filos6ficas com as Ciéncias Soc:ais (Psicologia, Sociolo- gia, Historia, Lingliistica, Geografia, Etnologia); 0 ulti mo tem por tema os grandes movimentos de idéias do nosso século. Entretanto, esta apresentacd, que aceita como bvia a idéia de sucesso, nem por isso admite dois preconceitos que estao a ela implicitamente ligados. Por um lado, esta historia da Filosofia nao coloca absolutamente como ideal uma restauracdo integral do pensamento filosofico, onde todos os autores, sua influéncia e suas relagdes estivessem assinalados. Operouse uma selecao que leva em conta ao mesmo tempo a exigéncia de inteligibilidade € a originalidade dos colaboradores (que determinaram 10 A FILOSOFIA Mepinyan em comum seus temas e seu centro de interesse). Esta liberdade, colocada em relagdo com uma tradicao, pare- ceunos ser 0 meio mais eficaz de fazer falar o devir desse modo especifico de cultura que tem sido o discurso floscfico, e de sublinhar constantemente a incerta mis tura de pureza e impureza que o caracteriza, Renunciamos, por outro lado, a dar qualquer espécie de ligio e a deixar subentendido, entre outras coisas, que por trés da proliferagao de ‘doutrinas, de alguma forma, se delineia uma evolugdo significativa, um pro- Bresso, uma repeticao ou uma regressio. & sempre Possivel construir, com ou sem a ajuda da erudicao, uma mitologia genealdgica, que, colocando cada doutrina em seu lugar, reconstréi a ordem triunfante do pensa- mento. Das origens supostas, passa-se, tranqiiila ou dra- maticamente, positiva ou dialeticamente, até este Hoje que libera o ensino retrospective e definitive. Que um texto tedrico, sob pretexto de histéria, se coloque essa tarefa estd muito bem: € uma forma de demonstrar uma tese, que vale tanto quanto outra qualquer. A pers. pectiva desta obra € diferente: sua meta 6 informar, é por em dia as idéias fundamentais produzidas peias principais doutrinas; essas idéias constituem agora a he- ranea filosdfica — heranca que hé que inventariar se auisermos melhor compreendéla ou melhor combatéla. Ora, informar € registrar diferencas. Os historiadores € os fildsofos que participaram desse trabalho esforca- tam-se — cada qual guardando sua Gptica prépria e pro- vavelmente sé tendo em comum com os outros autores a exigéncia de uma critica escrupulosamente racionalista — por fazer aparecer distingdes; eles se aplicaram em avaliar 0 conceito ou o sistema conceptual que deu a tal pensador seu lugar no seio da tradicéo chamada filosofica, A evolugao, positiva ou dialética, é€ substituida, pois, por uma apresentagao diferencial. Esta deixa 20 leitor uma outra liberdade. Jé nfo se trata de se abandonar A mercé do devir, mas de apreciar doutrinas e idéias; im- porta nao seguir uma linha, seja ela arborescente, mas situarse num espago articulado. Em resumo, esta his- toria da Filosofia nao é absolutamente uma filosofia da historia da Filosofia, Compreender-se-d facilmente que, nessa dptica, os elementos biograficos — salvo excegdes — tenham sido bastante reduzidos. Sem diivida, seria possivel compor I A uN IntRopUGAO GERAL uum belo texto que seria consagrado — um pouco & max neira de Plutarco — @ vida dos filésofos ilustres. Ele reservaria surpresas, Nao é esse, porém, 0 genera oe novidades buscado na present riginalidade iste, resultara do fato de que uns quarenta s tentaram estabelecer um quadro dos elementos do pen: samento filosfico; que eles 0 iicererslneleod pirito, mas sem preconceito; que_com refs, a ima demonstracao, mas como uma aprese! tego; ro como tum eaifilo, mas como ‘ima construct. AS Dibliografias nfo tem, segundo os, autores, 2 mesma importancia. ‘Também nesse particular fol deixada, a cada colaborador a liberdade de, pontilhar suas colabo: ragbes com as referencias que julgou convenientes, Aqut @ ali, precis6es historicas vem, lembrar que a Filosofia nfo é uma ocupacio “separada”, que the sucede ter, uma relagéo direta, indireta ou contraditéria com as sai ras atividades cul 3 | Socta ma outra, historia da Filosofia que se_anuneia gui. Nem progressista, nem neutra, mas critica; que nao quer nem tudo dizer, nem dizer 0 todo; que, se impée afirmar a ordem aberta das doutrinas ¢ das idéias diferentes, A seriedade neste tipo de obra caminha a mela listincia da erudicio,e da vulgarizagio.| Pols no ha “Platio” ow “Descartes” que se possa restaurar em sua verdade; hd pensadores que uma ‘andlise es! . hoie, legivei ; orev tim do cada. um dos volumes desta obra, 0 leitor encontrard, de um lado, uma lista alfabética dos autores que nela so analisados, com sua biografia e suas obras Principais e, de outro lado, um _quadro sinéptica colo cando em relacao a histéria da Filosofia com a histéria cultural, social e politica. Prefacio © reriopo QUE A PRESENTE cBRA estuda é muito extenso: quinze séculos. Sua extenséo geografica nao € menor, pois nela se trata tanto de Avicena, que viveu em Buca- Ta, quanto de Alcuino, que nasceu e estudou na Inglaterra. ‘Ademais, pareceu-nos necessirio acrescentar — sob 0 risco de desrespeitar a cronologia — um artigo consagrado a0 pensamento chinés antigo. Se ele figura ao fim deste Eegundo tomo, é, de fato, aos dois primeiros que remete; | sua finalidade é fazer aparecer a diferenga profunda que existe entre o papel gue o pensamento greco-cristdo Jconfere & linguagem e 0 que Ihe atribul a cultura extre- | mocriental; isso tiosomente a. titulo de. indicagho. Baste dizer que, neste conjunto de textos, deverd surgir alguma disparidade, Essa, contudo, é apenas apa- Tente: & facil descobrir, em primeiro lugar, uma proble- mética de formacéo. Assim, como observam tanto Jean Pépin. quanto Abdurraman Badawi, a tradicao medieval, quer crista, quer drabe-islamica, constrdi-se lentamente, esforgando-se ao mesmo tempo por colocar em evidéncia a prdpria ori- ginrlidade, por esclarecer sua fungio na difusdo do texto sagrado e por utilizar o que € utilizdvel na cultura grega e latina. Trata-se, pois, de aprofundar a Revelacio subli- nhando sua especificidade e sua forca, mas também de definir 0 tipo de discurso que possa convencer os “gen- tios”, Ora, essa ndo é apenas uma operagio de compro- misso. E verdade que esse perfodo histérico usa de uma técnica que 0 pensamento dito moderno utilizar ainda muito mais amplamente, a das aliancas: a filosofia sabe, com efeito, que néo poderé manter 0 sentido de sua em- presa se nao integrar forcas novas ao seu saber (aqui 6 a religifio; mais tarde ser4 a ciéncia e suas conseqtién- cias técnicas; mais tarde, ainda, 0 Estado). No entanto, 14 ‘A FILOsoFIA MEDIEVAL essa técnica irtegradora coloca, pela primeira vez, sem. duivida, de um modo claro, questées que vo reaparecer incessantements, cada vez mais complexas, na historia por vir das ideologias: as questdes da relacéo continui- dade-descontinuidade, hostilidade-complacéncia, retomada- ruptura, entre a ordem intelectual estabelecida e a ordem nova. O que Jean Pépin mostra a propdsito de Sao Pau- lo, a dupla vontade de convencer os atenienses utilizan- do sua propria linguagem e de “provocé-los” reduzindo- os & ignorancia dos verdadeiros problemas, reencontra- se constantemente na maioria das andlises que constituem este volume. Quer se trate da patristica e de sua cons- trucéio, do augustinismo, da filosofia em sua relacio com a teologia na spoca do Isli classico, 0 objetivo essen- cial é responder sistematicamente a probleméticas ideo- ldgicas precisas, langando mao dos argumentos legados pelas tradigdes platdnica, aristotélica e estdica, mas tam- bém registrando algumas diferencas profundas que insti- tuem a originalidade dessa modernidade passada, ‘Aberturas surpreendentes também se manifestam: 0 artigo de Anouar Abdel-Malek, consagrado a Ibn Khaldan, bem como o de Patrick Hochart, estudando a teoria da significado segundo Guilherme de Ockham, estabelecem que as conjunturas, tanto intelectuais quanto sociais, sus- citam intervengdes tedricas admiravelmente antecipado- ras. Da mesma maneira, as observagdes de Jean Pépin concernentes a Mestre Eckhart sublinham o fato de que a tradigéo medieval é atravessada por clarées que, brutal- mente, colocam em questio a idéia demasiado simples que costumamos nos fazer acerca das “idades” do pen- samento filosdfico. ‘Assim, € talvez neste volume que se dé do modo mais manifestc 0 arbitrario no qual tivemos que consen- tir, o da cronologia. Entre a “idade antiga’, prodigiosa- mente diversificada, mas repousando sobre um mesmo pedestal, e a “idade classica”, que unifica sua problems. tica, ha’ quinze séculos de um pensamento a se desen- volver e de historia dramatica. Em face desse fenome: no, temos que tentar extrair e comunicar informacOes iiteis: teis para compreender que a Idade Média nao é média nem no sentido da mediacao, nem, muito menos, no sentido da mediocridade. Ela esté ai como um enig- ma que coloca a questio da seriedade da “periodizacio”. Frangois CHATELET I Helenismo e Cristianismo por Jean PEPIN Os DADOS DO PROBLEMA QUEM QUER QUE SE PROPONHA descrever as relacdes de dois universos mentais quaisquer depara imediatamente com um problema preliminar sobre 0 qual deve formar uma opiniao antes de passar & frente: trata-se de decidir em que sentido pode-se encarar a hipotese de uma in- fluéncia exercida de um ao outro dominio. Premente em todos os casos, a questic o é ainda mais quando a um dos termos a se confrontar ocorre ser, néo somente uma filosofia, mas uma crenca religiosa que, vinte séculos mais tarde, toca 0 coragio de tantos homens. Como con- ceber que paganismo grego tenha marcado com sua ‘agao 0 pensamento cristio dos primeiros séculos, sem se. expor a sacrificar seja o que for da originalidade impres- critivel do cristianismo? Cumpre, com efeito, confessar que nem sempre os historiadores abordaram a dificuldade com toda a deli- cadeza que seria de esperar. Durante muito tempo, quiseram estabelecer uma simples relago de dependéncia em sentido tinico entre certos aspectos da filosofia.grega e 0 pensamento cristao primitivo; tal foi a tendéncia de muitos eruditos do comégo do século como Reitzenstein, Bousset, Angus, Loisy. Mas jé Clemen, em 1913, protesta- va contra essa orientagio; sua adverténcia foi retomada @ completada, mais préxim) a nés, por Rahner e Wifstrand; 16 A PILOSoFiA Mepivat, chamou-se assim a atencZo para certos pontos de meéto- dos, sobre os quais é preciso dizer uma palavra. Parece, em primeiro lugar, que nem sempre se teve ‘© cuidado de evitar a confusé0, no pensamento helénico bem como no cristianismo, de um estado primitivo com um estado evoluido; as instituigdes globais dos pré-so- craticos, por fulgurantes que sejam para os leitores de hoje, néo devem ser colocadas no mesmo pé que as construgdes sutis e complicadas dos neoplatdnicos, enri- quecidas de contribuigées orientais; da mesma maneira, io se podem aplicar critérios idénticos ao pensamento filosdtico elementar que transparece nos escritos do Novo Testamento e as especulagées refinadas, agugadas por s culos de reflexao, de um’ Pseudo-Dionisio Areopagita ou de um Maximo 0 Confessor. Os defensores da historia comparada nem sempre evitaram o escolho que consiste em confrontar 0 estado plenamente diferenciado da filo- sofia grega com o estado incoativo e sumério do pen- samento cristo; todavia, é claro que temos ai dois esté- dios de desenvolvimento’ tao desproporcionados que nao admitem comparagao. Bis uma primeira regra de méto- do a ndo perder de vista. Eis aqui uma segunda. Sabe-se que a dependéncia muito rapidamente inferida pela escola comparatista exercese sempre no mesmo sentido, do dominio grego ao dominio cristéo. Mas a evolucao da filosofia helénica est longe de ter acabado na época em que nasce o cristia- nismo; os séculos TIT, IV e V de nossa era sao para o pensamento pago, em Roma bem como em Atenas, um periodo extremamente brithante. Nessas condicdes, nada impede encarar também a possibilidade de uma depen- déncia inversa, segundo a qual certos aspectos da filo- sofia grega, esgotados ao termo de uma longa histdria, poileriam ter sofrido a influéncia do pensamento cris: tao; e, sendo 0 cristianismo, no essencial, uma concep- g&o das relagdes entre o homem e Deus, era previsivel que sua aco se exercesse principalmente sobre a filoso- fia religiosa do paganismo que se extinguia. Podem-se apresentar muitos exemplos dessa influéncia na qual, de ordinario, nao se pensa suficientemente. Sabe- se que 0 imperador Juliano, ao procurar dar novas forcas ao culto pagéo em declinio, tentou copiar em seu provei- to a organizacio hierirquica e o servico de assisténcia social da Igreja crista: esse empréstimo na ordem das es: HELENISMO E CRISTIANISMO 7 truturas sociolégicas é a imagem de um empréstimo paralelo na ordem do pensamento. & 0 que se mostra claramente na biografia romanesca de Apolonio de Tia- na composta no comego do século III pelo grego Filos- trato: esse Apolénio é um taumaturgo neopitagérico que tentaram erigir no rival pagao de Jesus; para esse fim, Fildstrato retere dele tragos que, com toda a probabilida- de, foram imitados dos Evangelhos; por exemplo, 0 relato da’ ressurreicao, operado por Apolonio, de uma jover: nobre romana Yeproduz ponto por ponto o relato do milagre com que foi agraciedo o filho da vitiva de Naim segundo Lucas, VII, 11-17; e ainda a maneira pela qual © taumaturgo, miraculosamente subtraido ao seu interro- gatdrio dianté do imperador Domiciano, se mostra de novo a seus discipulos incrédulos fazendo-os tocar seu corpo, tem toda a aparéncia de um pastiche dos aconte- cimentos que se seguiram 2 ressurreigio de Jesus. Mais ou menos na mesma época, alguns pagdos cultivados abrem-se as escrituras judias e cristis; 0 fildsofo plato- nico Numénio incorpora varios de seus elementos a seu sistema; ele é 0 autor da célebre formula segundo a qual Platéo nfo seria outro seno “um Moisés a falar atico”: cita 0 Génese e as profecias do Antigo Testamento e uti liza documentos sobre-Jesus dos quais dé uma interpre tagao alegdrica. Eusébio e Teodoreto conservaram um fragmento de Amélio, neoplatonico do fim do século IIT e discipulo de Plotino em Roma; nele se pode ver que esse fildsofo acolhera uma doutrina do Logos como Verbo subsistente de Deus, em favor da qual evoca Herdclito ao mesmo tempo que confessa sua dependéncia relativamente ao prologo do 4° Evangelho, cujo autor qualifica de “Bar- taro” (isto é, de n4o-grego). Mas foi em Alexandria, sede de uma escola de teologia cristé particularmente aberta ao helenismo, que os filésofos pagaos, de sua parte, mostraram-se mais -eceptivos & maneira de viver e de pensar dos cristios; assim 0 pagao Alexandre de Licépolis compée um tratado de polémica antimaniquéia no qual se mostra sensivel & preocupacdo que os cris- téos tém pela pedagogia popular; foi l4 também que se formou 0 fildsofo Sinésio de Cirene, que abandonou o neoplatonismo para se converter ao cristianismo e logo tornar-se bispo, sem por isso: renunciar de todo as suas primeiras idéias, que 0 colocam um pouco & margem da 18 A FiLosoriA, Mepieva, ortodoxia. Enquanto 0 neoplatonismo ateniense, com Jamblico e Proclo, permanece solidario do politeismo po: pular e, por isso mesmo, fechado a influéncia crista, os neoplaténicos alexandrinos mostram-se mais dependentes da religiéo tradicional e, portanto, mais disponiveis; o melhor exemplo dessa abertura é proporcionado no sé- culo V pelo fildsofo Hi¢rocles, comentador dos Versos Aureos pseudopitagoricos e autor de um tratado Sobre a Providéncia e 0 Destino; tendo-se em conta o fato de que pertencia 2 escola neoplatonica, a metafisica_desse ale- xandrino € surpreendente: nao reconhece um Deus supe- rior ao criador do mundo; rejeitando a concepgio de uma matéria primeira independente de Deus, que se te- ria limitado a ordend-la, professa a criag&o ex nihilo, Esta ultima teoria, sobretudo, é singular; pois, se coincide perfeitamente’ com a dos Padres da lgreja, representa, na tradicio judeucrista, uma conquista; um dos livros do Antigo Testamento,’ muito influenciado, é verdade, pelo helenismo, a Sabedoria de Salomao (XI, 17) man- tinha ainda que “a mo todo-poderosa de Deus criou 0 mundo a partir de uma matéria informe”; assim, o pa- gio Hiérocles de algum modo apresenta maior confor- midade nesse ponto com o cristianismo do que um texto da Biblia canénica! A explicagio mais razoavel é que ele tenha chegado a essa doutrina por seus contatos com os tedlogos cristdos de Alexandria, quando cristéos e pagaos se uniram para melhor se oporem aos progressos in- quietantes do maniqueismo, 0 qual afirmava justamente © carater incriado da matéria, ‘Sio esses alguns exemplos incontestdveis de uma influéncia crista exercida sobre filésofos pagios que fo- ram muito judiciosamente reunidos por Wifstrand; mui- tos outros poderiam, certamente, ser ainda encontrados. Eles mostram com toda a evidéncia que a apresentacao que habitualmente se faz das relagdes entre helenismo e cristianismo — a de uma dependéncia em sentido tinico do segundo com relacio ao primeiro — nao é inteira- mente fundada e deve levar em conta numa menor pro- porgio, alias, uma dependéncia de sentido contrario. Assim, n&o serfo ingenuamente aceitas as exagera- Ges da historia comparada. Nao deixa de haver, na filo- sofia da Antiguidade cldssica e no cristianismo, um grande numero de expressdes cuja analogia € impres- HeLenismo e Crisnianismo 9 sionante, sem que se possa explicé-la por empréstimos tomados pelo paganismo as Escrituras ¢ & teologia dos erisios; ver-se-4 posteriormente, a esse respeito, um cer- to numero de exemplos caracteristicos; ¢ mais sdbio ten- tar compreendélos corretamente do que fingir nao percebé-los. ‘Antes de procurar determinar o verdadeiro alcance das influéncias pagas, € preciso assinalar que uma outra escola de historiadores suprime toda dificuldade relativa f esse ponto ao preco de um pressuposto de ordem re- igiosa; partem do principio de que a filosofia grega e 0 pensamento cristéo sio as duas manifestacdes sucessivas da acio de um mesmo espirito divino atuante entre os homens; a semelhanga que se observa entre as duas tra- digdes deixa, portant, de criar problema, j4é que uma e outra provém de uma mesma fonte transcendente; 0 que causaria espanto seria, ao contrério, que nao apre- sentassem nenhum ponto em comum, Em outros ter- mos, os adeptos desse tipo de explicagdo cristianizam secretamente a natureza do paganismo antigo, vendo nela uma prefiguracdo providencial do mistério cristao. A essa tendéncia pertencem, por exemplo, os trabalhos, alids muitas vezes excelentes, de Casel e do grupo de Maria-Laach, assim como, sob um outro aspecto, os en- saios nos quais Simone Weil, talvez com mais fervor do que com senso critico, se aplica em mostrar, seguindo Pascal, como Platio pode “predispor ao cristianismo”. Sem dtivida, essa maneira de ver as coisas elimina 0 pro- plema, ao prego, porém, de um postulado de uma outra ordem que o da histéria. 1 preciso compreender que aceitar como uma evidén- cia o fato de uma certa influéncia da filosofia helénica sobre a teologia cristi no implica aceitar os excessos do comparativismo. De um lado, nada impede salvaguar- dar a especificidade do cristianismo, se consideramos que essa influéncia concerne menos ao que Schleiermacher € Harnack denominaram a “esséncia do cristianismo” do que a ampla zona periférica que constitui como que 0 seu revestimento expressive; quando Sdo Paulo e seus sucessores recorrem a formas filosdficas gregas, é antes de tudo para exprimir cémoda e eficazmente uma men- sagem cujo espirito nem por isso é alterado; como 6 que poderiam ter-se feito entender pelos gregos, aos quais, queriam tocar, a nfo ser falando a sua lingua, manejan- 20 A FiLosoria Mepievat, do os esquemas mentais que Ihes eram familiares? Tal é, notadamente, o procedimento habitual de Clemente de Alexandria, condensado nesta férmula do Protréptico (XII, 119, 1), & qual Rahner tantas vezes se refert “Mostrar-te-ei 0 logos e os mistérios do logos”, diz ele ao seu interlocutor grego, “recorrendo & tua propria imagistica.” Pode ser, todavia, que os cristaos tenham, em Seguida, terminado por esquecer que esses emprés- timos tomados a0 paganismo nao ultrapassaram, na ori- gem, 0 nivel ¢ as necessidades da expressio, que tenham Yerminado, mesmo, por ignorar a sua qualidade de em- préstimos, para integré-los progressivamente & propria esséncia de sua crenca, numa época em que seus interlo- cutores teriam pedido’ uma outra linguagem. Um fend- meno andlogo é observado em muitas outras épocas; sabese, por exemplo, que 0 recurso & gnosiologia aris: totélica prestou um imenso servigo & teologia crista do século XIII, que deve a essa conjungao 0s progressos Gecisivos que realizou; em presenga de um tal sucesso, fa tentacao de considerar o aristotelismo como inseparé- vel da mensagem cristi tornou-se irresistivel e isso, la- mentavelmente, nfo deixou de frear sua difusio em areas culturais onde a filosofia aristotélico-tomista nao era © melhor veiculo. Em segundo lugar, é preciso observar que a depen- déncia com relagio ao pensamento grego nao é a Unica explicagio das semelhangas que 0 cristianismo apresenta com ele, Essas podem provir de um recurso paralelo dos cristios e dos gregos a um terceiro dominio, por exemplo, a0 dominio da vida social e politica de seu meio comum; € assim que 0 carter secreto e esotérico, om © qual, em certas épocas e em certos dominios, a teologia crista se protege exatamente como a filosofia helénica, explicarse-ia provavelmente pelas mesmas ne- cessidades socioldgicas;, de modo semelhante, sabe-se, desde a célebre obra de Peterson, que uma doutrina filo sofico-teoldgica como a adesio ao monoteismo apresenta- se em certos aspectos sob os tragos de um problema politico. ‘Uma terceira observacdo impée-se, enfim, no que se refere & parte consideravel de expressdo simbdlica & qual © cristianismo e o helenismo igualmente recorrem para tornar mais assimildveis & maioria suas mais elevadas rrencas. Pois # escolha desses simbolos e a significagao HELENISMO 2 CRISTIANISMO et que Ihes 6 atribuida nao séo determinadas arbitraria- mente; sao, de anternéo, comandadas por “arquétipos” que constituem a prépria estrutura do espirito humano. Jung tem o mérito considerdvel de ter chamado a aten- (0 para a existéncia e o contetido de tais arquétipos comuns a todo ato de pensamento. Em qualquer civil zagio que seja, a reflexéo filosdfica e teolégica formu- la-se e desenvolve-se recorrerdo a um numero restrito de simbolos primitivos, quase sempre os mesmos, que toma emprestado @ natureza, tais como o sol, a luz, a vegetacao, a relacdo pai-filho etc.; a significacio que atri- bui a esses simbolos ndo depende da inventividade indl- vidual, mas de esquemas que ultrapassam o espirito de cada um, de maneira que a relacio entre o signo eo significado permanece sensivelmente a mesma nos mais diversos contextos culturais. Resulta dai que a observa- céo de um simbolismo andlogo em estruturas mentais muito diferentes nao autoriza a concluir sistematicamen- te pela influéncia de uma sobre a outra, mas simplesmen- te por sua comum e inconsciente fidelidade a um arqué- tipo constitutive do espirito humano. Pode-se pensar que essa triplice explicagio (in- fluéncia direta no dominio da expressio, 2mpréstimos paralelos tomados a realidades sociolégicas comuns, sub- missio idéntica aos esquemas mentais constituintes), acrescentada ao fato inconteste de uma certa imitagao do pensamento cristio pelo paganismo grego, permite resolver a maior parte das analogias que somos obriga- dos a constatar entre os dois universos culturais, sem por isso levar a um nivelamento abusivo e fazendo con servar a um e outro sua especificidade, & qual, antes de tudo, temo8 razio de nos ater. AS DUAS ATITUDES CRIsris Mesmo se a reduzimos as suas justas pr como acabamos de fazélo, ndo podesos esperar estave, lecer em algumas paginas’o montante da divida imensa que 0 cristianismo dos primeiros séculos contraiu com 3 filosofia grega. O contetido dos dois Testamentos era pouco filoséfico e propriamente querigmatico ¢ soteriol6. Bico; por isso, quando os Padres da Igreja se quiseram munir de um equipamento especulativo para construir 2 A FILOSOFIA MEDIEVAL sua teologia, recorreram muito naturalmente ao material conceptual € doutrinal elaborado pela tradigao grega, pela tradigao platonica, em particular (enquanto a Idade Mé- dia, como se sabe, deveria recorrer sobretudo ao aristo- telismo); todavia, esses empréstimos considerdveis foram muitas vezes acompanhados — e isso as vezes nos me: mos autores — de uma grande desconfianga com relagao a filosofia profana, Ora, hd uma obra crista que encarna de modo excelente essa dupla disposicao de abertura e fechamento e que, tanto por seu prestigio quanto por sua ancianidade, tem um valor de exemplo para toda a tradigao crista posterior: € a obra de So Paulo. Nos relatos dos Atos dos Apdstolos, constata-se que a pregagao de Paulo esforea-se espontaneamente por rela- cionar a mensagem crista as crengas supostas do audité- rio pagao. A melhor ilustragéo dessa maneira de proce- der € oferecida pelo célebre discurso de Atenas (Atos, XVII, 16-34), que merece ser citado amplamente com 0 seu contexto imediato: Enquanto Paulo os aguardava em Atenas, seu espirito se revoltava contra a quantidade de idolos que enchiam a cidade, Discutia com os judeus e os observantes na sinagoga; e na praga, diariamente, com transeuntes. També: filésofos epicureus e estdicos trocavam idéias com ele, Alguns perguntavam: “Que quer dizer esse tagarela?” Outros diziam: “Parece ser pro pagandista de deuses estrangeiros.” 1 que cle ‘anunciava Jesus e a ressurreiga0. Levarammnos, pois, ao Aredpago, dizendo: “Teriamos prazet em conhecer a nova doutrina que pregas, Sio realmente coisas estranhas que fazes chegar aos nossos ouvidos. Desejariamos saber 0 que significa isto.” Pois todos os ate- nienses, e também os estrangeiros que residiam entre cles, nao tinham outro passatempo se- néo contar ou escutar as tltimas novidades. Estando, pois, de pé no meio do Arespago, Paulo disse: “Atenienses, tudo indica que sois de uma religiosidade sem igual; porque con- templando, ao passar, vossos monumentos sa- grados, encontrei, também, um altar com a inscrigao: A ALGUMA DIVINDADE DESCO- HeLenisMo © CRISTIANISMO 23 NHECIDA. Pois bem! Eu venho anunciar-vos 0 que adorais sem 0 conhecer. O Deus que fez o mundo e tudo 0 que nele existe, sendo 0 Se- nhor do céu e da terra, no habita em templos construidos por mao de homens, nem se deixa servir por maos humanas, como se necessitas- se de algo. Pois, é ele que dé a todos vida, alento e tudo. Se de um s6 individuo ele fez todo o género humano para que os homens po- voassem toda a face da terra, e fixou aos po- yos os tempos que Ihes eram destinados e os limites de suas moradas, foi para que pro curassem a Deus e, tateando, pudessem encon- trélo, pois nao esté longe de cada um de nds. Pois nele vivemos, nos movemos e somos; alids, algum de vossos poetas o disse “Somos também de sua estirpe.” Se somos de linhagem divina, nao devemos pensar que a divindade seja algo parecido com ouro, prata, pedra, expresso de arte e ima- ginacéo humana. Ora, fechando os olhos sobre os tempos da ignorancia, Deus faz saber agora aos homens que todos, por toda parte, devem mudar de vida, pois fixou um dia em que jul- gard o universo com justiga, por meio de um homem que destinou para isso, dando como garantia 0 fato de té-lo ressuscitado dentre os mortos. Ouvindo falar de ressurreic&o dos mortos, alguns comecaram a zombar; outros disseram “Outro dia te ouviremos a respeito disso.” As- sim, Paulo saiu do meio deles. Entretanto, al- suns homens aderiram a ele e abracaram a fé. Entre eles achavam-se Dionisio, 0 Areopagita, uma mulher de nome Damaris. e outros ainda (traducio da Comunidade de Taizé) Cada palavra desse discurso pediria um comentario, A impressao geral que dele deriva 6 que Paulo, apos ter conversado com os fildsofos estéicos e epicuristas & margem do bulicio da Agora, apresenta a Boa Nova, nao como uma Tuptura, mas como um complemento ¢ um acabamento da teologia grega. Pouco faltaria para que um filésofo profissional pudesse ter assinado esse 24 A FILosoria MeDievaL. discurso, ja que os temas abordados so, na_maioria, lugares-comuns da filosofia da época: que o Deus ver- dadeiro, que dé a :odos vida e alento, no mora nos templos feitos pela mao do homem, mas no nico tem- plo digno dele, que é 0 universo, os fundadores do es- toicismo jé o haviam afirmado; que ele seja destituido de toda necessidade, de uma certa maneira incognosci- vel e, no entanto, proximo de nds e acessivel a quem se aplica em procuré-lo, era uma tese de Flatdo, con- servada e acentuada pelas escolas platonicas por volta da era crista; platonismo e estoicismo tinham-se, alias, mesclado € mutuamente alterado no ecletismo da época. A citacao do poeta estdico Arato (se nao for, a0 con. trario, do proprio Cleanto) confirma o cardter escolar dessas diferentes idéias. A tnica nota discordante apa- rece na mencao final, alids velada, do Cristo como o homem designado para julgar 0 universo no dia fixado; quanto a afirmagéo de sua ressurreigao, ela poe fim A conversagéo ao provocar a zombaria dos ouvintes, que haviam a principio tomado Jesus ¢ a Ressurrei¢io por uma dupla de divindades exsticas, tal como muitas ou- tras que o pantedo helénico comportava. Mas esse método, que se esforga em mascarar as divergéncias do cristianismo e da filosofia para ressaltar suas convergéncias, nao sensibilizou os atenienses: 0 redator dos Atos sublinha o insucesso com o numero excepcionalmente fraco dos convertidos (entre os quais se notara a presenga do célebre Dionisio Areopa- gita, do qual depois tanto se falaria, devido ao fato de um ‘falsério ingénuo do século V vir a se dissimular sob esse pseudoriimo famoso). Talvez tenha sido esse fra- casso que levou Sto Paulo a mudar radicalmente de atitude. O texto mais caracteristico dessa segunda ma- neira de agir lé-se na Primeira Epistola aos Corintios I, 17 — U1, 16, do qual se impde também a reproducao de pelo menos’ algumas passagens significativas Porque Cristo nio me mandou batizar, mas anurciar 0 evangelho, sem recorrer & sabedoria da linguagem, para nfo desvirluar a cruz de Cristo. Na verdade, para os que se perdem, a palavra da cruz ¢ loucura; mas, para os que se salvam, para nés, é poder de Deus. Porque esta escrito: HELENISMO & CRISTIANISMO 25 Destruirei a sabedoria dos sdbios e¢ ani- quilarei a inteligéncia dos inteligentes (Isaias, XXIX, 14). Onde estd 0 sdbio? Onde o letrado? Onde © pesquisador das coisas deste século? Nao transformou Deus a sabedoria do mundo em loucura? Porque, na sabedoria de Deus, jd que © mundo nao conhece a Deus pela prépria sa- bedoria, aprouve a Deus, pela loucura da pre- gacdo, salvar os que créem. Os judeus, pois, reclamam sinais, e os gregos buscam a sabe- doria; nés, porém, anunciamos um Cristo cru- cificado, escandalo para os judeus e loucura para os nao-judeus. Mas, para o3 eleitos, ju deus ou gregos, Cristo é’0 poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois a loucura de Deus é mais sébia que os homens (...) Quanto a mim, irmios, quando fui ter con- vosco, nilo fui anunciar-vos 0 mistério de Deus com 0 prestigio de elogiiéncia ou de sabedoria. Nada quis saber entre vos sendo Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Apresentei-me fraco, timido e todo trémulo diante de vés. E minha palavra e pregacdo nic consistiam em discut- 0s persuasivos de sabedoria, mas em denions- tragio do Espirito e do poder divino, para que a vossa fé nao se apoiasse na sabedoria dos ho- mens, mas no poder de Deus (...) Gra, nés nao recebemos 0 espirito do mun- do, mas o Espirito que vem de Deus, a fim de conhecermos os dons que Deus nos fez, E fa- larmos deles, ndo em linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas em linguagem ensinada pelo Espirito, adaptando aos que possuem o Espirito as coisas do Espirito Mas 0 homem como tal nao aceita o que vem do Espirito de Deus; é loucura para ele, e nao _o pode compreender, pois isto se julga pelo Espirito (traduzio da Comunidade de Taizé). A filosofia profana devia, apds isso, ser alvc de muitas arremetidas: nenhuma ultrapassard essa, onde a impetuosidade do estilo reflete a veeméncia indignada 26 A FILosoFia Meievat. do pensamento. O ataque de Séo Paulo dirigese evi- dentemente contra os metodos de ensino proprios ao pensamento pagao, contra os “artificios de uma sabedo- ria persuasiva”, os “mélodos aprendidos da sabedoria humana"; os procedimentos prdprios da retorica tradi- cional, que se dirigem & razdo, so substituidos por “meios de pregagéo” desarrazoados aos olhos do mundo e submetidos unicamente ao impulso do Espirito divino; Paulo resume a dualidade dos métodos pela oposi¢o, frequente na sua representagao antropoldgica, entre homem “como tal” ou “simplesmente racional” (literal- mente: “psiquico"), ao qual se destina a arte oratéria que ele proscreve, e 0 homem “espiritual” ou “pneumé- tico”, unico a ter 0 privilégio de provar os dons divinos. Mas ‘esta claro que a diferenca na forma do ensino é apenas 0 reflexo do abismo mais profundo e irredutivel, que se cava dentro do proprio contewdo. Se a sabedo- ria discursiva, fundada sobre a argumentacdo racional, € recusada com a veeméncia que se acaba de ver, é por- que ela “tira sua eficacidade” da cruz do Cristo, ou, mais literalmente, porque ela a “esvazia", a “extenua” a cruz nao se demonstra; por isso o cristianismo nao é mais uma sabedoria, mas um fato: 0 Filho de Deus na cruz; longe de ser satisfatério para o fildsofo, esse fato é deméncia, “loucura”, na medida em que é louco, espe- cialmente’ a olhos gregos, aniquilar numa abjecdo de es- cravo um deus cuja esséncia é ser belo e livre. Nao se poderia assinalar mais duramente a oposicéo do cristianismo e da filosofia helénica; em face desta, a atitude do cristao sé pode ser a de reprovacio, a “ate: tese”; este termo singular, que Sao Paulo toma de Isaias, é, por uma significativa coincidéncia, 0 mesmo termo que os graméticos alexandrinos empregavam para repudiar, nos poemas homéricos, os versos que julga- vam interpolados. O contraste com o discurso de Atenas € tao claro como se pode desejar; como Festugiére muito bem disse, ele corresponde a’ diferenga de men- talidade que separava os interlocutores atenienses dos destinatérios corintios: de um lado, uma cidadela do pensamento, orgulhosa de uma tradig&o cultural secular e segura de sua supremacia intelectual, desdenhosa das contribuigdes exteriores; do outro, um grande porto mediterréneo, povoado por uma ‘multidio multicor, familiarizada com o exotismo. aberta sem pvreconceito HIELENISMO E CRISTIANISMO 27 ‘a todas as novidades; em termos de uma geografia hu. mana atual, que se pense nas nuangas psicoldgicas que podem separar os fellows de Oxford dos estivadores de Marselha. Mas a diferenga de mentalidade dos interlo- cutores no basta para explicar totalmente a mudanga de atitude de Sao Paulo; do disourso de Atenas & carta aos corintios apresentase uma reviravolta completa, sur- preendente no mesmo homem, na concepcio das rela- g6es do cristianismo com as filosofias contemporaneas. De qualquer modo, essas duas atitudes paulinas impoem- ‘se como © protdtipo de uma dupla tradicao; de ld para ed encontraram-se cristaos para afirmar, seguindo nisso a Sao Justino e a Clemente de Alexandria, que 0 cris- tignismo é um humanismo, uma sabedoria, ‘uma paideia, onde se prolonga e se consuma tudo 0 que oS ideais pagios de vida e de pensamento tinham de melhor; paralelamente, alternando-se através dos séculos, de Ter- juliano a Pascal e a Kirkegaard, outros cristaos, mais exigentes talvez, no menos auténticos em todo caso, fundardo sua 6 sobre a rejeico de toda cultura pro- fana @ insistirao, nao sem provocagéo, sobre o cardter absurdo da mensagem crista. Antes de evocar alguns representantes dessa dupla tradig&io, duas observagdes se fazem necessdrias. Em primeiro lugar, cumpre saber que a atitude de concilia- cdo, téo marcante no discurso de Atenas, fora preparada, antes de Séo Paulo, por uma tendéncia andloga que se observa no judaismo helenistico dos trés ultimos séculos antes de nossa era, Certos livros do Antigo Testamento nao comportam, como se sabe, um texto hebreu e foram escritos diretamente em grego; muito naturalmente, sio eles que apresentam uma certa comunidade de idéias e de estilo com a filosofia e a moral do helenismo tardio; assim acontece, por exemplo, com o Livro da Sabedoria ou Sabedoria de Salomdo, cujas afinidades com 0 pen- samento grego no tocante ao problema da criagio j4 foram vistas. A Sabedoria € muito provavelmente de origem alexandrina, De fato, foi principalmente em: Ale- xandria que se operou esse sincretismo judeu-helenistico. Sua_mais importante manifestagéo foi a traducio grega da Biblia hebraica, isto é, segundo a denominacao usual, a Septuaginta; ¢ conhecida a lenda dos setenta e dois anciaos reunidos na iha alexandrina de Faros pelo rei 28 A FILosorin MEDirvaL Ptolomeu Filadelfo, isolados dois a dois para evitar toda comunicagao e que entregaram, ao cabo de 72 dias, tra- ctugdes perfeitamente concordantes; desse relato sé se pode conservar a designacéo do ‘lugar do empreendi- mento (Alexandria) e a indicacéo aproximada de sua €poca (século III aC.). O que € certo foi que os tra- dutores ndo somente empregaram a lingua grega, mas também alteraram muitas vezes o sentido do original hebreu para conformé-lo as idéias gregas; para dar um Unico exemplo, alids forte, dessa distorcio, lembremos que a célebre férmula do Bodo, III, 14, no qual Javé define sua subjetividade soberana: “Eu sou aquele que sou” torna-se em grego uma profisséo de ontoiogia pla- tonica de menor relevo: “Eu sou aquele que 6”; eis af uma manifestagéo de complacéncia na ordem propria- mente literdria de que foram vitimas notadamente certos textos proféticos, bem como 0 Livro de J6 e 0 dos Pro- vérdios; é assim que o tradutor grego introduz nessas Obras diversas nogées especificamente gregas como as de “lei” (némos) ou de "verdade” (alétheia), ou ainda certas fdrmulas préprias @ moral estdica, ‘ou mesmo varias mengdes das sereias homéricas —' ingredientes que estavam, todos eles, evidentemente ausentes dos originais hebreus. Essa tradigao de concordismo judeu- helenistico culmina, na propria época de Jesus, com um outro alexandrino ainda, Filon o Judeu, que se compraz em fundir estreitamente a heranga do Antigo Testamento com a da cultura grega cldssica; percebe-se que tais ten- déncias prefiguravam sem equivoco os esforcos de Sio Paulo para aproximar o cristianismo das filosofias da época. Por outro lado, é facil de adivinhar que a escolha entre a hostilidade e a complacéncia em face da cultura pag devia ser, numa medida importante, fungao das vicissitudes da ‘historia, isto é, das perseguigées. Nao se pode esquecer que 0 cristianismo foi, até 0 comego do século III, um movimento proscrito e clandestino, com uma alternancia de repressGes sangrentas e de Te. missOes passageiras; 6 claro que, nos momentos em que a persegui¢ao estava no alige, os cristéos estavam muito pouco dispostos a apresentar ou mesmo a con- ceber sua religiio como o prolongamento ¢ 0 acaba- mento da cultura paga; € assim, por exemplo, que o Apocalipse, ultima obra’ acolhida no Novo Testamento, HELENISMO E CRISTIANISMO 29 distingue-se por sua hostilidade ao império romano ¢ nao apregoa nenhuma benevoléneia para com a filosofia profana. Ao contrdrio, cada vez que a perseguigao se relaxava por algum tempo, quer nas regides que se encontravam por felicidade preservadas, quer, enfim, quando a paz da Igreja foi instaurada ‘pelo Edito de Mildo (318), os cristéos mostraram-se mais inclinados a se definirem como devedores dos fildsofos gregos e a se abrirem & sua influéncia. No podemos, contudo, talar de uma lei geral e € preciso levar em conta o tempera- mento, combativo ou conciliador, de cada individuo; vemos assim, no mesmo momento e no mesmo recanto do Império, um tedlogo acolher e outro repudiar a he- ranga da filosofia helénica. E © que se mostra claramente na primeira geragio teolégica que se seguiu ao periodo dos escritos neotesta- mentarios. Esses autores, que sio denominados Padres apostdlicos, viviam no auge da perseguicéio e, por essa razio, deveriam ter-se fechado a toda imifluéncia da cul- tura que a inspirava. Ora, com excegéo de Santo Indcio de Antioquia, nfo é 0 que ocorre; um escrito importante dessa época, a Primeira Epistola de Séo Clemente de Roma, traz ao contrdrio a contribuigio do pensamento grego; em particular, algumas consideragdes sobre a bela ordem da criacgéo tém um som estdico, bem na linha do discurso de Séo Paulo no Aredpago. ‘Vem em seguida, no fim do século II, os Padres apo- logistas, que dirigem aos imperadores stiplicas em que pedem direito de cidade para o cristianismo. O prdéprio género literdério exige deles uma grande familiaridade com a cultura profana; varios deles, alids, sao antigos filésofos que se tornaram cristaos; é certo que atacam a religiio grega; mas retomam para esse fim os proprios métodos que 0s fildsofos gregos haviam empregado em sua polémica contra as concepgdes populares da divin- dade; no mesmo sentido, revalorizam um argumento que Ja tinha sido brandido na apologética judia e que con- siste em sustentar que, jd que a tradigao monocieista de Israel € anterior & tradicao grega, o melhor dos escritos de Homero e de Platio foi tomado por eles a Moisés e aos Profetas; é a célebre teoria, que haveria de co- nhecer um sucesso durével, do “furto” pretensamente cometido pelos gregos & custa dos judeus; compreen- 30 A FivosoFia Mepievat, de-se facilmente que, apesar de sua pouca benevoléncia, ela ia no sentido da assimilacao das duas culluras. O principal representante dos Padres apologistas € So Justino; antigo fildsofo, discute com os filésofos, espe- cialmente com um cinico de nome Crescéncio (Eusébio, Historia Eclesidstica, IV, 16); teconhece que os gregos possuem valores verdadeiros e insiste sobre o que os cristéos tém em comum com eles e do mesmo modo sobre 0 que os separa; chega a escrever que aqueles que viveram com os olhos fixados no Logos divino, tais como Heraclito e Sécrates, foram cristéos antes de Cristo, tanto quanto Abrado e Elias. Justino teve por discipulo um sirio de nome Taciano, com quem é instrutivo com- paré-lo; pois, ao contrario de seu mestre, Taciano, muito @ par da cultura grega, encarniga-se contra ela, nao re- cuando diante da cahinia. Dessas duas atitudes, onde se pode reconhecer de alguma maneira a heranca da dupla inclinagao de Sao Paulo, seria a de Justino a que haveria de prevalecer depois; Taciano nao teve, nesse ponto, pos- teridade, por ter sido — por outras razbes, ¢ verdade — condenado como herético, ‘© mais helenizante dos Padres da Igreja foi, por volta do ano 200, Clemente de Alexandria. Sua origem alexandrina nfo deixava, como vimos mais acima, de predispo-lo a esse cardter; 0 prdprio titulo de stus obras yessente-se da influéncia grega, j4 que um deles 6 um Protréptico e assim se insere, pelo menos aparente- mente, numa tradigéo literdria que quase no conheceu eclipse, de Aristdteles até Jamblico, No tocante & filo- sofia, & religido, A mitologia, @ literatura dos gregos, a erudigio de Clemente é imensa e a ele se devem mil in- formagoes sobre numerosas obras perdidas que Ihe eram ainda acessiveis; ele multiplica os termos filos6- ficos gregos para exprimir conceitos cristios. tais como “gnose” (conhecimento) e “gnéstico” para dar a enten- der a perfeicao da doutrina cristé e do prdprio cristao, Discipulo e compatriota de Clemente de Alexandria, Ori genes dispde de uma igualmente vasta cuitura grega, cujos recursos filulégicos aplica ao estudo das Escritu- ras. AS circunstfincias favorecem o grande trabalho de harmonizagdo que realizou, talvez sem o desejar. entre a teologia crista e a filosofia profana: é que, apesar de ter conhecido a perseguicio em sua juventude, a maior parte de sua atividaie literdria desenvolve-se numa época HELENISMO F CRISTIANISMO 31 em que a Igreja vive em paz; um fato notdvel concretiza essa situacdo excepcional: de passagem em Antioguia, uma dama da corte imperial, maz do futuro imperador Alexandre Severo (ele proprio muito eclético er reli- giZo), convida Origenes a dar aulas sob 0 seu patrocinio! Em face desses dois defensores da coexisténcia pacifica entre 0 cristianismo e a filosofia, devem ser assinalados alguns partiddrios da ruptura; tratase principalmente de tedlogos especializados na refutacéo das heresias, tais como Hipdlito de Roma, contemporaneo de Origenes, & mais tarde Wpifanio de’ Salamina; segundo eles, com efeitu, as heresias que ameagam dilacerer o cristianismo tam Sua fonte na filosofia grega e citam, para confirmar essa cependéncia, exemplos ora inverossimeis, ora mais convincentes. ‘Nao se deve imaginar que sua benevoléncia com respeito & cultura filoséfica profena determina um Jus: tino, um Clemente, um Origenes ¢ nela dissclver a espe- cificidade do cristianismo; mais razoavelmente, aplicam- se em mostrar que 0s gregos ercontraréo na nova Te- ligiio 0 acabamento do que a sua cultura tradicional comportava de melhor; esse designio leva-os natural. mente a insistir sobre os pontos comuns acs dois pen- samentos. Dirigem-se aos cristéos tambeia para persua- dilos de que tirarao proveito da utilizagéo dos recursos da cultura paga auténtica, por exzmplo er retérica, em dialética e nas diversas ciéncias; por vezes ucrescentam, nao sem alguma malignidade, que a cultura grega nao Geixara assim de fornecerthes armas contra si propria. Dois textos, muito bem escondidos por Wifstrand, ilus- tram essa atitude, na qual a abertura a filosofia profana € acompanhada de uma ponta de segundas intengdes. O primeiro tent por autor Séo Jozo Damasceno (Da Fé Ortodoza, IV, 27), tedlogo tardio (século VIII), mas que recapitula nessas linhas uma tradic&o quase ininter- rupta desde as origens cristis. “Se, igualmente, puder- mos tirar algum proveito dos de fora (entendamos: gregos pagios), nada hd nisso de proibido. Sejamos como os cambistas precavidos que entesouram a moeda de curo puro e auténtico, recusanio a faisa, Recolhamos 2s excelentes palavras que pronunciaram, lancemos aos les suas divindades ridiculas e suas fabules sem inte- tesse. Pois poderiamos receber dos gregos muitas coisas que nos dio forcas contra os gregos.” 22 A FILOSOFIA MprevaL, © outro texto € do historiador bizantino Jodo Zo- naras (XIII), que fala do imperador Juliano; vé-se ai que este nao’ deixara de perceber tanto o apetite dos cristéios pelo patriménio espiritual grego quanta o pro- veito que dele tiravam contra o paganismo: “Enfureceu-se contra os cristaos a ponto de impedi-los de compartilhar a_cultura grega, dizendo que n&o convinaa que os cris- vos, tratando essa cultura como mitos ¢ desacreditan- do-a, dela tirassem vantagem prépria e produzissem com sua ajuda armas contra ela” (segundo a traducio fran- cesa de Dewailly, assim como no caso da citacdo prece- dente) . Vé-se que os cristéos mais inclinados a confraterni- zar com 0 pensamento grego, mesmo se nao tinham. todos como segunda intengéo 0 projeto de bem conhe- céla para melhor combatéla, permaneciam nos limites devidos; que, se se procura um exemplo de falta de me- dicia na helenizacfo do cristianismo, 4 preciso sair da ortodoxia e considerar as heresias gnésticas, florescentes sobretudo no século IT; viuse que os préprios heresié- logos antigos haviam discernido no gnosticismo a influ- éncia predominante da filosofia profana; de fato, obser- vase que os gnésticos abrem o cristianismo a uma verdadeira multidio de elementos vindos aa religiao grega: Zeus, Dioniso, Orfeu, Epiménides, os mistérios de Eléusis, as procissdes do ‘luto de Atis etc., convivern mais ou menos pacificamente com o Cristo e os seus dis- cipulos; uma das seitas do moviments, a dos carpocra- tianos, tinha em seus lugares de culto imagens coroadas Ge Pitégoras, de Platdo e de Aristdteles, misturadas com as efigies de Jesus. Esse amdlgama intempestivo néo podia ter futuro; mas as duas tendéncias que 0 gnosti- cismo levava ao paroxismo, a saber, 0 Tecurso aos es- quemas de pensamento dos fildsofos gregos e 0 hdbito de descobrir na religiio pagi prefiguragses simbdlicas do Cristo, deviam, conduzidas com maior discernimento, produzir bons resultados em muitos tesiogos cristics perferiamente ortodoxos. A FILOSOFIA RELIGIOSA; 0S MISTSRIOS Mais do que em cosmologia, em ldgica ou em dialé- tina é avidentemente em moral @ cahrahiin em taniagia HELENISMO & CRISTIANISMO 33 que € preciso colocar 0 problema das relagdes entre he- Jenismo e cristianismo. Se quisermos sair, nesse ponto, das generalidades repetidas por toda parte, ser melhor escolher um terreno de investigacao mais lirmitado, exa- minar, por exemplo, 0 que € sugerido pela comparacao da doutrina paulina com a dos estéicos da época impe- rial (Séneca, Epicteto, Marco Aurélio) & luz dos traba- Ihos classicos de Lightfoot, de Bonhotfer e de Festugiere. Nao se pode ignorar, ‘nos estdicos e em Sio Paulo, a presenga de numerosos temas comuns. Assim, a ideia de um “parentesco” (syngéneia) do homem com Deus, que jé encontramos no discurso de Atenas, freqiiente: mente a mesma doutrina é apresentada sob 0 aspecto da habitagdo divina no homem. Um outro encontro obser- va-se na comparagio da sociedade humans a um corpo vivo: relativamente ao conjunto césmico, 0 homem é como um membro de um vasto organismo e deve se comportar de acordo com os outros membros de que é sohdirio; uma outra maneira de formular a mesma iéia: 0 mundo inteiro 6 uma cidade da qual nossas ci- dades particulares sio como as casas. A semelhanca é particularmente notavel no elogio que os estdicos e Sao Paulo fazem da unidade do mundo; pode-se cotejar, a esse respeito, Marco Aurélio, VII, IX, 2: “Um é 0 mundo que todas as coisas compoem; um, 0 Deus difundido por toda parte; uma a substancia, uma a lei, uma a razao comum a todos os seres inteligentes; uma a verdade, pois uma, também, é a perfeicdo para’ todos os seres da mesma familia _e participes da mesma razio” (se- gundo a tradugio francesa de Trannoy) e a Epistolu aos Efésios, IV, 46: “Um sé corpo e um sé Espirito, como também fostes vés chamados, por vossa vocagao, 2 uma sé esperanca; um sé Senhor, uma sé fé, um sé batismo; um sé Deus e Pai de todos, que esta acima de tudo, por todos e em todos” (tradugao da Comunidade de Taizé). O paralelismo é inegdvel; néo deve, porém, mas: carar a dualidade da inspiragao. Que, em ambos os casos, 0 mundo seja considerado como uma tinica ci- dade,'é certo; mas 0 lago que o mantém unido néo tem dos dois lados a mesma natureza: no estoicismo, é a idéia de uma comunidade de esséncia para todos os seres racionais; em Sao Paulo, é, muito diferentemente a realidade da pessoa singular de Jesus (0 “corpo mis- tico”) e as comparagdes da cidade e do corpo aplicam- 34 ‘A FILOsoriA Mepievat, se menos ao mundo do que & pessoa de Jesus. Quanto 40 parentesco divino do homem, Marco Aurélio estima-o tealizado por natureza; é que, ontologicamente, 0 homem € uma “parcela de Deus”, sem que haja entre eles uniao Pessoal; segundo Sao Paulo, ao contrario, a filiagdo di- vina apresentase como um’ privilégio gratuito ©°6 por uma escolha feita do alto que o Hspirito de Deus “sobre, vém”" ao espirito do homem (Epistola aos Romanos, VIII, 14-16). : Se consultassemos os textos gregos, constatariamos, ademais, uma diferenca de vocabuldrio. Onde Sao Paulo fala de “espirito” (pneuma), divino ou humano, Marco Aurélio emprega o termo “intelecto” (nous). A distancia néo € muito considerdvel quanto ao sentido; mas a dualidade dos termos investe-se de uma real im- porténcia, a0 mostrar que o autor cristao nfio encontrou sua inspirag&o na tradigio grega. O texto que comanda a antropologia paulina é o da Primeira Epistola aos Tessalonicos, V, 23: vé-se ai a natureza do homem defi- nida pela triparticéo do espirito (pnewma), da alma e do corpo. Uma tripartigao andloga — com a excecio de que 0 intelecto nous substitui o pneuma — 6 corrente no pensamento helenistico, tanto antes quanto depois de S&o Paulo; é encontrada, por exemplo, nos estdicos, em Filon, em Plutarco, nos escritos herméticos, onde esta associada & idéia de um encaixe: a alma esta no corpo, © intelecto esta na alma; por trds dessa representagdo esta, certamente, a célebre tripartigao da alma proposta por Plataéo; todavia, tratase agora das trés partes do homem inteiro e nao somente de sua alma; além disso, © desprezo platénico do corpo ja esta passavelmente ate- nuado nessa época tardia; em iiltima andlise, parece que a fonte préxima da tripartigao helenistica deve ser bus- cada, nao nos didlogos de Platéo, mas no De Anima de Aristoteles. £ dai que ela deve ter passado para os autores. vistos, com uma significagao moral sobreposta: a alma € atraida para cima pelo intelecto, para baixo pelo corpo e@ sucumbe no mais das vezes a esta ultima tentacao. Certamente, Sio Paulo teve conhecimento desse topos helenistico e deve ter nele se inspirado. Mas como se explica que tenha substituido, na divisdo classica, nous por preuma, © intelecto pelo espirito? Relativamente rara em grego, a palavra pneuma quase inexiste nesse sentido espirittial (pois 0 preuma estéico 6 um principio HELENISMO © CRISTIAN.SMO 35 material, 0 “sopro”). De outro lado, Filon também operou a substituigio de nous por pnewma na tripartigao antropolégica e rélaciona essa mudanga & tomada em consideracao do Génese, II, 7: 0 homem foi primeiro criado como corpo e alma, depois Deus insuflou-lhe um pneuma, E, sem dtivida, da mesma origem biblica_que provém 0 preuma paulino; o pensamento grego dificil- mente poderia ter concebido que o intelecto humano fos- se um sopro de Deus. Compreende-se que 2 introducio Gesse vocabulo heterogéneo, acrescentando-se as profun- das diferengas, sublinhadas’ acima, na ‘inspiracao, trans- torne 0 sentido da teologia do estoicismo tardio e torne menos impressionantes as analogias, alids inegaveis, que essa apresenta com a doutrina de Sao Paulo. No que concerne a filosofia religiosa, 0 denominador comum da maioria das escolas gregas consistia em ofe- recer a perspectiva de uma libertacio pela imitagao de Deus; mas a vida filoséfica exigia uma preparagao, uma ascese, um certo desengajamento com relagéo ao mundo; em suma, exigia que se tivessem lazeres e 0 gosto das coisas do espirito; por essa razio era inacessivel & maio- ria, & qual eram necessdrios deuses sensiveis e garantias concretas de imortalidade. Isso explica 0 sucesso das religides de mistérios, nas quais os sentidos recebiam satisfacdo através de uma iniciagao e de uma acdo litur- gica, onde 0 coracao encontrava'se ligado por uma rela Gio de afeicdo entre 0 homem e o deus, bem como pela troca de um juramento de salvacio. Pois a finalidade dos mistérios 6 menos a uniéo com Deus do que a salvagao, isto 6, a felicidade, uma felicidade igual 4 dos deuses; e no apenas apés 2 morte, mas desde este mundo: a sal- vacio proporcionada pelos deuses salvadores € primeiro temporal e terrestre Ora, o terreno preferido dos comparatistas que pu- seram ém evidéncia a influéncia de filosofia religiosa grega sobre 0 cristianismo (Reitzenstein) foi o estudo desses mistérios helenisticos, dos quais Sao Paulo nota- damente teria sido devedor, quanto @ doutrina e ao vo- cabulério. O essencial dos mistérios de Atis, de Zagreu, de Adénis e de Mitra consistia, para o nedfito, numa morte simbélica & semethanga de Deus e numa regene- Tagio pela participagio no espirito do deus, garantindo © compartilhamento de sua imortalidade; da mesma ma- 36 A Fitosorta Meptevat, neira que o mista era assimilado ao deus que morria e Tessuscitava, assim também 0 batismo cristdo sepultava © fiel com o Crisio e fazia‘o ressuscitar ao mesmo tempo que ele, enquanto a ceia cristé comemora a morte do Cristo ¢ realiza a uniio dos figs com ele (Epistola aos Romanos, VI, 2-11; Primeira Epistola aos Corintios, XI, 26-33; XV, 2028; ‘Segunda Epistola aos Corintios, V, 14-17 etc.); morte mistica e unio com o Salvador, tal € 0 sentido ca célebre formula da Epistola aos Ga Jatas, I, 19-20: *Estou crucificado com Cristo. Mas eu Ja nao vivo: € Cristo que vive em mim.” (Trad. da Co- munidade de Taizé.) Além dessas analogias consideraveis na arquitetura geral da doutrina, haveria outras, mais precisas, entre a linguagem técnica dos mistérios e a de Sao Paulo. A propria palavra “mistério” é usual nas Epistolas para designar uma realidade oculta que tem necessidade de uma revelagio: “a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta” (Primeira Epistola aos Corintios, U1, 7; ver igual- mente Epistola aos Efésios, TI, 3-5 etc.); prova disso € que se supds que Paulo ‘projetava instituir mistérios cristéos andlogos aos mistérios pagaos e centrados como eles em torno da idéia de uma sabedoria que s6 podia ser revelada aos iniciados. Observarsed que, se assim fosse, 0 caso de Séo Paulo nao seria de modo algum ainico; com efeito, alguns anos antes, 0 fildsofo e exegeta judeu Filon de Alexandria tomava aos mistérios gregos um sem-nimero de representacdes e de formulas que aplicava a intelizéncia da Biblia; certos historiadores (Conybeare) conjeturaram mesmo ‘que existiam em Ale- xandria mistérios judeus copiados dos de Eléusis. Ha muitos outros termos paulinos cujo equivalente ppoderia ser encontrado nas religides de mistérios. Assim, os “elementos do mundo”, que designam em Sao Paulo os espiritos demoniacos malfazejos, superiores aos ho- mens e que contrariam neles a agéo divina; ora, a mesma formula encontrase na gnose e no hermetismo, que a aplicam a divindades de ordem inferior capazes de aju- dar ou de criar cbstdculos iniciagdo do mista e que a magia se consagra a dispor favoravelmente. Vimos acima que Sao Paulo faz muito uso do termo pneuma, “espirito", que distingue, no homem, nfo somente do corpo, mas da alma; dissemos que esse vocabulario difi- cilmente poderia provir da filosofia grega; mas ele per- HELENISMO E CRIsTIANISMO 37 tence & lingua das religides helenfsticas: como Paulo, os papiros mégicos opdem o prewma ao corpo e A carne e mencionam ‘um pneuma divino; quanto a dualidade do pneuma e da alma, ela é encontrada na liturgia de Mitra, na qual o mista abandone sua alma sobre a terra para deixar viver nele o pnewma. O fosso que separa o pneuma do corpo nao é, de resto, insuperdvel, j4 que a Primeira Epistola aos ‘Corintios, XV, 44, introduz a nocao do “corpo pneumético”, materia ‘sutil que toma o lugar do corpo carnal no momento da ressurrei¢ao; tal representagao foi comparada com a doutrina helenistica das vestes celestes com as quais as almas se cobrem na sua descida através das esferas planetdrias. Quanto ao movimento inverso, pelo qual as almas liberadas remon- tam pelo mesmo’ caminho despojando-se progressiva- mente de seus envoltdrios, ele pdde ser comparado ao célebre arrebatamento de’ So Paulo a0 terceiro céu (Segunda Epistola aos Ccrintios, XII, 1-6). ‘Enfim, quando Paulo define a “gnose” como uma iluminagao vinda do alto, uma visio unitiva de Deus, obtida nfo por uma iniciativa do homem, mas por um dom carismatico, nao esté longe da doutrina hermética que entende pelo’ mesmo vocabulo um dom sobrenatural, uma visao de Deus que deifica e proporciona a salvacio, um carisma que ilumina c homem, Nos escritos hermé- ticos também, assim come nas Epistolas, a dora é uma gidria resplandecente dada em quinhao 2 alma regene- Tada, Sob um outro aspecto, a divinizagao do cristao tal como Sao Paulo a descreve apresenta-se como uma “me- tamorfose” que confere a alma a “forma de Deus”; ora, € preciso saber que, segundo os papiros mégicos tam- bém, o resultado da iniciazio € dado por uma metamor- fose onde 0 mista se une a forma divina. Jamais aca- bariamos de enumerar os pontos de encontro, no mais das vezes concretizados pela identidade de um vocabulario téenico, entre o cristianismo paulino e a filosofia reli- giosa da época helenistica Mas eles nao devem fazer esquecer as diferengas de fundo; uma mesma linguagem, que é a do tempo, pode recobrir realidades diversas. Nao nos deteremos para trazer @ consideragio a imoralidade dos mistérios; 6 verdade que neles podiam se insinuar desordens, mas © fundo desses ritos nao 2ra necessariamente imoral. O importante € compreender que mistérios pagdos e mi 38 A Fitosoria Mepinvat, tério cristo nao se situam no mesmo plano: a salvagio que a iniciagao paga alcanca € exterior, automatica e inadmissivel, qualquer que seja a conduta de quem re. cebeu sua promessa; a iniciacio cristé, ao contrario, 6 um dom divino interior, sempre precdrio e revogavel, que requer do homem uma correspondéncia em todos 8 momentos; a motivacao do mista néo é 0 amor de seu deus, seu fim néo € 0 de se’unir a ele, mas de en- contrar a felicidade apds a morte e jé nesta vida; inver- samente, a uniio com 0 Cristo forma o essencial da sal- vacao crista € relega a0 segundo plano toda busca de vida feliz, Se assim é, é porque os deuses salvadores sio, de um lado ¢ doutro, de natureza bem diferente: Zagreu, Atis, AdOnis e Mitra séo salvadores césmicos, associados ao ritmo da natureza que parece, ela prépria, morrer e renascer; néo morreram por amor do homem, para libertar, em’ sua intimidade, a alma de cada um de nés Nem por isso deixam de subsistir, entre as Epistolas € os textos religiosos helenisticos, as’ analogias vistas e que dificilmente podem passar por coincidéncias, Nao se concluiré por isso que Sao Paulo se tenha aplicado em copiar os mistérios gregos. E aqui, com efeito, que devem ser uteis as consideragdes gerais’ que foram feitas acima: os textos pagéos postos em paralelo com as \Epistolas sio geralmente de data incerta; muitos deles podem lhes ser pesteriores, de tal modo que nao esta excluida a possibilidade de considerar uma influéncia exercida pelas concepgdes e pelas formulas paulinas sobre a literatura relativa aos mistérios; do mesmo modo, certos termos empregados por Sio Paulo e as nogdes que expressam ja estéo presentes no Antigo Tes- tamento, que pode, em alguma_medida, ter deixado ves- tigios sobre os texios pagios. Enfim, mesmo que se ve- rificasse que Sao Paulo tomara emprestado as religides de mistérios diferentes detalhes de seu vocabulério, pa- rece que sua divida, dada a diversidade do fundo, resul taria simplesmente ‘das necessidades da expresso. A EXPRESSAO FILOSGFICA: A DIATRIBE: A filosofia da época helenistica, assim como todas as outras idéias do tempo, exprimiase de bom grado numa forma retérica particular conhecida sob o nome HetenisMO F CRstianismo: 39. de “diatribe cinico-estéica”; tratese de um discurso po. pular que repousa sobre o emprego de um certo numero de procedimentos estereotipados Foi feita uma aproxi. macao dess@ diatribe com 0 estilo da predicagdo nao-tes. tamentaria, em particular da predicagéo paulina; quanto a esle ultimo ponto, 0 trabalho foi feito por um estu: dioso que conquistou desde entio a celebridade como exegeta do Novo Testamento, Rudolf Bultmann. Eis aqui alguns dos procedimentos que Bultmann Jocaliza a0 mesmo tempo na diatribe e nas Epistolas de Sio Paulo: a objecio atribuida a um ouvinte ficticio e a interpelagéo do adversdrio; a utilizagio de termos da mesma raiz, tais como criatura e criador, perecivel e imperecivel, aproximados de modo a se tirar efeito deles; © gosto da antitese, ao mesmo tempo nas idéias e nas palavras; a prosopopéia, pela qual se atribuem ditos a uma nogao abstrata, por exemp‘o, a personificagao do pecado; 0 recurso aos exempla; a maneira de citar li vremente os textos, modificando-os para acomodé-los as doutrinas que se quer estabelecer, ou ainda agrupando alguns deles & maneira de um centio; as analogias toma. das 20 espetdculo do mundo exterior; os argumentos a minori ad maius ou a maiori ad minus (do tipo: se A produz tal resultado, 0 que ndo produzira B!); exem- plos: se Deus deu o seu Filho timico, 0 que nao dard ainda! (Dpistola aos Romanos, VIII, 32); se a desergao dos judeus fez a salvagao dos gentios, 0 que ndo fara o seu Tetorno! (Ibid., IX, 12); 0 sol pode iluminar o uni- verso inteiro € aquele que criou 0 sol ndo teria o poder de perceber toda realidade! (Bpicteto, Conversagdes, 1, XIV, 10) Um outro texto do Novo Testamento que se ressen- tiria da influéncia da diatribe é a breve Epistola de Tiago, Os procedimentos retériccs que se invocam para apolar essa tese sio andlogos aos que acabamos de enumerar em Sao Paulo: a Epistola de Tiago abunda em exemplos tirados da Histéria (nomeia assim Abraao, Elias, J6 ete.), em interrogacdes oratdrias, e apéstrofes, em séries de certas questdes e respostas, em argumentos atribuidos a_adversarios ficticios e imediatamente refu- tados etc. Nao hd diivida que todas esses tiques de estilo Pertencem efetivamente @ diatribe; mas nao se pode esquecer que abundam igualmente na literatura judia do Antigo Testamento, em particular no Livro de Jo, em 40 A Ficosoria Mepievat, Ben Sira, nos diversos profetas; foi provavelmente neles que 0 autor da Epistola de Tiago contraiu o habito de empregé-los, mais verossimilmente do que freqiientan- do os testemunhos da diatribe cinico-estdica. Por outro lado, pode-se constatar que os livros do Antigo Testa- mento onde é mais manifesto o recurso a esse aparelho retdrico sio os mais tardios, aqueles que emanam do Judaismo helenizado; conseqiientemente, seria preciso considerar mais sobre esses, do que sobre 0 Novo Tes- tamento, a eventualidade de uma influéncia da diatribe grega Essas_observagdes so igualmente vdlidas para o caso de Sio Paulo, que reclama, ademais, uma observa- cdo mais particular; ao lado desses miuiltiplos procedi- mentos comuns, que séo naturais em autores da mesma época e da mesma cultura, hd um, familiar & diatribe cinico-estéica, que Paulo nfo emprega: ele jamais tenta converter seus correspondentes por meio de uma dis. cussio racional; como estao de acordo com ele quanto ao fundo, limitase a lembrarlhes o que ja sabiam; do mesmo modo, 0 principio de autoridade que domina o ensino paulino acomodar-se-ia mal a uma discussio desse género A EXPRESSAO FILOSOFICA: A ALEGORTA “alegoria” 6 um termo grego cuja etimologia indica que se quer “dizer outra coisa” do que o que se diz: “a figura de estilo que consiste em dizer uma coisa e em sig- nificar uma outra, diferente do que se diz, eis ai propria mente 0 que se chama alegoria” (Herdclito, Questdes Ho- méricas, V, 2); “0 que € entio a alegoria senfo a figura pela qual se di a entender uma coisa por uma outra?” (Santo Agostinho, Da Trindade, XV, 9, 15). Tal é a de- finicfo que todos os autores antigos, pagios bem como cristéos, nfo cansaram de repetir. Mas € preciso acres- centar imediatamente que essa definicio tradicional dei- xa aparecer apenas um sentido para um termo que com- porta dois. Esclarece a alegoria tal como é admitido que os poetas épicos ou os autores do Antigo Testamento a praticam, isto é a expresso alegdrica; mas nao diz uma palavra da operacao pela qual os comentadores dos poetas e os exegetes da Biblia discernem, sob o sentido literal, um sentido oculto, ou, dito de cutro modo, da HILeNISMO & CRisTIANisMO: 4 interpretagdo alegérica. Ha ai dois procedimentos, com. plementares, nao ha dtivida, mas de sentido contrario, bem diferentes em todo caso: uma maneira de falar ¢ uma maneira de compreender, um procedimento retd- rico € uma atitude hermenéutica, que a linguagem cor- rente lastimavelmente confunde sob 0 nome de “alego- ra”. H preciso, alids, saber que essa indistingdo ja era caracteristica dos autores da Antiguidade: quando ‘0 ge6- grafo Estrabao (I, 2,7) escreve: 'Homero (...) compée Suas narrativas (..) fazendo uma alegoria com a in- teneao de instruir”, ele quer dizer evidentemente que o poeta se exprimia ‘alegoricamente; quando o apologista cristao Taciano (Discurso aos Gregos, 21) dirige a seus interlocutores este conselho: “Credeme, homens da Grécia, nao fagais a alegoria nem de vossos mitos, nem de vossos deuses”, seu intuito é, com certeza, desvid-los da interpretacao alegérica. Se bem que a diferenga seja facil de captar, nem sempre atentamos para ela, 0 que nos expe aos mais graves erros. © termo “alegoria” € relativamente recente na lingua grega; um dos mais antigos autores a conhecélo é, no século I antes de nossa era, Cicero (Carta a Atico, TI, 20, 3; Do Orador, IIT, 166). Mas a idéia é muito mais antiga e expressowse, 'a principio, pelo termo hyponoia, etimologicamente: “sentido suben‘endido”; Platao, por exemplo, proscreve as ficgdes des poetas, “comportem ou ndo sentidos subentendidos” (Republica, II, 378 d). ‘A interpretago alegdrica foi aplicada muito cedo & obra de Hesiodo, e sobretudo a de Homero. No século VI a.C., levantouse uma oposiggo veemente a teologia homérica, acusada de dar dos deuses uma representagao imoral; é assim que uma tradicao propagada por Didge- nes Lagreio em sua Vidas dos Filssofos (VIII, 21) rela- tava como “Pitdgoras, tendo descido 20 Hades, viu a al- ma de Hesiodo amarrada, aos urros, a uma coluna de bronze e a de Homero suspensa a uma érvore, com ser- pentes em volta, em punicéo do que haviam’ dito dos deuses ao lado do castigo daqueles que haviam abando- nado a propria mulher"; por volte da mesma época, Xe- nofanes acusa Homero e Hesiodo pelos crimes que ha- viam atribuide aos deuses e dos cuais os menores sio 0 adultério e o infanticidio; sua critica esta expressa em dois fragmentos conservados por Sexto Empirico (frag- Mentos 11 e 12, DielsKranz): “Homero e Hesiodo atri- a A Frosoria Meprevat buiram aos deuses todas as acées que os homens tém por vergonhosas e censurdveis, 0 roubo, 0 adultério ¢ © dolo reciproco”; “Homero e Hesiodo, no testemunho de Xendfanes, contavam dos deuses o maior numero possi- vel de agdes iniquas, roubos, adultérios e dolos recipro- cos. Cronos, com efeito, a quem atribuem uma vida di- tosa, emasculou 0 pai e ‘devorou os filhos; seu filho Zeus despojou-o da soberania e 0 fez buscar assento sob a terra (Iliada, XIV, 204) Para defender Homero, imaginou-se que seus relatos imorais eram apenas uma aparéncia e escondiam, na ver- dade, um ensin> tedrico (fisico, moral, psicoldgico, mis- tico etc.) perfeitamente honesto e veridico. A alegoria apareceu assim como o meio de salvar do descrédito os poemas homérieos; como escreve 0 autor do Tratado do Sublime (IX, 7, 2), “se néo sio compreendidos segundo a alegoria, sio totalmente ateus”; mais conhecida, a for- mula do comentador Herdclito vai no mesmo sentido: “tudo sera impio em Homero se nada for alegdrico” (Questées Homéricas, I, 1). O fundador desse método exegético passa por ser 0 pré-socratico Teagénio de Régio, contemporaneo de Cam: bises, rei da Pérsia (de 529 a 522 a.C.). B pelo menos o que atesta um escélio de Porfirio na Miada, XX, 67, que merece ser aqui citado, pela maneira feliz com que con- densa as motivagdes da interpretagio alegérica, seus principais procedimentos, suas mais correntes varieda- des com a indicagéo de alguns dos temas homéricos que terfo a predilecao desses exegetas A doutrina de Homero sobre os deuses prende-se geralmente ao intitil e mesmo ao in- conveniente; pois 0s mitos que narra sobre os deuses nao sho convenientes, Para destruir tal acus2¢ao, hd quem invoque a maneira de falar; estimam que tudo foi dito em alegoria e con cerne & natureza dos elementos, como, por exemplo, no caso das discordancias entre os deuses. E assim que, de acordo com eles, 0 seco combate ao timido, 0 quente ao frio e 0 leve ao pesado; a Agua’ apaga 0 fogo, mas 0 fogo desseca 0 ar; acontece 0 mesmo com todos os elementos de que ¢ composto 0 unt verso: ha entre eles uma oposigao fundamen- i | | Hexenismo & CRISTIANISMO 4B tal; comportam, de uma vez por todas, a cor- rupgao ao nivel des seus particulares, mas em seu conjunto subsistem elernamente. Sao tais combates que Homero teria instituido, dando a0 fogo o nome d2 Apolo, de Helio, de Hefes- to, {a agua o de Posidon, e de Escamandro, & qua o de Artemis,\ao ar 0 de Hera etc. Do mesmo modo, pode acontecerlhe dar _nomes de deuses a disposiges da alma, & reflexio 0 de Atena,(a sem-razio 0 de Ares} ao desejo_o de Afrodite} A boa elocucao o| de Hermeés,' todas élas faculdades 25 quais esses deuses se aparentam. Esse modo de defesa é muito an- tigo e remonta a Teagénio de Regio, que foi 0 primeiro a escrever sobre Homero; tem por natureza, portanto, tomar em consideragio a maneira ‘de falar. Nao se pode garantir que Porfirio nfo caia de al- gum modo no erro banal que consiste em atribuir a um autor muito antigo, aqui Teagénio, um pensamento (no caso, 0 tratamento da alegoria homérica) mais evoluido do que provavelmente podia ser numa época tio recuada. Pois a partir desse momento, a exegese alegdrica dos poetas vai se tornar o objeto de uma tradigao pratica- mente ininterrupta no mundo grego. Desenvolve-se den- tro do circulo de Anaxégoras, ja que os discipulos desse fildsofo “submetem A intergretagio os deuses tais como os mitos os apresentam: Zeus € para eles o intelecto, Atena a habilidade” (Metrodoro de Lampsaco, testim. 6, Diels Kranz). Contemporaneo de Platéo, 0 cinico Antis- tenes tem por heréi preferids Heracles e Ulisses, de quem faz modelos de moralidade, transpondo suas aventuras por meio da interpretagio alegorica; ele se faz notar também pelo fato de justifiear esta titima gracas a uma distingdo que sera muitas vezes retomada e explorada e segundo a qual Homero teria falado “ora segundo a opiniao, ora segundo a verdade”, ou dito de outro modo: ora para ser compreendido alegoricamente, ora para ser tomado a0 pé da letra. Nesse ponto, como em muitos outros, os estdicos foram os herdeiros de Antistenes; os fundadores da escola, ZenZo, Cleanto e Crisipo, utiliza- ram amplamente a leitura clegdrica dos poetas e é & sua influéncia que se ligam todos os que, na época helenfs- 44 ‘A FILosoFIA MEDIEVAL tica ¢ romana, iriam mais longe nesse caminho: Crates de Malos, Apolodoro, Cornuto, Herdclito, 0 autor desco- nhecido (um Pseudo-Plutarco) de um pequeno tratado Sobre a Vida e a Poesia de Homero. (A partir do dia em que os fildsofos se puseram a de- cifrar assim Homero e Hesiodo, a exegese_alegérica tor- nou'se um modo da expressio filoséfica. Jamais foram os pensadores tio tomados pelo cuidado de ligar seu sis- tema a uma fonte ainda mais antiga do que na Antigui- dade; uma das caugdes a que atribuem o maior valor é © prestigio da ancianidade, a auctoritas vetustatis; tal disposicéo € dificilmente ‘compreendida hoje em’ dia, quando’ a modernidade se tornou o principal atrativo It terdrio; ela explica que a Antiguidade esteja entulhada de tantas falsificagées, de obras apécrifas e pseudoepi- grafes, de autores Tecentes que se dio por autores anti- gos; permite compreender igualmente a paixio que ani- mou entio as polémicas cronoldgicas, nas quais os de- fensores de uma tradigao se empenhavam em mostrar que ela precedera e portanto inspirara todas as outras. Podemos imaginar a importéncia de que devia se reves- tir, em tal mentalidade, 0 recurso aos poetas antigos (Homero, Hesiodo) ou’ miticos (Museu, Orfeu etc.); nao se trata absolutamente de tomarlhes emprestado ilustragdes divertidas, capazes de distender a austerida- de dos desenvolvimentos filos6ficos; a ambigio de todo autor relativamente tardio é mostrar que suas proprias idéias j4 eram compartilhadas por esses poetas presti- giosos que haviam sido, como se dizia, os “preceptores da Grécia”. Todavia, era preciso convir que esses, apesar de seus méritos, néo haviam falado como filésofos pro- fissionais; s6 restava atribuir-lhes uma filosofia subja- cente, supor, sob a banalidade de suas narrativas, um en- sino especulativo oculto, que a interpretacio alegdrica tinha precisamente que trazer a luz. Em consegiiéncia, para um sem-ntimero de fildsosos, uma maneira de se expressar foi mostrar as idéias que se presumia terem sido dissimuladas por Homero e Hesiodo em seus versos. Adivinha-se a que perigo se expunha um tal procedi- mento. E que, pertencendo os adeptos do método alegé- rico a escolas diversas, 0 mesmo poeta se via mobilizado para caucionar as doutrinas mais opostas, melhor, 0 mesmo episodio da Iiada ou Teogonia tornavase amol- davel a todos os fins. Esse paradoxo nfo escapou aque- rr HeLenismo © CRISTIANISMO 45 ue 0 realizavam; assim Séneca (Carta a Lu- se ee ey GeSapran em denunciar o engano que consis fe em fazer de Homero 0 campeao de todas as filosofias Glassicas: "Ora fazem dele um estdico que sO dé valor fforca da alma, detestando 0 prazer e nao se afastando Go que é honesto mesmo ao prego da imortalidade; ora Gele fazem um epicureu a louvar 0 estado de uma cidade tranqitila onde a vida decorre por entre festins e cantos Ge festas; € um peripatético que presenta uma divisdo fripartida dos bens, enfim, é um académico que diz que tudo n&o passa de incerteza. A prova de que ndo é nada disso é que ele é tudo isso, incompativeis que sao tais sistemas” (tradugao Noblot) Muitas vezes se disse que Homero e Hesiodo desem- penharam na cultura grega um papel compardvel ao da Biblia na cultura crista. E dbvio que nao se pode acoi- mar os cristaos, em seu uso dos textos biblicos, da mes- jma leviandade fustigada por Séneca; mas, de fato, acon- tece-lhes, muitas vezes, descobrir na Biblia, em confor- midade com suas proprias idéias, sentidos que deixam es tupefato © leitor de hoje. Fazem-no também por meio da exegese alegorica, que se aplica a extrair nos textos Siblicos, para além Go sentido literal aparente, um sen: tido simbolico mais profundo. Ha, nos fildsofos gregos fe nos Padres da Igreja, duas atitudes cujo parentesco é inegavel. Dever-se-a explicar essa coincidéncia por uma influéncia exercida pelos primeiros sobre os segundos? ‘A essa questao, 08 polemistas anticristaos do fim da An figuidade respondiam afirmativamente: a interpretacdo alegorica da Biblia teria nascido do desejo de justificar sua mediocridade; na origem desse método estaria Ori genes, que passava por télo tomado emprestado a cul- tura grega transportando-o para a leitura do Antigo Tes- tamento. Tal € 0 ponto de vista que 0 filésofo Porfirio, que tivera ocasiao de aproximar-se de Origenes, se es- forcava por propagar em seu grande tratado Contra os Cristdos; 8 obra perdeuse, mas a pagina que nos inte- tessa foi, por sorte, conservada na Histéria Eclesidstica (VI, 19, 28) de Eusébio, a quem vale a pena ceder por uum instante a palavra: (...)em nossos dias, Porfirio estabeleceuse na Sicilia, ai compés eseritos contra nds e neles 46 A Finosoria Mepievan, estorcou-se em caluniar as Escrituras divinas, faz mengao daqueles que as comentaram, sem poder invocar a menor censura contra as dou. trinas e, a falta de razdes, acaba por injuriar ¢ caluniar os prdprios exegetas e, entre eles, so. bretudo Origenes (...), Ouvi, pois, 0 que diz em suas proprias palavras: “Alguns, desejosos de encontrar uma explicagao da perversidade das Escrituras judias, mas sem romper com elas, recorreram a interpretagdes incompati- veis'e em desacordo com o que esta escrito; Provocam assim nio tanto uma apologia do que € estranho, mas sim uma aprovago e um louvor de suas prdprias elucubragoes. Com efeito, 0 que é dito claramente por Moisés, ce- lebram-no como enigmas ¢ proclamam-no como ordculos cheios de mistérios ocultos; e, apds haver enfeitigado 0 senso critico da alma pelo orgulho, introduzem os seus comentarios." Em seguida, diz, apds outras coisas: “Tal especie de absurdo provém de um homem que também encontrei quando era muito jovem, © qual tinha uma grande reputagio e que é ainda célebre pelos escritos que deixou: Ori genes, cuja gloria muito se difundiu entre os mestres dessas doutrinas (...). No que diz respeito &s opinides sobre as coisas e Sobre a divindade, helenizou e transportou as opinides dos gregos para as fabulas estrangeiras. Com efeito, vivia sempre com Platio, fregiientava os escritos de Numénio, de Crénio, de Apolo- fanio, de Longino, de Méderato, de Nicémaco e de homens célebres entre os pitagéricos; ser- viase também dos livros de Quéremon, 0 es° toico, e de Cornuto; aprendeu junto deles a interpretacao alegorica dos mistérios gregos que aplicou as Escrituras judias.” Nem tudo deve ser ingenuamente aceito nessa pd- gina de Porfirio, que sentimos animada pela paixao an- ticrista. Em particular, é dificil dar fé a sua afirmagao, segundo a qual Origenes seria o iniciador da exegese ale- gorica da Biblia, Seria, com efeito, esquecer que, mais de um século e meio antes dele, Sao Paulo propusera, HELENISMO B CRISTIANISMO a gas duas mulheres de Abreio e de seus filhos respect! G63 (Genese, XXT), uma exegese indubitavelmente ale- Srica e qualificada, alids, por ele pelo mesmo nome: a Siulher escrava, Agar, € considerada como a figura da Bhtiga alianga e da Jerusalém carnal, ao passo que Sara, grmulher livre, € a figura da nova alianga e da Jerusalém Bo alto (Epistola aos Gdlatas, IV, 23:31). Ademais, se se Gonsidera agora, no mais s6'o cristianismo, mas 0 com- plexo Judew-cristio, véese que 0 proprio Sto Paulo teve predecessores na interpretacao alegorica do Antigo Tes- Tamento. Assinalowse mais acima o sincretismo judeu-he- Jenistico que se operou, notadamente em Alexandria, no curso dos trés primeiros séculos antes de nossa era e se fnanifestou sobretudo pela traducéo grega da Biblia he- praica e pela redagio, diretamente em grego, do Livro da Sabedoria. Ora, 6 preciso saber que esse judaismo alexandrino ja praticava amplamente a exegese aleg6- rica da Escritura. Assim é que um documento provenien- te desse meio, a Carta de Aristeu a Filonato, contém uma interpretacao alegérica da legislagao de Moisés sobre os animais impuros, eniendida como uma série de adver- téncias simbdlicas convidando os figis & vida _perfelta. Por seu lado, os essénios, membros de uma célebre co- munidade ascética da Judéia, segundo a descrigio de Filon (Que Todo Homem Bom é Livre, 12, 82) reunem-se na sinagoga no dia do Shabat, “esforcando-se & maneira dos antigos por explicar através de simbolos a maior parte da Escritura.” O mesmo Filon (Da Vida Contem- plativa, 3, 28-29) atribui um método exegético idéntico a uma seita judia da época, a dos Terapeutas implanta- dos no Egito: “Quando léem as Escrituras sagradas, de- dicam-se A filosofia de seus pais por meio da exegese alegorica, persuadidos que os termos do texto literal so simbolos de uma verdade natural oculta que se exprime por subentendidos. Possuem escritos de autores antigos, que S40 0s fundadores de sua seita e deixaram numero- 05 monumentos sobre o ensino expresso em alegorias, inspirando-se neles como modelos, imitam 0 método de- finido por esse principio"; testemunho tanto mais pre- cioso por oferecer além disso, traduzida nos termos mais técnicos, uma notavel definigéo do método alegérico. Cumpre’ acrescentar que o préprio Pilon praticou esse método por volta da era cristé, com mais convicgao & abundancia do que ninguém antes ou depois dele. 48 A FILosoma Mepinvat. Vé-se que, ber antes da aparig&io do cristianismo, a exegese alegorica da Biblia estava fortemente implanta- da no judaismo helenistico. Ora, é manifesto que ela ai se mesclava com muitos elementos provenientes do pa- ganismo grego. Os exemplos dessa contaminagio nao fal- tam. Aristobulo, judeu de Alexandria e, ao mesmo tempo, fildsofo peripatético do século II a.C., propés-se mostrar que os antigos poetas e fildsofos gregos haviam-se ins- pirado amplamente em Moisés; para apoiar sua demons- tragio, forjou numerosas pretensas citagdes de autores gregos, que iludiram durante muito tempo; seu intuito era, portanto, estabelecer a origem judia’ da alegoria grega; mas é claro que o artificio desesperado de que Se serve para esse fim vai, muito ao contrério, em favor de uma filiagéo de sentido inverso. Dois outros judeus helenizados da mesma época, Artapanos e Eupdlemo, notavam, também, interferéncias entre a histéria biblica dos patriarcas e a mitologia ou a histéria lenddria grega; todavia, diferentemente de Aristébulo, deixam de expli- cé-lo por um pretenso pligio cometido pelos gregos dao antes a impressio de crer na existéncia de um velho fundo mitico comum que teria recebido uma dupla for- miulagao, homero-hesiddica e biblica. Outros judeus en- fim, que nao sio nomeados, mas cuja tendéncia é ainda assinalada por Filon (Da Confusdo das Linguas, II, 2-5), aproximavam os construtores infelizes da torre de Babel (Génese, XI, 19) dos filhos de Aloeu mencionados na Odisséia (XI, 305320), dando a entender que seria o Génese que teria traduzido em imagens semititas uma lenda de origem grega. Dessa imbricagao do Génese com a Teogonia € a Odisséia, tema preferido de toda uma es- cola de historiadores judeu-alexandrinos, resulta pelo menos uma forte presuncao em favor da origem grega da exegese alegorica dos judeus helenizados; pois tais episddios miticos dificilmente podiam, nessa época tar- dia, ser lidos com outros olhos que os da alegoria. Na verdade, nao apenas 0 principio mesmo da interpretagdo alegorica foi objeto de empréstimo, mas ainda a aplica- 30 de um conjurto de procedimentos; pois os alegoris- tas gregos, sobretudo os de obediéncia estdica, haviam desenvoivido, pare exercer sua arte, uma técnica de de- cifracdo que Thes permitia discernir os textos capazes de receber uma interpretacio simbdlica e extrair esta por meio de um certo numero de regras; haviam assim HeLeNsMo £ CRiSTIANSMO 49 constituido um verdadeiro método no qual os exegetas judewhelenisticos amplamente se inspiraram para ajudar sua interpretagio alegdrica da Escritura. Assim, quando os padres da Igreja (principalmente os alexandrinos Clemente e Origenes, mas também um capaddcio como Gregorio de Nissa e ocidentais, como Santo Ambrosio e Santo Agostinho) interpretam alego- ricamente a Biblia, muitas vezes utilizando-se desse meio obliquo para formular sua propria filosofia, nao sio os primeiros a fazélo: os judeus helenizados haviam-nos precedido nessa via, A sucessdo cronolégica duplica-se agui, sem diivida alguma, de uma dependéncia literéria e doutrinal: alegorismo de Filon, notadamente, era perfeitamente conhecido, de maneira indireta ou no mais das vezes imediata, de Origenes, de Gregorio de Nissa, de Ambrosio, de Agostinho, que reproduzem um grande ntimero de suas exegeses e inspiram-se em seu método. Por intermédio de Filon, toda a contribuicio técnica da falegoria grega, de que o judaismo helenistico tao am- plamente se beneficiara, encontrava-se @ disposicio dos Padres da Igreja. Mas pode-se com razdo pensar que es: tes nao se contentaram com ess? recurso indireto a0 helenismo, que tiveram acesso po: si proprios as técni- ‘cas da exegese alegdrica desenvolvidas na tradigao estoi- ca e que delas tiraram proveito para a sua interpretacao da Biblia; de modo que, apesar ie sua malignidade, a maneira pela qual Porfirio explica a formagao do alego rismo de Origenes deve corresponder, em parte, & rea- lidade. Entretanto, quer tenha se exercido diretamente ou quer tenha sido revezada pelo judaismo alexandrino, a influéncia da alegoria helenistica sobre a alegoria crista deve ser corretamente compreendida e situada em seu verdadeiro nivel, sob pena de mal-entendidos muito graves. O problema pode ser formulado da seguinte ma- neira: guando os judeus helenizados, e depois deles os Padres da Igreja, interpretam a Biblia pela alegoria € assim expressam 'o seu contetido teoldgico, é claro que seu ponto de partida e seu ponto de chegada sio profun- damente novos e incompardveis a qualquer coisa que seja de anterior; mas 0 método mesmo, abstraido de seu objeto e de seus resultados, redurido a uma nogao geral © @ um conjunto de procedimentos formais, teré sido 50 A FILosoria, MEDIEVAL, por eles inventado de alto a baixo ou construido a partir de concepgées e de técnicas preexistentes? 30 convém, certamente, superestimar o fato de que judeus, cristios'e pagaos designam esse método pelo mesmo termo de “alegoria”; seria um erro ver sempre as mesmas coisas atrés dos mesmos termos. Erro maior, porém, em ver sistematicamente coisas opostas, © difi: cil de ‘acreditar que S40 Paulo, Clemente de Alexandria, Origenes, se realmente tivessem querido, nfo fossem ca- pazes, sendo de forjar um termo novo, pelo menos de aproveitar um termo antigo, de desvid-lo de sua acepeao corrente e de se reservarem seu emprego, segundo ¢ pro- cedimento habitual na formagao do grego e do latim crist4os. A constancia do vocabuldrio (que, alids, interessa varios outros vocdbulos além do de “alegoria”) pouco prova, é verdade; mas esse pouco, a priori e salvo de- monstragio contréria, vai no sentido da identidade das nogdes e dos métodos. Quanto a definir a alegoria, a An- tiguidade, tanto a clissica quanto a crista, cem vezes 0 fez; € sempre, conformemente a etimologia, a figura de retorica que consiste em dizer uma coisa para sugerir uma outra; citamos acima as definigdes concorrentes de Herdclito ¢ de Santo Agostinho; elas sio representetivas de uma pratica unanime nas duas culturas, Daf resulta pelo menos uma conclusio: quando os autores cristéos querem definir sua nogio da alegoria, eles o fazem de uma maneira muito geral, pela dualidade do signo e do significado, aliud ex alio,'e conformam-se assim ao uso nao se diz outra coisa quando se afirma que néo inicio formal da alegoria que deve ser buscada @ originalidade da alegoria crista. , nos procedimentos técnicos que aplica? ‘Vé-se, ao contrario, que os cristéos tomaram emprestado ao alegorismo pagdo, diretamente ou por interméd.o de Filon, um certo ntimero de receitas praticas, tais como a simbdlica dos ntimeros, 0 aproveitamento, mais ou me- nos fantasista, da etimologia, a utilizagao dos dados da psicologia classica etc. A questio dos procedimentos téc- nicos da alegoria ligam-se sobretudo dois aspectos sob ‘0s quais © cristianismo primitivo parece nao ter rompi- do com as categorias religiosas do mundo helenistico. 1, de uma parte, quando se trata de reconhecer os méritos da expresséo alegérica: de um como de outro lado, a alegoria satisfaz pelo fato de valorizar, por uma certa HeventsMo & CRISTIANISMO st opscuridade, a verdade religiosa, de fechar aos indignos seu acesso, de evitar um eventual fastio estimulando a investigagio e embelezando a descoberta etc. De outra parte, aqui e ali, é dado crédito a certos indicios idén- tics para assinalar a oportunidade da interpretagio ale- gorica; € assim, notadamente, que essa interpretagio pa- rece exigida cada vez que 0 texto, entendido em seu sen- tido literal, contiver um absurdo’ légico, uma impossibi- lidade material, ou uma declaragio indigna de Deus. Ha um ultimo terreno no qual a alegoria cristé pa- rece aproximar-se, em alguma medida, dos usos literd- rios gregos: 0 da polémica, com os excessos e as incon- segiiéncias que dela derivam. Alegoristas cristéos e ale- goristas pagaos se afrontam: Origenes com Celso, Por- firio com Origenes, Santo Agostinho com Varréo; quan- to a um ponto, porém, se entendem: todos apreciam os méritos da expressio alegérica_e consagram-se de bom grado a esse tipo de interpretagao; seu acordo é percepti- vel quanto ao aspecto formal da alegoria, isto é, seu vo- cabuldrio, sua nogao geral, seus procedimentos técnicos, sua utilidade, suas indicagdes etc, Mas ele cessa inteira- mente desde'o momento em que se trata de fazer fun- cionar 0 método alegérico num dominio conereto: os pagaos nfo toleram que esse modo de exegese seja apli- cado @ Biblia e os cristfos n&o aceitam que a mitologia possa tornar-se seu objeto. Nao forcemos o paralelismo; pois 0 campo, radicalmente diferente, de sua aplicacao influi sobre 6 mecanismo tedrico das duas alegorias; seria, por conseguinte, uma simplificagdo bastante rid{ cula ‘por em pé de igualdade os alegoristas cristios e os alegoristas pagios que langam um andtema sobre & alegoria desde que sejam os adversérios que a pratiquem. Nao deixa de haver, de uma e de outra parte, nessa con- denagao reciproca, um certo ilogismo, que se deve impu- tar sem diivida nenhuma ao calor das controvérsias. % extremamente importante situar em seu justo nf- vel todos os pontos nos quais acabamos de assinalar um parentesco entre a alegoria cristé e a alegoria grega: que intervenham no vocabulério ou na concepcao geral da expresséo figurada, na técnica exegética, na avaliagio dos méritos da alegoria, na localizacéo dos casos em que ela se impoe ou nos desvios da polémica literdria, essas analogias no interessam jamais senéo zonas periféricas @ mecanismos formais do pensamento. Como explicar 52 A FiLosoria Meotevat, tais semelhangas? Devemos considerd-las como o resul tado de uma coincidéncia ou de um recurso paralelo as mesmas estruturas profundas da consciéncia religiosa? Esta ultima hipotese merecerd ser aprofundada; talvez baste, entretanto, invocar a influéncia reciproca, com predominancia, naturalmente, da agio exercida pela ale- goria grega, muitos séculos mais antiga Significa isso que a alegoria crista, pelo fato de de- ver alguma coisa & alegoria grega, tudo ‘Ihe deva? Do fato que se tenha Lmitado sua originalidade a alguns pontos secundarios resultara que tenha sido inteiramente dis. solvida? Evidentemente que nao. Mas é extremamente ne- cessirio precisar onde verdadeiramente reside a novida- de da alegoria cristi e nao atribui-la inconsideradamente a fatos de cultura que poderiamos facilmente mostrar serem comuns a toda uma civilizagao. E aqui que as dis- tingdes introduzidas previamente podem ser emprega- das: as analogias apenas formais que acabamos de enu- merar concernem, todas elas, & nocio abstrata e geral da alegoria: resta o fato que a especificidade da alegoria cristé reside em seu objeto, a Biblia, e em sua maneira de considerd-lo, nos resultados que obtém e na maneira de obté-os. Que a Biblia nfio seja uma mitologia é uma evidén- cia, © preciso, no obstante, definir a idéia que os alego- ristas faziam de seu objeto mitico; reside af uma primei- ra diferenca fundamental entre uns e outros. Com efeito, a alegoria pagi se exerce sobre “mitos”, isto é, sobre “relatos”; nao Ihes confere outro valor que nao o literd- tio € diditico; nfio se coloca, com raras excegoes, a ques- tio de saber se os acontecimentos que relatam poderiam efetivamente ter tido lugar; dito de outra maneira, con- sidera-os praticamente como ficges instrutivas e nada mais, Os cristios dos primeiros séculos, ao contrario, reconhecem & Biblia um alcance antes de tudo histdrico, ao mesmo tempo que the atribuem uma significacao es- piritual; mais exatamente, consideram-na tanto mais um documento histérico quanto mais rica de contetido ale- gorico ela Ihes aparece. Santo Agostinho (Da Trindade, XV, 9, 15) exprime de maneira feliz a dualidade desses pontos de vista, designando a alegoria discernida por Sao Paulo no episdio das duas mulheres de Abraio pela formula “alegoria real” (allegoria in facto), que opde HeLeniswo & CRISTIANISMO 33 & “alegoria verbal” (allegoria in verbis), caracteristica do procedimento profano; devese entender no mesmo sen- tido a iniciativa de Santo Ambrosio (Sobre Abrado, I, 4, 28) impondo & definicao gramatical de alegoria (“di’ zer uma coisa e querer Sigtificar uma outra”) a substi- tuigho do elemento narrativo pelo elemento histérico: “nd alegoria quando um acontecimento é produzido € um outro acontecimento figurado” (cum atiud geritur et aliud figuraiur). Nao escaparé a ninguém que essa di- ferenga introduz na alegoria cristé uma novidade essen- cial ‘A novidade néo parece menor se considerarmos, néo mais 0 objeto a0 qual se aplica a alegoria cristé e a re- presentagdo que dele faz, mas 0 sentido que nele desco- bre e 0 caminho que a conduz a esse resultado. De um conjunto de relatos tidos geralmente por imagindrios, a alegoria helenistica extraia um ensinamento intemporal que considerava sub specie aeternitatis, sem suspeitar da nogéo de um desenvolvimento irreversivel. A alegoria crista discerne, ao contrario, sob uma historia verdadei- ra, uma historia mais verdadeira; substitui o didatismo pelo profetismo; a interpretacdo eternista, pela preocupa- ao com o tempo histdrico’e 0 advento da salvacao; ja 0 Novo Testamento 16 0 Antigo antes no presente e no futuro do que no aoristo. E a dialética da “vetusti- dade” © da “novidade” que especifica a alegoria crista. # preciso acrescentar que esta, para chegar a esse re- sultado sem precedente, teve que repensar em novas ba ses a relacao do signo € do significado e, em particular, teve que transformar a nogio cldssica de imagem ou de simbolo na de “tipo” de pessoa e do papel de Jesus; eis por que o termo “tipologia”, embora carecendo de fia- dores muito antigos, parece’ ser de fato preferivel ao termo, mais geral, “alegoria”, para designar a prética propriamente cristi da exegese espiritual BIBLIOGRAFIA Acd. Pestuciiae: Lidéal veligewe des Grees et lEvangite, el. ‘tudes bibliques", Paris, 1992. H. Raunen: Mythes grecs ct mystére ehrétien, trad. francesa, fem “Bibliotheque historique”, Paris, 1954 A. Witsrmand: L'Eglise ancienn> et la culture greeque, trad, tran- esa, Paris, 1902, 54 A FiLosoria MEDIEVAL, i A Filosofia Patristica por Jean PEPIN OS PADRES DA IGREJA E AS CORRENTES DA FILOSOFIA GREGA O PLatontsmo DE UM MODO GERAL, 0 que se pode chamar “filosofia patristica” mostra-se como 0 resultado de uma sintese tentada entre a tradigao filosdfica grega e as exigéncias doutrinais da Escritura. A importéncia assumida pelo primeiro desses componentes € varidvel segundo os au tores: pelo menos jamais esté totalmente ausente, mes- mo nos Padres que declaram abetamente romper com a cultura pagi. Por isso, o primeiro passo de quem quiser esbocar as grandes linhas da filosofia patristica deve ser o de caracterizar as principais correntes dou- trinais que o paganismo oferecia concretamente aos Padres da Tgreja Sem diivida alguma foi o platonismo que mais os seduziu, Mas € preciso saber que o platonismo antigo nao coincide exatamente com o sistema doutrinal que 8 historiadores de hoje mais ou menos concordam em definir a partir da leitura dos didlogos de Platdo. No decurso do largo periodo que se estende da morte do fildsofo, por volta de 348 a.C., até ao fechamento da escola de Atenas por Justiniano, em 529 d.C., 0 pla- 56 A FILosoria MrpiEvaL tonismo constitui, com efeito, 0 objeto de um ensino escolar ininterrompido, que néo se priva de acrescen- tarlhe um bom ntimero de elementos exteriores, de sorte que cada época se faz uma representagéo parti cular da doutrina platonica, as vezes bastante afastada do original. Entre o 1° século antes de nossa era e 0 fim do século IT apés, a tendéncia platénica majoritéria constitui 0 que se chama 0 médio platonismo; abre ca- minho com Antioco de Ascaléo, escolarca da ‘Academia na primeira metade do 1° século a.C.; prossegue com Plutarco, Atico, Albino, Maximo de Tiro; chega ac fim com Numénio e Crénio, cujo platonismo se cobre de neopitagorismo. Sob certos aspectos, 0 médio plato- nismo apresentase como uma simples transi¢io em di- regao ao neoplatonismo; mas nao deixa de oferecer um conjunto doutrinal determinado e coerente, que merece ser estudado por si mesmo. Em todo caso, reveste uma importancia excepeional para a abordagem da filosofia patristica, j4 que constitui a variedade do platonismo com a gual os Padres, pelo menos até Origenes, se viram em contato, Esse ponto foi recentemente ressaltado pe- los trabalhos de Andresen; depreende-se deles que 0 fild- sofo profissional, que Sio Justino confessa ter sido an- tes de sua conversao, era um adepto do médio plato- nismo, como mostra’ a exposicao doutrinal a que se entrega no inicio de seu Didlogo com Trifon; quanto a0 Discurso Verdadeiro de Celso, que devia ‘provocar a célebre refutacdo de Origenes, é igualmente um tratado médio-platonico que, ademais, bem poderia ter sido sus- citado pelo desejo de um pagao de replicar & desercao do filésofo Justino convertido ao cristianismo; terros af um novo exemplo das reagdes em cadeia que ritmaram © didlogo polémico entre pagios e cristaéos, as queis jd viramos atuantes a propésito da alegoria. No médio platonismo — e isso é uma de suas carac- teristicas — recorriase menos a uma leitura in extenso dos didlogos platénicos do que a um florilégio de citagées tidas por importantes; constata-se que os diferentes re- presentantes dessa escola retornam sem cessar a um pe- queno numero de textos de Platao, sempre os mesmos, € que deles déo uma interpretagao semelhante. Ora, vemos que os Padres dos trés primeiros séculos empregam, quando se referem a Platéo, os mesmos textos escolhidos, interpretados de modo semelhante; se acrescentarmos ‘A Ficosoria Parristica 37 que, em geral, se trata de um alcance teolégico conside. ravel, adivinnamos a importancia dessa coincidéncia Por isso, vale a pena examinar alguns exemplos, tomados a lista estabelecida por Dani¢lou. Seja a frase bem conhecida do Timeu, 28c: “Desco- brir o autor e o pai deste universo ¢ um grande feito e, uma vez descoberto, € impossivel divulgé-lo a todos.” Ela 6 freqtientemente citada pelos Padres, tais como Atendgoras, Justino, Clemente de Alexandria, Origenes, entre os gregos, Tertuliano e Minticio Félix, entre os latinos. Retém dela duas teses: de uma parte a afirma- jo de que o mundo foi criado por Deus ez nihilo; de outra parte, a idéia da dificuldade que havia em conhe. cer Deus antes da vinda do Cristo; alguns, como sera mais tarde 0 caso de Gregério de Nissa, desenvolvem este segundo ponto no sentido da incompreensibilidade de Deus e da teologia negativa. Clemente servese dela para mostrar que Platéo se inspirou no Antigo Testa- mento, mais precisamente, no episddio de Moisés en- trando nas trevas em aque Javé se dissimula (Brodo, XIX, 16-25). Essas observagdes jé sito bem reveladoras da utilizagio de Platéo nos meios cristios. Seu inte resse redobra quando se constata que a mesma frase do Timeu tem um importante lugar nos fildsofos do médio platonismo; que ela tenha sido acessivel a uns e outros num florilégio, Atendgoras nota expressamente (Stiplica, 6) e, além disso, figura nos Placita de Aéci Um detalhe mostra que é'de fato um mesmo florilégio que pagaos e cristaos tinham em mio, ou, pelo menos, que os cristdos citavam o texto através dos fil6sofos da época e no na base de uma leitura direta do didlogo de Platio; ocorre, com efeito, que a citagao, tal como certos autores cristéos a fazem, caracteriza-se por diver- sas alteragdes do texto original; ora, as mesmas altera- Gdes jd aparecem no fildsofo Albino. Mas essas_seme: Thancas na materialidade da frase do Timeu sio de pouca monta em face das analogias na interpretacio; pois os cristéos, como acabamos de ver, entendiam do Deus tinico 0 que escreve o didlogo do “autor e pai do universo”; ora, uma tal assimilacio revela-se pouco con- forme A intengio mesma de Platao, que trata aqui do demiurgo, e nao do Deus supremo que identifica a0 Bem; mas nao resulta de uma assimilagao crista, j4 que se pode observila nos médio-platénicos, que, diferente- 58 A FILOsoria Mepievat. mente de Platéo (e, mais tarde, do neoplatonismo), atribuiam a fungdo criadora ao Deus supremo. Uma outra pericope platonica destinada a ter uma grande fortuna pertence ao Teéteto, 176ab: “E preciso esforgar-se por escapar_o mais rapido possivel deste mundo para o outro. Fugir é tornar-se semelhante a Deus tanto quanto possivel; tornar-se semelhante a Deus € tornar-se justo e santo em espirito.” Sabese que Plotino, em seu :ratado Sobre 0 Belo (Enéadas, I, 6, 8), Jembrou-se dessa passagem, amalgamando-a ao ‘simbo: lismo de Ulisses retornando ‘a sua patria em Itaca: Fujamos para nossa querida patria, eis ai 0 verdadeiro conselho que poderiam nos. dar. Mas o que é essa fuga? Como tornar? Como Ulisses, que escapou, dizem, de Circe, a mé- gica, e de Calipso, isto é, que nao consentiu em ficar junto delas, apesar dos prazeres dos olhos e de todas as belezas sensiveis que ai encontrava, Nossa patria é o lugar de_onde viemos € 0 nosso pai ai se encontra. O que so, pcis, essa viagem e essa fuga? Nao € com nossos pés que devemos efetudla; pois nossos passos levam-nos sempre de uma terra para outra; no devemos tampouco preparar um. carro ou algum navio, mas € preciso deixar de olhar e, fechando os olhos, trocar essa maneita de ver por uma outra e despertar essa facul- dade que todo mundo possui, mas da qual poucos fazem uso. Mas a postecidade do texto do Teéteto, que foi bem estudada por Merki, comeca muito antes de Plotino. O médio-platonico Albino havia aproximado esse convite a “se tornar semelhante a Deus” do preceito estdico de “viver segundo a natureza” e essa assimilagio é bem sintomatica do ecletismo que inspirava o platonismo da época, E de Albino que Clemente de Alexandria deve ter recebido a idéia da mesma aproximagio, que dificilmente poderia Ihe ter vindo de modo espontineo ao espirito; além disso, 0 recurso & noc&o estdica de akolouthia (“vi- ver seguindo a natureza”) permite a Clemente comparar & formula de Platio um preceito do Deuteronémio, XII, sobre a “marcha seguindo a Deus”; a citacio da pi [A Fiosoria Patkisrica 3° gina de Clemente (Stromata, 11, 19, 100; 3-101, 1) permi- fira explicar melhor essa confrontagao sutil, na qual o autor cristao dd a entender que o proprio Platao pode- tia depender Jo Antigo Testamento © fildsofo P.atio, ao propor a felicidade como fim, diz que ela consiste em “‘asseme- Thar-se a Deus tanto quanto possivel”; talvex esteja assim concorde com 0 principio da Lei; (...) pode ser sambém que tenha aprendido em seu tempo ccm certos sdbios, jé que tinha sempre sede de aprender. A Lei diz com efeito: “Segui atrds do Senhor vosso Deus e guar- dai meus mandamentos.” A Lei chama, com efeito, a assimilegao um “seguir atrds de”; e este torna semethante tanto quanto possivel (.,.). Bis por que os estdicos decretaram que o fim do homem. é viver conformemente & natureza, invertendo assim os nomes de Deus e da natureza de uma maneira indecente, jé que o dominio ca natureza so as plantas, as sementes, as drvores © as pedras. Mas hd um outro texto biblico, infinitamente, mais ortante, com o qual os Padres confrontaram a sen- tenca do Tedieto, iibab; © 0 Génese, I, 26, onde se le: “Depois Deus disse: Facamos 0 homem & nossa imagem e segundo nossa semelharca.” Ocorre que, dessas duas palavras, “imagem” e “semelhanga”, a segunda (kath homoidsin) 6 a mesma que Platao empregava ao falar de “tornar-se semelhante’ a Deus, Era inevitdvel que ‘os Padres, imbuidos com) eram de filosofia platonica, pensassem em comparar as duas férmulas; cumpria, para isso, introduzir no texto do Génese uma diferenca @e sentido entre a criagéo “a imagem” e a criacio “A semelhanga”, entendendo pela primeira expressao 0 es- ogo de uma relacdo entre o homem e Deus, da qual a segunda expressio marcaria a plenitude. E interessante noiar que os Padres apologistas, Taciano em particular, nao véem diferenga entre a “imagem” e a “semelhanga”; as duas palavras parecemJhes formular a mesma partict pagio sobrenctural do homem na vida divina; abstem-se assim @e toda aproximacio com Platao, Mas a situecio muda totalmente com Clemente de Alexancria, como se 60 A FiLosorta MepievaL pode ver pelo texto do II» Stromata, 22, 181, 5-6, que segue: “Quando Plato denomina felicidade uma’ vida que esté em acordo e em harmonia consigo propria e por vezes também a perfeicao na virtude, ele relaciona isso A ciéncia do bem e & semelhanca com Deus, semelhenga (nomoidsin) que consiste, declara ele, em “ser justo e santo em espirito’. Nao sera assim, segundo a interpre- tago de alguns dos nossos, que o homem recebeu ime- diatamente apos o seu nascimento ‘a imagem’ e que vai mais tarde, a medida que se torna perfeito, acolher em si a ‘semelhanga’ (kath’homoidsin)?” “Segundo a inter- pretagao de alguns dos nossos”, diz Clemente, € a prova de que nao € 0 primeiro a entender diferentemente, no texto biblico, a mengéo da imagem e a da semelhanca; pensa-se geralmente que os predecessores aos quais alude designam em primeiro lugar Santo Irineu, que introduz, com efeito, uma distineao entre a criacio “a imagem”, aplicada por ele & constituigéo material do homem, e a criacdo “A semelhanga”, que compreende como um’ dom do Espirito. Mas nada’ permite crer que nao caberia a Clemente a iniciativa de ter aproximado as palavras do Genese da f6rmula do Teéteto © ARISTOTELISMO As obras que Aristételes compds pertencem, sabemos, @ dois géneros bastante diferentes quanto 2’ inspirecio filos6fica, a forma literdria, a destinagao e a repercusso. Na primeira parte da sua carreira, encontrando-se ainda sob a influéncia de Platio, o filésofo publicaria um grande mimero de obras, muitas vezes sob a forma de didlogos, escritos num estilo brilhante para um grande publico; constituem o que se chama sua obra “exotérica”. Mais tarde, de posse de um pensamento pessoal em grande parte hostil ao platonismo, tendo-se tornado por sua vez chefe de escola, compés tratados ditos “acroa- miticos"; estreitamente ligados a seu ensino, o qual preparavam ou do qual resultavam, essas obras’ austeras € técnicas destinavam-se a seus discipulos, eles proprios fildsofos profissionais, e nfo eram destinadas a ser divulgadas. O fato é que, por diversas razdes, eles nZo © foram antes do 1° século antes de nossa era: sio os grandes tratados que ainda hoje lemos, a Fisica, A Fiosora Patrisrica a a Metafisica, as diversas Morais etc. Em compensacao, os escritos exotéricos estdo para nds perdidos e deles so conhecemos magros fragmentos e testemunhos indiretos; mas uma grande parte da Antiguidade tinha-os em maos e, até 0 1° século antes de Cristo, formavam mesmo a uinica parte da obra de Aristételes que foi do conheci- mento geral..O que significa que exerceram uma influ- éncia consideravel sobre 0 pensamento antigo, antes que esie se encontrasse em condigdes de ter acesso aos tra- tados escolares ‘Essa dualidade da obra aristotélica refletese muito bem na antiga literatura crista. Os Padres do século IT no ignoram inteiramente 0 Aristételes escolar; Clemente de Alexandria mostraré estar informado da’ distingdo entre obras exotéricas ¢ esotéricas; mas, como os fild- sofos contempordneos de que sao tributdrios, é ainda no autor dos didlogos que pensam quase sempre quando falam de Aristételes. A situagao vai se inverter a partir do século IV; os didlogos aristotélicos tendem entéo a passar para 0 segundo plano e a atenco concentrase nos tratados escolares, notadamente nas obras ldgicas e dialéticas, as quais os’ heréticos arianos tomam empres- tadas as armas contra 2 ortodoxia. Os Padres apologistas interessam-se tanto mais pelos didlogos de Aristdteles que estes eram em grande me- dida teolégicos, em particular o intitulado Da Filosofia, Assim como para 0 Platio dos tiltimos didlogos, a grande idéia teoldgica do Aristételes platonizante é a divindade do mundo; ¢ a ela, sobretudo, que se além os fildsofos aristotelizantes do 1° século antes de Cristo e do inicio da era cristd, tais como 0 autor desconhecido do tratado Do Mundo’ (durante muito tempo atribuido ao proprio Aristdteles) e 0 Filon do optisculo, exclusiva. mente filosdfico, intitulado Da Eternidade do’ Mundo. A teologia césmica do jovem Aristdteles apresentava-se sob diversas formas: ora 0 mundo inteiro era conside- rado como divino, ora apenas o sistema celeste, ora o proprio elemento dos astros ou éter, ora somente a alma do mundo e, no mais das vezes, todas essas realidades a0 mesmo tempo. Uma apresentagdo interessante dessa teologia aparece justamente sob a pena do cristio Ate- nagoras (Stiplica, 6): “Aristételes e seus discipulos, a0 introduzirem um’ ser andlogo e um ente vivo composto, dizem que Deus é constituido por uma alma e por um 62 A FILOSOFIA MEDIEVAL, corpo. Pensam que seu corpo € 0 éter e os astros erran- tes e a esfera das estrelas fixas, tudo isso movido num movimento circular; que sua alma é a razdo preposta ao movimento do corpo, sendo ela propria imovel e a usa esse movimento.” Naturalmente os cristios nfo podiam admitir essa divinizagao do mundo sensivel, nem mesmo a da alma cdsmica; é ainda Atendgoras que disso da testemunho no capitulo XVI da Stiplica: “Certa- mente, 0 mundo é belo (...). Todavia nao é a ele que cumpre adorar, mas a seu artesdo (...). Que 0 mundo seja substancia e corpo, como dizem os peripatéticos; no deixamos de adorar a causa do movimento do corpo, Deus, para cair ao nivel dos ‘elementos pobres e débeis’ (Epistola aos Gdlatas, TV, 9) e para adorar a matéria passiva de preferéncia ao éter que é impossivel segundo eles. Mesmo se vemos nas partes do mundo poténcias de Deus, no adoramos as poténcias, mas seu criador e seu mestre” (segudo a trad. francesa de Bardy) Autor de um Protréptico cujo titulo mesmo deixa entender que pretende ser uma réplica crista ao Pro- tréptico de Aristoteles, Clemente de Alexandria conhece a teologia cdsmica deste; ataca-a, colocando-a em con- tradigio com uma outra tese tradicionalmente atribuida a Aristoteles, segundo a qual a Providéncia divina esta- ria excluida do mundo subhinar: como, ao mesmo tem- po, divinizar 0 mundo e privé-lo da presenca atuante de Deus? Eis. aqui o proprio texto de Clemente (Protréptico, YV, 66, 4): "Ja cheguei aqui, nfo hé dificuldade nenhuma, acho, em lembrar os peripatéticos também: 0 pai dessa seita, por no haver concebido o Pai do universo, pensa que aquele que chama de Altissimo € a alma do Todo; 0 que significa que, a0 supor que a alma do mundo é Deus, cai em contradigéo consigo préprio. Com efeito, limitar a Providéncia ao mundo supralunar para em seguida considerar 0 mundo como Deus € contradizerse, jd que se declara Deus a parte do mundo privada de Deus.” © interessante acrescentar que, conformemente & sua teo- ria habitual segundo a qual os fildsofos gregos teriam “furtado” certas verdades & Biblia, Clemente sustenta alhures (Stromata, V, 14, 90, 8) que a teoria de Aristé teles excluindo a Providéncia do mundo sublunar provi- ria de um contrasenso que teria cometido em sua lel tura do Salmo XXXV, 6: “Javé, tua bondade atinge os céus e tua fidelidade as nuvens.” HLOSOFIA, PATRISTICN rr © Bsroicismo A maior parte dos Padres da Igreja reconhece o valor eminente da moral estdica. Assim, Justino (2° Apologia, 8, 1): “Os estdicos estabeleceram em moral principios justos; 0S poetas também expuseram alguns, pois a semente do Verbo € inata em todo o género humano.” © interesse dessa citacao é que ela faz justica a0 estoicismo empregando 0 vocabuldrio estdico (a “se- mente inata do Verbo”). Quanto a doutrina, eila: se certas idéias dos fildsofos profanos coincidem com as dos cristéos, € que uns e outros participam do Logos divino; mas’ sua participagdo ¢ bem diferente: os pa- gios conheceram parcialmente 0 Logos, 0 que explica Seus SuCessos, mas também seus erros € suas contradi- Ges; Os cristéos, a0 contrério, possuem a totalidade do Logos, ja que receberam o propric Logos na pessoa do Cristo. o que Justino formula claramente na seqiiéncia da mesma 2° Apologia, 10, 13 e 13, 23: Nossa doutrina ultrapassa toda doutrina humana, porque temos todo o Verbo no Cristo que apareceu para nés, corpo, verbo e alma. Todos os princfpios justos que os fildsofos e os legisladores desco2riram e exprimiram devem-se ao que encontraram e contemplaram parcialmente do Verbo. — por nao terem conhecido todo o Verbo. que € 0 Cristo, que muitas vezes cairam em contradicéo consigo proprios (...), Nao € que a doutrina de Platao seja estranha a do Cristo, mas nao Ihe € em tudo semelhante, assim como tampouco a dos outros, estdicos, 20etas ou escritores Cada um deles viu, cor. efeito, do Verbo di- vino disseminado no mundo, 0 que estava em relagio com sua natureza e pode assim expri- mir uma verdade parcial; mas, ao se contra- dizerem a si proprios em pontos essenciais, mostram que nao tém uma ciéncia superior @ um conhecimento irrefutdvel. (Segundo a trad. francesa de Pautigny.) Essa pgina indica bem que a teoria do “furto” co- metido a custa da Biblia nfo é a unica de que dispu- 64 A Fivosoria Meprevat. nham os cristéos para explicar a presenga de certas ver. dades sob a pena dos fildsofos gregos: concebiam igual. mente a possibilidede de terem os pagéos conhecido al- guma coisa do Verbo de Deus antes de sua Encarnagao. Notar-se- a justiga que Justino dispensa, de passagem, aos estdicos; e, sdbretudo, que ele o faz na propria lin: guagem do estoicismo, quando fala, para mostrar o Filho de Deus obscuramente atuante no mundo pagao, do “Verbo divino disseminado” (logos spermatikos); era a formula estdica clissica para exprimir a ago imanente do Logos divino no universo e na Tazo de cada homem. Principal tedrico do “furto” dos pagdos, Clemente de Alexandria reconhece, nfo obstante, que as verdades atingidas pelos filésofos gregos podem ter uma outra origem, a saber, suas faculdades naturais, que sao, elas proprids, dons de Deus. Ora, para descrever esse equipa- mento mental dos fildsofos, emprega os termos usuais na teoria estdica co conhecimento: os de “nogio natu: ral” (physiké énnoia), de “sentido comum” (koinds nous), de “prenocio” ‘(prolépsis) etc. Podem ser cita- das a’ esse respeito duas passagens dos Stromata: “Dir- nos-io: ‘Mas os gregos tiveram apenas uma nogao na- tural’? A natureza é a obra do unico Criador, que ew saiba; por isso, dissemos que a justiga € natural. Dirdo: ‘les tiveram apenas 0 senso comum’? Examinemos en- tao quem este tem por Pai e donde vern essa justica que preside & sua reparticio” (I, 19, 94, 2); e: “Quer ela seja do Oriente, quer atinja os limites do’ Ocidente, quer seja do Setentriao ou do Meridifo, toda raga tem uma tinica e mesma prenog&o a respeito dAquele que esta- beleceu sua soberania, se é verdade, pelo menos, que as mais universais de suas operagdes se estendem igual- mente a todas as coisas” (V, 14, 133, 9). OS GRANDES NOMES DA FILOSOFIA PATRISTICA Pode-se observar, de passagem, dispersados nas pégi- nas que precedem, um grande ntimero de dados rela. tivos As posigdes filosdficas dos Padres. Sem esperar, € obvio, levantar um quadro completo da filosofia patris- tica, que exigiria varios volumes, cumpre agora esbocar em alguns tracos a fisionomia intelectual dos protago- nistas dessa grande empresa A Fi.osoria Parrisrica 65 —t)/ 0 mais antigo dos que contam ¢ Justino (morto por volta de 165). E 0 autor de duas Apologias do cristia nismo dirigidas aos imperadores, a primeira a Hadriano, a segunda, mais breve, a Marco Aurélio, No Didlogo com Trijon, relata sua’ propria odisséia intelectual; ape- Sar de uma certa encenacao literéria (evidente quando Justino relata ter freqiientado sucessiva e vamente os estdicos, os peripatéticos, os pitagdricos, antes de se fixar, provisoriamente, no platonismo), nele se encon- tram’ muitos elementos verossimeis do ponto de vista da psicologia e da historia da cultura sobre as razdes que podiam levar ao cristianismo um joven. fildsofo médio- —platonicof’ Taciano, discipulo de Justino, havia composto,-; ‘antes de passar para a heresia gnostica, um Discurso aos Gregos. Esta muito menos inclinado que Seu mestre a fazer Justiga aos fildsofos pagaos e mais propenso a negarlhes toda experiencia da verdadey Sua critica € particular- mente viva contra a filosofia’religiosa dos gregos; denun- cia a estupida imoralidade dos mitos, como os préprios pagios ha muito o haviam feitc; mas, diferentemente destes, e como acima se viu, proscreve a escapatoria da interpretagio alegérica. Um! outro apologista € Atené- goras, que dirige, por volta de 177, uma Siplica pelos Cristéos a Marco’ Aurélio e a seu filho Comodo; empe- nhase ai em mostrar que, em sta luta contra o polite- ismo, os cristiios podem invocar, como seus precursores fe seus aliados, os fildsofos gregos monoteistas, Platio, “Aristételes, os estdicos. Atendgoras igualmente ‘0 autor de um tratado Sobre a Ressurreicdo, que, além de seu finteresse dogmético proprio, ¢ importante para a for- mulagio da antropologia crista; um dos argumentos in- vocados em apoio da realidade’da ressurreigao dos cor- pos 6, com efeito, este: a persisténcia eterna dos objetos inteligiveis exige a das faculdades intelectuais que foram dadas ao homem para conhecé-los, a saber, o pensa- mento e a razio; mas estas nao podem subsistir se a natureza que as recebeu no sutsiste; e a natureza que recebeu 0 pensamento e a razio nfio’é sé a alma, mas © homem, composto de alma e corpo; cumpre, pois, que este iltimo também persista eternamente, 0 que so possivel com a sua ressurrei¢ao; vé-se que essa argumen- tagio repousa sobre uma antropologia propriamente crista, segundo a qual o corpo entra na definigao do hhomem como um constituinte ce pleno direito; ela se 66 A Fitosoria Mepievat, opde inteiramente & antropologia platonica do Primeiro Alcibiades, que recusava incluir © corpo na verdadeira constituiggo do homem, O iiltimo apologista dessa época que citaremos 6 0 sirio Tedfilo de Antioquia, de quem foram conservados os trés livros A Autdlico; a penctra- cdo doutrinal desse autor € menor do que a dos trés precedentes; seu principal interesse reside no fato de terse tornado 0 propagador de numerosas e preciosas coletaneas de opinides atribuidas aos fildsofos gregos. Mas nao se podem abandonar os Padres apologistas sem mengéo a um texto importante, durante muito tempo classificado entre as obras de Justino, mas que, em razio de seu contetido, deve ser pelo menos meio sé culo mais tardio: trata-se de uma Ezortacéo aos Gregos de autor desconhecido, mas de pronunciado sabor ale- xandrino; assinalase por um grande conhecimento da filosotia e da literatura gregas e por uma atitude muito comedida a seu respeito. © século II é também a idade de ouro do gnosti- cismo. E dificil caracterizar em algumas palavras essa importantissima corrente do pensamento; digamos que se trata, contrariamente ao que durante muito tempo se acreditou (Harnack), de um vasto fenomeno religioso, de que a heresia cristé que ordinariamente se entende sob 0 nome de gnosticismo é apenas uma manifestagao particular. A idéia diretriz 6 a da salvaco pelo conheci- mento (gnose), concebido como devendo substituir a fé desde este mundo; o Deus criador imperfeito € distin- guido do Deus supremo transcendente; a essa distingio, os gnésticos de cultura crista superpdem a dualidade do Antigo Testamento, que rejeitam como sendo a carta do Deus criador e do Novo Testamento, revelacto do Deus de bondade. Os grandes nomes desse gnosticismo sao, no século II, os de Marcifio, de Basilides, de Valentino. Seu principal adversdrio ortodoxo é Santo Irineu, esmir- niota emigrado para a Gilia e feito bispo de Liao em 177. Num tratado em cinco livros Contra as Heresias, resta- belece a unicidade de Deus, a exceléncia da criacdo, sua aptidéo a dar testemunho do Criador. Um outro adver- sGrio dos gnésticos é, no inicio do século III, Hipélito de Roma, autor de uma Rejutagdo de Todas as Heresias de grande interesse documentirio; sua idéia diretriz € que as seitas heréticas sdo as filhas da filosofia grega. A Finosoria ParRistica a 36 um mundo profundamente diferente que se abor- da, por volta da mesma época, com os tedlogos cristaos ge Alexandria. O fundador da escola é Panteno (morto por volta de 200). Jd se falou muito, nas paginas que pre- cedem, de seu discipulo Clemente de Alexandria (morto antes de 215) e de suas duas obras principais, 0 Pro- tréptico e os Stromata # ainda o autor de um pequeno tratado sobre a b utilizagio das riquezas, intitulado Qual o Rico que Serd Salvo? e de um Pedagogo consagrado & apresentacao do Verbo como o educador da humanidade. Clemente co- nbeceu e combateu o gnosticismo; constituiu, de um dos representantes dessa seita, uma coletanea de trechos escolhidos, entremeados de refutagdes: sio os Excertos de Teddoto. Em antitese ao gnéstico herético, desenha © retrato do “verdadeiro gnéstico”, 0 gndstico cristao; mas a antitese néo exclui um certo parentesco entre 05 dois ideais; essa gnose das coisas divinas, superior & 16 comum, aparece por vezes sob a pena de Clemente como uma doutrina esotérica, uma tradigio secreta passada oralmente pelos apéstolos a alguns discipulos privilegia- dos e transmitida desde entéo de boca em boca; certas passagens dos Stromata tragam curiosamente um para- jelo entre a gnose e a salvagio para afirmar que, se fosse preciso escolher, cumpriria preferir a primeira & segunda. Hd, como se vé, muito platonismo no cristia- nismo de Clemente. Origenes (cerca de 184-253) é de maior estatura. Fora aluno, nao apenas de Clemente, mas do filésofo ‘amonio. Sekas, com quem, juntamente, foi co-discipulo Ge Plotino. Sua obra conservade tem dimensées impres- sionantes, se bem que represente apenas uma parte de sua obra real; de seus tratados, 0 historiador da filosofia teteré dois em particular: de uma parte, o Contra Celso, destinado a refutar um filsofo médio-platénico adversirio do cristianismo; o panfleto deste ultimo, inti- tulado Discurso Verdadeiro, perdeu-se, mas Origenes faz, para os fins da polémica, tantas citagdes que se pode reconstituir um grande ntimero de paginas; de outra parte, um tratado Dos Principios, que é a primeira exposigao sistemética de filosofia e de teologia produzido pela tradigo cristé, uma espécie de Suma por antecipa- ga0 onde esté dito tudo de zssencial sobre Deus, 0 Mundo, 0 homem e as Santas Escrituras; o original 88 A Finosoria Mepievay grego dessa obra desafortunadamente perdeu-se, com excecao de alguns fragmentos, e 0 lemos numa traducio jatina de Rufino, que se empenha de maneira lamentavel em reduzir suas audécias. Pois a visio do mundo de Origenes € audaciosa, em particular para o mundo espi- ritual: assim como'o Verbo é engendrado pelo Pai, assim também ele proprio engendra outros verbos, isto , naturezas racionais, espirituais e livres; criadas iguais entre si, essas naturezas, ao usar de ‘sua liberdade, tornaram-se diferentes na medida em que se apegaram mais ou menos a Deus ou se desviaram mais ou menos dEle; assim se estabelece a hierarquia do mundo espi ritual, desde os mais puros anjos até aos espiritos apri sionados nos corpos humanos; mas as almas humanas nao perderam a lembranga de sua dignidade anterior e podem recuper-la pela graca do Cristo e com a ajuda da ascese e da purificacdo; finalmente, quando 0 ciclo edsmico chega a seu cabo, todos os espiritos terdo mais ‘ou menos voltado a coisa inicial; mas Origenes conserva do estoicismo a idéia de que 0 nosso mundo € apenas um momento numa sucessdo indefinida de_universos; vale dizer que a alternancia da encarnagao e da liberagdo das almas parece destinada a prosseguir sem fim; toda via, de um mundo a outro, um progresso se delineia, 0 bem terminard por excluir'o mal e todas as coisas vol tarao ao estado de inovéncia da primeira criagdo, nisso incluidos, ‘talvez, os demonios e os danados (apocatas- tase). Tal é a maneira pela qual podemos representar a histéria do mundo segundo Origenes; cumpre acres: centar que essa reconstituligio é passavelmente conjetu- ral, na medida em que faltam, quase sempre, os textos originais e em que esses séo supridos pelo testemunho dos panegiristas e dos detratores, igualmente suspeitos de deformar 0 verdadeiro pensamento do autor. ‘A influéncia de Origenes é perceptivel nos Padres gregos do século IV, que séo essencialmente os trés ca- padécios, Gregorio de Nazianzo, Basilio de Cesaréia & seu irmio Gregdrio de Nissa. Gregdrio Nazianzeno (329- 390) goza de uma grande reputagao de tedlogo na Anti- guidade crista, gracas sobretudo a cinco Discursos Te légicos, que durante muito tempo precisaram a situagao tedrica do dogma da Trindade, O adversdrio com rela- géo ao qual 0s capadécios devem se definir nao é mais © gnosticismo, mas sim a heresia ariana, representada A FILOsOFIA ParRistica O na segunda metade do séeulo IV por Eundmio. Esse conflito € importante para a histdria da filosofia, pois 0 atianismo apresenta-se como um esforgo para raciona- lizar 0 dogma cristo, para esvaziarine 0 misté suma, para reconduzir, antes de Kant, “a religi dos limites da simples’ razio”; esse propdsito dos arianos repercutia sobretudo em sua teologia trinitaria: partindo de uma concep¢i0 puramente filosfica de Deus, cen- trada na nogdo de sua “irascibilidade”, deduziam que o Verbo, enquanto engendrado, era dessemelhante (ané moios) do Pai e de modo algum consubstancial (ho- mooisios) a ele; ademais, haviam dado a seu sistema uma poderosa armacao ldgica, inspirada no Organon de Aristoteles. Vale dizer que a luta dos capadécios contra a heresia de Eunomio devia necessariamente situarse, em grande parte, sobre o terreno da filosofia, Gregério advertird os arianos da urgéncia de abandonar as argi- cias dos fildsofos para voltar & simplicidade da fé, uma vez que Cristo escolheu seus apéstolos entre os pesca- dores e nao entre os aristotélicos (piscatorie, nom aris- totelice, segundo uma célebre férmula latina); poré em relevo, de outro lado, a incompreensibilidade de Deus, de quem sé pode saber o que ele proprio nos diz de si proprio. Basilio (880-379) seguird o mesmo caminho Uma dé suas mais interessantes obras para a histéria das idéias € sua coletanea de Homilias sobre o Hera- eméron, isto 6, sobre 0 relato Diblico da criacio; inspi- rando-sé nas obras andlogas de Filon e de Origenes, Ba- silio toma esse comentario como pretexto para expor 0 essencial das idéias cristas sobre 0 mundo e sobre 0 homem. A importancia filos6fica de Gregério de Nissa é bem mais consideraivel. Sua cosmologia e sua antropologia exprimem-se igualmente sob a forma de comentarios do inicio do Génese, que distribui por seu lado em dois tra- tados, um sobre 0 Heraeméron, o outro Sobre a Criagéo do Homem. Sua explicagio do mundo fisico repousa sobre uma teoria dos elementos e de seu liame miituo (syndesmos), que ¢ de origem platonica, mas deve estar ligada mais precisamente ao estdico Posidénio. Quanto a0 homem, a originalidade de Gregorio consiste em con- sideré-lo como limitrofe (methdrios) entre 0 mundo vi- sivel e 0 mundo invisivel, pertencendo a um por seu corpo, ao outro por sua alma e estabelecendo uma co- 70. A Fivosoria Meoievat, municagéo entre os dois. Em suas Homilias sobre o Cantico dos Canticos e em sua Vida de Moisés, aborda © problema que considera essencial, 0 do conhécimento de Deus. O primeiro grau deste € 'a visio de Deus no espelho da alma pura, que traz em si, com efeito, a ima- gem divina; quem quiser ir além dessa etapa inicial deve purificar-se de toda opiniéo de origem sensivel; descobre-se entio que 0 objeto buscado ultrapassa todd conhecimento e que a incompreensibilidade o cerca por todos os lados como uma nuvem; com essa observacao, Gregorio tornase edepto da teologia negativa, segundo a qual conhecer a Deus ¢ antes de tudo, para o homem, saber 0 que Deus nao é. A tradicao manuscrita_atribuiu muitas vezes a Gregorio de Nissa um tratado Da Natu- reza do Homem, que tem na verdade por autor Nemésio, bispo de Emeso, por volta do ano 400; como o titulo indica, trata-se de um tratado de antropologia crista, que se funda sobre uma rica informagao filosdfica, onde a influéncia de Posiddnio predomina; sua particularidade consiste em voltar contra Aristételes, @ antropologia platénica, segundo a qual o homem ‘se define apenas pela alma; recorda-se que Atendgoras, preocupado em legitimar @ ressurreicéo do corpo, fizera uma escolha oposta. Viu-se que, entre os convertidos de Sio Paulo em ‘Atenas, 0s Atos dos Apéstolos mencionam um certo Dio- nisio. Foi por esse personagem (Dionisio, 0 Areopagita) que se quis fazer passar um autor andnimo, que deve pertencer, na verdade, ao fim do século V e ao inicio do séculé VI, j4 que foi certamente influenciado por Proclo (morto em 485) e que é por volta dessa época que se comeca a falar dele. A fraude viria a ter uma Jonga vida e a embair toda a Idade Média, sobre a qual © Pseudo-Areopagita exerceu uma agao imensa (é, assim, © autor mais vezes citado por Séo Tomas de Aquino) . © Corpus Areopagiticum compreende cinco textos pro- fundamente homogéneos, se bem que 0 acento cristéo seja neles colocadc de um modo desigual: a Hierarquia Celeste, a Hierarquia Eclesidstica, os Nomes Divinos, a Teologia Mistica e as dez Cartas. © autor é manifesta- mente um cristio que quis exprimir sua fé em termos de filosofia neoplaténica e, além disso, com reminiscén- cias provenientes do vocabulario dos mistérios. Seu neoplatonismo € 0 de Proclo, mais escoldstico que o de ‘A Fuosoria Paristicn n plotino: a histéria de todos os seres inteligentes desen volve-se num ritmo terndrio (saida de Deus, volta a Deus, unido com Deus); seu conjunto € hierarquizado de um modo muito estrito; a acio de Deus sé atinge os seres € 0S Seres s6 se voitam para Deus observando essa ordem hierdrquica; quanto & volta a Deus, ela opera-se, como jé se vil em Platio e em Plotino, pela similitude, enguanto @ dessemelhanca separa de’ Deus. Dionisio estabelece a hierarquia tanto no mundo angélico quantc na Igreja, estando, alids, as duas estruturas conectadas no sentido de que'a tltima das crdens angélicas é ime diatamente superior & primeira das ordens eclesidsticas; eis 0 canal pelo qual desce a ciéncia de Deus e ascendem as aspiragées em direcéo a Deus. Com a ordem hierar- quica articula-se uma divisio da vida espiritual em trés etapas, que so a purificacdo, a iluminagao e a uniao: no mundo angélico assim como na Igreja, nao sio os mes: mos que purificam e sio purificados, que iluminam e sio iluminados, que aperfeigoam e sio aperfeigoados. Uma conseqliéncia lamentavel dessa implacavel hierarquiza- co € que ela torna impossivel toda relacio imediata entre Deus e a alma, a nao ser quando esta ascendeu todos os degraus da’escala; ora, 0 contato direto com Deus permanece a aspiragao de toda vida religiosa. Dio- nisio resolve essa dificuldade, concedendo um grande lugar ao éxtase. Distingue uma’ dupla teologia ou conhe- cimento de Deus: podemos afirmar de Deus as perfei- g6es observadas nas criaturas, elevando-as ao superla- tivo; € a teologia afirmativa ou catafatica; mas podemos também —e de um modo melior — negar de Deus todas as limitagdes proprias ao mundo criado e entéo praticamos a teologia negativa ou apofética, Paradoxal- mente, € a via negationis, 0 conaecimento ignorante, 0 gue conduz & mais alta ciéncia possivel e a0 contato com Deus, como mostra o exemplo de Moisés e de Sao Paulo. Antes de tornar-se o mestre para o pensamento da Idade Média latina, 0 Pseudo-Dionisio devia exercer sua influéncia sobre um dos titimos Padres gregos, Maximo © Confessor (580-662). Maximo demonstra uma cultura Patristica considerdvel: conhece sobretudo Evdgrio, o Pontico, origeniano da segunda metade do século IV, que Ihe transmite o essencial da teologia alexandrina; cita os capadécios e notadament2 Gregério Nazianzeno, a A Fiosoria, Mepirvat @ quem consag:ou alguns comentirios; mas é 0 “bem. aventurado Dionisio” que recebe seus maiores louvores, Por volta da mesma época, 0 cristao Joao Filopono é um comentador de Aristoteles; interessa-se assim pelo tratado aristotélico Da Alma e, neste, pela célebre ques- tao da umidade ou da pluralidade do intelecto agente; acaba por resolvé-la num sentido aceitavel para um cristéo, identifieando o intelecto possivel e o intelecto agente ‘de Aristételes num wnico e mesmo intelecto ora em poténcia, ora em ato, e tal que cada homem possui © seu proprio. BIBLIOGRAFIA J Ppa apiriuste de Saint Gregoire de Asse, cl. THeooe Ir Santo Agostinho e a Patristica Ocidental por Jean PEPIN Os PADRES LATINOS E A FILOSOFIA NiO SB DEVE CONCLUIR das péginas precedentes que a totalidade da filosofia patristiea foi escrita em lingua grega. Sem duivida, a contribuigio do mundo latino é nesse dominio, bem como no dominio da filosoiia pro- fana, menos considerdvel; nao se pode, contudo, negli- genciéla, tanto menos porcue o cristianismo ocidental eu nascimento a um mestre da filosofia universal na Pessoa de Santo Agostinho. Antes de chegarmos a ele — e para melhor compreendé-lo — € necessdrio consagrar algumas paginas aos Padres latinos que o precederam. v7 O primeiro dentre eles é Tertuliano (nascido por volta de 160). De suas obras as que mais interessam a filosofia so duas apologias do cristianismo, intituladas Apologética e Da Prescrigéy dos Heréticos: é preciso acrescentarlhes um tratado Da Alma, menos importante, alids, pela exposic&o da doutrina do autor do que em ra. zo das opinides de numerosos fildsofos antigos, fre- giientemente mal conhecidos, que nela se encontram re- feridos, O argumento da “prescricéo” ¢ tirado do direito romano, segundo 0 qual o uso de um bem durante um tempo suficiente era considerado como um titulo legal de propriedade; a toda contestacto podia, entio, se opor © direito de preserico; como purista, Tertuliano aplica a Tegra us Escrituras e denega aos gndsticos suas preten- 4 A Fitosori Mepievar, soes de interpretalas; pois, tidas pelos cristéos desde a origem, é a ees que pertencem legitimamente. Ainda contra'os gndsticos, Tertuliano preconiza uma submis. sdo total a fé e condena toda pretensio de julgéla em nome da razic; por isso mesmo opde-se a reflexdo filo- sofica, a qual ‘mputa a paternidade das diferentes seitas gndsticas: assim como 0s Profetas sho os patriarcas dos cristéos, da mesma maneira os filésofos sdo os patriar. cas dos heréticos; e € puro acaso se os fildsofos por ve zes propuseram doutrinas que recordam as dos cristaos. Em sua hostil:dade a filosofia, Tertuliano entregou-se a singulares e célebres profiss6es de irracionalismo, que repousam sobre um endurecimento da posigio de Sao Paulo tal.como encontramos na Primeira Episiola aos Corintios,/I, 17 — IL, 16; por exemplo, diz da morte e da ressurrei¢ao de Jesus que o fato € crivel porque € inepto e certo na medida em que é impossivel; € 0 que a tradicao exprimiu ao atribuirthe a forma bem conhecida credo quia absurdum, que ele, aliés, néo escreveu nesses pro- prios termos, ‘nas que néo chega a violentar seu pensa- mento//Quanto & sua antropologia e & sua teologia, Ter- tuliano alardeia um surpreendente materialismo herdado do estoicismo: a alma é um corpo ténue andlogo ao ar, 0 que 0 obriga a supor que as almas das criangas, como seus corpos, so engendrados pelos pais (traducianismo) ; explica assim a transmissio do pecado original e também da semelhanga divina, 0 que o leva a dizer que toda alma € naturalmente cristé (anima naturaliter christiana). O proprio Deus € um corpo extremamente sutil, que,engen- drou 0 Verbo como o sol faz com os seus raios, Jamais fo: resolvida com certeza a quaestio’ verata que consiste em saber se Tertuliano é anterior ou pos- terior e, portanto, inspirador ou utilizador com relagéo a uma outra apologia latina, a de Minucio Felix intitulada Octavius; todavia, se a subsisténcia desse pequeno did- logo coincide snuitas vezes com a da Apologética, sua ins: piragao geral é profundamente diferente; pois Minticio Félix mostra-se muito mais eqiiitativo para com os mé- ritos do pensamento profano e sensivel aos escrupulos que podiam retardar um intelectual pagao em sua con versio ao cristianismo. Um século mais tarde, 0 retor AT ndbio (fim do século III e comeco do século IV), atti cano como Tertuliano, é um pagéo que quis se converter no fim da vida e que deu como penhor de sua sinceridade rr | santo AcostinHo £0 OCIDENTE ae uma apologia do cristianismo: Contra os Pagéos (Adver. wus Nationes). Nao se deve procurar nessa obra uma exposigao completa, por menos que seja, do dogma cris- {Zo, mas ele mostra qual era o aspecto que atraia, no cris- fianismo, um pagao cultivado desse tempo: essencialmen- te 0 monoteismo e sua revelacéo pelo Cristo. De sua pas- SEgem pelo paganismo, Amndbio conserva a lembranga do gpsurdo dos mitos e das teologias, nos quais ainda ha Soueo nao achava nada de mais; a partir de seu proprio Remplo, deixa-se impressionar pela fraqueza da razio humana, fato que o leva a valorizar o ato de fé e, por outro lado, a fazer o elogio da inteligéncia dos animais Comparada & do homem; reconhecemos os temas que jriam fazer sucesso entre os “céticos cristéos” do século XVII. Arndbio teve por discipulo Lactancio, contempora- neo do imperador Constantino, que, cerca de 317, cha- ‘mou-o & corte de Tréveros como preceptor de seu filho. ‘A obra mais importante de Lactancio intitula-se As Insti- tuigdes Divinas, & qual cumpre acrescentar dois tratados mais breves Da Obra Criadora de Deus e Da Colera de ‘Deus. A grande idéia desse autor é que 0 mundo pagao sofreu antes de tudo com o divércio entre a sabedoria e a religido, os cultos pagdéos parecendo absurdos aos fi- ldsofos, enquanto que a filosofia no satisfazia as aspira- ces religiosas da alma; a novidade do monoteismo cris- tao consiste precisamente em introduzir simultaneamente @ verdadeira religiao e a verdadeira filosofia. Lactancio exprime seus pontos de vista num estilo ornado e abun- dante, por imitagio de seu modelo, Cicero; ainda como Cicero, carece de profundidade e sutileza no discurso fi- loséfico; mas também compensa essas fraquezas por um grande conhecimento dos fildsofos antigos, sobre os quais transmite muitos dados; assim ele é, dentre os Padres, © que deixou o maior niimezo de testemunhos sobre a Uteratura hermética, cuja concordancia com as idéias cristis, alias, forcou. A patristica latina do século IV é dominada por uma poderosa corrente cristé. Um de seus arteséos 6 Cal. lio; sua traducdo do Timez de Platio, se bem que in- completa, devia desempenhar um papel importante na Idade Média, que, até a metade do século XII, nao teve Outro acesso ao texto dos didlogos platénicos; a essa tradugio, Calcidio acrescenteu um comentario, no qual vertos indicios (elogios de Moisés e de sua inspiracdo 6 A Fitosoria Mepievan, divina, alusao & Natividade do Cristo, teoria dos witimos fins, citagio de Origenes etc.) atestam que o autor era cristo. Uma outra personalidade de primeiro plano no platonismo cristdo ocidental € a de Mario Victorino Afer (morto apés 362); na primeira parte de sua carreira, foi, em Roma, um ‘professor de retdrica de grande reno: me; compés entdo diversas obras de gramatica, retorica e dialética, das quais restam algumas amostras; mas, so- bretudo, traduziu em latim varios textos filosdficos gre- gos; ignorase sua lista exata, mas devia comportar al- guns tratados de Plotino e de Porfirio (deste ultimo, 0 Isagogo, 0 tratado Da Volta da Alma ete.); 0 que € certo € que essas tradugdes exerceram uma influéncia conside- ravel na histéria da cultura; é gragas a elas que Santo ‘Agostinho entrou em ¢ontato direto com 0 neoplato- nismo grego (cf. Confissdes, VIIT, 2, 3: “eu havia lido di- versos livros platonicos traduzidos em latim por Victo- rino, outrora retor em Roma”). Depois, numa idade avan- cada, Victorino converteu-se ao cristianismo, a principio de maneira furtiva, mas logo depois publicamente e para © espanto de todos; desde entéo, sua atividade literdria voltase para a exegese e a teologia: comenta varias Epis- tolas de Sao Paulo; sobretudo, compée contra a heresia ariana dois tratados, intitulados Da Geracéo do Verbo Divino e Contra Ario, nos quais com a ajuda de uma grande quantidade de esquemas neoplatonicos, muitas vezes dificeis de analisar, esforga-se por chegar a uma formulacao filosdfica do dogma cristao. Mais jovem do que Victorino alguns decénios, Santo Ambrésio (389-397) estd ligado & mesma corrente do cristianismo platoni- zante; durante muito tempo, sua obra filosdfica limi- tou-se a um tratado de moral cujo titulo mesmo, Dos Deveres dos Ministros, indica tratarse de uma transpo- ‘sicdo erista do tratado ciceroniano Dos Deveres; na ver- Gade, Ambrésio era muito mais aberto a especulacao fi- Joséfica do que essa obra deixaria supor; nao somente jeu atentamente, no prdprio texto, Filon e Origenes, de quem toma numerosas exegeses alegéricas da Biblia, mas, como se percebeu recentemente, tinha um conhecimento sério da filosofia grega; dispunha, para esse fim, de ma- nuais, cujos vestigios aparecem em sua obra; mais ainda, alguns de seus sermées reproduzem quase textualmente longas citagdes de Platéo e de Plotino. re SanTO AGOSTINHO EO OcDENTE ” Santo Agostinho (254-430) € estreitamente tributd. rio desse platonismo cristo romano e milanés: foi nas tradugdes de Mario Victorino que leu os textos de Plo- {ino e de Porfirio, cujo espiritualismo devia aproximd-lo do cristianismo; foi a audiéncia dos sermées plotinizan- {es pronunciadds por Ambrésio em Milo que venceu suas ultimas resistencias. FILOSOFIA E TEOLOGIA EM SANTO AGOSTINHO A FILOSOPIA DA ORDEM somente por um cuidado de clareza que se pode fo calizar sucessivamente Agostinho fildsofo e Agostinho tedlogo. Na verdade, nada é menos agostiniano que essa separacgao. Ele proprio teria se recusado a opor essas duas atividades espirituais, tanto em seu objeto quanto nas faculdades que exercem principalmente. Via menos diferenga do que a que hoje se estabelece entre a nature- za, objeto da filosofia, e a sobrenatureza, objeto da teo- logia; pessimista, jamais concedeu muita confianga & na- tureza humana e Sustenta a necessidade da graca, isto é, de um 0. sobrenatural, para a realidagao das vir- tudes puramente naturais, Sobretudo, discerniu’ melhor do que hinguiém a interagdo da razio'e da fé, pela qual se exercem essencialmente a filosofia e a religiéo, Com- preendeu bem que o emprego da {é néo € limitado ao dominio religioso: é, por exemplo, a ela que competem, salvo para a testemunha imediata’ ou o historiador pro fissional, os acontecimentos historicos e é na £6 de meus pais que acredito ter nascido em tal momento em tal lu gar; ademais, enquanto adesdo,’ela duplica sempre 0 co- mhecimento racional: nfo se sabe tudo em que se vé, mas vé-se em tudo 0 que se sabe. Inversamente, na prd- pria religifio, nao é somente a fé que esta em causa; ela é purificante protréptica, mas transitoria e destinada a Ser ultrapassada, pois leva a compreender; apés Sao Paulo e antes de Malebranche, Agostinho descobre que a fé passara, mas que a inteligéncia subsistira eterna. mente, Prolongada pela razio, a fé é também preparada pela razio; é, com efeito, pela razdio que analiso 0 papel da fé; ademais, a fé principiante aceita bem um concurso racional, nem que seja somente para assegurar que nao 8 A FILOSOFIA Mepitvan € absurda. No dominio da filosofia como no da religiao, razao e {é consp:ram, portanto, sem lassitude: 6 sempre preciso crer para compreender e compreender para crer, Como, entao, decidir em Agostinho entre a construgao do. filésofo e a explicagdo do tedlogo? Nao podemos fazé-lo sem traigdo. A exposicao exige-o, todavia, mas ndo nos deixemos enganar por isso. Para apresentar 0 pensamento de um grande fildsofo, © mais conveniente é escolher uma idéia diretriz, em torno da qual tudo, ou quase tudo, se organizara. Para Agostinho, pode-se partir, sem muita arbitrariedade, da nogio de’ ordem. Como seus predecessores platénicos, tem, com efeito, uma viséo hierérquica do mundo ¢ 0 universo resolvese para ele numa sucessio de realida- des escalonadas; a idéia de ordem pareceulhe merecer que The consagrasse um dos didlogos de Cassiciacum, 0 De Ordine. A primeira qualidade da ordem cosmica é sua totalidade, entendida num duplo sentido: de uma parte, ndo ha’neda fora do mundo, que é 0 todo; de outra parte, no interior do mundo, isto 6, do todo, nao ha nada que escape & ordem, Era a doutrina do Timeu, re- petida através de toda a tradigéo platonica. Agostinho retoma-a por conta propria: “Em teu modo de ver, 0 que ha de contrario & ordem? — Nada”, responde. “Como, com efeito, uma coisa pode ser contriria aquela que com: preende tudo e contém tudo? Pois 0 que fosse contrério & ordem seria necessariamente exterior a ordem, Ora, nao vejo nada que seja exterior & ordem, Cumpre, pois. pensar que nada é contrario & ordem” (Da Ordem, 1, 6, 15). Toda aparéncia de derrogacdo @ ordem provem’ de uma falta de informacéo; para mostré-lo, Agostinho to ma, na seqiéncia do mesmo texto, o exemplo do erro: relativamente & ordem do mundo, 0 erro nao € aberrante, pois, por quem o produz e pelo que produz, inserese numa trama causal e encontra-se assim reintroduzido no interior da ordem. Baste isso no que toca a totalidade exterior, pela qual nada permanece exterior ou contrério @ ordem cos- mica. Mas, do interior mesmo, nada Ihe escapa; pois as criaturas inferiozes ou pecadoras nao manifestam menos que as mais elevadas a exceléncia da ordem; longe de por a ordem em perigo, a existéncia do menos bom con: diciona a do melhor; e, tanto para este como para aquele, nossa atitude em face de Deus deve ser a agdo de gracas ¢ santo AGosriNHo £0 OCIENTE co nao a recriminagéo: “Tudo o que a verdadeira razio pode te oferecer de melhor, saiba cue foi zeito por Deus, enquanto criador de todos os bens. Ora, nao é verdadeira raz4o, mas inveja mesquinha, se, pensando que uma coisa melhor deveria ter sido feita, recusas-te a admitir a exis- tencia de uma coisa menos ‘boa; é como se, tendo con- templado o céu, quisesse que a terra nfo tivesse sido produzida” (Do ‘Livre Arbitrio, IIT, 5, 12); na realidade, Na ordem das criaturas, da mais slevada & mais baixa, decresce por graus to justos que sé a inveja faria dizer: esta nao deveria existiz, ou ainda: ela deveria ser como aquela” (ibid., IIT, 9, 24). Na verdade, a ordem do mun- do abaixa-se até as mais humildes criaturas. Se o Evan- gelho se da o trabalho de notar que nem um pardal cai 20 chao, nem sequer um cabelo de nossa cabeca, sem a permisséo do Pai” (Mat., 8, 29-80), que ele veste as aves do céu e os lirios do campo (Mat., VI, 26), 6, com efeito, para mostrar que “tudo 0 que.os homens’ tém por mais vil € governado pela onipoténcia d2 Deus” (Do Combate Crista, VIII, 9). Se 0 Salmo 148, 8, declara que 0 fogo, © granizo, a neve, o gelo e 0 sopro da tempestade reali zam o verbo de Deus, é que pareceu a muitos persona- gens tolos, por nao terem a forca de ver nem de com- preender que a criatura realiza seus movimentos em seu lugar e em sua ordem, segundo a permissio e o coman- do de Deus, que Deus governa bem todos os elementos superiores, mas que, para os inferiores, tem apenas des- prezo, repulsa, abandono; que néo se importa com eles, nem 0s governa, nem os dirige; essas criaturas inferiores estariam deixadas & diregio do acaso ¢ iriam como po- dem (...). A ti, porém, nao parecam elas entregues 20 acaso, essas criaturas que obedecem, em todo seu movi. mento, ao verbo de Deus” (Sermbes sobre os Salmos, 148, 10-11). Vése ai que Santo Agostinho une-se aos es- forgos dog estdicos e de Plotino contra @ limitacio da ordem cdsmica preconizada por Aristdteles. Mas separa-se do neoplatonismo com relagto a um outro problema ainda relativo @ extensdo da ordem cés mica: a totalidade da ordem estender-se-d até o seu autor, ou permanecerd Deus transcendente & ordem que ins- taurou? Piotino, claramente, toma partido em favor da imanéneia; 0 autor da ordem nao é, para ele, 0 principio supremo, mas a alma do mundo, de sorte que a ordem ¢ © organizado sdo uma s6 coisa (Enéadas, IV, 4, 10 e 16) 80 A FILosoFia Mepunvat, Mas Agostinho nao aprova essa tese da imanéncia & or. dem do autor da ordem: “Como € que Deus governa todas as coisas por meio da ordem? Sera de tal modo que se governa a si mesmo também por meio da ordem, ou governard todo o resto por meio da ordem, excetuado ele proprio? Onde todas as coisas sao boas, a ordem nao existe, pois ai reina uma igualdade absoluta, que nao exige de modo algum a ordem. Ora, nao se pode negar que, em Deus, tudo seja bom. Segue-se dai, que nem Deus, nem as coisas que estao em Deus, sio administra- das por meio da ordem.” (Da Ordem, I, 1, 2). Deus permanece “elevado acima de todos os seres" (Confis- s6es, II, 6, 13, 2) e, por conseguinte, acima de sua ordem. Essa idéia essencial, segundo a qual o mundo dis. tribuise num cer:o mimero de graus, reveste diversas apresentagdes, conforme os momentos. Acontece assim a Agostinho proporcionar a ordem do mundo ao grau de mutabilidade dos seres que o constituem; e, como a per- manéncia na unidade condiciona o ser e a beleza, as dimens6es da mutabilidade definem uma hierarquia té ndria: “Existe uma natureza mutavel no lugar e no tem- po, tal como o corpo; uma natureza que nado é mutavel de’ maneira alguma no lugar, mas apenas no tempo, tal como a alma; e, enfim, uma natureza que ndo pode mu- dar nem no lugar, nem no tempo, e 6 Deus (.,.). Mas dizemos que toda'coisa que é, € na medida em que per- manece imutdvel e una e toda beleza tem a forma da unidade; nessas condigées, vés sem duvida alguma, nes: sa repartigio das naturezas, 0 que é supremo, 0 que € infimo e, no entanto, existe, enfim 0 que € intermedidrio, superior ao infimo e inferior a0 supremo” (Carta 18, 2) Uma hierarquia andloga, fundada sobre 0 mesmo prin- cipio de discriminagao, encontrase no comentario de Agostinho De Genesi ad litteram (VIII, 19, 38-20, 39 e 24, 45); a total imutabilidade de Deus € felizmente estabele- cida: Deus nfo esté encerrado num lugar, finito ou mes: mo infinito, pois a parte nao € ai menor do que o todo, a0 passo que ela o 6 em toda realidade local; ele no pas: sa muito menos por uma sucessdo temporal, finita ou in- finita, pois nela nao ha lugar para a aparicfio de elemen- tos novos ou a desaparigéo de elementos antigos, pelo que se define 2 mutabilidade no tempo; a criatura espi itual, isto é, a alma, move-se no tempo, como 0 atesta 4 rT ganto AcosTINHO F 0 OCIDENTE a gucessio de seus estados psicolégicos, mas nio no lugar; sucfiatura corpdrea, enfim, estd sujeita ao movimento 1o- aero que acarreta que também esteja sujeita a mutabi- calade temporal; €, como o mutavel € menos perfeito que bactnuldvel, percebe-se a hierarquia que se depreende Sessas andlises, Todavia, 0 comentério sobre 0 Genese Gcuw uma precisio interessante: nio somente a alma hu- atana, mas também os espiritos angélicos sfo afetados pela mutabilidade temporal ‘por vezes, Agostinho, dando ainda seqiiéncia aos neo- platonicos, € impressionado pela existéncia de trés fun- Thes de cxcelencia crescente: ser, viver, compreender, Gue se encaixam de tal maneira que nao se pode possuir Gina delas sem reunir necessariamente as precedentes, jnas de tal maneiza também que a posse de uma nao aearreta de modo algum a das seguintes; donde uma gradagio ascendente das criaturas Dessas trés coisas: 0 ser, a vida, a inteli- géncia, a pedra tem o ser, 0 animal a vida, mas sem que a pedra tenha, é claro, a vida, nem. © animal a inteligéncia; mas quem tem a in- teligéncia tem também, sem duvida nenhuma, o ser e a vida, Eis por que ndo hesito em jul- gar aquele que retine essas trés coisas mais excelente do que aquele que carece de duas ou de uma delas. Pois aquels que tem a vida tem também 0 ser, mas nao se segue dai que tenha também a inteligencia: tal é, acredito, a vida dos bichos. E ter 0 ser nao implica absoluta- mente ter a vida e a inteligéncia: posso afirmar, com efeito, que um cadaver tem o ser, mas ninguém dira que tem a vida e 0 que nao tem a vida tem ainda menos a inteligéncia (Do Livre Arbitrio, TL, 3, 7) A aplicagio ao universo da precedente triade resulta também em dispélo segundo trés niveis: 08 corpos inanimados, os seres vi- vos sem razdo, as criaturas espirituais. E essa triplice clivagem exaure a ordem do mund quem consegutisse descobrir fora dele um quar- to género de criaturas poderia entio jactar-se de ter deitado mao a um bem que nao pro- 82 A Ficosorisa Mepievat, vém de Deus (ibid., 11, 17, 46), De igual modo, a ordem do mundo repete-se no interior do homem, verdadeiro microcosmo onde 0 uni- verso se Tecapitula, Agostinho verifica preci- samente esse fendmeno de reduplicagéo com © exemplo de ser-viver-compreender, que the aparece como 0 divisor comum do mundo e& do homem: “Nao ha abuso nenhum em supor que :oda a criacho se contém no préprio ho- mem. Pois nenhuma criatura pode ser apenas espiritual, como é, em grau eminente, 0 caso dos anjos, ou bern animal, o que se manifesta até mesmo na vida dos bichos; ou enfim cor- porea e, entdo, visivel e tangivel. Ora, todos es- Ses caracteres’ estao também no homem, por- que 2le se compde de espirito, de alma e de corpo” (Exposicao de Algumas Proposicoes da Epistola aos Romanos, 53). Em outro lugar, Agostinho funda a hierarquia sobre ‘a consisténcia da felicidade: entre Deus, que ¢ a propria felicidade, e a materia, incapaz de felicidade bem como de infelicidade, insere-se 0 homem, infeliz quando se des- via para baixo, feliz quando se volta para 0 alto. Have. ria ainda uma gradagio dos modos de conheciment sensacio, evocagao das imagens sensiveis, ciéncia das Gisposigdes psiquicas transitdrias, conhecimento de si, contemplacio da inteligéncia. Cumpre notar que, em cada uma dessas apresentagées (e encontrar-se-iam mui- tas outras), a ordem 6 ontolgica e nao moral; funda-se sobre a natureza e no sobre 0 mérito; diferentemente Ga filosofia grega, Agostinho mantém, por exemplo, que todo corpo, ainda que fosse celeste, € inferior a toda alma, ainda que fosse vil. Essa ordem € bela e boa; é comoda para Deus, cuja causalidade segue 0 canal dos graus superiores para encontrar-se com os mais humildes. ¥ fator de paz e oferece 0 plano sobre o qual poderd de- senvolver a vida moral; 0 destino de cada degrau é 0 de Submeter-se a0 que 0 precede e de submeter aquele que © segue; 0 espirito, por exemplo, deve subjugar a carne, mas deferir a Deus; para 0 corpo, bem como para 0 es: pirito, morrer é perder o elemento que esta acima dele. Enfim, a ordem 6 um todo; uma falha local nessas re jagdes’ de subordinagao acarreta sua ruptura total santo Acostinto 2 © Ocipewte 83 Mas além desse aspecto estatico, pelo qual a ordem apresenta-se como uma pluralidade de niveis, ela com- porta um aspecto dinamico que dela faz um trajeto de Pocalada, Ela & a0 mesmo tempo um acumulo de pavi- fnentos e a escada que permite fazer sua ascensdo até a Deus, que reina em seu apice. Donde um duplo manda- mento para 0 espirito humano: de uma parte @ injun cao, de inspiracdo estdica, de manter-se, no cosmo, em Seu lugar, que nao € nemo mais baixo, nem o melhor; de outra’ parte o apelo, muito mais aberto, a buscar gpoid nos mais. humuldes degraus para algar-se até 0 topo. Esta tltima prescrigao constitui o fator principal de toda a vida espiritual, pois a ascenséo que encoraja. Concerne tanto ao ser quanto ao conhecimento; chegar por seu intermédio ao conecimento de Deus é tambem Ge alguma maneira assimilarse a cle; esse conhecimento exige, com efeito, uma aproximac&o purificadora pela qual ‘nos esforcamos por nos tornar, tanto quanto pos- sivel, semethantes a Deus; inversamente, esse esforgo em busca da semeihanga divira apdiase sobre o conheci- mento; gragas a essa conjungao de conhecimento e de assimilagao, 0 homem tende, embora subsista uma dis- tancia abismal, a constitui: um s6 espirito com Deus. Se essa unificagéo permanzce no estédio da esperanga € porque o mais avangado conhecimento é sempre ina- dequado ao seu objeto divino e porque o melhor con- tinua, em definitivo, a ser ignorancia; a nocio mais aproximativa de Deus consiste em saber 0 que ele nao 6; pois ele nada € do que se pode imaginar da base ao dpice da criagao. Tais formulagdes mostram que nfo basta ressaltar em Agostinho “elementos” de uma teologia negativa; na realidade, descobrimos sot sua pena © testemunho de uma verdadeira tomada dz consciéncia do amplo pro- cedimento, positivo e negativo, préprio a todo conheci- mento de Deus. Ele prevé a objegao que se pode opor a teologia afirmativa, a saber, que introduz o antropomor- fismo na nogéo de Deus; mas as analogias divinas que esse método observa na criagao néo sao forgosamente an- tropomorficas. A prova disso é que a Escritura, na sua preocupacao pedagdgica, transporta para Deus muitas propriedades pertencentes & criatura corpdrea e espiri- tual e esse procedimento nada tem de escandaloso; 0 erro seria, ao contrario, pretender atribuir a Deus qua- ad A Fitosoria MevievaL, lidades que, por nao se encontrarem na criatura, nada tem, todavia, de divin A santa Escritura, adaptada as criangas, nao neghigenciou nenhuma espécie de coisas cujo vocabuldrio fosse capaz, por assim dizer, de nutrir nossa inteligéncia, para que ela se eleve, por uma espécie de gradagao, até as rea- lidades divinas e sublimes. Serviu-se, com efei- to, de palavras tomadas &s coisas corpéreas, querendo falar de Deus, por exemplo quando. diz: “Protege-me sob o abrigo de tuas asas” (Salmo 16, 8), Transpés também muitas no- cées, tiradas da criatura espiritual, préprias para significar uma realidade que nao era sem dtivida de tal natureza, mas que era preciso ex- pressar assim; por exemplo: “sou um Deus ciumento” (#rodo, XX, 5), e: " rrependo-me de ter feito o homem” (Gén,, XI, 7). Ao contra- rio, das coisas absolutamente despojadas de existéncia, nfo tirou nenhuma palavra com que teria podido forjar belas férmulas ou im: penetraveis enigmas. Eis por que 0s mais pe- rigosos sonbadores séo os que se separam da verdade pela atribuicao a Deus daquilo que nfo pode ser encontrado nem no préprio ‘Deus, nem em nenhuma criatura (...). Assim, os atributos reservados a Deus e€ nfo encontra- yeis em nenhuma criatura séo raros na divina Escritura (Da Trindade, I, 1, 2) Nessas condigdes, a teologia afirmativa acha-se ga- rantida pelo uso que dela faz a Escritura; mediante cer- tas precaugdes, ela conduz a um auténtico conhecimento de Deus; despread-la equivale a introduzir o arbitrério na representagao da natureza divina € expoe aos piores erros. Ora, a estrutura ordenada do mundo tem um lugar de- cisivo na aplicagio desse método; com efeito, sabendo que, na hierarquia das criaturas, tais realidades prevalecem sobre as Outras, chegar-se-d_a uma idéia da substancia divina amplificando 20 infinito as qualidades das melho- res dentre as criaturas: “O universo proclama que ha um criador transcendente, de quem recebemos uma natu- reza inteligente e racional, por meio da qual vemos que SanTO AGOSTINO FO OcIENTE 85 é preciso preferir (...) os seres vivos aos que nao vi vem, oS seres dotados de sentimento aos que nao sentem, Por conseguinte e jd que colocamos 0 Criador, sem hesi tagao alguma, acizna das coisas criadas, precisamos re- conhecer (...) que ele ¢ dotado tanto dé uma vida su- prema quanto de um sentimento universal” (ibid. XV, 4, 6). Além da afirmacao da solidariedade entre a teo- jogia afirmativa e a cosmologia hierdrquica, teré sido ressaltada neste wltimo texto uma outra idéia tradicional, fa saber, que 0 método afirmativo deve proceder a partir das quélidades das criaturas mais proximas a Deus. Mas 0 espetaculo do universo hierarquico permanece ambiguo; acabamos de ver que ele pode conduzir, me- diante uma infinita multiplicagao do melhor, a uma con- cepcio positiva de Deus; mas, quase sempre, ele fala uma outra linguagem e indica ‘antes 0 que Deus nao é do que 0 que 6. Se bem que anterior ao conhecimento adequado e mais ao nosso alcance do que ele, esse co- nhecimento negativo de Deus jé é meritério e invejavel. Como € natural, a teologia negativa de Agostinho € cal- cada sobre a dialética ascendente e nega toda identidade de Deus com 0 criado, comegando pelos niveis mais hu- mildes: Se ndo podeis compreender agora o que Deus €, compreendei pelo menos 0 que Deus nao 6; vosso progresso terd sido consideravel, se no tiverdes concebido a Deus diferentemen- te do que € Nao podeis ainda chegar ao que ele é: chegai pelo menos ao que ele nao é. Deus néo é um corpo, ndo € a terra, nem 0 céu, nem a lua, nem 0 sol, nem as estrelas, nem nenhuma dessas substancias corpéreas. Pois, se ele nfo se reduz aos corpos celestes, quanto menos aos terrestres! Eliminai toda es, pécie de corpo. Mas escutai ainda isto: Deus nao é um espirito mutavel. Reconhego, certa- mente, (...) que “Deus € espirito” como diz 0 Evangelho (Joao, TV, 26). Mas ultrapassa todo espirito mutavel, ultrapassa 0 espirito que ora sabe, ora ignora, ora se lembra e esquece (...). Nao encontrais em Deus nenhum traco de mu- tabilidade (Tratados sobre o Evangetho de Sao Joao, 23, 9).

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