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DO TRABALHADOR INDISCIPLINADO AO HOMEM PRESCINDIVEL POR SANDRA NC. CAPONI ORIENTANDA DO PROFDRLUIZ ORLANDL NTADA NO INSTETUTO DE ICIAS HUMANAS DA SIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS COMO REQUISITO PARCIAL PARA A ORBTENGAO DO TITULO DE DOUTOR EM LOGICA E FILOSOFTA DA CIENCIA. CAMPINAS S.P. 1992 Agradecimentos... Dedicatoria...... CAPITULO I: OBSERVACOES PRELININARES SOBRE OS MODOS DE PRODUCAO DA SUBJETIVIDADE Una nova estrategia de interrogsacdo filoséfica (11); Autoproducao da subjertividade(25); As redes de poder na ordem da produgdo( 30) CAPITULO IZ: MONSTROS.POBRES E BURGUESES normal eo mostroso (43}; As escola e oS circos nos tempos da Ve- nus Hotentote (45);0s bio-poderes e a governabilidade (58) ;Gober- nar o rebanho(65); A razio eo calculo na ordem do trabalho (69); Pobres,trabalhadores e mendigos (71);Sobre leis e discipli- nas (79). CAPITULO IIL: 03 BIO-FODERES NO MUNDO DOS TRABALHADORES....... ae Un poder de extragio e de morte(89); Uma Instituigao completa austera:a prisio(98); Uma bio-politica da populacdo (108); A me~ dicalizeedo do proletarisdy (112); Um dispositive moralicante (121); Moral de Aceitacao (125); 0 saber inocente (132); Poderes de extrago (139); Utopias disciplinares socialistas (142). CAPLTULO IV: ESRTRATEGIAS DE DESQUALIFICACAO . 148 Os poderes e as fabricas (149); Por que a rabrica? (158);Sobre néquinas e infantes (167); Estratégias de desqualificacdo (177) Sobre taylorismo(195); Uma nova estratégia de poder (197); Taylo rismo e disciplina (203);Da Preguiea a fadiga (208); Nota pros- pectiva (216). CAPITULO V:_ ESTETICAS DA RESISTENCIA... A vida como obra de arte (219); A prop (225);A estética pasoliniana (232); Artesdos de si (234); Etica e trabalho (252); Tecnologias do eu (254); Praticas de entreda a si (255); 0 cuidado de si e a proximidade com os outros (262); 0 cuidado do corpo (268) REFEBENCLAS. Da apresentagdo (261) Do capitulo I (282) Do capitulo III (284); Do capitulo IV (296); Do capitulo V (288); Da conclusao (290). ‘AGRADECINENTOS Ex prineiro lugar devo agradecer a0 Prof. Or. Luiz Orlandi por ter * sabido articular tolerancia e rigor critica en seu tratalho de crienta~ a0, Taspaco posso ae esquecer dos professares Or. Tos Dwyer e Dr.Jua~ rez Brandao porque a eles devo as intuigoes iniciais desta teabalho.£ tanbéa,devo expressar neu agradecieento a0 Prof. Dr. Eenjanin Ge Souza Neto pelas observasoes forauladas na oportunidade do exane de qualifics gf € a Prot. Roselene dos @njes por ter-ae accapantada e quisdo na s- ventura de traduzir~ Por finydevo agradecer o apoio financiero da COPES, inprescindivel para a elaboraao desta tese. it Para Mauro AP RESENTAGAO Desde 1983, data de publicacio do tltimo volume da “Histéria da Sexualidsde", tem sido insuficiente e escassa a producdo ted~ rica orientada na direcdo aberta pelas reflexdes foucaultianas sobre a ética. Consequentemente, pouco tem sido teorizado a res- peito das intrincadas relagdes que esse antigo modo de pensar a ética (como cuidado de si) mantém com essa analitica do poder que se propde a resgatd-lo na sua capileridade. Existe ali todo um espago privilegiado de andlise filosdfica que se situa necessa- riamente em um horizonte alheio a todo reducionismo subjetivista que remeta as nogées de repressio e ideologia. Ao mesmo tempo, permite-nos pensar a ética a partir de fora do estreito marco das valoragdes morais como exigéncia superestrutural Foucault fez algo mais do que convidar-nos a substituir uma andlise descendente do poder por uma ascendente. A partir de seus ultimos escritos, onde define sua empresa teérica como uma ontologia histérios de nés mesmos, explicitardé um elemento que ¢@ central nos estudos genealégicos. Como tantas veges tinha afir- mado, dir& que o poder produz, produz saber, discursos e resis- téncia, mas também nos produz como sendo estes sujeitos que so- mos. O poder é uma matriz subjetivante, 0 “louco”, o “delinguen- te", o “marginal” sio efeitos do mesmo disgrama de poder que constitui os sujeitos como sendo “normais". E, do mesmo modo co~ mo ele insistira nesta capacidade produtiva do poder, também afimmard que as diversas formas de resisténcia que atravessam os sujeitos remodelando-os constituen igualmente uma matric cubjeti- vante. A partir dai, o poder deve deixar de ser pensado exclusi~ vamente sob a forma do “nao” - como uma forca eminentemente re~ pressiva - para comegar a ser pensado como condigio de possibili- dade de constituigdo desses corpos ¢ dessas almas que povoaram a histéris e que hoje habitam nosso presente. © nome de Michel Foucault associa-se imediatamente con o submundo dos submetidos, dos que estao & margem da luz e da nor- ma. Grande parte de seus textos foi povoada por personagens monstruosos: Pierre Riviere, Herculin de Barbin, Damiens, entre outros. Mas existe um outro lado de seus textos, uma faceta me- nos preccupada com os excluidos do que com estas formas de exer- cicio do poder que nodelaram, através dos séculos, o corpo, o sangue 0 sexo dos grupos hegeménicos. 0 primeiro volume da “His- téria da Sexualidade” tem a seu cargo o relato dessas minuncio- sas redes de poder que a burguesia dirigiu até si mesma desde 0 século XVIII com o objetivo de afirmar sua hegemonia de classe. Isto tem menos a ver com o fato de ela se valer de seus poderes para avassalar o grupo dos oprimidos do que como fato de ela conseguir produzir um corpo, uma alma e uma consciéncia esperifi- eamente burguesa. Um corpo distinto daquele que é préprio da aristocracia (marcado pelo sangue), mas também distinto do corpo do “povo" que sé tardiamente sera levado em consideracd Un corpo centrado no sexo € ndo na linhagem, um corpo disciplinado mais do que un corpo prédigo. Assim, em "Vigiar e Punir", o relato da morte e o esquarte- jamento de Damiens marca o fim de um tipo de poder despético onde quem foi torturado néo tem outra utilidade a ndo ser a de ser uma aterradora adverténcia para todos aqueles que pretendam trans~ gredir a lei. Contudo, nao aparecerd neste texto outro relato sobre 8 vida ou sobre os padecimentos de elgum individuo que po~ voe estas novas fortalezas que sio as prisées. Somente Lacenaire © Vidocg ocuparéo algumas paginas, nao em seu carater de prisio- neiros, mas enquanto eles simbolizam o nascimento de um novo tipo de delinguéncia, uma delinguéncia Util que pouco a pouco ira sen- do integrada a formas globais do poder. A propésito deles, come- card a analisar a emergéncia de uma delinguéncia - policialesca e de uma delinguéncia - esteta. A heroizac&o do criminalogista e sua transformag’o em agente da ordem comegard pouco a pouco a ge~ neralizar-se. Essas figuras possuem uma mesma funcionalidade: “impedir que os ilegalismos possam ter um efeito de cardter revo- luciondrio no campo histérico, impedir a unidade politica dos ilegalismos populares” (1) “Vigiar e Punir” pode dar conta da eficdcia produtora dos dispositivos de poder. Se o dispositivo carcerdério pode ser in- tegrado a uma rede maior de poder, isto nao se deve tanto & sua fungiio normalizadora, mas & sua capacidade geradora de uma “de- linguéncia util". Humanistas, reformadores, juristas, politicos e educadores teréo seu lugar neste texto ao lado de Lacenaire e Vidocg. No entanto, a voz ausente serd a daqueles que, por quase dois séculos, povoaram as pristes. Claro que sera o proprio Fou- cault que fard explodir este siléncio na sua prética politica. Sua proposta do GIP nao sera outra a nfo ser “dar a palavra aos prisioneiros”, pois sd eles poderdo dizer o que, durante tanto tempo, foi silenciado. Nao obstante, no texto aqui mencionade, sé aparecerd alguma referéncia isolada aquelas intweras cartas que foram escritas nas prisdes como verdadeiros exercicios éticos e politicos, cono uma forma liar de “ouidado de si". Essa cartas, esses didrios, esses relatos da cotidisnidade dos prisio- neiros s%o bons stemunhos para isolar o modo como, através do tempo, das mudangas e dos fracassos do dispositive caresrario esses sujeitos puderam refletir sobre suas préprias vides e sobre o poder a eles destinado. Aquelas eram quase exclusivamente as Gnicas formas de resistencia que podiam ser opostas a este “olhar dominador e vigilante" que pouco ou nada tinha de corretivo Se, tal como afirma Foucault, nao existe poder sem resistén~ cia, se ests, para ser operatdria, deve funcionar como o poder de uma forma nio centraligada mas capilar, se deve atuar como o po- der, circulando através dos individuos que (o poder ¢ a resiste cia) produzem; temos que nos perguntar pelo modo como age a con- tra-face do poder sem esquecer das precaugées metodoldgicas esti- puladas por Foucault. Desconhecer a capacidade geradora da re- sisténcia nos condenara a um incessante problematizagao das es- tratégias de poder e das subjetividades que elas produsen, fazen- do-nos desconhecer e nao escutar a historia daqueles que estdo em posick&o de fuda a respeito do poder, Esta historia precisara para ser narrada, de algo mais do que o instrumental tedrico que Foucault nos prové nos estudos “genealégicos”, um “plus” que cremos, seja possivel encontrar em suas reflexdes iltimas sobre a ética. Por ser assim, os dois iltimos volumes da “Histéria da Se- xualidade” poderiam ser convertidos em iteis instrumentos para comegar a narrar essa historia. Cremos que @ possivel pensar a ética (tal como foi conceitualiaada por Fouacault) como um com- plemento indissocidvel do par poder/resistencia. E s6 deste marco 6 que serA possivel comecar a pensar numa eficaécia produto- ra da resisténcia. Sera preciso recordar que afirmer com Foucault que o poder tem que ser pensado fora de um esquema onde este teria por fungao reprimir uma natureza humana originéria, significa near a exi téncia de tal natureza. Mais do que pensar numa natureza origi- navia, num sujeito que os poderes tenderiam a redugir, temos que pensar que os sujeitos s&o da ordem do efeito, Produtos de cer tas teonologias de poder, mas também de certas tecnologias do eu que certos individuos dirigen até si com o afa de construir suas préprias vidas como sendo vidas dignas de serem vividas. Essas tecnologias do eu que muitas vezes emergem como verdadeiras for- mas singulares e pontuais de resisténcia, permitir-nos-&o anali~ ser de outro modo essa vertente, obscura, dos dispositivos de po~ der Talvez, entéo, seja possivel aproximar-se do mundo dos ex- cluidos sem mediagSes de uma naturega numona, sem recursos a es séncias reprimidas ov a ficticias homogencidades Atendendo a este duplo eixo de poder - resisténcia, atenden- do a essa dupla necanica de tecnologias de poder e de tecnologias do eu, propomo-nos a problematizar certas nogdes que os textos de Foucault sé abordaran tangencialmente, Foucault nos habituou @ problematizar as instituigdes, estabelecendo analogias entre as formas de exercivio do pader que ss percorrem, Assim, uma mesma mecénica de poder pareveria reproduzir-se, em certo momento his- térico, numa diversidade de instituigdes. 0 exército prusiano e a priséo, os hospitais e as oficinas parecem estar sujeitos, no transcurso dessa modernidade que se inicia em fins do século XVIII, ao mesmo diagrama de poder caracterizado como “discipli- nar” Este trabalho propde-se circunscrever o aleance tedrico desta nocio de “disciplina”, a fim de poder problematizar essas analogias que, para alguns sociélogos, por exemplo Gducmar, pos~ suen a forea de uma evidéncia. Tentaremos mostrar aqui que nuo & téo evidente que as oficinas e as fabricas da modernidade estejam percorridas por uma mecanica de poder identida aquela que percor- ria escolas, prisées e hospitais, Propomo-nos, aqui, valendo-nos de estudos de socidloge e historiadores presoupac o trabalho, iselar a especifici edes de poder no mundo forma de exercicio do poder. Interessa-nos mostrar que as redes de poder que percorrem as instituigses da modernidade e que modelam os sujeitos do século XIX, n&o parecem atravessar com identica forca todas as figuras que circulam pelas grandes cidades. Cremos que esse aff disci plinarizador, esse impeto normaligante que caracteriza # moderni- dade estd longe de ser universal. Pedagogis, controle da sexua- lidade, psiquiatria e inclusive a medicins tém um alvo privile- giado: o joven burgués, A mulher histérica, a crianga onanista ndéo sao, como veremos aqui, personagens do povo, mas sim de alta burguesia Por outro lado, e como seu reverso, miltiplas redes de poder disciplinar dirigiam-se a esse conglomerado confuso de corpos que compunham a periferia do povo: mendigos, desocupados mulheres solitérias, loucos, prostitutes, menores abandonados, entre outros. Toda essa gama de sujeitos aos quais os humanistas querem normalizar. Casas de correeio, asilos, leis de pobres © logo, as prisdes e os hospitais tomarfio a seu cargo o cuidado destes sujeitos. Seu propésito sera devolver a laboriosidade a essa natureza descarrilhada que perdeu o bom hébito do trabalho Construi-los como sujeitos déceis e produtivos. Entre ambos, um grupo de sujeitos que esta longe de ser ho- mogéneo pareceria ‘ser menos objeto de poderes disciplinares do que de uma forma de poder que aqui chamaremos de “exclusio" (preocupada com deduzir tempo, forga, dinheiro e, no ultimo limi- te, a prépria vide). Como veremos, o controle da saude, da se~ xualidade e dos hdbitos destes sujeitos ndo foi objeto de temati- zecko para médicos e educadores pelo menos até as iltimas décadas do século XIX. Pouco interessava se esses trabalhadores viveriam ou morrerian, sendo que, de todo modo, eles se reproduziam. Se desde entio comegam a ser levados em conta, sera menos como alvo de uma angtomopolitica do corpo humano do que como objeto de uma biopolitica da populagéo. Bles interessam menos enquento s%o corpos produtivos do que enquanto sao corpas portadores de enfer- midades que, como uma ameaga, percorrem as cidades Por fim, cremos que a genealogia proposta por Foucault pode ser lida como um detalhado estudo de como efetiva e materialmente o poder é exercido, mais do que como uma interrogagdo pelo modo como se organizam as formas pontuais e plurais de resisténcia Esta Ultima questéo foi colocada, especificamente em relacdo as jutas dos trabalhadores e 4 sua organizac&o como classe, no ja hoje cldssico texto de E. P. Thompson “A Formagéo da Classe Ope- réria Inglesa", que bem pode ser lido cono uma ontologia histori- ca_dos trabalhadores. Neste texto, Tiompson define sua tarefa como um estudo das formas do “fazer-se" da classe operdéria. 0 proletariado esta longe de ser pensado ali como uma unidede natu ralmen te dada. Assim, ele soma a analise das tecnologias de po- der a eles dirigidas um estudo de certos recursos - que segundo Foucault chamariamos de tecnologia do eu, ou de tecnologia de au- toconstituigéo - que alguns membros do proletariado ingles diri- giram a si mesmos com o aff de constituirem-se como verdadeiros agentes transformadores de sua dificil existencia. Assim, pouco a pouco, as escolas dominicais se converterao num refugio para suas leituras, multiplicar-se-&o os cafés de leitura, os clubes de discussio e debate, e as associagdes de compra e circulacdo de periddicos radicais. Thompson esta longe de pensar numa natureza humana que as forgas da burguesia “reprimiriam”, © @ por isso que pode dirigir seu olhar a esses processos de autoconstituigao pe~ los quais certos individuos se propden melhorar suas vidas Seguindo Foucault, falar{amos de “tecnicas que permitem os individous efetuaren, por seus préprios weios, um certo numero de operagtes sobre seus préprios corpos, suas proprias almas, seus préprios pensamentos, sua propria conduta e o fazem de modo que transformam eles prépri » hodificando-se para aleangar certo grau de perfeigdo, felicidade, pureza ou poder” (2) a Adquire, ent&o, alguti sentido olhar em retrospectiva para aquelas tecnologias do eu que certos trabalhadores do séoulo XIX dirigiren a si. Ac mesmo tempo, deverenos retificar certo equj- voco corrente entre alguns comentadores de Foucault. Eles insis- tem em limitar o alcance das investigagées éticas deste autor ao mundo dos privilegiados, dandys, elites governantes, aristocvacia ateniense que parecem ser os tinicos habilitedos para exercer um “euidado de si". Com efeito, a viagem de Foucault 4 Grecia pode ser lida como uma tentative para encontrar nas tecnologias do eu modos de produeio da subjetividade alheios aqueles que caracteri- gam o disgrama disciplinar. Contudo, isso parece estar condicio— nado por um fato: aqueles que exerciam esse “cuidado de si” erem membros de grupos politica e economicamente privilegiados dentro do diagrama de poder no qual habitavam. Ao contrério, as perso- nagens que povoardo este trabalho nfo gozavam de nenhum privilé gio ou prerrogativa. E por isto que nos permitem pensar na pos- sibilidade da constru¢do de uma existéncia estética também em um horizonte de pobreza, analfabetismo ou, inclusive, reclusic. Mas também nos p ermitem pensar que a condigo de possibilidade inelu- divel de uma existéncia estética é a afirmac&éo de uma existéncia auténoma. a UMA NOVA ESTRATEGIA DE INTERROGACKO FILOSOFICA Gostariamos de comegar este trabalho recordando uma entre- vista que Foucault concedera a Dreyfus e Rabinow onde definiu seu empreendimento filoséfico como uma “ontologia histérica de nos mesnos". Ali dizia que tinha tentado tragar trés tipos de anali- ses ontoldgicas em relagd&o aos sujeitos e aos dominios de subje- tivasio. Aquele que foi considerado como o teérico do poder dira de si mesmo: “ndo é o poder, mas o sujeito aquilo que constitui o tema geral de minhas investigagoes”. Dupla estranheza. O mesmo autor que proclamou nos melhores tempos do humanismo a iminéncia da norte do homem, manifesta seu interesse pelos sujeitos. ‘Aque- le que se opusera a toda leitura meta-histérica, a toda abordagem metafisica, prefere definir seu empreendimento teérico como uma ontologia. Gostar{amos de mostrar que, contudo, ao falar de seu projeto ne: tes termos, Foucault n§o faz mais do que levar até 0 limite as problematizagdes que foram jé o suporte teérico de suas andlises arqueologicas. A partir dai, o trabalho teérico de Foucault pode ser carac- terizado como uma interrogacéo filoséfica que, valendo-se da his- téria, propde-se a tragar a cartografia das relagdes de forea que, num momento histérico preciso, possibilitaram a emergencia deste nés que somos. Esta interrogegio adota o caréter de uma desnaturalizacso daquilo que em nosso presente se apresenta como evidente. Una eventualizacéo que possibilita a construg&o do que se poderia chamar de uma ontologia do presente ou ume ontologia de nis mes mos. Sua importancia esta naquilo que nos ensina a respeito des- tes habitantes do presente que somos nds mesmos. Em “O que @ a 12 Ilustrac#o 7", Foucault se referira a esta opedo tedrica, dizendo que: "a escolha que nés enfrentamos atualmente ¢ a seguinte: ou optar por uma filosofia critica que aparecera como uma filosofia analitica da verdade em geral, ou optar por um pensamento critico que adotard a forma de uma ontologia de nossa atualidade.” (01) Decretada a morte daquilo ao qual os fildsofos tém chamado de “homem", 6 este nés que somos e este presente que nos constitui o que vai se converter em objeto de um novo interrogar filoséfico. Podemos definir nesta estratégia de interrogag&o filoséfica nesta ontologia de nossa atuslidsde, uma nova tarefa do intelec tual. A partir dai, a velha func&o profética que o caracterizava deixard lugar para a conformacdo de um “intelectual destruidor de evidéncias ¢ de universalismos". Contra o profeta que quer ensi- nar-nos o que deveria e o que dever4 ger, @ contra o apélogo que quer nos persuadir daquilo que 6, esse novo intelectual tem a funefo de assinalar que aquilo que é, bem poderia no ser; e que é possivel continuar pensando diferentemente do que se pensa Com efeite, Foucault pergunta em "O Uso dos Prazeres": “0 que é filosofar hoje em dia, isto €, oque é a atividade filoséfi- ca senéo o trabalho ecritico do pensamento sobre o préprio pensa- mento? Se néo consiste em tentar saber de que modo e até onde se~ ria possivel pensar diferentemente em vez de legitimar o que 34 se sabe" (02). E que, se ests forma especificamente filoséfica de interrogacéo faz uso da historia, néo € com a finalidade de direcionar o futuro, mas com a pretensio de abrir futuros possi-~ veis, de “liberar o pensamento daquilo que ele silenciosamente pensa e permitir-lhe pensar diferentemente” (03). En “A Arqueologia do Saber", Foucault afirma que, em vez de nos atermos 4 constatacéo da “nossa idcutidade pelo jogo das dis tinedes", precisamos estabelecer: 13 que somos diferenca, que nossa raziio é a di- ferenga dos discursos, nossa historia, a di- ferenga dos tempos, nosso eu, a diferenea das mascaras. Que a diferenga, longe de ser a origem esquecida ¢ recoberta, é esta disper- s& que somos © que fazemos. (04) E neste espago da diferenca que a ontologia de nés mesmos deve ser pensada, Assim, o uso filoséfico que Foucault faz da histéria tem uma neta: permitir-nos pensar de outro modo nosso presente. Neste sentido, a tarefa de Foucault pode ser pensada como uma tentativa permanente para deslegitimar o presente valendo-se da historia, como um esforgo por tornar problematico e nao forgo- samente necessdrio aquilo que se supée “natural”. Tal como afir- ma Paul Veyne: “a intuig&o inicial de Foucault (...) é a rarida- de: os fatos humanos s&o raros, néo est&o instaledos na plenitude da razio (...) porque o que € poderia ser distinto” (05). Assim, poderiamos dizer que & “eventualizagao" ou a proble- matizacio fonleaultiana sobre o presente, ao se interrogar pelas condigées de possibilidade do que nos é dado, move-se na mesma diregdo em que o faz a dedug&o transcendental kantiana em relagéo as categorias, mas o faz num sentido inverso. Esta ultima parte do que 6 0 caso (os modos de predicagao que de fato utilizamos) e tenta legitimé-la em virtude de sua pretendida necessidade. A eventualizagio, ao contrério, parte do dado e tende a mostrar sua contingéncia, sua prescindibilidade. A tarefa de “eventualizar” conduz a “deixar de ser ingénuo e compreender que o que é poderia néo ser”: faz-nos ver que “o real esté rodeado de uma zona indefinida de co-possiveis niio realiza~ dos" (06). Em suma, a tarefa de eventviligzar tem a peculiar vir- tude de desalentar qualquer atitude de estdéica aceitagio diante daquilo que o presente nos impde, Aquilo que poderia ndo ter si- 14 do, poderia muito bem deixar de ser. Esta dimens&o politica da interrogagio filoséfica é soliddria com o uso que faz da histé- ria. Tal como se afirma em "Njo 90 Sexo Rei": “a questuo da fi- losofis se refere a este presente que é o que somos, Por isso, a filosofia é hoje inteiramente politicsa e totalmente historiado- ra. Ea politica imanente @ histéria e a histéria indispensavel a politica" (07). Com relagio a esta dimensio politica do uso filoséfico da histéria, Foucault.dira, em uma de suas Ultimas entrevistas, que ele trabalha com processos e personagens obscuros por duas ra- zoes: Os processes politicos e sociais que estrutu- raram as sociedades européias ocidentais n&o so muito claros, tém sido esquecidos e foram convertidos em habituais, tomam parte de nos— sa paisagem mais familiar e nio os vemos. Mas, no seu dia, a waioria deles escandalizou as pessoas. Um de meus objetivos é€ mostrar que muitas des coisas que tomam parte dessa paisagem - as pessoas pensan que sao univer- sais - nfo sio mais do que o resultedo de al- gumas mudSngas histéricas muito precisas. To- das as minhas andlises vaéo contra a idéia de necessidades universais na existéncia humana Mostram a arbitrariedade das instituigses e mostram qual é 0 espaco da liberdade de que, ainda, podenos desfrutar e quais mudangas po- dem ainda ser vealizadas. (08) Para nosso autor, "a historia se converte em historia do que os homens tém chemado de verdades e das lutas que se travaram em torno delas" (09), a partir do momento em que é também através destes verdades e destas lutas pontuais que os homens se consti- tuem. 0 interrogar foucaultiano dirigir-se-a, de modo privile~ giado, a estabelecer as condigdes materiais e discursivas a par- tir das quais foram produgidas e objetivadas certas formas de subjetivaedo. 0 sujeito, em seu duplo cardter de objeto para o pensemento e de agente do conhecer e do fazer, aparece como o es- 15 Pago privilegiado de andlise. Ao falar de uma ontologia histérica de nés mesmos, Foucault marca um duplo deslocamento em relagio ao pensamento classico Com efeito, a simples colocacio de uma “ontologia” dos sujeitos supde que haveremos de nos perguntar pelos mecanismos e princi- pios que regen a constituic&o dos mesmos. O sujeito é destituido de seu lugar privilegiado de fundamento constituinte e passa a ser problematizado como se fosse um objeto a ser constituide. Mas, a0 dizer aue esta ontologia 6 histérica, Foucault esta nos advertindo para n&o confundirmos essa interrogagHo com uma nova pergunta metafisica. Para essa nova e peculiar ontologia, os su- jeitos s&o efeitos ¢ produtos singulares de certos dispositivos histéricos e¢ concretos de poder e de saber. Em poucas palavras nosso autor ndo se perguntara pelos principios constitutivos de ump natureza humana transhistérica, mas pelos modos de produgdo des: identificamos. es artificios que denowinamos “sujeitos” e com os quais nos Para entender a que nos referimos, pensemos num exemplo pri- vilegiado como é 0 sujeito gnoseologico. A respeito disto, em “A Verdade e as Formas Juridicas", Foucault diz que : Faz dois ou trés séculos, a filosofia ociden- tal postulava implicita ou explicitamente sujeito como fundamento, como micleo central de todo conhecimento, como aquile en que n&o sé se revelava a liberdade mas que podia fa- zer eclosdéo @ verdade (...) atualmente, quan do se faz historia, atemo-nos a esse sujeizo de conhecimento e representagio como ponto de origem a partir do gual é possivel o conheci mento e a verdede aparece. Seria interessan- te ver como se produz, através da historia, constituigéo de um sujeito que n&o é dado de antem&o, que nao é aquilo a partir do que 4 verdade se da na histéria, mas de um sujeito que se constituiu no interior mesmo desta c que, a cada instante, é fundado e refundado por ela. (10) 16 Desembaragar-s: do sujeito como nucleo central de todo co~ nhecer e de todo agir sera o maior objetivo teorico proposto por Foucault. Inserever, no lugar desta certeza ancestralmente legi- timada, a problematizag&o e o questionamento. Interrogar-se, en- fim, pelas condigdes que possibilitaram a constituigio de deter minades formas de subjetivacéo. Perguntar-se pelos principios ja néo universais, mas historicamente circunscritos, de constituicéo dos sujeitos que passam agora a ser objetos de um interrogar on- tolégico. Entendamos aqui esta ontologia no sentido restrito de una teoria dos objetos preocupada em estabelecer as condigées ndo l6gicas nem psicolégicas, mas histéricas que possibilitaram a construgdo dos objetos. Contudo, dizer que o sujeito foi e esté sendo constituido nio significa sugerir sua sujeicHo a uma série de determinagoes que, & partir do exterior, limita-lo-ia. Foucault se opde, neste sentido, a hipdtese realista que afirma a existéncia de um sujei- to que,por direito préprio, estaria aberto 4 verdade e que pode- ria agir de acordo com ela, a no ser por um elemento negative - © ideolégico - que obscureceris uma supogta transparencia entre o sujeito e a verdade. Foucault quer, em troca, mostrar qu As condicdes politicas e sociais de existén- cia ndo sfio um véu ou um obstaéculo para o su- jeito de conhecimento, mas aquilo através do qual se formam os sujeitos de conhecimento e, consequentenente, as relagées de verdade. So pode haver certos tipos de sujeitos de conhe- cimento, ordens de verdade e dominios de sa~ ber, a partir de condigdes politicas que s%o como o solo no qual se formam os sujeitos, os dominios de saber e as relagdes com a verda~ de. (11) Para Foucault, o sujeito, como os entes em geral, resiste a ser pensado cono principio de constituiy#o, como fundamento ne no os entes em geral, também ao sujeito sera preciso designar uma a7 estratégia histérica de constituigao. E se este autor nos fala de una ontologia histérica de nés mesmos nfo é porque ele pretenda simplesmente fazer do sujeito um objeto a mais entre outros, mas porque vislumbra a possibilidade de submeter o sujeito ao mesmo interrogante ao qual o pensar filoséfico submete as coisas em ge- ral, ao interrogar por aquilo que 0 constitui como sendo tal. Neste marco, ficario isolados trés dominios de andlise em relagio aos quais pode ser lido o corpus de textos foucaultianos: (a) Uma ontologia histérica de nés mesmos com relac&o & verdade através da qual nos constituimos como sujeitos de conhecimento. (b) Uma ontologia histérica de nos mesmos relacionadas a um campo de forcas através do qual nos constituimos como sujeitos que sagem uns sobre outros. (ce) Uma ontologia histérica de nés mesmos relacionada com a ¢ti- ca, através da qual nos constituimos como agentes morais. (12) Trata-se de empreender um estudo essencialmente filosérico, que, fazendo uso da histéria, pretende levantar trés grandes pro- blemas tedéricos: o da verdade, o do poder e o da conduta indivi-~ dual. Problemas que giram em torno de uma interrogacio referida gos modus de subjetivacio. Lembremos agora que Kant, no seu "Tratado de Logica", dira que a filosofia da origem as seguintes questdes: “1) 0 que posse saber?; 2) 0 que devo fazer?; 3) 0 que se pode esperar? e 4) 0 que 6 0 homem?". Afirma imediatamente que “a metafisica responde & primeira pergunta, a moral a segunda, a religifio a terceira ¢ a antropologia 4 quarta. No fundo ~ diré - todas poderiam ser res~ pondidas pela antropologia, posto que as trés primeiras questbes se reduzem a uitima” (13). 18 Os interrogantes de Foucault sao, segundo Deleuze, “eviden- temente confrontaveis com os trés problemas kantianos" (14), sos quais Foucault se referiu em “As Pavaras e as Coisas". Trata-se de uma tripla interrogag&o que pode ser resumida nestas breses perguntas: o que posso saber?, 0 que posso fazer? e © que sou enquanto agente moral?. Assim, a pergunta “o que posso saber?" ou “o que posso enunciar e ver em tais condigdes de luz e de linguegem?” (15) sera respondida a partir das andlises arqueo- légicas que se propdem a delimitar aquilo que é@ possivel ver ¢@ dizer numa formagéo histérica determinada. A pergunta “o que pos- so fazer?" ou “que poderes reivindicar e que resisténcias opor- lhes? (16) serd respondida a partir da genealogia que se propde a determinar as configuragées de saber-poder gue caracteriza um momento histérico preciso. Por ultimo, & pergunta “o que posso ser?” ou “sob que condigdes me constituo como agente moral?” sera vespondida pela ética, Neste sentido, Foucault se propos a ana- lisar a sexualidade como uma experiéncia historicamente singular atendendo “sos trés eixos que 5 constituem: s formagdo dos sabe ves que a ela.se referem, os sistemas de poder que regulam sua prétiea e as formas pelas quais os individuos podem e devem reco- nhecer-se como sujeitos dessa sexualidade" (17). Estas questdes n&o encontram um ponto de convergéncia numa pergunta antropoldgica como a formalada por Kant. Pelo contra rio, a interrogacio ontoldégica relacionada com esse nés que somes mantén e¢ afirma a heterogencidade destas questdes. A verdade, o poder e a conduta individual née encontram no homem seu fundanen~ to, na medida em que é no jogo que se treve entre ss relagdes de forea, as formas plurais de saber ¢ as relagdes do “eu” com ele préprio, que os sujeitos somos constituidos 19 Se, em Kant, as trés primeiras perguntas podem se redugir & quarta, é porque 0 sujeito 6, ao mesmo tempo, fundamento e garan- tia do conhecer, do agir moral e também daquilo que na ordem da religiao se pode esperar. Foucault opera aqui uma inversao: em lugar de procurar no homem o ponto de origem e garantia do conhe- cer e do agir, ele afirmara que o proprio sujeito é uma produgdo. Ai, mais do que operar uma redugdo a uma pergunta antropoldgica, © que se afirma é uma dispersdo interrogativa que adota a forma de uma “ontologia histérica de nos mesmos". Miguel Morey, prolo-~ gando o “Foucault” de Deleuze, diz-nos: Aqui as perguntas se mantém em seu proprio espago de heterogeneidade, sem se deixarem reduzir como em Kant a uma ultima questo (o que é o homem?) da qual dependeriam, de certo modo, todas as demais. Agora, as trés per- guntas nio remetem a um Gltime dominio dentro de cujos limites residiria a verdade, mas, ao contrério, abren uma dispersio interrogati- va. (18) Ao interrrogar-se sobre as mijltiples formas historicas de constituigio da subjetividade naqueles espagos onde o sujeito aparecia como fundamento, Foucault substituira a pergunta pele origem propria de um penser essencialista por uma dispersaéo in- terrogativa interessada em estabelecer como se constituem histo~ amente os dominios da subjetividade. Esta disperséo € solidé- ria com uma eventualizaedo do sujeito, com um esforeo por dissi- per esses evidéncias que supdem uma relac%o analitica entre o su- jeito ¢ © conhecimento, ou entre estes sujeitos que somos © cer~ tas condutas que se supdem iméveis. Podemos falar de uma eventualizacio do snieito a partir do momento em que a ontologia histérica de .nés mesmos, da qual fala Foucault, supde: (a) Uma rupture com aqnelas evidéncias p lss qusis se poderi afirmar um sujeito de plena consciéncia como fundamento do conhe- cer © do agir. 20 (b) Uma desmistificacio causal, na medida em que o sujeito ja nao é tomado como uma causa natural e necessa@ria, mas sim como um evento a respeito do qual se deverg construir um “poliedro de in- teligibilidade” multiplicando os interrogantes a ele relaciona- dos. (c) Uma oposiedo as andlises histéricas que supéem a unicidade e a a-historicidade do sujeito, substituindo-o por um estudo desse “polimorfismo de relagdes de forga” (19) que o atravessa ¢ 0 constitui. Assim, ao ler retrospectivamente seus textos como parte de uma ontologia histérica, nosso autor podera afirmar que “preten— de-se elaborar uma historia dos distintos modos de subjetivagéo do ser humano en nossa cultura” (20). Diganos que esse interrogantes ontoldgicos se mantém dentro do espaco em que a “Arqueologia do Saber” colocava a questo do sujeito, ainda que aqui se avance um pouco mais em relagio as andlises das modalidades de enunciagio, onde Foucault se preccu- pou la. Até ali se tratava de enaliser a diversidade do sujeito ex- m 8 multiplicidade de posigdes possiveis do sujeito que fa- clusivamente em relagdo as praticas discursivas. A quest&o fun- damental para uma andlise do diseurso: “quem fala?", Foucoult soube responder a partir de uma perspectiva no antropologica. Como ele afirma: Na andlise proposta, as diversas modalidades de enunciagéo, em vez de remeterem as sinte~ ses ou @ fungio unifiesdora do sujeito, mani- festem sua dispersio. Aos diversos estatu- tos, as diversas localizagées, as diversas posigées que este sujeito pode ocupar ou re~ ceber quando profere um discurso. E se esses planos est&o ligsdos por un sistema de relo~ cées, tal sistema nio é estabelecido pela atividade sintética de uma consciéncia iden- tica asi mesma, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prg- tica discursiva. (21)

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