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Eorror ‘Marcos Marcionilo ConsetHo EoironiaL ‘Ana Stahl Zilles (Unisinos} ‘Angela Paiva Dionisio (UFPE} Carlos Alberto Faraco [UFPR] Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP] Gilvan Miller de Oliveira [UFSC, |pol} ‘Marcos Bagno [UnB} ‘Maria Marta Pereira Scherre (UFES} Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP] Roberto Mulinacci (Universidade de Bolonha} Roxane Rojo (UNICAMP] Salma Tannus Muchatl [PUC-SP} Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB] Audrei Gesser LIBRAS? que lingua é essa? CRENCAS E PRECONCEITOS EM TORNO DA LINGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA Surdo, surdo-mudo ou deficiente auditivo? Sobre essa questo terminol6g de se posici vem nos cursos de LIBRAS qu stram para ouvintes: Essa de dizer que surdo néo fala, que é mudo, estd errada. Eu sou contra porque tem preconceito.océs sabe As falas acima caminham no trilho que rejeita a ideologia do: te vinculada aos esteredtipos que constituem o poder e o saber clinico (Lane, 1992), e mostram outro lado da discussao: 0 reconhecimento da dimensao politica, lingufstica, social e cultural da surdez, e que a nomea- ‘s40 surdo, apropriadamente, conota: ‘A deficiéncia é uma marca que historicamente nao tem pertencido aos sur- dos. Essa marca sugere autorrepresentagdes, politicas e objetivos nao fami- res ao grupo. Quando os surdos discutem sua surdez, usam termos pro- fundamente relacionados com sua lingua, seu passado, e sua comunidade (Padden & Humphries, 1988: 44), Pensar tais termos é de suma importancia, uma vez que eles tém im- Plicagées cruciais para a vida dos surdos (Gesser, 2006, 2008). E disso que fala Laborrit (1994), quando diz: . Recuso-me a ser considerada excepcional, deficiente, Nao sou, Sou surda. Para ‘mim, a lingua de sinais correspond minha voz, meus olhos sia meus ouvi- dos. Sinceramente nada me falta, 6a sociedade que me torna excepcianal. Infelizmente, o povo surdo tem sido encarado em uma perspectiva exclusivamente fisiolégica (déficit de audiga0), dentro de um discurso de normalizacao e de medicalizacdo, cujas nomeagées, como todas as outras, imprimem valores € convengées na forma como 0 outro é significado e representado. Cabe ressaltar, por outro lado, que nao é apenas a escolha acertada de um termo que elimina os preconceitos sociais. Os preconcei- tos podem estar disfargados até mesmo nos discursos que dizem assumir a diferenca e a diversidade’, Mas 0 deslocamento conceitual é preciso e lurgente, e vem ocorrendo em primeira instancia na reflexdo e problema- tizacdo dos conceitos de que fazemos uso a0 nomear o outro. Afinal, como argumenta Skliar (1997: 33) “a construgao das identidades nao depende da maior ou menor limitaco biol6gica, e sim de complexas relagdes lin- guisticas, histéricas, sociais e culturais”; ou, como bem expressa Laborrit sobre a sua condic&o, “é a sociedade que me torna excepcional’ ‘Peter McLaren (2000), em sua obra Multiculturalismo critic, versidade ou diseurso da smenta que os termos di- ferenga podem estar sendo melindrasamenteutilizados nos tempos, atuals para encobrir uma ldeologia de assimilagdo que esté na base do diseurso do "multicult ralismo conservadar e corporativo’ O intérprete é a ‘voz’ do surdo? O intérprete tem tido uma importancia valiosa nas interagdes entre surdos e ouvintes. Na maioria dos casos, os intérpretes tém contato com lingua de sinais a partir dos lagos familiares e da convivéncia social com vizinhos e amigos surdos (ocorrendo geralmente em espacos escolares josos). No Brasil ainda nao ha tradigo na profissio ou formacio especifica para esses profissionais?, da mesma forma que ha para intér- pretes de linguas orais de prestigio como, por exemplo, intérpretes de lingua inglesa e francesa. No caso da LipRAs, a interpretagdo ocorre geralmente de maneira informal, em momentos em que o surdo est interagindo com outros in- dividuos que nao dominam/conhecem a lingua de sinais. Nesse cendrio, observa-se que a maioria dos intérpretes brasileiros tem desenvolvido sua proficiéncia ea habilidade de interpretar a partir, digamos, de uma situagao de “emergéncia’ comunicativa na interagao surdo/ouvinte. Afirmar que 0 stirdo precisa de intérprete em espacos institucionais em que as pessoas ‘nao falama sua lingua ja é um direito reconhecido pela Lei n? 10.436, apro- vada em 24 de abril de 2002, Entao, escolas, universidades, reparticoes piiblicas, tribunats, hospitais etc. devem atender essa populagio espectfi- ca assegurando-Ihe o seu direito linguistico de poder ser assistido em sua prépria lingua. Por outro lado, retomando a afirmagio compartilhada pelo senso comum de que o intérprete é a ‘voz’ do surdo, pode-se encobrir uma crenga de que o surdo nao tem lingua, ¢ isto, sabemos, nao é verdade. O surdo vive no siléncio absoluto? Muitos ouvintes téma crenga de que estar em um contexto de surdos 6 entrar em um contexto silencioso. Isso se dé porque a concepsao de lin- * A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),em parceria com outras 14 instituies brasileras, passou a promover, em 2008, 0 primeiro curso de bacharelado para a formaro sRas/portugués na modalidade de educaglo a distancia. As ges parceiras slo: UFBA, UFC, UNB, CEFET/GO, INES/R], UFRGS, UFPR, UFMG, UFES, UNICAMP, UEPA, UFFE, UFGD, CEFET/RN, gua est, do ponto de vista dos ouvintes, culturalmente conjugada ao som, afinal, como me disse uma das ouvintes em conversa pessoal, “os surdos falam com as méos ¢ as maos néo fazem barutho, néo emitem so Por definigao, barulho é a auséncia de siléncio; é um rufdo ou som actistico perceptivel aos ouvidos. Para a cultura surda, todavia, o barulho e © silencio adquirem novas versdes. Em uma conversa com um colega sur- do, pude compreender um pouco essa nogao a partir da perspectiva surda. Relatou-me que quando est em uma comunidade com/entre surdos, e se todos esto usando sinais a0 mesmo tempo, tem a sensagao de “barulho” muito grande, afinal, diz ele, “ouco com os olhos’, e o mesmo também proce- de quando esté em uma multido de ouvintes que falam a lingua oral. 0 “ba- rulho’, neste tiltimo caso, é perceptivel a visdo do surdo através da dindmica dos objetos e das pessoas, manifestada, por exemplo, em forma de movimen- to, conversas paralelas, risos, expresses facial, corporal e manual. Poderia- ‘mos, entdo, nos referir a uma espécie de rufdo visual (Gesser, 2006), pois 0 surdo pode nao saber o que est sendo falado, mas percebe visualmente a movimentagao das pessoas através da visdo. Isto porque os sons extrapolam sua caracteristica fisico-actistica e adquirem significados culturalmente re- lacionados. 0 som de uma tossida, por exemplo, pode ser, segundo Paden & Humphries (1988: 92) “um espontaneo produto de limpeza da traquéia, ou pode ser uma forma de indicar reprovago, ou para dar um sin: ficado é culturalmente construfdo, e cada cultura organi diferentemente. Assim, “o som néo tem um significado inerente, mas pode ter uma mirfade de interpretacdes e selegdes”, Essas convengées culturais so aprendidas e construfdas dentro das nossas praticas cotidianas, Aprender a Ifngua de sinais, fazer parte das comunidades surdas, es- ‘ar em contato com o mundo dos surdos, por exemplo, sio iniciativas que podem nos fornecer subsfdios para compreender melhor as questdes de- ineadas. Na cultura surda, o barulho/som tem outros significados — é 0 aso da luz que acende quando a campainha toca em sua casa, a vibragao to despertador colocado embaixo do travesseiro (Lane, 1984), ou mesmo os rufdos acitsticos percebidos através dos aparelhos auditivos para sen- ir o som da campainha da porta, do telefone, da ambulanci ‘As pessoas surtias constroem seu mundo em torno dos dispositives do movimen- to, forma esom..A vida dos surdos esté longe de ser sllenciosa, mas muito cheia de cliques, zunidos, estalos e grunhidos (Padden & Humphries, 1988: 109). Para muitos ouvintes, é sempre um estranhamento muito grande quando um surdo diz, por exemplo, que gosta de “ouvir” mésica. Isso ocorreu comigo, quando tive a oportunidade de conviver com surdos americanos na Universidade Gallaudet, nos Estados Unidos: Hoje passei por uma situagdo constrangedora, Estévamos todos reunidos em uma sala de estar. Havia muitas conversas animadas entre os surdos, todas se divertiam e contavam um pouco da sua vida, de suas hist6rias. Quando che- {gow a minha vez, uma surda americana pediu-me para falar um pouquinko do Brasil, das pessoas, da cultura. Ainda com certa dificuldade para me expres- sar na Itngua americana de sinais,falei sobre alguns lugares bonitos, sobre 0 lima tropical e sobre a comida caseira de que eu sentia falta. Tinka mais fa- cilidade para entender os sinais americanos, entio vi, paralelamente, alguém falando do carnaval, das dangas, das mulatas, das praias. Esses comentérios do corriqueiros e inevitdvets quando um brasileiro “pinta” na drea. Ainda assim, esperei que algum tipo de pergunta fosse dirigido diretamente a mi endo demorou muito, um deles indagou: como se danga samba? No impulso, Jmediatamente respond que no poderia mostrar porque nao tinha a misica Entdo ele disse para eu fechar os olhos e imaginar a misica. Imaginar a mii ca? Como assim? Claro, eu deveria recorrer & minha meméria actstica.. enti uma limitago muito grande e vio quanto dependo do som da mitsca para sdangar: Conversa vai, conversa ver, um surdo me tirou para dangar: Fiquel constrangida. Havia miisica no ambiente, mas por saber que era surdo e nao ‘ouvia, preconcettuosamente achei que ele no seria capaz de seguir 0 ritmo ‘da misica, Alguns colegas surdos brastleros j6 tinkam me falado sobre a re- lagdo que os surdos estabelecem com a miisica. Ouvi varios relatos dos surdos dizendo que eles gostam de dangar e tal. Mas foi convivendo em um contexto de imersdo com os surdas nesse ambiente universitario, e experimentando com eles essa situacéo, que construf meu entendimento sobre como eles con- cebem a miisica eo ritmo: através da vibragéo, através da observagao da mo- vimentagio dos outros individuos, através do contato corporal com alguém que Ihes guile o ritmo, e assim por diante, Tal como nds, ouvintes, os surdos distinguem ritmos e géneros musicas... (Dkirio retrospectivo, 2004). 0 que temos nesse relato é justamente uma faceta de como cada cultura lida com o som musical. Nas artes plasticas, também temos uma expressdo a esse respeito. 0 6leo sobre tela da artista surda Mary J. Thor- nley, intitulada Two Deaf Musicians, procura desconstruir a crenga de que 6s surdos nao entendem ou apreciam musica: As pessoas surdas apreciam miisica também; ndo é uma ‘coisa’ de ouvinte, ¢ apropriado ~ ¢ tardio ~ representar dots miisicos surdos cubfeamente friccio- nando com o arco em seus instrumentos. Como se pode ver, nao hd desvan- tagem na surdez quando se fala em co- municagao e em linguagem, visto que nao é a modalidade da ingua que de- fine se estamos em siléncio ou nao. Os surtios dangam, apreciam e ouve mé- sica a seu modo, tém sensagées de ba- rulho, constroem seus mundos e suas subjetividades na e através da lingua de sinais, enfim, concebem e redefinem seu mundo através da visdo. & uma crenga ‘equivocada pensar quea lingua de sinais sssurdos é uma lingua silente, ou que os surclos vivem no siléncio total. 1 | Thomey Two Deaf Msicns, 157 aby ate O surdo precisa ser oralizado para se integrar na sociedade ouvinte? Nao. A oralizago deixou marcas profundas na vida da maioria dos sur- s. Pode-se dizer que a busca desenfreada pela recuperagio da audigio e omogao do desenvolvimento da fala vocalizada pelo surdo so objetos € se traduzem em varios sentimentos: desejo, dor, privagiio, aprovaco, ressdo, discriminagao e frustragao. Essa historia dos surdos é narrada em sitos capitulos, e todos os surdos tém um fato triste para relatar. Ela traz squicios muito vivos dos traumas que alguns surdos viveram em tempos que a lingua de sinais foi violentamente banida e proibida. Oralizar é sindnimo de negacao da lingua dos surdos. f sinénimo de tregao, de imposigao de treinos exaustivos, repetitivos e mecanicos da a. A figura do adepto convicto do oralismo, Alexandre Graham Bell, por amplo, ganhou forga durante 0 movimento eugénico e, especialmente, famoso Congresso de Milo em 1880, durante 0 qual ele pregava que urdez era unta aberrago para a humanidade, pois perpetuava carac- icas genéticas negativas. Nesse cenério, internatos de surdos, casa- :ntos entre eles e qualquer tipo de contato eram proibidos, etal proibi- 40 foi entendida como uma medida preventiva, capaz de “salvar” a raga humana. Dado seu prestigio de homem brithante na sociedade da época, entende-se que Graham Bell contribuiu de maneira crucial para a negacao ea opressao da lingua de sinais. Por isso é rechagado com mais veemén- cia pela comunidade surda em todo 0 mundo, do mesmo modo como sao rechagados todos os que se inscrevem nessa filosofia, Ha um grande mal-estar impregnado na palavra oralizagiio. E nao po- dia ser diferente. Mas tomemos essa questao da perspectiva relatada por uma colega surda. Vou chamé-la de Paula. 0 irmao mais velho de Paula também 6 surdo, Paula me disse que, ao contrério da sua experiéncia com a surdez e com a lingua de sinais, a experiéncia de seu irmao tinha sido muito diferente. Ele foi oralizado, e ela nao. A ele foi negado, em muitas ‘ocasides e contextos, 0 acesso & lingua de sinais, vista como uma lingua perversa e inadequada. Mas sempre que ele estava com um grupo de ami gos surdos, os sinais eram naturalmente utilizados. Paula me contou que, quando ela nasceu, os tempos eram outros: seus pais jé respeitavam mais a lingua de sinais e também algumas escolas permitiam seu uso. Nessa historia, Paula nao foi oralizada como seu irmao, os dois so muito fluen- tes em L1pRas; contudo, enquanto Paula demonstra curiosidade em fazer treino labial e fono-articulatério, seu irmo — com o intuito de preserva- Jae protegé-la — tenta convencé-la a todo custo a desistir disso, porque “a lingua dos surdos fa lingua de sinais os surdos tém preconceito con- tra aqueles que querem ou gostam da oralizacao". Desenham-se af dois exemplos opostos, duas trajet6rias distintas no seio da mesma familia, Mas, o que é revelador nessas duas posturas sur- das? 0 irmao reage politica e ideologicamente a oralizagzio com base em sua experiéncia de vida, marcada pela discriminagao do uso dos sinais e pela valorizagao da leitura labial e da oralizagao. Ele sofreu muito nesse perfodo e, como nao tinha escolhas, a oralizagao Ihe foi imposta. Ja Paula, bem-sucedida nos sinais, aponta em seu discurso uma vontade de domi- nar, como o irmao, a leitura labial e a fala na lingua portuguesa, A irma nasce em um ambiente nada opressivo, tem no irméo um exemplo e um interlocutor com 0 qual se identifica por meio da lingua. Esse ambiente linguisticamente mais confortavel desperta em Paula a curiosidade e 0 desejo de participar de treinos fonoaudiolégicos.. £ recorrente ouvir, nos discursos mais extremistas, entretanto, que » surdo oralizado nao é “surdo de verdade”: “Surdo que é surdo defende e 6 usa a lingua de sinais’ Parece que, além de uma questo muito forte (e Jaturalmente compreensivel, dado que este é um momento de transi¢ao), 14 também imbricagées tanto de um discurso de contrarreacao (também lisseminador de preconceitos, ou seja, um tipo de preconceito as avessas) somo o de uma visdo essencialista em prol de um purismo linguistico e cultural surdo. A rejei¢ao da oralizagdo a todo custo por surdos mais po- itizados e militantes é mais uma discussdo politico-ideol6gica e definiti- ‘amente pertinente e importante para a visibilizagio da uipras. Contudo, sssumo, com a pedagoga surda Perlin’ (2004:72), que nao se trata de ser uurdo que oraliza ou néo, mas de “ser surdo em sua lingua e linguagem »r6pria’s nesse caso, ele pode optar por utilizar ow ndo a lingua portu- {esa para promover o intercambio cultural. Se respeitamos a lingua de Inais e 0 direito do surdo a ser educado em sinais, devemos também res- 2eltar 0 direito daqueles surdos que optam por também falar (oralizar) a ingua portuguesa. 0 perigo est quando certas decisées sto impostas, eas. mposigdes e opressdes, sabemos, vém de todos os quadrantes... O surdo tem uma identidade e uma cultura préprias? Sim. Esse discurso, alids, é muito disseminado pelos surdos e ou- intes em muitos ambientes sociais que discutem e articulam questées ‘roprias & area da surdez. Contudo, acrescentaria a asser¢o um plural, diria que somos permeados, sejamos surdos ou ouvintes, por miltiplas dentidades e culturas (Gesser, 2006: 136-144). No singular, a afirmagaio ublinha a ideia do purismo identitério e cultural, E é essa ideia que a esquisadora surda Karin Strobel acertadamente procura desconstruir uando fala de varias culturas surdas: Giacys Perlin é a primeira surda a obtero titulo de doutora no Bras Trabalha como pro- ssora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina no Centro de Educagio, sendo inte ‘ante do Grupo de Estudos Surdos (GES), TT Ao analisarmos sua histéria, vemos que a cultura surda foi marcada por ‘muitos esteredtipos, seja através da imposigao da cultura dominante, seja das representagdes sociais que narram o povo surdo como seres deficientes. Muitos autores escrevem Iidos livros sobre oralismo, bilinguismo, comuni- casio total, ou sobre os sujeitos surdos.. Mas eles realmente conhecem-nos? Sabem o que é a cultura surda? Sentiram na prépria pele como é ser surdo? Esta é uma reflexdo importante a ser feita atualmente, porque as metodolo- {las citadas ndo foram criadas peto povo surdo e sim por ouvintes. Nao digo que seja errado, 0 que quero dizer & que essas metodologias ndo seguem a cultura surda...0 que 0 povo surdo almeja realmente é a pedagogia surda. Para a comunidade ouvinte que esté em maior sintonia cam 0 povo surdo — 0s parentes, amigos, intérpretes, professores de surdos —, reconhecer a existéncia da cultura surda néo ¢ facil, porque no seu pensamento habitual acolhem o conceito unitério da cultura e, ao aceitarem a cultura surda, eles tem de mudar as suas vis6es usuais para reconhecerem a existéncia de vairlas culturas, de compreenderem os diferentes espagos culturais ob- tidos pelos povos diferentes. Mas nao se trata somente de reconhecerem a Aiferenca cultural do povo surdo, e sim, além disso, de perceberem a cultura surda através do reconhecimento de suas diferentes identidades, suas hist ras, suas subjetividades, suas linguas, valorizagdo de suas formas de viver de se relacionar (Entrevista concedida em 2 de margo de 2008 ao blog Vendto Vozes) [@nfase minha. Mas a afirmagao “o surdo tem unia identidade e uma cultura prépria” tem outra face que, a meu ver, é extremamente significativa no proceso de afirmasao coletiva de grupos minoritérios, que nao apenas se expri- aoe singular “uma mas também esté inscrita no adjetivo “prépria” “Cultura prépria” sugere a ideia de um grupo que precisa se distinguir da maioria ouvinte para marcar sua visibilidade, e a Gnica forma de obter Coesao é criada a partir de uma “pseudo” uniformidade coletiva. Em gran- de medida, funciona como “sobrevivéncia cultural” entre os excluidos desprovidos, portanto, de poder e voz’. £ muito comum e natural ouvir iscursos de oposigao as culturas ouvintes pregando a homogeneidade cultural surda. Esse 6, sem dtivida, um posicionamento essencialista que, Por sua vez, tem em vista a afirmagao, a valorizagao e o reconhecimento cultural, j4 que “é a coesdo, a uniformidade que dé ao grupo visibilidade, + Para o socidlogo francés Michael de Certeau (1994, 1996), as minoras, 050 cluldos ndo sio repositrios e/ou “consumidores" passivos nessa relago, pos s to & fazer reempregos ce imposipdes de forma a sobreviverem culturalmente, * Cftambém Homi Bhabha (1992), imidos e ex: mde ou seja, serve para que 0 grupo se autoconstitua como tal gracas a essa aceitagio dessa visio por parte de quem os exclui” (Gesser, 2006: 138). Interessante também pontuar essa questo nas artes plisticas, re- presentada no quadro pintado pela surda americana Ann Silver, do Deaf Identity Crayons: Then and Now, de 1999: Neste quadro, a a seu protesto e instiga-nos a refletir sobre a necessidade de deslocar a identidade cultural surda do viés pa- tolégico: Séculos atréis, ramos uma caixa de lapis, ndo seres humanos. Porque os pontos de vista médico e audiolégico tém nos impe- dido de ser vistos em um contexto linguis- tco-cultural, rétulos arcaicos tém sido co- lados a nossa lingua e literatura — alguns dos quais ainda existem neste dia e era (Ann Silver, 1999) ‘Ann Sez Deaf Monty yon: Then & Now (Ceayon ox Sere) 298 Os surdos, sabemos, tém caracteristicas culturais que marcam seu jel- to de ver, sentir e se relacionar com o mundo, e a cultura do povo surdo "6 visual, ela traduz-se de forma visual" (Quadros, 2002: 10). Todavia nao se pode criar 0 mito de que 0 surdo no compartilharia de outras culturas como, por exemplo, das culturas ouvintes. E isso — é importante que se diga — no os torna menos surdos. Afinal, como aponta de Certeau (1995: 233), a cultura é, gostemos ou nao, “o flexivel’; ela é produtiva, dindmica, aberta plural e est em constante transformacao, pois é construida acionalmente em tempos e lugares particulares. Utilizando metéforas, 0 historiador-socidlogo afirma que a cultura pode ser inventada ou criada da mesma forma que uma “planificagao urban{stica: capaz.de criar uma com- posigo de lugares, de espacos ocupados e espagos vazios, que permitem ou impedem a circulagio’, mas, ao se aproximarem os “habitantes’, todos 05 planos do urbanista so “perturbados" — "as maneiras de utilizar 0 es- aco” ou as maneiras como se faz uso cultural fogem a essa planificagao, Da mesma forma, a questo da identidade: Ela nao 6 um fenémeno unitério que contenha em si qualquer esséncia de- finit6ria, mas 6 uma construpdo feita em miltiplas diregées, diregdes estas muitas vezes contraditérias (Maher, 1996: 29). Qualquer tipo de averséo dos surdos as culturas ouvintes, espectal- mente nessa fase de transigao ede emancipacao politico-ideoldgica, é natu- ral e compreensivel, e os relatos hist6ricos se encarregam de mostrar como ¢ por que essa relagao é cheia de conflitos e tensdes. Mesmo que o discurso tual seja um discurso de “contrarreagao” ao grupo dominante (sociedade owvinte), todos nés somos perpassados e contaminados pelas culturas com as quais estamos em contato. Pensar o surdo no singular, com uma identi- dade e uma cultura surda, é apagar a diversidade e o multiculturalismo que distingue o surdo negro da surda mulher, do surdo cego, do surdo {ndio, do surdo cadeirante, do surdo homossexual, do surdo oralizado, do surdo de lares ouvintes, do surdo de lares surdos, do surdo gaticho, do surdo paulis- ta, do surdo de zonas rurais... (Skliar, 1998; Gesser, 2006, 2008). O surdo nao fala porque nao ouve? Crenga, Duas leituras podem ser inferidas dessa colocacao. Primeira, © que entendemos por fala. Historicamente, a lingua de sinais tem sido relegada a um estatuto de mimica. Vimos que a Ifngua de sinais recebeu, tardiamente, o reconhecimento linguistico na década de 1960. Nesse pe- rfodo, curiosamente, podem-se constatar resisténcias de alguns linguistas a reconhecer a legitimidade dos sinais, pois tradicionalmente a visio de lingua tem sido fortemente pautada por uma perspectiva essencialmente oral-auditiva, A sociedade, de modo ampliado, concebe fala com o sentido de produgao vocal-sonora. A verdade & que o surdo fala em sua lingua de sinais. E necessario, entretanto, expandir 0 conceito que temos de linguas humanas, e também redefinir conceitos ultrapassados para enxergar ou- tra dimensao na qual conceber a Iingua — o canal viso-gestual® A segunda leitura imbricada na afirmativa acima diz respeito & re- lacao que se estabelece com fala (agora no sentido vocal) e audio. Os surdos que tém perda auditiva profunda podem (se assim desejarem!) 5 Noam Chomsigr por exemplo, tem falado sobre a platicidade do cérebro para.afaculdade de linguager nos seres humanos, quando menciona as linguas de sinais dos surdos.O estudio sulsticatém feada restrtos aessa faculdade dentro so observa que os termos uilizados 15 gos vocais (Chomsky, 1995: 434). produzir fala inteligivel: basta estarem com seu aparato vocal intacto. A prova disso é o grande ntimero de surdos que falam a Ifngua majori oral, por exemplo. Para tanto, é necessario treinamento junto aos profis- sionais da fonoaudiologia. 0 grande problema herdado da filosofia ora- ta & 0 efeito colateral que se instaurou na comunidade surda, ou seja, © sentimento de indignag4o, frustracao, opressao e discriminagao entre usudrios dos sinais, uma vez que, durante as sessoes de fala e treinos re- petitivos pregados pelo oralismo do passado, a lingua de sinais foi banida € rejeitada em prol do uso exclusivo da lingua oral. O surdo tem dificuldade de escrever porque no sabe falar a lingua oral? Essa 6 uma crenga nociva ¢ levanta varias questées sobre as quais é preciso refletir. A primeira passa fundamentalmente pelo ensino. A es- crita é uma habilidade cognitiva que demanda esforco de todos (surdos, ouvintes, ricos, pobres, homens, mulheres... e geralmente é desenvolvida quando se recebe instrugo formal. Entretanto, o fato dea escrita ter uma relagdo fénica com a lingua oral pode e de fato estabelece outro desa- fio para o surdo: reconhecer uma realidade fénica que no Ihe é familiar acusticamente, Sio como simbolos “abstratos" para o surdo (Ahlgren, 1994). E nesse sentido que outra relacao é estabelecida. Na lingua portuguesa, hé também um fator emocional em jogo, que diz respeito a uma meméria muito negativa retratada a partir da exper éncia de varios surdos alfabetizados, Uma aluna surda contou que sempre que ela tem que escrever fica muito nervosa, tem vergonha de errar, re- siste, ndo tem prazer ao fazé-lo e sempre fica preocupada com as reacoes de quem vai ler o que ela escreve. Curiosamente, disse-me que a relagio com a lingua inglesa é diferente. Reconhece que sabe muito menos inglés do que portugués, mas que se sente mais & vontade para usar a lingua inglesa. Esse telato é representativo, em certa medida, dos traumas vivi- dos pelos surdos na aprendizagem do portugues. Sabe-se que os alunos ouvintes também tém algumas memérias negativas das aulas de portu- gués e dos momentos de escrita, entretanto, a imposigao do portugués a todo custo na escolarizagéo dos surdos tem varios significados, sendo 0 mais grave deles a negago da lingua de sinais na alfabetizagao. Com isso, era mesmo de se esperar que a experiéncia com a escrita da lingua por- tuguesa tivesse relagées diretas com o sentimento de impoténcia, baixa autoestima, ¢ aversio ao idioma. Outra questio séria, que se desdobra da crenga de que “o surdo tem dificuldade de escrever porque nao sabe falar a lingua oral’, tem a ver com ideais lingufsticos — ideais que rejeitam os varios falares das va- riedades desprestigiadas, dos imigrantes, dos indigenas e dos préprios surdos. Tanto o portugués escrito como o oral de que o surdo faz uso so estigmatizados, jé que nao atingem os ideais de lingua impostos por uma maioria de ouvintes (Gesser, 2006). Ainda que o surdo nao vocali- zasse uma palavra da lingua oral, ele poderia escrever bem o portugués como fazem muitos falantes de outras inguas estrangeiras, por exem- plo. Como disse anteriormente, a relacao que o surdo estabelece com a escrita da lingua oral é distinta, mas fazer da escrita e da fala uma coisa sé é, antes de tudo, uma justificativa para pasteurizar o idioma e discriminar a forma que cada um da A lingua que usa. E é na sala de aula, durante a escolarizagao, que é preciso rever essa relagdo entre Iin- gua falada e escrita, Inevitével nao fazer novamente um paralelo com a discussao de Bagno (1999: 49) quando ele desconstréi o mito “o certo & falar assim porque se escreve assim’: Bagno afirma a necessidade de os professores ensinarem a ortografia oficial aos seus alunos, mas a gra- matica normativa nao pode ser uma “aplicacao autoritéria, intolerante e repressiva’, pois ela ¢ um dos mecanismos responsaveis pela manuten- 40 do preconceito contra as diversidades lingufsticas, disseminando ainda mais a exclusio social em nosso pats, Seguindo 0 viés dessa mesma crenga, hé quem pregue que o surdo no aprende os contetidos escolares porque tem mais dificuldades que os ouvintes. Também irma gémea da crenga de que pobre tem mais dificul- dade de aprender do que rico, de que os bonitos sao mais inteligentes que 0s feios e tantos outros absurdos. Tenho que cair no lugar-comum para reforcar que nao se trata de dificuldade intelectual e sim de oportunidade. Oportunidade de acesso a uma escola que reconhega as diferengas lin- guisticas; que promova acesso a lingua padrao; que, no caso dos surdos, tenha professores proficientes na lingua de sinai zago na lingua primeira e natural dos surdos... que permita a alfabeti- O uso da lingua de sinais atrapalha a aprendizagem da lingua oral? Errado. Esse era (ainda é?) um pensamento muito disseminado pe- los oralistas convictos, Ora, a falta de interesse dos surdos na aprendiza- gem da lingua majoritéria oral tem estado intimamente relacionada aos castigos e punigées que a historia da educagao dos surdos se encarrega de narrar, As atividades arduas, desgastantes e intensas das sessdes de “treino” para aprender o idioma contrastam com o prazeroso e natural uso da lingua de sinais pelo grupo. O uso dos sinais sempre germina no encontro surdo-surdo e essa realidade faz com que os profissionais te- mam pelo “progresso” de seu trabalho, ou seja, acreditava-se (acredita- se?) que o treinamento de leitura labial e da vocalizagao pudesse ficar completamente comprometido (Lane, 1984; Padden & Humphries, 1988; Sacks, 1990), Colada a essa crenga, est também a ideia de que uma crian- a exposta a mais de uma lingua em sua infancia poderia comprometer a aquisi¢ao/aprendizagem de uma das linguas, em funco das interferén- cias, trocas e mesclas lingufsticas. Essas caracteristicas, ao contrario do que se pensa, so completamente naturais no repertério dos individuos bilingues, e muitos estudos que focam o fendmeno do bilinguismo descre- vem essa questo (cf. Grosjean, 1982; Romaine, 1995), As ages negativas quanto ao uso da lingua de sinais estiveram e esto, em grande medida, atreladas aos seguidores da filosofia oralista. Muitos pesquisadores tém abolido a visdo exposta, ao afirmarem justa- mente o inverso: é 0 ndo uso da lingua de sinais que atrapalha 0 desenvol- vimento ¢ a aprendizagem de outras Itnguas pelo surdo. Considerando-se que a relagao do individuo surdo profundo com a lingua oral é de outra ordem (dado que nao ouvem!), a incorporagao da Iingua de sinais é im- prescindivel para assegurar condigdes mais propicias nas relagées intra e interpessoais que, por sua vez, constituem o funcionamento das esferas O8.RDO ay cognitivas, afetivas e sociais dos seres humanos. Entdo, a aprendizagem da lingua majoritéria deve ser pautada no ensino formal em sta modali- dade escrita, 0 ensino da escrita para os surdos, entretanto, tem que ser, indiscutivelmente, promovido na Iingua primeira de sinais. Atualmente hd um consenso entre especialistas sobre o fracasso escolar em relagdo & aquisigo de conhecimento e ao desenvolvimento da linguagem (escrita) quando a lingua de sinais nao ¢ utilizada como lingua de instrugio’: Alunos que aprendem os conceitos académicos e as habilidades de letra- ‘mento em sua lingua nativa podem mais pronta e rapidamente transferir aquelas habilidades para uma segunda lingua, porque o conhecimento est embasado na lingua e esquema que eles compreendem (Cummings, 1979, 1981 apud La Bue, 1995: 207) 0 respeito a diferenca linguistica do surdo Ihe é garantido sé e se a educagao é feita em sua lingua natural. Todos os cidadiios devem ter 0 direito de ser edtucados em sua propria lingua (Hornenberger, 1998). Mas a questo é:a escola tem atuado de forma a garantir 0 acesso e 0 uso da lingua dos surdos, por exemplo, em seu ambiente escolar? O surdo precisa da lingua portuguesa para sobreviver na sociedade majoritaria ouvinte? Essa posigao foi defendida por uma professora de lingua portuguesa, embora muitos profissionais de outras areas também compactuem com essa visto. Nao hd nada demais nisso, se pensarmos que nosso idioma oficial 6 0 portugués e que, em tese, a populagao brasileira faz, uso dele e de suas variantes para poder ir e vir nas situagées cotidianas (familia, es- cola, trabalho..). O que hé de errado com a asser¢io, entao? Em primeiro lugar, parece ficar velado um discurso em pro! do monolinguismo, onde a diferenga ¢ a heterogeneidade linguistica sao malvistas. Além disso, no tocante & educagaio dos surdos, a maioria dos profissionais tende a acre- ditar que a lingua oral seja 0 meio lingufstico, relegando os sinais a um nandes (1989), Quadros (1997a/b), Souza (1998) e Botelho (1998) discor- sobre essa questio, plano secundario. Na verdade, 0 surdo nao “sobrevive” se Ihe for tirado 0 direito de usar sua lingua primeira em seus ambientes de convivio social. Tirar deles esse direito ¢ tolher-Ihes o prOprio direito de cidadania, As- sim, o mais coerente seria dizer que “é sem a lingua de sinais que o surdo nao sobrevive na sociedade majoritdria ouvinte”, pois é com e através dela que lhe é garantida a construcdo de conhecimento de mundo e, sobretu- do, a constituigao e o fortalecimento da identidade cultural surda (Perlin, 1988, 2000; Skliar, 1997). A lingua portuguesa tem, sim, um papel fundamental na escolariza- 0 e na vida cotidiana do surdo, da mesma forma que tem na vida de to- das as criangas brasileiras. Entretanto, a fala exposta acima de que “o uso da lingua de sinais atrapatha a aprendizagem do surdo da lingua majori- ‘aria oral” enaltece o desde sempre no contexto da surdez, isto 6, a énfase no ensino da lingua oral, geralmente ficando os sinais relegados ao plano inferior ou, ainda, A no aceitagao e a valorizagao da realidade bi/multi- lingue dos surdos. Afinal, bilingue ndo é somente aquele que domina duas linguas orais de prestigio, como o inglés e o portugués, por exemplo. Os surdos vivem uma situagao sociolinguisticamente complexa e sua condi: 0 de individuos bilingues Ihes era negada por serem tratados como “de~ ficientes’, expressando-se “em uma lingua que nao é reconhecida como Imgua (a ingua de sinais) e em um portugués (escrito e oral) que nao atinge as expectativas impostas e desejadas por uma maioria ouvinte” (Gesser, 2006: 51). Para dar conta das questées educacionais na formagao do surdo, inclusive a aprendizagem da Ingua portuguesa em sua modali- dade escrita, hd a necessidade de inverter a l6gica praticada até entio nos ambientes escolares e afirmar: “Os professores ouvintes de criangas surdas € que precisam saber a tipeas para poderem educé-las” Todos os surdos fazem leitura labial? Falso. Como foi dito anteriormente, a leitura labial e o desenvolvi- mento da fala vocalizada sao habilidades que precisam de treinos arduos e intensos para ser desenvolvidas. Todos os estudos referentes a leitu ra labial estéo vinculados aos treinamentos fono-articulatérios e 6 nesse sentido que poderfamos afirmar que nao se trata de uma habilidade natu- (0 suRD0 OF ral de linguagem, como € a habilidade para o desenvolvimento da lingua de sinais, por exemplo, Essa é, entretanto, uma crenga muito recorrente entre ouvintes, e vérios surdos com quem conversei relatam que uma das perguntas mais frequentes quando esto entre ouvintes que néio sabem sinais, em um primeiro contato, é se sabem ler os Alguns ouvintes fica desesperados quando vém falar comigo e vem que sou surda, Entao ndo sabem o que fazer ou o que dizer..Acho até engracado olhar 0 jeito de apavorado de alguns. Mas fico muito enfurecida quando me per- _guntam a toda hora se eu sei fazer letura labial... porque fico triste de saber que muitos nem sabem que o surdo usa lingua de sinais para se comunicar Dependendo do meu humor, digo que sei ler os ldbios, mas tem situagées que ‘comego a sinalizar em LiBras sem parar, e quando alguém fala a lingua oral comigo fago de conta que nao entendo nada (entrevista gerada em 2005)’. Ainda que a filosofia oralista tenha predominado na educagio dos surdos por muitos anos, hé uma variagao entre surdos mais habilidosos para leitura labial e outros nem tanto, Curioso, entretanto, é 0 jeito de- sengongado dos ouvintes quando dependem dessa forma comunicativa para travar uma conversa com o surdo: articulam exageradamente as pa- lavras, falam muito alto, quase gritando (nao esquesam, os interlocutores so surdos!), outras vezes soletram demasiadamente as letras e siabas.. Essas situagdes remetem-nos, por exemplo, as imagens de um turista em um pafs cujo idioma néo domina (que grita e fala pausadamente o seu préprio idioma acreditando que o estrangeiro possa decifré-lo). Por outro lado, essa imagem, nao se pode negar, é também ilustrativa de como o ser humano busca formas para estabelecer a intera¢ao com o outro. Uma ob- servasao importante: leitura labial é s6 um recurso utilizado em situagdes comunicativas emergenciais com os surdos. Se voce interage frequente- mente com os surdos a Ifngua de sinais 6 indispensével! *Relato feito em lingua de sinalsetraduzido para o portugués. exe A surdez “0 que importa a sutiez da ore, ‘quando a mente owe? A veradera surdez, a incuvel surdez,é a da mente” ‘Fexonso Buna, sudo ances, 1845) A surdez é um problema para o surdo? 4 duas grandes formas de conceber a sur~ dez: patologicamente ou culturalmente. Este livro adota uma postura contréria & medicalizagdo, concep¢ao segundo a qual © surdo é visto como portador de uma deficiéncia fisica, que precisa de recursos ou intervengoes ciriirgicas para se tornar “normal” e fazer parte do grupo majorité- rio na sociedade em que vive. Ver a sur- dez como um problema esté diretamente relacionado a visao patolégica. Esse é 0 discurso fortemente construldo € aceito pela maioria. £ importante frisar, todavia, que os surdos e ouvintes que usam e valorizam a lingua de sinais assumem uma postura positiva diante da surdez, Em algumas comunidades académicas norte-am nas, por exemplo, j4 é possivel observar uma autonomia identitéria, cul- tural e lingufstica, e, consequentemente, um senso coletivo eritico de que a surdez como problema é uma construgéo do mundo ouvinte (Wilcox & Wilcox, 1997). No Brasil, também ja é possivel ver mudangas nos dis- cursos de alguns familiares, educadores e mesmo profissionais da satide, A Universidade Federal de Santa Catarina, ao promover o curso pionei- ro Letras/u1pras, coordenado por Ronice Muller de Quadros, comesa a instaurar um polo académico de ensino superior feito por e para surdos, ccujas ages e afirmagées positivas trazem & tona outros discursos. Cientificamente, as priticas discursivas sobre a surdez, antes pratica- mente exclusivas da drea da medicina e da fonoaudiologia, tém sido desloca- das para as areas da educasio, da lingu(stica, da antropologia e da sociolo- gia. Uma entrevistada surda, por exemplo, discorre em uma de suas falas: A surdez um problema quando a sociedade passa a me ver como um problema. Quando tenho a oportunidade de interagir com pares que me identifico através da lingua de sinais, quando tenho a oportunidade de estudar em uma escola que utilize sinais, quando tenho meus direitos assegurados, me sinto apta e capaz, 0 “problema” expresso na crenga acima esté relacionado a dificuldade humana em aceitar e conviver com as diferengas. A surdez é muito mais um problema para 0 ouvinte do que para o surdo. A tentativa de domesticar 0 surdo, enquadrando-o nos moldes “ouvintistas”: (Humphries, 1975; Skdiar, 1998), mostra, no minimo, a fragilidade para lidar com o desconhecido, com 0 diferente. Paradoxalmente, nessa tentativa de enquadre, ficam também visiveis faces de um sentimento de autoafirmagéio ou, ainda, uma forma es- tratégica de encobrir um discurso em pro! da norma ideal e universal: Aalteridade do outro permanece como que reabsorvida em nossa identida- de ea reforga ainda mais; torna-a, se possivel, mais arrogante, mais segura e ‘mais satisfeita de si mesma. A partir desse ponto de vista, 0 louco confirma e reforca nossa razdo; a crianga, nossa maturidade; 0 selvagem, nossa ci zacdo; o marginal, nossa integracdo; o estrangeiro, nosso pais; e o det te; a nossa normalidade (Larrossa & Pérez, 1998 apud Skliar, 20 ‘Tajs relagdes so comparaveis também com as questies étnicas, cuja proximidade pée as identidades culturais em “xeque” e instaura o desejo desenfreado de assegurar um “ideal puro e universal” de raca e compor- tamentos humanos. Se ha um tipo de universalismo, o universalismo pos- sivel deve ser pensado como o proferido por Boaventura de Souza Santos, ou seja, “aquele que tenha como ponto em comum a dignidade humana’, A surdez é uma deficiéncia? Othada pelo viés cultural, definitivamente nao, A surdez nao é uma deficiéncia, Mas vamos refletir sobre essa questo comerando com a defi- ni¢&o encontrada no dicionario: ismo € um conjunto de representagbes dos ouvinte, a partir do qual o surdo esté obrigado a olhar-se narrar-se como sefosse owvinte” (Sklar, 1998: 15) surder s.f.sur-der, Estado de quem 6 surdo, isto 6 nfo ouve nada. A surdez é uma deficléncia fsica que impede a pessoa de ouvir (Biderman, 1998: 880), deficiéncia sf, de-fi-ci-6n-cia. Falha, insuficiéncia; caréncia. A menina tinha certamente alguma deficiéncia mental (Biderman, 1998: 267), deficiente adj. de-fi-ci-en-te. Que é falho, incompleto, imperfeito (Bider- man, 1998: 267). As definigdes acima podem, em primeira instancia, ser plausiveis e certamente se encaixam na concepgao do senso comum. Do jeito que se apresentam, todavia, turvam o entendimento da surdez a partir de outras perspectivas. Nessas definigdes trazidas por Biderman, surdez e defici- €ncia sao sinénimos, e nos remetem ao discurso clinico das patologias, muito presente no imagindrio das pessoas, em grande medida, dado 0 valor que se atribui & medicina (e areas afins). A "falha’, “ins € “imperfeicao" que significam a palavra deficiéncia sao as que rotulam a surdez do surdo, ou seja, o préprio individuo, que é qualificado pelo predicativo deficiente auditivo. Vejamos os depoimentos de dois colegas surdos falando do momento da descoberta de sua surdez: RELATO 1. Descobriram minha surdez quando eu tinha quase 5 anos. Minha familia é toda owvinte, e minha mde fatou que eu era quietinho e que por isso néo des- confiou. Af ela me levou no médico porque eu néo falava nada e Ié 0 médico isse que eu tinha uma perda auditiva grave. Mas eu néo me lembro disso. $6 sei que hoje ndo escuto nada, Fui crescendo e ful para muitas escolas dife- rentes aqui na regido de Sao Paulo... Comegamos a usar sinais em casa e com ‘alguns parentes mais préximos. Eu achava que era doente, que tinha uma ddoenga muito séria...epois que cresci ¢ conhect outros surdos, aprend mais sobre a vida dos meus amigos e as coisas comegaram a ficar bem mais claras ara mim, pois me comunicava com mais facilidade com os sinais...Vi que ew ‘no era o tinico surdo no mundo e me sinto mais feliz* (Sao Paulo, 2002). RELATO 2. ‘Meus pais descobriram que eu era surdo quando eu era bebezinho. Meu pal minha mae sfo surdos profundos e me contam que queriam que eu fosse surdo também. Entdo quando eu nasei me levaram no médico e fizeram os testes. Tenho surdez profunda, Eu sempre usel sinats com eles € com os pa- rentes ouvintes mats préximos também que conhecem a lingua americana de sinais. Sempre ackei que todo mundo fosse igual a mim, sempre achei que todas as pessoas fossem surdas. Mas meus pais falavam de ouvinte e surdo,€ s6 fui entender mais tarde. No comego, achava que os ouvintes tinham proble- * Hse relato fol felto em Linkas etraduaido para o portugues. ‘mas porque eram diferentes da maioria da minha familia e colegas da escola, Porque eu nasci e cresci rodeado de surdos aqui nessa escola de surdos...0 ‘mundo virou de ponta cabega quando vi que a maioria é ouvinte, pois nunca ‘me vi como diferente... é estranho quando chamam o surdo de deficiente ou anormal, eu ndo me considero assim..® (Estados Unidos, 2005). Neste iiltimo depoimento, podemos observar como a surdez é algo ‘atural, uma vez construida dentro do grupo como algo positivo. A pré= ‘ria descoberta relatada pelo surdo que “virou seu mundo de ponta cabe- @", pois até entio os “diferentes” eram os ouvintes, deixa claro que ser surdo ntre surdos é téo normal quanto é para maioria ouvinte ser ouvinte, Vemos ue hé um aprendizado sobre “o outro’, ea imagem surda esta preservada, Falando dessas descobertas, Padden & Humphries (1988: 15) nar- am a hist6ria de um garotinho surdo chamado Sam. Também filho de pais urdos, Sam comega, como toda crianga, a ter curiosidade por uma garo- nha que mora nas imediagSes de sua casa. Eles ficam amigos e passam a rincar juntos, mas Sam acha-a “estranha’, pois “nao podia conversar com la da mesma forma que conversava com seus irmaos mais velhos e seus ais’. A interacao entre os dois era naturalmente mantida, mesmo com a ificuldade dela de entendé-lo, mesmo quando se tratava dos m: sim- les sinais, Sam entendeu a “estranheza’ da amiga quando um dia viu a '8e dela movendo a boca quando olhava para a menina e observou que a xrota foi em dirego a mae com uma boneca na mao fazendo os mesmos ‘ovimentos nos Idbios. Ao retornar para casa, Sam perguntou a sua mae tue tipo de aflicao” a amiguinha tinha. Sua mie entio The explicou que a era ouvinte e que nao sabia sinais; em vez de usar sinais, os ouvintes lavam com a boca, ¢ 0 garoto perguntou: “Essa familia e a menina sio os ricos ‘desse tipo’?” Outra trajetéria, no entanto, é percorrida pelos surdos de lares ou- ntes. Vemos no primeiro relato que o jovem surdo sé tem a oportunida- ? de se construir de outra forma no encontro com seus pares surdos, £ *sse momento que imprime outro rumo a hist6ria, com valores e subje- vidades identificados e aceitos no grupo. Mas, muito provavelmente, as langas filhas de ouvintes percorrem, anteriormente, um caminho inver- Esse relato me fol feltoem Lingua Americana de Sinats (ast) etraduatdo para o portuguts so: ao serem constantemente encaminhadas para os médicos, para faze- rem tratamentos, reabilitagdes ¢ treinos de fala, assimilam e constroem uma gama de significados diferentes, ou seja, veem-se talvez como tini- cas nessa condigo, e como que se “obrigam" a existir como “deficientes” Nesse sentido, ver a surdez. como deficiéncia, é, como bem pontua Skliar (2003), uma forma de violéncia, uma vez.que, da maneira como éarticula~ da, reafirma uma espécie de desgraga, um desajuste social e individual. A surdez como deficiéncia pertence a uma narrativa assimétrica de poder e saber; uma “invenca0/produgo" do grupo hegemdnico que, em termos sociais, historicos e politicos, nada tem a ver com a forma como © grupo se v6 ou se representa: “Quando os surdos discutem sua surdez, eles usam termos profundamente relacionados com a sua lingua, seu pas- sado, e sua comunidade” (Padden & Humphries,1988: 44). No discurso predominante, ignora-se completamente o fato de que as alteridades as quais se referem como “deficientes” sao cidadiios e sujeitos po se articulam e fazem parte de movimentos sociais e militanci ‘mens ou mulheres marcados por suas orientagdes sexuais, religiosas, &- nicas, de género, classe e idade (Pérez de Lara, 1999 apud Skliar, 2003). Infelizmente, na nossa sociedade, o aspecto cultural da surdez é ainda mais dificil de ser aceito quando os discursos recaem e se fixam exclusi- vamente no fendmeno fisico. Por que a surdez é vista negativamente pela sociedade? 0 discurso médico tem muito mais forga e prestigio do que o discur- so da diversidade, do reconhecimento linguistico cultural das minorias surdas. A surdez é construfda na perspectiva do déficit, da falta, da anorma- jidade. O “normal” é ouvir, o que diverge desse padrao deve ser corrigido, ‘normalizado”. Nesse proceso normalizador, abrem-se espacos para a es- tigmatizagao e paraa construgao de preconceitos sociais. E, com um discur- so tao forte e tao reforcado pela grande maioria, fica dificil pensar a surdez sob outro prisma, ou seja, pensar a surdez como diferenca, pois: odo o processo de normalizagao & homogeneizador, ou sefa, visa trazer cada elemento desviante para 0 espago igualitario da norma, E uma vez normalizado, o individuo naturaliza a prépria norma, ou seja, passa a crer que tudo o que diz respeito a ela é natural (teria sido". in") (Se seeneaee ( io “sempre assim”) (Sou- Ha também outros grupos que sofrem preconceitos, como o caso 'o grupo dos negros, visto que o parmetro social para cor de pele é a aga ariana, e 0 que diverge desse “ideal” & anomalia, desvio. Considerar Igo como desvio pode levar a consequéncias inomindveis, como aconte- eu na Segunda Guerra Mundial. 0 mesmo para a questao de género, de lasse social, de faixa etéria, de orientacdo sexual e religiosa, preconceitos ue dao como fruto os horrores da intolerancia, Na nossa sociedade, por- anto, ser “normal” é ser homem, branco, ocidental, letrado, heterossexu- , usuario de lingua oral padréo, ouvinte, nao cadeirante, vidente, sem desvios" cognitivos, mentais e/ou soci Outro dia, dando aula a um grupo de alunos surdos em So Paulo, um uno langouas perguntas: “Por que hd tanto preconceito na sociedade? Quan- 0 teremos mudangas?” Nao é simples responder a questées cuja complexi- ade extrapola nosso desejo de justica e igualdade. A questo do preconceito aeial é um ciclo vicioso (e pernicioso) que est e sempre esteve presente na ida da humanidade. As sociedades, as instituigdes, as pessoas constroem struturas e discursos para a manutengao e disseminagio do preconceito uando apregoam, por exemplo, as representagdes da “normalidade”: do normal corporal, do normal da sexualidade, d Veja-se que o autor nos faz refletir sobre mudangas de posigdes, mas mbém nos alerta para o fato de que ha um risco em traduzir o discur- » das diferengas justamente por incorrermos no risco de posicioné-las smo algo contrario, posto e negativo a ideia de “norma’, do "normal", do + do “melhor”. Quando as grandes narrativas recaem em oposi- ‘es bindrias (homem/mulher, branco/negro, jovem/idoso, ouvinte/sur- »),0 “diferencialismo” pode fazer com que “a mulher seja o problema da ferenca de género, o negro da diferenga racial, a crianca ou o velho da ferenga etéria, ojovem da diferenga de geragao, os surdos da diferenga lingua” e assim por diante (Skliar, 2006: 23). / Retomandoa questo levantada pelo aluno surdo sobre futuras mudan- cas na nossa sociedade, pode-se dizer que as mudangas, em se tratando de minorias, ndo so répidas ou radicais, Em todas as esferas sociais, hd niveis de demonstragio de preconceitos; da mesma forma que ha formas veladas em algumas aces (dizeres e fazeres), Alguns discursos sobre diferenca e os uusos da palavra diversidade podem, observa com clareza McLaren (2000), ‘melindrosamente mascarar ideologias de assimilagio. Trata-se de um dis- curso do “multiculturalismo conservador e coorporativo’, criticado pelo autor e que também deve ser pensado no campo da surdez. As mudangas passam pelo reconhecimento da surdez. como diferenca, e, por sua vez, vio além de “uma aceitagao formal” ou de “uma autorizacao para que os surdos sejam diferentes’. Isso vale para todas as diferencas: trata-se de entendé-las prioritariamente como um reconhecimento politico (Skliar, 1997), A surdez é hereditaria? 08 fatores hereditérios da surdez foram alvo de especulacao de muitos cientistas, Um exemplo classico vem das investigagSes realizadas na,llha de Martha's Vineyard, sudeste de Massachusetts, Estados Unidos, onde duran- te mais ou menos dois séculos a populagao da ilha apresentava um elevado niimero de cidadaos surdos. 0 estudo comparativo partia da estimativa de que, no século XIX, a cada 5.728 individuos americanos nascidos 1 era sur- do, ao passo que em Martha's Vineyard a proporgao era a de 1 surdo para cada 155 recém-nascidos (Groce, 1985: 3). Esses ntimeros foram levanta- dos considerando o curso de trés séculos, e poderiam ser maiores se alguns descendentes nao tivessem deixado a ilha para viver no continente. No estudo de que estamos falando, Groce apontou que a elevada ocorréncia da surdez nao se dava em fungio de traumas ou doencas con- tagiosas — capazes de provocar a surdez — e também por acidentes, doengas contrafdas na gestagio ou efeitos colaterais do uso de medica- mentos, por exemplo. Mas quando ha uma ocorréncia muito grande entre familiares, entre gerages, as chances passam a ser genéticas, ou mes- mo hereditérias. Cogitou-se, ainda, a probabilidade de ter ocorrido uma epidemia, que apareceria, de acordo com Groce, nos registros histéricos no periodo dos trés séculos analisados. Na investigagao, sugere-se que 0 odelo de heranga para a surdez, configurado na itha, era transmitido a artir de um gene recessivo: ‘Um gene, ao afetar um aspecto do desenvolvimento neural ou anatSmico do mecanismo da audicao, é alterado de tal forma que o desenvolvimento normal ndo ocorre (p, 22). Varias especulagdes e reconstrugses de arvores genealégicas foram ‘tas para tentar descobrir a primeira vez em que o gene de mutacao sorreu e como essa caracteristica genética se espalhou pela populagao allha, mas nao se chegou a uma conclusdo definitiva. 0 fato & que a situa- 'o da ilha configurou-se de tal forma que os individuos surdos nao eram tos € ndo se viam como deficientes ou anormais: tinham os mesmos reltos, mesmos empregos, participavam da sociedade de forma iguali- ria, casando-se com ouvintes ou surdos. Essa atitude social de aceltapo \ surdez fez da ilha um local bilingue, onde seus moradores usavam in- és e lingua de sinais em todos os contextos. Assim pode ser visto, na fala gistrada, em 1895, por um reporter britanico: Voc® faz uma chamada nas mediagées — eles nao tém coisas como os chs das tardes, A lingua falada e a lingua de sinais estar tao misturadas na con versa que voce passa de uma para outra, ou usa as duas de uma vez 6, quase Inconscientemente, Metade da familia fala, muito provavelmente, a outra me- tade niio, mas os surdos nao estdo desconfortdveis em sua privagso, porque a comunidade tem se ajustado a situagio perfeitamente (Groce, 1988: 53). Pode ser o caso de o uso de duas Iinguas nao ser assim to tranquilo surdo considerado “privado” da audica0), embora a obra de Groce © se aprofunde nesse aspecto. Mas o fato é que, diferentemente de ou- 's situagdes em que os falantes de nguas orais e de sinais esto em ntato, o relato da ilha aponta uma maior naturalidade diante da surdez, lingua de sinais, dos surdos e de sous habitantes ouvintes. A comunida. parece ter-se ajustado a surdez, e nao o contrério. No Brasil, nao temos nhum caso de uma ilha ou mesmo de uma cidade que se compare a ago vivida em Martha's Vineyard. H4, todavia, um fato macabro e tris- na hist6ria mundial, instaurado e fomentado no periodo pés-guerra, m 0 discurso nazista de Adolf Hitler em busca da raa humana “pura nhecemos bem essa desumanidade e perversidade historica, mas tal. endo seja de conhecimento de muitos que, além dos judeus, os surdos nbém foram alvo de genocidio, Comprometidos com o movimento eugénico', varios académicos — in- cluindo Alexander Graham Bell, nosso inventor do telefone — lideraram campanhas para proibir qualquer tipo de contato surdo-surdo, relegando-os ao isolamento lingufstico e social absoluto, temerosos de que araga humana pudesse ser contaminada ou degenerada pela transmissio de genes “defei- tuosos”, Embora tenha sido professor de surdos, Graham Bell foi defensor veemente do oralismo e julgava a lingua de precisa e inferior a fala oral (Groce, 1985; Lane, 1984). 0 caso de Martha's Vineyard serviu de base para ele investigar a questo da hereditariedade da surdez, mas em suas especulagdes nao conseguiu explicar o fato de alguns pais surdos nao terem filhos surdos. Isto porque o desenvolvimento do conceito do aspecto reces- sivo de heranga genética foi apontado por Mendel apenas em 1900. 0 fato mais grave de toda a especulagao de Graham Bell, todavia, nao esta apenas na falta de comprovac3o do que dizia, mas especialmente na injustiga e ir- responsabilidade cientificas em liderar campanhas proibindo o agrupamen- to de surdos, jé que ele definia a surdez como uma “anormalidade da raga humana’. Sua notoriedade, agregada ao pensamento eugénico da época’, fez com que ele obtivesse atencao piblica. Ele conseguiu difundir essas ideias primordialmente a partir de uma palestra proferida na National Academy of Sciences, em 1883, intitulada Memoir upon the Formation of a Deaf Variety of the Human Race. Varios outros fatos macabros sao relatados, mas, atual- ‘mente, jd se reconhece a tremenda atrocidade cometida contra os surdos no passado, que resultou no crime da privagao linguistica e no estigma social ¢ psicolégico que carregam, até hoje, todos os surdos na nossa sociedade. Ha diferentes tipos e graus de surdez? Certamente. A literatura mostra que o individuo pode ficar surdo por ias causas, e que ha “aproximadamente 70 tipos de surdez hereditéria; movimento gnc npr, vrios ats a nstaurafo dell que exterminariam fans pres Glas cono causa saeco to mea ans de ras indesejaas eempobrecdos staves da pogo de csament, eterno corti citmla ogee Gram dente do Segundo Congresso Internacional de Eugenia em 1921, em is defendidas nesse congresso serviram de base para aquelas propostas pelo sta movimento aais ou menos 50% delas esto associadas com outras anormalidades” Groce, 1985: 22). Dentre as causas congénitas, o contato do embriao ou 2to com os virus da rubéola, sffilis, toxoplasmose, citomegalovirus e her- es sdo as causas mais recorrentes, Outros indicadores de riscos para os acém-nascidos séo as anomalias craniofat rbilirrubinemia, neu- fibromatoses, meningite bacteriana, medicagSes ototéxicas etc. Confor- te Santos, Lima & Rossi (2003: 19-20), o tipo de surdez pode ser con- uutiva, neurossensorial ou mista. A condutiva ocorre por uma “alterago a orelha externa (meato aciistico) e/ou média (membrana timpanica, ossicular, janelas oval e redonda e tuba auditiva)",J4 0 tipo neuros- msorial afeta a céclea e/ou o nervo auditivo. As perdas auditivas mistas, or sua vez, englobam alteracdes condutivas e neurossensoriais, uri Externe = ido nerne O grau de surdez pode variar de leve a profundo. A surdez leve pode, tretanto, ir se agravando com o tempo e virar surdez profunda, Sa ares de calculo os resultados em decibéis: “normal: até 25 dB, leve: de 40 dB, moderada: de 41 a 55 dB, moderadamente severa: de 56 a 70 ', severa: de 71 a 90 dB, profunda: maior que 91 dB", Uma tltima palavra. £ facilmente demonstravel que a classificagao S tipos e grauls de surdez pode nos cegar para o entendimento das re- ‘Silman & Silverman, 1991 opud Santos, Lima & Rossi, 2003, lagdes que cada individuo estabelece com a lingua de sinais, identidade e cultura surda, Um surdo profundo, por exemplo, pode nao se identificar ‘com a lingua ou cultura dos surdos e optar exclusivamente pela oraliza- ‘40, da mesma forma que um surdo com surdez leve ou moderada pode demonstrar uma relagio contraria: uma profunda identificago com os tragos culturais dos surdos sinalizantes. E nesse sentido que se pode di- zer que nem todos os individuos com algum tipo de perda auditiva sao ne- cessariamente deficientes auditivos ou surdos — estamos falando, Aparelhos auditivos ajudam o surdo a ouvir melhor? Sim... rufdos! Nao lingua como se pensa. Vejamos um episédio relata- do por uma entrevistada surda profunda: Quando eu era pequena sempre quis ter um aparetho auditivo. Pedia para ‘minha mde comprar e ela sempre dizia que ia ver.. Tinha vontade porque via alguns surdos usando atrés da oretha e achava que eu devia usar também. Achava bonito e, enquanto no ganhel um, no sosseguei. Minka mae comprou um eeu fiquei muito feltz..No comego eu usava bem feliz, mas a verdade é que ime incomodava, Sempre me incomodou, o aparelho & muito desconfortdvel. Faz rufdos muito altas e eu tinha dores de cabega e irritagdes, pois ao gar aquilo comega a fazer barulho na minha oretha. Minha cabega ndo aguentava. ‘os poucos, ful detxando de usar. Nao gostava da sensagdo que sentia. Minha mde comegow a me obrigar a usar e disse que era para o meu bem, para eu po- der ouvir os outros e aprender a falar. Mas nunca ouvi nada ou entendi nada. 86 via a boca dos outros mexendo, abrindo e fechando sem som, e entao eu Imitava para deixar minha mae feliz. entrevista gerada em 2004). A crenga de que os aparelhos auditivos funcionariam para restabe- lecer a audigéo do surdo profundo é compartilhada por muitas pessoas. que possivelmente funcionaria para pessoas mais idosas que, com o pas- sar do tempo, perdem parte de sua audi¢do, ou mesmo para aqueles que ‘€m um resfduo auditivo maior. Entre os individuos com perda auditiva to- al, hd uma distingdo na literatura entre o surdo pés-lingual e pré-lingual, 0 srimeiro refere-se aquele que experimentou a audigo durante um p 10 da sua vida e mantém relagdes, possivelmente de ordem neurolégica » por associagées baseadas na experiéncia, com a lingua sonora. O surdo »ré-lingual, por outro lado, “nao tem experiéncia auditiva ou imagens para nvocar” (Sacks, 1990: 6). No caso de surdos profundos, de nascenca, o que ‘e obtém ao fazer uso de aparelhos auditivos so apenas rufdos fortes, que ‘4o muito desagradaveis. O Unico tipo de “funcionalidade” poderia ser a ‘xpressada por um surdo que afirmou que, as vezes, gosta de sentir chiados ‘3 orelha, especialmente para garantir que percebera quando a campainha ‘x10 telefone tocam, por meio de sons provocados por uma vibragao am- icada no timpano. Mas ao ser perguntado se ouvia e entendia a lingua ‘ortuguesa quando um ouvinte falava, ele respondeu negativamente: Tem uma época que todas os surdos querem ter 0 aparelho e acho que é por- ue as pessoas pensam que vamos recuperar a nossa audigéo, vamos voltar @ falar portugués. Alguns ouvintes sempre me perguntam se os aparelhos au- ditivos ojudam 0 surdo a ouvir meihor.. Eu ndo escuto nada além de rufdos. uitos pais pensam que funciona como mégica... Eu conhego pais que prot. bem os filhos de sair de casa sem o aparelho na orelha..? As proteses ou aparelhos auditivos, conforme argumentam os fono- udiélogos, ajudariam as criangas com surdez severa ou profunda a “es- mular a audi¢ao residual” e, assim fazendo, “perceber os componentes ciisticos da fala’. Veja-se que se esté falando em “percepgdes e estimulos’, escuta auditiva e o discernimento dos sons vocélicos ou consonantals a lingua portuguesa sao identificados somente pelos individuos que tém ardez moderada ou leve (Lima, Boechat & Tega, 2003: 44-45) e, mesmo ssim, dentro de um modelo gradativo de reabilitago auditiva que vai asde a deteccio, discriminacao e reconhecimento dos sons até a com- seenstio da linguagem. E esta iltima vai muito além da utilizagao das “maa evitara dispersio do som ou distorgSes. Os modelos mais recorrentes sdo: convencio ou de bolso, do tipo retroauriculares, microcanaiseintracanais, Pesquisado em: htp//sauy suoLcotn.br/aparelho-auditivo2.htm, Relato dado em inease traduzido para o portugues, habilidades puramente aciisticas, uma vez que a compreensao da lingua- gem & complexa e envolve uma multiplicidade de fatores: ela pressupée relagdes entre mensagem e contexto, dominio de conceitos e a vivencia social, 0 préprio conhecimento de linguagem da crianga, a sua meméria sequencial e os conhecimentos gramaticais... E pre ida considerar que, quando prescrevem o uso de préte- ses depois da avaliagdo audiométrica, os profissionais da 4rea pontuam que a idade, a motivagao, o estilo de vida e 0 estado geral de satide so va- ridveis que afetariam o “sucesso” da reabilitagao. Portanto, os aparelhos nao atuam na decodificacao instantnea da linguagem apenas ao serem agregados ao ouvido, do mesmo modo que uma pessoa completamente cega, por exemplo, nao passa a enxergar utilizando éculos ou lentes de grau, Varios surdos com surdez profunda, oralizados e nao oralizados, de diferentes idades, submeteram-se ao uso de préteses auditivas, e 6 impor- 1 todos 0s relatos que eles fazem so muito similares quando se pergunta sobre as experiéncias com 0 aparelho. Todos informam que ha escuta de rufdos, apenas rufdos que vibram na orelha. Os indicios daque- les que “voltam a escutar”, pode-se concluir, seriam casos excepcionais. O implante coclear recupera a audicgao do surdo? As intervengdes cirdirgicas em pacientes surdos tém sido alvo de muita polémica. A recuperagio da audigao, nesses casos, vai depender de intimeras variaveis, mas hd muito ceticismo em caso de surdos profundos, especialmente adultos, Nos experimentos em que um surdo tenha se sub- metido ao implante, 0 resultado é sempre dréstico, pois, além de se tratar de um método invasivo para a colocagiio do dispositivo interno, o sucesso com as respostas auditivas dependerd de varios fatores: Idade do surdo, tempo de surdez, condigées do nervo auditivo, quantidade de eletrodos implantados, situagao da céclea, tempo da surdez, trabalho fisioterpico do fonoaudidlogo, acompanhamento periédico do médico para ativasioe ajustes no dispositivo do implantado ete. Ha quem considere todos esses fatores irrelevantes, mas tenho observado e conversado com colegas sur- dos implantados e a satisfacao nao 6 tao expressiva,. Corrente manifestacao, a esse respeito, 6 a vistio de muitos ouvintes, geralmente inscritos em uma narrativa hegeménica, que vé a surdez ex. slusivamente no viés patolégico. Uma professora ouvinte, que estava em suas primeiras aulas de Lipras, afirma: ~0.caminho mais certo seria trabalhar mais a questao da fala do surdo, a me- dicina esté avancando tanto! Acredito que se poderé corrigir a audigido com 0s avangos tecnoldgicos. u sei também que tem gente (as minhas colegas, por exemplo) que me crueificariam me ouvindo falar desse jelto, mas é coms eu vejo. Tem mutta gente (ndo sé da fonoaudiolagia) que pensa assim e ndo ‘em coragem de dizer (notas de campo, 4/10/2003). discurso est claramente amarrado ao ideal de um individuo que ala e ouve, a “um desejo de tornar os surdos ouvintes, e esse desejo pas- ‘a pelo discurso da cura, que prega a recuperaco da audigao eo desen- ‘olvimento de uma lingua (neste caso, a lingua oral)" (Gesser, 2006: 82). ‘ambém em Silva (2005) essa questao fica nte, € a autora discorre obre as representagdes manifestadas Por alguns pais e professores so- rre o surdo,a surdez, e sobre a lingua de sinais na escola e na fa or sua vez, esto pautadas no discurso as: lador e normalizador, 4 surdez compromete o desenvolvimento Cognitivo-lingufstico do individuo? Essa é uma crenga muito séria.Jé est comprovado por estudos cientifi- 2s que ela esta ligada, em grande medida, ao poder dos discursos médicos. surdo pode e desenvolve suas habilidades cognitivas e linguisticas (se nao ver outro impedimento) ao Ihe ser assegurado o uso da lingua de sinais em ‘dos os ambitos sociais em que transita, Nao 6 a surdez que compromete o ssenvolvimento do surdo, ¢ sima falta de acessoa uma lingua, A auséncia dela m consequéncias gravissimas: tomar o individuo solitétio, além de compro- ter o desenvolvimento de suas capacidades mentais, Através da lingua nos ‘nstitufmos plenamente como seres humanos, comunicamo-nos com nossos semelhantes, construimos nossas identidades e subjetividades, adquirimos e partilhamos informagdes que nos possibilitam compreendero mundo que nos cerca — e énesse sentido que. linguagem ocupa “um papel essencial na orga- nizagao das fungdes psicolégicas superiores” (Vygotsky: 1984), £ comum ouvirmos as pessoas falarem que o surdo é muito irritado, rvoso e até débil mental. 0 fato & que esses estere6tipos so idos com base em paradigmas inapropriados, criados por aqueles que insistem em educar os surdos através da lingua oral, uma lingua total- ‘mente alheia a sua forma visual de perceber e de se expressar no mundo, Quando os surdos sao abordados e educados através da lingua de sinais, ne- nhum desses “problemas” de ordem social se apresenta, Sacks (1990: 11) ilustra varios casos de surdos que sofrem por conta da barreira linguistica \gua oral, mesmo dotados que tinham de enfrentar, isto é, a educagao vi da capacidade natural para construir e adquirir conhecimentos. Da pers- pectiva dos ouvintes, a interacao entre surdos e ouvintes é limitada, trun- cada e emocionalmente problematica, dado o tipo de educagao e de lingua que lhés so impostos, Ento, os surdos esto longe de serem estiipidos ou deficientes mentais, pois viveram (¢ vivem?) uma situagao que os poe em desvantagem em rela¢do ao ouvinte em todos os aspectos, especialmente no tocante a proibicio e & falta de uso da lingua de sinais na vida escolar. Veja-se, por exemplo, quo atuais sao os questionamentos do abade Roche Ambroise Sicard, membro fundador da Sociedade de Observadores do Homem e autoridade respeitavel nos assuntos de educagao de surdos, ‘ao questionar 0 “hiato” de comunicacao entre surdos e ouvintes: Mas por que, nos perguntam,o surdo inculto isolado na natureza e incapaz de se comunicar com outros homens? Por que est reduzido a esse estado de imbecilidade? Sua constituicdo bioligica difere da nossa? Nao possul tudo de que precisa para ter sensagées, adquirir idelas e combiné-las para fazer tudo ‘que nés fazemos? Nao recebe, como nés, impressdes sensoriais dos objetos? Da mesma forma que nés, nao é a impresso sensorial a causa ocasional da sensagio da mente e suas ideias adquiridas? Por que entdo 0 surdo permane- ce estipido, enquanto nés nos tornamos inteligentes? (Lane, 1984: 84-85). Nesse conjunto de indagagées, encontramos respostas para parte da origem dos preconceitos construfdos e narrados na vida dos surdos. Bis que se esboga como cerne de toda a discussio, a partir do questionamen- 0 do Abade Sicard, 0 conceito que se tinha de lingua e de fala, Fora atri- >ulda aos surdos uma condigao quase inferior dos animais, no sentido nais primitivo, no que se refere & comunicago, desenvolvimento humano +linguagem, Nao é a surdez que priva o individuo surdo de se desenvolver “omo individuo em sua totalidade: reconhece-se 0 impedimento biolégico srticulatério-perceptual, mas, como bem pontua linguista Noam Chomsky 1995), 0 termo “articulatério” no processo de aquisigao e funcionamen- © das linguas nao deve se restringir & modalidade vocal apenas. 0 autor econhece que hé uma plasticidade possivel no sentido de a articulagdo ¢ Percepsao linguistica se darem em outra modalidade, como no caso da rodalidade visual-gestual das linguas de sinais, Entao, em termos de aqui- isdo de linguagem, é possivel afirmar que o processo de criangas surdas dquirindo a lingua de sinais 6 andlogo, em muitos aspectos, ao de criancas uvintes. Conforme descrito por varios pesquisadores, so observiveis to- 05 05 estégios: perfodo pré-linguistico, estégio de uma palavra, as prim: 3 combinagdes lexicais ¢ das miiltiplas combinacées... (Quadros, 1997: 0). 0 funcionamento da esfera cognitiva, lingu{stica e afetiva no individuo ardo se desenvolve apa trso da audigao, o que sig fica que os estigmas e problemas apontados na 2ssoa surda “so produzidos por condigées socials (Gées, 1996: 38). Que momento nés vivemos? Ha um sentimento de mudanga pairando no ar... Tomando como base do 0 que fot abordado,talvez nao fosse demasiado otimismo afirmar que vemos um momento proficuo e impart; j4 que muitas conquistas foram al- neadas: a oficializagdo da LIBRAS,o do surdo de ter um intérprete S universidades, a obrigatoriedade de formagao nas areas de licenciatu- Sno ensino superior para surdos, a incluso da Liprasem alguns curricu- 5. Sem dtivida, 0 momento é do surdo e para o surdo. Mas nas ondas das as novas também se infiltram as velhas praticas e os velhos discursos. Estamos vivendo um processo de transigdes, adaptagées e reformula- 2se muitos discursos podem ser encobertos e mascarados em prol de inte- ‘ses individuais. Ha uma distancia enorme entre o dizer o fazer. Por tanto aso 79 tempo se fala nas implicagdes positivas do uso de lingua de sinais na escola- rizacdo do surdo e, ainda assim, ha resisténcias quanto a essa questo, ora por falta de espagos, oportunidades e apoio para os educadores ouvintes se aperfeigoarem na sua proficiéncia linguistica, ora por se perpetuarem visoes preconceituosas sobre a lingua de sinais e posturas paternalistas na relacio com os surdos, Também testemunhamos os descompassos entre os discursos te6ricos e a atuagao de profissionais na prética cotidiana. Esse descompasso ocorre por varios motivos, ¢ esto amarrados as crengas articuladas neste li vro, Parece muito pertinente um afastamento do ouvinte para que o espago surdo seja ocupado e construfdo por surdos, e, eventualmente, em parcerias com profissionais ouvintes engajados com as questdes e as causas surdas. E no que se refere & o! sao da LABRAS, o que esperar do decreto xn? 5626? Em primeiro lugar, devemos ponderar que o decreto por si s6 nao elimina o sentimento de culpa e os dramas vividos no seio familiar, nem tam- pouco os fracassos e insucessos na escolarizagao do surdo. Além disso, na- quilo que diz respeito ao reconhecimento linguistico e cultural, outras ages sdo necessdrias e cruciais para constituir elegitimar socialmente o que ale’ jé assegura. Ougo as pessoas dizerem, entusiasmadas e euféricas, “com o decre- ¢o tudo vai mudar..”. Contudo, sabemos que apenas o registro legal nao basta para garantir mudangas e eliminar preconceitos. Passar pelos documentos oficiais é importante e afirmativo, mas hé que se ir além e, certamente, um dos caminhos passa pela educagao e formacio dos individuos e pelas dect- ses de politicas lingufsticas e educacionais (Cavalcanti, 1999), Nessa linha de raciocinio, a educadora e pesquisadora da area, Regina Maria de Souza, em entrevista concedida a Folha Dirigida - Sao Paulo, em 2007, responde & pergunta de se a obrigatoriedade da disciplina da lingua de sinais brasile nos curriculos seria suficiente para a integrago social dos surdos: -ndo & a lingua, ow a existéncia curricular de “uma disciplina” chamada t1- ‘Bras, que faz. um grupo se integrar a uma suposta maioria, mas medidas po- Iiticas, tais como: melhor distribuicao de renda; valorizagdo da carreira do professor esaldrios dignos; escolas preparadas para assumirem uma politica linguistica de educagao bilingue; condigdes de acessibilidade e de respelto ds Aiferensas sociolinguisticas que marcam nosso pals; a opartuntzagéo de con digdes para que esses brasileiros — que no tém como lingua materna o, ‘tugués (caso dos surdos) — possam exercer sua cidadania ao serem conside- rados, politicamente, Brasileiros também em .1BRAs; e claro, uma formago universitdria de qualidade de futuros educadores. Este tiltimo aspecto, 0 da formasao de professores para atuarem em contestos educacionais bilfagues, las IES. Nao se pode falar a itica de ersitéria de educadores devidamente c rem face ds diferengas ling se restringem Embora defendamos a | hegar 0s varios arranjos e interagées surdo-ouvinte,u feresse e a vontade do surdo d travar uma conversa com ouvinte extrapolam as barr De qualquer forma, 0 elo que a sinais, e desde sen que nao sal qu para ser distanciamento entre pais/professores owvi dos provocada pelo n nhamento é dramat e rejeitada, Muitos pais a rejeitam por como lidar com seus educadores. \dado, é a pratica do s e seus filhos/alunos sur- 0 pelo desconhecimento da surdez. Esse estra- lo pelos su @ ter um sentimento de medo e um pressenti ancei um olhar para sua face, mas ela estava Imével e os seus olhas estavam fixas em um ima parte no além, Nés anda ‘outro edificio em que eu tivesse estado antes. Minha mde se in para sie disse: “aqui é onde vocé vai ter toda a sua educagao, eu verei vocé novamente mais tarde.” Entéo, ela parecia ndo poder dizer mal nada: me abragou rapidamente, deu-me um beijo, e entdo, inexplicavelmente, Partiu (gravacio em video em ast da produséo original do Teatro Nac dos Surdos citada por Padden & Humphries, 1988: 18-19). Acen o tomé-la como um tratamento de choque. 0 trecho da pega provoca em nds um sentimento de indign: §40; mas também nos sensibiliza para entender os dramas a partir das Perspectivas do filho surdo resignado — no seu papel de obedién eda mae impotente e frustrada diante da surdez do filho. O fragmento encenado serve de ilustragao para nds, pais e professores, repensarmos 0 legado que estamos

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