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‘novos olbares na pesquisa em educagio “Marisa Vorraber Costs (organizadora) 1 ed. Porto Alegre: Mediasi0, 1996, 2. ed. Rio de Janeiro: DP@A, 200. © Lampatina editora Projeto grdfco e capa Fernando Rodrigues Revisto (2, ed) Silva Debetto C. Reis Proibida @reprodusio, total ou parcial, por qualquer meio ov proceso, sia fico, gefico, microflmagem etc, Estas probigdes ap teristicasgrificase/ou editorais, A violagio dos direitos mo crime (Céaigo Penal, art. 184 ¢ §§; Lei 6895/80), com busca, apreensio¢ indenizagies diversas (Lei 9610/98 —Lei des Di Au ts. 123, 123, 124 € 136] __Catalogagio na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Caminhos investgativos I: novos olhares na pesquisa em educasio / Marisa Vorraber Costa (organizadora)— 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina editore, 2007. 164. nyxarem nel bibl 150N 97 alia 98271-57-8 1 Bducagio, 2, Pesquisa em educagdo, I. Casta, Marisa Vorrabes, CoD 370, cpu a7 amparna editors ua Joaquim Siva, 98, 2 anda, sla 201, Lap Cop 2024-110 Ro de Janeiro Ri Bra ‘Tel fax: (21) 2232-1768 lamparina@lamparna.combr MARISA VORRABER COSTA (organizadora) CAMINHOS INVESTIGATIVOS I NOVOS OLHARES NA PESQUISA EM EDUCAGEO ALFREDO VEIGA-NETO JORGE LARROSA, MAURO GRUN ROSA MARIA BUENO FISCHER ROSA MARIA HESSEL SILVEIRA SANDRA MARA CORAZZA 3 digo capfruLo 6 LITERATURA, EXPERIENCIA E FORMAGAO* UMA ENTREVISTA COM JORGE LARROSA** ALFREDO VEIGA-NETO: Em feus tltimos trabalhos, desta- caste 0 papel formativo da leitura. Talvez possamos come- Gar nossa entrevista por esse ponto. Podes explicar melhor por que insistes nesse ponto? JORGE LARROSA: Quase tudo aquilo que publiquei recente ‘mente pode se considerar como um conjunto de notas para uum texto ainda nao escrito. E se alguma vez eu chegar a es- Crever esse texto, nao serd outra coisa sendo o preliidio de outro escrito inexistente, Cada vez. sinto mais intensamente que todo texto um prélogo (ou um esbogo) no momento em que se escreve, ¢ uma mascara mortudria alguns anos de- pois, quando nao é outra coisa a nfo ser a figura jé sem vida dessa tensfio que o animava, Para responder & tua pergunta, deveria tentar dar forma a esse texto ausente tal como ago- ra sou capaz de imaginé-lo. B, 0 que é ainda mais dificil, ex: plicitar suas intencdes. Digamos que o tema desse texto inexistente tenha duas faces: a leitura e a formagao. Ou, melhor ainda, a leitura como formagao e a formacao como leitura. Pensar a letra como formacao implica pensa-la como uma atividade que tem a ver coma subjetividade do leitor: nao s6 com o que o Ieitor sabe, mas também com aquilo que ele ¢. Trata-se de * Traduzido do espanhol por Alfredo Veiga-Neto e revisado por Jorge Larrosa, ** Entrevista concedida a Alfredo Veiga-Neto, em julho de 1995, bos investigativos J pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos de-forma € nos trans-forma), como algo que nos constitui ou nos poe em questo naquilo que somos. A leitura, portanto, nto é 86 um passatempo, um mecanismo de evasio do mundo real e do cu real. E no se reduz, tampouco, a um meio, de conseguir conhecimentos, No primeiro caso, a leitura nao nos afeta, dado que transcorre num espaco-tempo separa- do: no écio ou no instante que precede 0 sono, ou no mun- do da imaginacao. Mas nem 0 écio, nem 0 sono, nem o imagindrio se misturam com a subjetividade que comanda na realidade, posto que a realidade moderna, aquilo que ‘nds entendemos como real, define-se justamente como 0 mundo sensato dino do trabalho e de toda a vida so- cial. Mas nem sempre isso foi assim. No segundo caso, a leitura tampouco nos afeta, dado que aquilo que sabemos se mantém exterior a n6s. Se lemos para adquirir conhe- cimento, depois da leitura sabemos algo que antes nao sa- biamos, temos algo que antes nao tinhamos, mas nés so- _mos os mesmos que antes, nada nos modificou, E tem a ver com conkecimento, sendo com 0 modo pelo qual © definimos. © conhecimento moderno ~ da ciéncia e da tecnologia ~ caracteriza-se justamente pela sua separagio do sujeito cognoscente. Mas isso é também algo historica- ‘mente contingente. A primeira face de meu tema, a saber, a leitura como formacao, seria tentar pensar essa misterio- Sa atividade que é a leitura como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser 0 que somos. E para mim a questio da formagao esta magistralmente enunciada no subtitulo de Ecce Homo, de Nietzsche: Wie man wird, was man ist ~ Going Se Chega a ser 0 que se & avn: Entdo, para que a leitura tivesse um papel formativo no sentido em que tu o defines, tratar-se-ia de suprimir as fronteiras entre o imagindrio ¢ o real, ou entre 0 conheci- mento e 0 sujeito cognoscente? ieito cogy JL: Tratar-se-ia de pensar que essas fronteiras tém uma his- t6ria € portanto podem desaparecer, E creio que pensar a ex- Literatura, experiénciae formagio Perincia da eitura como uma experineia de formagio pode | contribuir pata fazer éssas fronteiras menos nitidas, Pense- mos nt imaginagio e em como acgncia moderia moditicou completamente seu estatuto. Para nds, a TiTaginagao esta do lado do subjetivo, Ver dat a sua associagio a termos como it- tealidade, ficgio, delitio, fantasia, alucinagao, sono etc. Daf também resulta que tenha perdido todo o valor cognoscitivo ¢ esteja enclausurada nesse ambito informe do psicologico. Para os antiggs, pelo contrario, a imaginacdo era o meio es sencial do conhecimento. Recorde-se a méxima do aristotelis- mo medieval: nibil potest homo intelligere sine phantasmate ~ | nao ha compreensao possivel para o homem sem imagina- 20. A imaginagao'era a faculdade mediadora entre o sens(- vel eo inteligivel entre a forma eo intelecto, entre 0 objetivo © 0 Sibjetivo, entre o corporal ¢ 0 incorporal, entre 0 exte- rior € o interior. Daf sua analogia com a experiéncia, Hi, no entanto, sinais na hermenéuiti¢a contemporiinea ¢ na teoria a linguagem que apontam para uma nova compreensio do papel cognoscitivo da imaginagéo. A imaginagio, entendida lingitisticamente, nao s6 tem uma relagdo re-prodativa com | uma realidade dada (como ocorre na concepgio da imagem como re-apresentagdo ou boa e6pia), seniio também, e so bretudo, uma relagio produtiva. A imaginagio est igada 4 capacidade produtiva da linguagem: recorde-se que fictio deriva de facere, o que ficcionamos é algo fabricado e, por sua vez, algo ativo, A imaginacZo, assim como a linguagem, (produz realidad, a incrementa ea transforma. ‘Nao ha distingao essencial entre a re-produco ou a re- apresentago (como imagens boas da realidade, fundadas na | semelhanga) ea produgio ou a apresentagao (como imagens | ruins, nfo semelhantes). A Ginica distingio possivel & uma | ‘distingao politica, em termos do que Foucault seguindo | Nietzsche, cliama politica da verdade. Todo esse aparato de | listingbes e hierarquias entre o objetivo ¢ o subjetivo, o real © 0 imaginArio, a esséncia ea aparéncia etc,, nao é mais do que um mecanismo para controlar a capacidade produtiva e ora da inguagen.Susenar ess foniras emanter | adora da linguagem. Sustentar essas fronteiras e manter a itura encerrada no Ambito trivializado do imagindrio € um | 132, Camminhos investigates I modo de limitar e controlar nossa capacidade de formagio e de transformagao. Tomar a sério a leitura como formagio pode ser, me parece, um modo de quebrar essas fronteiras eum modo de afiemar a poténcia formativa e transforma- tiva (produtiva) da imaginagao. avn: Poderias desenvolver um pouco de que modo a lei- iura como formagéo relaciona 0 conhecimento com a subjetividade? JL: Sim, é claro, vamos A segunda parte de tua pergunta. Para que a leitura se resolva em formacao é necessario que haja uma relagao intima entre 6 texto ¢ a subjetividade’ E se po- deria pensar essa relaciio como uma experiéncia, ainda que entendendo experiéncia de um modo particular, A experién- cia seria aquilo que nos passa. Nao o que passa, senao 0 que 1105 passa. Vivemos num mundo em que acontecem muitas coisas. Tudo o que sucede no mundo nao é imediatamente acessivel. Os livros e as obras de arte esto & nossa dispo- sigo como nunca estiveram antes. Nossa propria vida esté cheia de acontecimentos. Mas, ao mesmo tempo, quase nada nos passa, Os acoinsécimentos da atualidade, convertidos em noticias fragmentadas e aceleradamente obsoletas, no nos afetam no fundo de nés mesmos. Vemos o mundo passar diante de nossos olhos e permanecemos exteriores, alheios, impassiveis. Consumimos livros ¢ obras de arte, mas sem- pre como espectadores ou tratando de conseguir uma satis- facdo intranscendente ¢ instanténea. Sabemos mas nds mesmos nao mudamos com que saben ria luma relago com o conhecimento que nio é experiéncia, posto que naO se resolve na formacao ou na trans-formacéo daquilo que somos. Walter Benjamin tem um texto que se chama “experiéneia e pobreza”, no qual faz. uma reflexio sobre a abuitdancia de estimulos e a pobreza de experién- cias que caracteriza o nosso mundo. Temos o conhecimento, mas como algo exterior a nés, como uma utilidade ou tma mercadoria. Consumimos arte, mas a arte que consumimos nos atravessa sem deixar nenhuma marca em nés. Estamos Literatura, experiéncia ¢formagao informados, mas nada nos co-move no intimo, Pensar alei- tura como formagao supde cancelar essa fronteira entre 0 que sabemos 0 que somos, entre 0 que passa le que pode- ‘mos conhecer) ¢ 0 que nos passa (como algo a que devemos atribuir um sentido em relagao a nés mesmos), AVN: Vamos, agora, a segunda face desse tema que imagi- ‘nas, o1 seja, pensar a formagao como leitura, 41: Pensat a formagao como leitura implica pensé-la como um tipo particular de relagdo. Concretamente, como uma relagao hermenéutica, como uma relacao de producio de sentido, De meu ponto de vista,{tudo 6 que nos passa pode ser considerado ‘um texto, algo que Gompromiete nossa ca- pacidade de escuta, algo a que temos de prestar atencao. {E como se os livros, assim como as pessoas, os objetos, as bras de arte, a natureza, ou os acontecimentos que suce- lem ao nosso redor quisessem nos dizet alguma coisa. Ea formagio implica, necessariamente, nossa capacidade de es- cutar (ou de ler) isso que essas coisas tém a nos dizer, Uma pessoa que nao € capaz de se por A escuta cancelou sen po- tencial de formagao e de trans-formagao, vw: Seria algo assim como uma relagao entre alguém (que le) €0 seu outro (o texto, a pessoa, a situagao, 0 objeto etc,)? Jt: Exatamente, Na formagio como leitura, 0 importante nio o texto senao a relagio com o texto. E essa relagio tem uuma coniigdo essenicial: que nao seja de aptopriagio, mas de escuta. Ou, dito de outta maneira, que 0 outro permaneca como outro € no como outro ext, ou como outro a partir de ‘mim mesmo, Blanchot disse isso com muita clarezat “(...) 0 que mais ameaga a leitura: a realidade do leitor, sua perso-y nalidade, sua imodéstia, sua maneira encarnigada de querer continuar sendo ele mesmo frente ao que [é, de querer ser lui homem que sabe ler em geral”. Esse leitortrogante, que Se empenha em permanecer erguido frente ao que Ié é 0 sue jeito que resulta da formago ocidental mais agressiva, mais 333 Caminhosinvestigativos 1 autoritiria. Eo homem que reduz. tudo a sua imagem, & sua medida; aquele que no é capaz de ver outra coisa que nzo seja cle mesmo; aquele que Ié se apropriando daquilo que Ie, devorando-o, convertendo todo o outro em uma variante de si mesmo; aquele que lé a partir do que sabe, do que quer, do ‘que precisa; aquele que solidificou a sua consciéncia frente a tudo aquilo que poderia colocar em questio. Ao conttatio, Hid escutajalguém estd disposto a ouvir o que nao sabe, o que “TG queF, o que nao précisa. Alguém esta disposto a perder Gpéea deixar-se tombar e arrastar por aquilo que procura, Esta disposto a transformar-se nurtia diregao desconhecida, © outro, enquanto outro, é algo que nao posso reduzir & mi nha medida, Mas é algo do qual posso ter uma experiéncia «que me transforma em diregao a si mesmo. Heidegger expres- sa de um modo muito bonito a experiéncia dessa relagio que nao é de apropriacio, sendo de escuta: (..) fazer uma experiéncia com algo significa que algo nos acontece, nos alcanga; que se apodera de nés, que nos der- ruba ¢ nos transforma. Quando falamos de fazer uma ex- periéncia isso nao significa precisamente que nés a fagamos acontecer; fazer significa aqui: sofrer, padecer, tomar aquilo que nos alcanga receptivamente, aceitar, na medida em que ros submetemos a isso. Fazer uma experiéncia quer dizer, portanto: deixar-nos abordar em nés mesmos por aquilo que | nos interpela, entrando ¢ submetenclo-nos a isso. Nés pode- | mos, assim, ser transformados por tais experiéncias, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo. avn: Até aqui, falaste sobre o tema. Mas nao restam, ainda, as intengdes? Por que esse tipo de problematizagao? Quais seriam tuas pretensbes? Ju: Uma primeira intengao seria desfamiliarizar as evidén- cias daipedagogia dominante.\A crise da formacao huma- Aistiéa o triunfo da educagao téenico-cientifca supuseram a abolicio da biblioteca como o espago privilegiado da for- Literatura, experiéneiae formagio magio. Para nés, a pergunta pela leitura ja nao é uma per- gunta pedagégica essencial. Nesse contexto, problematizar a leitura fora dos canones psico-cognitivos habituais 6 algo in-atual, portanto, intempestivo. E possivel que tratar de considerar a idéia humanista da formagao e ler os velhos. textos pedagégicos possa servir como revelador, por con- traste, dos limites de nosso sentido comum, na medida em que se opdem, quase ponto a ponto, aos pressupostos nto problematizados das ideologias pedagégicas pragmaticas, ativistas e naturalistas dominantes, Mas isso néo deve se confundir com uma vontade de res- tauragao da velha educacao humanistica, O que tento fazer indo é'levantar uma Janga em favor da teintrodugao das hu- manidades no curriculo, ou em favor da restauragao dos ve- thos ideais da educag4o. O que eu gostaria de fazer é repensar a ideia da formagio levando em conta as colocagbes que, des- de o interior das préprias humanidades, questionaram seus ressupostos basicos. A idéia clssica de formacio tem duas faces. Por um lado, formar significa dar forma e desenvolver um conjunto de disposigbes preexistentes. Por outro lado, Sigiifica levar 0 homem a con-formidade em relagao a um modelo ideal quie foi fixado ¢ assegurado de antemao, Minha aposta seria pensar a formacao sem ter uma idéia prescritiva de seu desenvolvimento nem um modelo normativo de sua realizacio. Algo assim como um devir plural e criativo, sem padrio e sem projeto, sem uma idéia prescritiva de seu itine- ioe sem uma idéia normativa, autoritaria ¢ excludente de seu résultado, disso que os clissicos chamavam humanidade ou chegar a ser plenamente humano, O que tento, entio, é recuperar criticamente a idéia de for- magio como uma idéia intempestiva que possa trazer algo, novo para o espaco tensionado entre a educagio técnico- cientifica dominante e as formas dogmaticas e neoconserva~ doras de reivindicar a velha educacéo humanistica, Trata-se de algo que Walter Benjamin formula de um modo nitido: “Articular historicamente o passado nfo significa conhecé-Io | “tal e qual ele verdadeiramente fo?. Significa apossar-se de | 135 Caminhosinvestigativos 1 uma recordacao tal e qual reluz no instante de um perigo En gostaria de que a recordagao da idéia de formagio, cri- ticamente apropriada, nos ajudasse a tornar evidente onde cresce 0 perigo. Avw: Seria interessante que detalhasses, um pouco mais de- tidamente, algo que ja indicaste antes: como compreendes a leitura como experiéncia? JL: Parece-me muito importante recuperar a categoria de ex- periéncia para o pensamento da formagao. E ainda é uma categoria enormemente ampla que no s6 se refere a leitu- ra, mas tem na leitura um de seus lugares paradigmsticos. Tentarei me explicar, ainda que me reste apenas fazer uma aproximagio. ‘O pensamento pedagégico tentou sempre pensar a rela- do entre o conhecimento e a vida humana. E a categoria de experiéncia serviu durante séculos para pensar essa re- lagio, uma vez que a experiéncia era entendida como uma espécie de mediac&o entre ambos. Mas é importante ter pre- sente que, quando a idéia de experiéncia ainda era vigente, nem combecimento nem vida significavam o que significam para nés. Atualmente, o conbecimento é essencialmente a ciéncia e a tecnologia, algo essencialmente infinito, que 56 pode crescer; algo universal e objetivo, de alguma for- rma impessoal algo que esta al, fora de nés, como algo.do ital podemos nos apropriare wilizar; algo que tem a ver fundamentalmente com o ditil no seu sentido mais éstreita- mente pragmético, com a fabricagao de instrumentos, De outro lado, a vida se reduz a sua dimensio biolégica, & sa- tisfagiio das necessidades (sempre incrementada pela | do consumo}, a sobrevivencia dos individuos e das socieda- des. Quando dizemos que a educacio deve preparar para a vida, queremos dizer que deve preparar para ganbar a vida © para sobreviver da melhor maneira possivél em um en- torno vital (entendido enquanto uma espécie de nicho eco- 6gico) cada vez mais complexo. Nessas condigdes, & claro Literatura, experiénciaeformacio ‘que a mediacio entre o conhecimento e a vida nao é outra coisa sendio a apropriagio utiltaria. E, dito entre parénteses, est claro também que o problema central das pedagogias progressistas é o da distribuicio desigual desse recurso vi- tal que é 0 conhecimento, entendido como uma coisa que deve ser repartida de forma igualitéria, que nao haja uma apropriacio restrita, que nao sejam s6 uns poucos que se apropriem dele para seu beneficio exclusivo. ‘Mas voltemos & experiéncia. Para entender a categoria da cexperiéncia, tem-se de remontar aos tempos anteriores & cién- cia moderna (com sua especifica definigao de conhecimento} © sociedade mercantil (onde se constituiu a definigao mo- derna da vida). Durante séculos 9 saber humano foi enten- dido como um pathei mdthos, como uma aprendizagem seja pelo sofrimento, seja por aquilo pelo qual alguém passa. Esse 0 saber da experiéncia: o que se adquire pelo modo como sé vai respondendo aquilo que se passa ao longo da vida e 0 que vai conformando 0 que alguém €. Ex-per-ientia signi ca sair para fora ¢ passar através. Em alemio, experiéncia € Erfabrung, que tem a mesma raiz de Fahren, que se traduz normalmente por viajar. Esse saber de experiéncia tem algu- ‘mas caracteristicas éssenciais que 0 opdem, ponto a ponto, Aquilo que nés entendemos por conhecimento. Em primeiro lugar, &am saber finitdy ligado ao amadure- cimento de um individuo particular. Ou, de um modo ain- da mais explicito, é um saber que revela ao homem singular sta pr6pria finitude, Lembro, aqui, que a propria flosofia, pelo menos naquelas tradigdes que ainda pretendiam guiar a vida dos homens, é indiscernivelmente caminho de vida e antecipagaio da morte e preparacio para a motte, enten- dida essa como limite da vida (como limite da experiéncia © como experiéncia do limite), ¢ como 0 ponto em que a ida alcanca a sua plenitude, a sua totalidade e, portanto, Em segundo lugar, é um saber particular, subjetivo, rela- tivo, pessoal. Gadamer diz muito acertadamente que duas pessoas, ainda que enfrentem 0 mesmo acontecimento, nao nos nvestigatives 1 sofrem a mesma experiencia. E diz, também, que ninguém. pode evitar a experineia, ou seja, que ninguém pode apren- de da experiéncia de outro, a menos que essa experincia séja de algum modo revivida. Em terceiro lugar, é um saber que no pode se separar do individuo conereto no qual se encarna. O saber da experi- éncia no est, como esté o conhecimento cientifico, fora de nds, senso que s6 tem sentido no modo pelo qual configura - uma personalidade, um cardter, uma sensibilidade ou, en- fim, uma forma humana singular que é, por sua vez,éticay modo de se conduzir) e uma estética (um estilo). Pog siltimo, o saber tem a ver com a vida boa, entendida “essa Como a unidade de sentido de uma vida humana plena; uma vida que nao s6 inclui a satisfacao da necestidade sé- no, ¢ sobretudo, inclui aquelas atividades que transcendem a futilidade da vida mortal. O saber da experiéncia ensina a { viver humanamente ¢ a conseguir a exceléncia em todos os / Ambitos da vida humana: no intelectual, no moral, no poli- tico, no estético etc. 2u229i.0 . * “Acciéncia moderna, que se inicia emBacon)e alcanga a sua formulagao mais elaborada em Descarte’, desconfia da ex- periéncia. E trata de converté-la em um elemento do método, ou seja, do caminho seguro da ciéncia. A experiéncia nao é mais 0 meio desse saber que transforma a vida dos homens _ em sua singularidade, mas é o método da ciéneia objetiva, da ciéncia que se da, como tarefa para si, a apropriagao ¢ ‘0 dominio do mundo, Surge, assim, a idéia de uma ciencia experimental, Mas ai a experiéncia se converteu em expe- rimento, isto é, numa etapa no caminho seguro e previsivel que leva a ciéncia. A experiéncia nao é aquilo que nos pas- sae 0 modo como atribuimos sentido a ele, sendo como 0 modo pelo qual o mundo nos mostra sua face s Mos ra.sua face inteligivel, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade das coisas ¢ dominé-las. ~ ~A partir dai, o conbecimento ja nao é um pathei mdthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a in- ccerteza que isso implica, sendo uma mathema, uma acumt- Literatura, experitneiae formagio acto progressiva de verdades objetivas que, nao obstante, permanecerdo externas ao homem, ‘Uma vez vencido & abandonado o saber da experiéncia, e uma vez separado 0 conhecimento da vida humana, temos luma situacio paradoxal. Uma enorme inflagao de conhe- cimento objetivo (junto a uma pedagogia orientada no sen- tido de sua divulgacao), uma enorme abundancia de arte- fatos técnicos (e uma pedagogia orientada a fazer com que todos possam se mover nesse universo de instrumentos), ¢ uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que atuavam na vida humana, se inserindo nela ¢ a transfor- mando. A vida humana se tornou pobre e indigente, ¢ 0 conhecimento moderno nao é mais o saber ativo que ali- mentava, iluminava e guiava a vida dos homens, mas é algo que flatua no ar, estéril ¢ desconectado dessa vida na qual ‘nao pode mais se encarnar, Por outro lado, a educagio se converte em uma questo de transmissio de conhecimento, Ea ciéncia da educagao podera substituir a experiéncia sempre incalculavel do encontro entre uma subjetividade concreta com uma alteridadéque a desafia, a desestabiliza £8 forma, Na sua busca de um modelo de aprendizagem natural, a pedagogia se converte na realizacao de uma se- aiiéncia previsivel de desenvolvimento, no processo evolu- tivo de um sujeito psicolégico e abstrato, Espero que a recuperagio da velha idéia de experiéncia nos possa dar uma idéia daquilo que perdemos. avn: Essa idéia de experiéncia aplicada a formagio nao implica que se tem de dar mais importancia a narrativa li- terévia do que, por exemplo, as prescrigdes dos conteridos ‘mais formalizados e tradicionais de disciplinas como a Fi- losofia e a Sociologia? Ji Sim, mas no apenas a narrativa. Em todo caso, 0 que ‘me parece importante é a forma pela qual se constréi ¢ se presenta o saber humiaino se esse saber quer produzir efeitos na subjetividade. Hé um texto muito interessante de Maria ‘Zambrano, uma pensadora espanhola falecida recentemente, 140 Caminhos investigations 1 discfpula de Oreega, que tenta resgatar todas essas formas de pensamento que ndo abdicam de uma vontade atuante na vida humana. Nesse texto, ela fala dos Guias Espirituais, das Meditagdes, dos Didlogos, das Epistolas, dos Ensaios, das Confissdes. Todas essas sto formas muito abundantes no Renascimento e vencidas, desqualificadas e abandona- das em favor das formas sistematicas triunfantes, no fim do Barraco. E 0 que me parece muito importante, formas que tiveram seu lugar de surgimento em lugares como a Espanha, to é, em paises periféricos aos grandes lugares de producio da filosofia sistematica e do conhecimento cientifico. O que é caracteristico, nesses tipos de textos, é que, apesar de se~ rem humildes em sua pretensdo cognoscitiva, apesar de nao pretenderem 2 universalidade em seus enunciados, apesar de serem voluntariamente fragmentarios, nao perdem de vis- ta a situagao vital de seus destinatadrios, nio se afastam clos desejos de transformacao das vidas concretas das pessoas. Esse tipo de literatura nao pretende dizer a verdade sobre 0 {que sio as coisas, mas pretendem veicular um sentido para aquilo que nos passa. E, a partir desse ponto de vista, o que transmitem nao pretende ser compreendido e sabido, senao aceito e acolhido de uma forma sempre plural em uma vida humana sempre particular e concreta. Diferentemente da ci- éncia ou da filosofia sistematica ~ que se dirigem a um su- jeito universal e abstrato (idealmente, a todos os homens) ~, essas formas dirigem-se a cada pessoa em particular, & sin- gularidade de uma vida humana. Por isso, se é essencial 20 conhecimento sistematico ser compreendido de maneira ho- mogénea por todos os seus receptores, esst tipo de texto s6 pode ser assimilado de forma plural, a partir da situagao vi- tal particular de cada um, E ereio que esses tipos de textos, situados entre a literatura ¢ a filosofia moral, e que contém, mais do que uma ética formalizada, uma estética da exis- téncia ou um estilo de vida, poderiam ser um bom exemplo, lamentayelmente desaparecido, daquilo que poderiam ser as formas tradicionais de transmissio desse saber da experién- Literatura, experiéncia#formasao cia, que tem a ver com aquilo que somos, com nossa forma- cdo c nossa transformacio, Para especificar o tipo de literatura que teria de se ocupar para que a leitura pudesse ser uma experiéncia ce formagao € transformagao, talvez nos sirva 0 modo pelo qual Rorty caracteriza a cultura literdria. Diz Rorty: Se alguém quer uma nitida dicotomia entre as duas culeu- as (a cultura literdria e a cultura cientifca}, que pergunte a qualquer censor do leste europeu quais livros so impot- fantes em sen pais. A linha que ele desenhar cortaré cam- /p0s como a histéria ea filosofia, mas deixaré quase sempre a fisica de um lado ¢ as novelas de outro. Os livros no im- portantes seriam aqueles que poderiam sugerir novos voca- balarios para a autodescricio. Essa citagao poderia ser aplicada as instituigdes educati- vas. Os textos que poderiam ser censurados ou, em geral, os | textos que pocletiam ser objeto de uma batalha politica para sua introdugo ou nao nas instituigdes educativas, seria aqueles em relacao aos quais as pessoas podetiam apren- (der a se descreverem de outra maneira. Toda a literatura, “inas também uma parte da filosofia, uma parte da hist6ria, uma parte da sociologia (e no é dificil imaginar qual parte), pode contribuir para transformar a vida das pessoas, Por sua especial importancia, vamos agora tratae da nat- rativa literdria, que & 0 que tu contrastavas com o saber for- nializado das disciplinas sdbias que hoje predominam nas instituigdes educativas. Poderiamos comegar reconhecendo: 2's, quea vida humana nao consiste numa sucessio de feitos. Se gaa vida humana tem uma forma, ainda que seja fragmentéria, 6 ainda que seja misteriosa, essa forma a de uma natrativas “vida humana se parece a uma novela. Isso significa que d eu) que € dispersio e atividade, se constitui como uma unidade de sentido para si mesmo na temporalidade de uma hist6ria, de um relato. E significa, também, que o tempo se converte a4t Caminbos inestigativos 1 em tempo humano na medida em que esté organizado (do- tado de sentido} no modo de um relato. Nossa vida, se é que cla tem uma forma, tem a forma de uma historia que se des- dobra. Portanto, responder & pergunta “quem somos?” impli- €a uma interpretagio narrativa de nés mesmos, implica uma construgao de nés mesmos na unidade de uma trama, ¢ isso & anAlogo, entao, & consttucdo de um carater, numa novela. Por outro lado, sé compreendemos quem é outra pessoa a0 compreender as natrativas que ela mesma ou outros nos fa- zem. E como se alidentidadelde uma pessoa, a forma de uma vida humana concreta, o sentido de quem ela €e do que lhe passa, s6 se fizesse tangivel na sua histéria. Se isso é assim, a relagdo entre a narrativa e a compreen- so e a autocompreensio € evidente. Se o sentido de quem somos est4 construido narrativamente, em sua construcéo € em sua transformagao terao um papel muito importan- te as histérias que escutamos ¢ lemos, assim como o fun- cionamento dessas hist6rias no interior de praticas soci mais ou menos institucionalizadas como, por exemplo, as, priticas pedagégicas. A autocompreensio narrativa nao se roduz em uma reflexéo ndo mediada sobre si mesma, se nao nessa gigantesca fonte borbulhante de hist6rias que ¢ a cultura e emi relacio a qual organizamos a nossa propria experiéncia (0 sentido daquilo que nos passa) e nossa pré- sem somos). pria identidade (0 sentido AVN: Hé outro aspecto que eu gostaria que desenvolvesses, em relacao com a nogao de experiéncia. Que diferencia uma experiéncia (como a da leitura que tu propaes) de um experimento (como o que acontece numa aula fortemente plancjada, dentro de alguma pedagogia tradicional)? ju: A experiéneia, diferentemente do experimento, nao pode ser planejada de modo técnico. A atividade da leitura 6 as vezes experiéncia e as vezes nao. Porque, ainda que a ativida- de da leitura seja algo que fazemos regular ¢ rotineiramente, a experiéncia da leitura é um acontecimento que tem lugar em faras ocasides. E sabemos que o acontecimento escapa Literatura, experiénci eformagio ‘se € um acontecimento, nao pode ser causada, nfo pode ser antecipada como um efeito a partir de suas causasya Gnica coisa que se pode fazer é cuidar pata que se déem determi- rnadas condig6es de possibilidade: 56 quando confluem 0 tex-) t0 adequado, o momento adequado, a sensibilidade adequa- da, a leitura é experincia. Ainda assim, nada garante que 0 Seja: 0 acontecimento se produz em certas condicdes de pos- sibilidade, mas nao se subordina ao possivel. Por outro lado, uma mesma atividade de leitura pode ser experiéncia para alguns leitores mas no para outros. E, se for experiéncia, no serd a mesma experiéncia para todos, A experiéncia da leitura é também um acontecimento da pluralidade, mas de uma pluralidade que no pode se reduzir a um conceito. Um conceito é um universal a partir do qual se pode conceber as semelhangas e as diferencas. Se a experiéncia da leitura fosse um conceito, nos permitiria estabelecer 0 quadro ordenado das distintas leituras a partir de uma grade que estabelece- tia similitudes e diferengas, mas sempre a partie de um cen- tro que estabeleceria uma regularidade de descentramentos, a0 que poderiamos denominar a lei do semelhante e do di- ferente. Se tivéssemos um conceito pata a experiéncia da lei tura, nao liberariamos a diferenca, mas garantiriamos que sempre estivesse capturada por essa lei que determina iden- tidades a partir do semelhante e do diferente, a partir das distancias mensuréveis. Mas a pluralidade da leitura exige que a experincia se faca de tal forma que libere a diferenca sem capturé-la, Para que a leitura seja expetiéncia, tem de afirmar a sua multiplicidade, mas uma multiplicidade disper-! sa ¢ nomade, que sempre se desloca e escapa ante qualquer | tentativa de reduzila. ~ “A partir daqui, esta claro-que a experiéncia da leitura tem sempre uma dimensio de incerteza que nao se pode reduzi: E, além disso; posto que nao se potle antecipar o resultado, ‘@ experiéncia da leitura ¢ intransitiva: nao é 0 caminho até uum objetivo pré-visto, até uma meta que se conhece de an- temio, sendio que é uma abertura em dircg3o a0 desconhe- ido, em direcao a0 que nao € possivel antecipar e pré-ver. 144 Caminhos nvestigaivos 1 Voltando a tua pergunta, parece-me que a pedagogia (tal- vex toda a pedagogia) tentou sempre controlar a experiéncia da leitura, submeté-la a uma causalidade técnica, reduzir 0 espago no qual ela poderia se produzir como acontecimen- to, captura-la em um conceito que impossibilite o que ela poderia ter de pluralidade, prever o que ela tem de incerto, conduzi-la até um fim preestabelecido. Ou seja, converté-la em experimento, em uma parte definida e seqiienciada de um método ou de um caminho seguro e assegurado na di- regio de um modelo prescritivo de formagao. avn: Entéo, qual seria o papel do professor? Ou, mais con- cretamente, o professor se deveria colocar como alguém que deve revelar, aos alunos-leitores, um suposto “signi- ficado essencial” contido no texto? Ou deveria se colocar como alguém que ensina os cddigos dos quais 0 texto se serve? Ou, ainda, como alguém que simplesmente gestion nae administra o ato de ler durante a ansla? Ji: Comecemos pela segunda das tuas alternativas, aque- la que se refere ao c6digo. Poderiamos entender 0 cédigo ‘como a estrutura da qual cada enunciado extrai suas condi- goes de possibilidade e de inteligibilidade, algo como o sis- tema da lingua. Mostrar o cédigo seria, entao, empreender uma analise daquilo que faz com o que um texto seja com- preensivel ou, como diz Barthes, legivel. Qualquer andlise formal (seja tematica, semiolégica ou lingiistica) seria uma andlise desse tipo. E ensinar a ler seria ensinar a decifrar um texto a partir do cédigo que o torna possivel e legivel (a decodificé-lo, como agora se diz), algo assim como esse ensinar a ler em geral do qual falava Blanchot na citagao que anteriormente utilizei. Obviamente, isso é importante eas instituigdes educativas devem fazé-lo, © que ocorre € que a experincia da leitura € coisa diferente de decifar 0 cédigo de um texto. Além disso, a literatura ~ entendida no sentido amplo, algo assim como a cultura literdria de Rorty, segundo a outra citagdo que jé fiz - tem uma qualidade curiosa: trata-se de que cada enunciado compromete o ¢6- Literatura, experiencia eformacao digo em que se acha situado e compreendido. O que ocorre comma palavra literdria é que ela tem, em si mesma—e nao na lingua que a faz possivel seu principio de decifracio. Foucaultdiz isso com as seguintes palavras: A literatura converteu-se em uma palavra que inscreve nela ‘mesma seu principio de decifragio; ou, em todo caso, supde, ‘em cada uma de suas frases, sob cada uma de suas palavras, © poder de modificar soberanamente os valores ¢ as signifi cages da lingua & qual, apesar de tudo (e de fato}, pertence; suspende o reino da 0 cévligo da palavea literdria esté nessa palavra mesma e nao fora dela, em uma espécie de enroscamento da lingua- ‘gem sobre si mesma, em um tipo de flutuagao aberta e sem ancoragem dos signos sobre si mesmas, no préprio jogo da linguagem, E esse jogo, aberto ¢ no finalizado, indefinido, €o que faz. com que a experiéncia da leitura possa ir mais adiante da “leitura” de um texto a partir do sistema formal em que esta construtdo, Se 6 € experiéncia aquilo que (nos) ‘passa ¢ 0 que (nos) forma ou (nos) transforma, a experiéncia que fazemos ao ler um texto € diferente de decifrar seu c6- digo. B isso, entre outras coisas, porque cada experincia de leitura também suspende e faz. explodir o c6digo a0 qual o texto pertence. Por isso, e em relaglo ao cédligo, a leitura nao € atar um texto a um cédigo exterior a ele, senao suspender a seguranca de todo cédigo, leva-lo ao limite de si mesmo, ¢ permitir a sua transgressao. ‘Tua primeira alternativa nao se refere ao e6digo, mas 20 sentido. E, desde logo, a experiéncia da leitura nao é deci- fragao de um cédigo, sendo construc de sentido. Mas qual €o sentido de um texto? A criti: iteraria tradicional e os aparatos pedagégicos nos acostumaram a seguinte idéia de entido: o sentido de um texto estaria nas coisas que ele re~ resenta, nas idéias que ele cransmite, na vontade do sujeito essoal que o elabora, no contexto histérico-cultural em que le aparece, ou nos valores éticos ou estéticos que o texto en- » carna, Em todos esses casos, o sentido estaria fora do texto 145 ligativos | {ainda que fosse capturado a partir do texto). Perceber 0 sen- tido oculto ou manifesto de um texto seria, entéo, perceber €essas coisas, essas idias, esses sujeitos, esses contextos ou esses valores a partir do texto. O que ocorre € que a lingua- gem é que dé o perfil e a presenga das coisas, no mero ato de nomea-las; é que dé o ser e a forma As idéias, a0 enuncid- las; € que dé o ser € a densidade ao sujeito falante, no modo como ele fixa sua posiciio; € que dé o ser e a entidade a0 con- texto, no modo como o faz. brilhar sobre 0 fundo; é que da o ser € 0 valor aos valores, a0 fabricar os critérios de juizo. Ena literatura, nesse jogo de linguagem, em que a lingua- gem se enrosca sobre si mesma, liberada de toda atadura exterior, as coisas, as idéias, os sujeitos, os contextos ¢ os falotes esto sempre postos como & distancia de si mesmos. isso significa que todos eles perdem sua seguranca com que ‘repousavam em si mestnos, sua propria solidez, sua propria certeza, Por isso, a experiéncia da leitura pode ser outra coi- sa diferente de compreender o sentido de um texto entendido dese modo. Em relagio ao sentido, a leitura nao seria fazer com que 0 texto assegurasse seu sentido no mundo (nesse mundo feito de coisas, idéias etc. mas sim fazer com que 0 mundo suspenda por um instante seu sentido e se abra a uma possibilidade de re-significagao. Se o professor limita-se a mostrar 0 cédigo, esta conver- tendo 0 texto numa coisa que se tem de analisar e nao em ‘uma vor. que se tem de escutar. Se o professor pretende an- tecipar o sentido essencial do texto, esté também cancelan- do, de uma forma autoritéria e dogmética, a possibilidade de escuta, E para isso é indiferente que o revele aos alunos ‘ou que pretenda conduzi-los para que eles descubram por simesmos. Que predomine a ldgica da transmissio ou a da aquisigao é aqui completamente indiferente, posto que a aprendizagem pela descoberta significa que aquilo que 0 alimo deve descobrir € 0 que © professor ja sabe e ja previu e,na maioria das vezes, 0 que 0 professor escondeu cuida- dosa e furtivamente para que os alunos o encontrem. O pro- Literatura, exper foros a formagao [ fessor nao deve ter nenhuima idéia do que € uma boa leitura, ‘}¢ muito menos do que é uma leitura corteta ou yerdadeira, 0 professor nao pode pretender saber 0 que o texto diz e transmitir aos seu alunos esse saber que ele ja tem, Nesse caso, a0 estar antecipando o resultado, as atividades de leitura dos alunos setiam wim experitento, simples meios para chegar a um saber previsto de antemao e construido segundo critérios de verdade, objetividade et, ‘Mas isso nio significa que o professor nao tenha sua propria experiéncia de leitura ow que, ainda qué a tenha, nao deva mostré-la, Mas mostrar uma experigncia nao € mostrar um saber ao qual se chegou lainds que se tenha 0 Gaidado de apresenté-lo como provsétio, como particular ou como relativo}, Mostrar uma expetiéncia ngo é ensinar © modo como alguém se apropriondo texto, geno como 0 escutou, de que maneira alguém se abriu iguilo que o tex- to tem a dizer. Mostrar uma experiéocia é mostrar aia in- Guietude, O que o professor transmite, nti, é sua excita, a Sua abertura, a sua inquietude. E seu esforco deve estar dirigido no sentido de que essas formas de ateng4o nao se anulem por qualquer forma de dogmatism ou de satisfa- do. Nesse caso, ensinar a ler no € por ym saber contra outro saber (o saber do professor coatea 0 saber do altino ainda insuficiente), mas é colocar wma experigncia junto a outra experiéncia, O que o professor deve transinitir é uma relagio com o texto: uma forma de atencig, uma atieude escuta, uma inquietude, uma abertuta. Eigsa nao é s¢ tar a uma posigo passiva, nao € meramente administrar 0 ato da leitura durante a aula. Nao é 86 deixar que os alu- nos leiam, seniio fazer que a leitura, como experiéncia, seja possivel. A fungio do professor é manter viva a bi como espago de formagao. E isso nao significa produzie eru- ditos, ou prosélitos, ou em geral pess0as que sabem, mas € ‘manter aberto um espago em que cada um possa encontrar Sua prépria inquictude. Ha umas linhas d poderiam expressar essa dificil atividade: ‘Heidegger que 148 Caminhos investgativos I Ensinar é ainda mais di que 0 professor deva posst rmentos e té-los sempre & disposigo. Ensinar é mais d do que aprender porque ensinar significa: deixar aprender. Mais ainda: 0 verdadeito professor nao deixa aprender mais do que “o aprender”, Por isso também seu fazer produz, em ‘gral, a impressao de que propriamente nao se aprende nada com ele, se por “aprender” se entende nada mais do que a obtencio de conhecimentos steis. O professor possti, em relagao aos aprendizes, como iinico privilégio o de que tem de aprender ainda muito mais que esses, a saber: 0 deixar aprender. O professor deve ser capaz de ser mais d6cil do que os aprendizes. © professor est muito menos seguro ~ daquilo que leva entre as maos ~ do que os aprendizes. Dai que, onde a relacao entre professor e aprendizes seja a ver- dadeira, nunca entea em jogo a autoridade do sabichio, nem ainfluéncia autoritéria de quem eumpre uma missio, Deixar aprender nao é um nada fazer, sendio que € um fazer muito mais dificil e muito mais exigente do que ensi- far 0 que j4 se sabe. E um fazer que requer humildade e si- lencio. Mas que também exige audécia e falar alto, porque para deixar aprender tem-se de eliminar muitos obstéculos. Entre eles, a arrogincia daqueles que sabem, De todo modo, e felizmente, a experiéncia da leitura sem- pre 6 possivel, faga 0 que fizer o professor. O discurso nao pode controlar o discurso ¢ a novidade se produ. constante- mente, nos intersticios de todos os aparatos encaminhados a redu: avn: A imagem que fazes da literatura — como jogo de lin- guagem em que essa se enrosca sobre si mesma — me faz lembrar Escher e, especialmente, a famosa litografia Dese- nhar. Nessa obra, duas mios (ou serd apenas uma?) ~ nio especulares, porém rebatidas — se desenham, mutuamente a0 mesmo tempo, de modo que nao se pode saber qual a verdadeira e qual é a representada, ambas liberadas de Literatura, experiénciaeformasao toda atadura exterior. Essa imagem que fazes me remete, também, aos teus comentarios acerca das metdforas pre- sentes nos discursos pedagdgicos. Seria interessante que comentasses algumas dessas metdforas de que tens te ocit- pado: a imagem do férmaco, a metdfora da viagem, a do jogo, a da traducao e assim por diante. jt: O que eu fiz foi estudar as metéforas com as quais 0 dis- curso pedag6gico configurou essa misteriosa experiéncia que é a leitura. Uma metéfora que estudei em Plato, mas que é muito comum na tradigéo hermenéutica ocidental, & a da substancia que se introduz na alma, Para Platio, 0 lo- gos é como um farmaco, como uma medicina (e também ‘um veneno) para a alma. E ha toda uma tradicao no pen- samento segundo a qual o texto € portador de um puewma, de um animus, ou de um spiritis (de algo incorporal, em suma) que, ao misturar-se com a substancia etérea da alma, a.con-forma, a trans-forma ot a de-forma, Na metéfora da viagem, ler € como viajar, como seguir um itineririo através de um universo de signos que se deve saber interpretar cor- retamente, caso alguém nfo queira se perder. Descartes, por exemplo, descreve sua formacao humanistica como uma viagem (intl) através da biblioteca. Mas 0 importante des- sa metéfora é que a viagem exterior (0 percorrido pelo tex- to) estd dobrada por uma viagem interior; por uma viagem que converte o viajante em outro, diferente daquele que ha- via partido. Na metafora do jogo, ler € como jogar, como entregar-se a uma atividade mais ou menos regrada da qual se pode obter um certo beneficio, prazeroso e cognoscitivo. ‘Tem de se ter em conta, todavia, qué no jogo é o preprio jogador que se transforma e que aprende a ampliar as pos- sibilidades de sua subjetividade. Aprendendo, inclusive, que a propria vida é um jogo aberto em que alguém se transfor- lida que vai inventando e mudando as suas regras. E, por fim, na metafora da tradugio, ler 6 como transplan- tar o sentido dado, de uma determinada lingua para outra igua diferente, Claro que com a peculiaridade de que 0 transplantado nfo € algo mecanicamente apropriado, senao Pea a ES REET nn rca Ha A SERS ETA OR URN RE Caminhos investigativos 1 que modifica a lingua a qual se incorpora. Toda a elabora- io alema do tema da traducio em relagio a idéia de for- magi ~ Herder, Schleiermacher, Hambolde e até Goethe — descansa na convicgao de que o alemao moderno se con- figurou gragas as transformagdes a que se submeteu para poder traduzir a Biblia e autores como Homero, Cervantes, Ariosto ou Shakespeare. [Em todas essas metéforas temos uma imagem da leitura como experiéncia no sentido em que anteriormente defini- mos essa categoria. A leitura, como o férmaco, a viagem, © jogo ov a traducao, é algo que forma ou transforma o leitor. A leitura € algo perigoso: 0 fairmaco pode ser remé- dio ou venenos 2 viagem pode ser itil, mas também pode fazer com que 6 viajante saia do caminho e se extravie; 0 jogo pode ser o lugar de um ganho ~ ou de uma perda -, mas também 0 sitio onde se pode perder toda a seguran- 2, inclusive, perder-sese a tradugao pode fazer implodir aestabilidade da propria lingua. A experiéncia da leitura € miltipla: 0 farmaco atua de modo diferente em pessoas diferentes; cada viajante faz uma viagem diferente; nao hd uma estratégia segura que oferega garantias de que o jogo tenha éxito; cada tradugio produz um novo sentido sobre o \ traduzido. Nao se pode planejar a leitura de modo técico: ‘nao ha nenhuma técnica que prediga exatamente os efeitos dlo Farmaco; nao hé nenhuum mapa que assegure que 0 via- jante nao se perder; nao ha nenhuma regra técnica para o jogos e a traducao mecanica é imposstvel. ‘Outra coisa que me parece muito importante é que, em todas essas metsforas, a pedagogia quase sempre tentou controlar a experiéneia da leitura, antecipando seus resul- tados, reduzindo sua incerteza, submetendo sua multipli- cidade ea convertendo, definitivamente, em um meio para uum fim previsto, vw: Em relagio 4 metdfora da tradugdo, ew mesmo me ‘ocupei do realismo subjacente (explicita ou implicitamente) nas Teorias Criticas do Curriculo e, em especial, na Nova Literatura, experiencia eformagao Sociologia da Educagao (leia-se Michael Young e seus se- guidores). Nunca serd demais lembrar: A Nova Sociologia da Educagio problematica as montagens curriculares que se fazem a partir do amplo universo de conbecimentos de uma sociedade ou de uma cultura; mas nao problemati- a esses conhecimentos em si, ou seja, toma-os como da- dos e acessiveis desde que se usem linguagens mais exa- tas, mais precisas, mais transparentes, Mas, se assumimos uma perspectiva lingitistica, pergunto: qual seria o papel que se poderia atribuir aos professores a partir da idéia de que nio se pode esperar — nem muito menos exigir - deles a funcao de encaminbar seus alunos para uma interpreta- sioltraducao das coisas do mundo que fosse mais correta, mais verdadeira? JL: As teorias do curriculo, de fato, acreditam no conheci- mento como algo dadlo (algo que s6 se tem de ir atual do} ¢ na linguagem como algo transparente de modo ideal, cuja fungio primordial é a representacao verdadeira de um estado de coisas. Com esses pressupostos, sta elabo- ragdo das mediagées entre o conhecimento € 0 curriculo, centre o curticulo c 0 aluno, ndo pode ser senao ingénua. E como se 0 conhecimento fosse uma representagio dos fa- tos, 0 que nos da a verdade sobre aquilo que sio as coisas. £ também como se essa representacio, ao ser traduzida em curriculo, se organizasse de uma forma diferente (desde 0 onto de vista da transmisso-aquisicao e com diferentes vieses, segundo as pedagogias e os contextos socioculturais), mas permanecendo essencialmente a mesma. O curriculo nos daria distintas estruturacdes do conhecimento segundo distintos niveis de acesso. A tarefa da critica, desse ponto de vista, seria dupla: em primeiro lugar, algo como liberar 0 conhecimento de toda a distorgio e traduzi-lo em uma lin- guagem maximamente transparente e universal, reduzindo © que o conhecimento possa ter de idiossineratico e tratan- do de que ele funcione sem ambigiiidades, sem implicitos, sem opacidades, sem contaminagGes etc. Em segundo lugar, a tarefa da critica seria garantir um acesso aos niveis mais ast bos investigativos 1 altos do conhecimento que fosse igualitario ou, pelo menos, sem restricées a priori derivadas de desigualdades sociais, A respeito da segunda mediagao, aquela que se produz entre o curriculo e 0 aluno, é como se a representagio da verda- de das coisas contidas no curticulo, ao ser assimilada pelo luno, mudasse de novo de organizac4o ao adaptar-se as estruturas cognitivas particulares desse iltimo. A critica, nesse caso, nao seria outra coisa mais do que uma repeti- cio das posicdes classicas das pedagogias ativas e progres- gica da aquisigao (a capacidade adap- tativa ¢ readaptativa das competéncias cognitivas daquele que aprende) sobre a légica da transmissao (a organizagio standard do curriculo como algo a ser transmitido). Em ambos os casos, é como se a gente mudasse a indumenté- (a linguagem, o nivel de complexidade e a organizacao) ‘mas 0 personagem (0 conhecimento como uma representa ‘so dos fatos) fosse sempre 0 mesmo. Mas eu acredito que a imagem da tradugao, se esta suficientemente informada pela virada lingiiistica, nos introduz numa paisagem mui- tissimo mais complexa, mas inguietante e também mais ia de possibilidades. ‘Antes de responder & tua pergunta sobre o papel do pro- fessor, ocorre-me que é preciso ter presentes algumas coi- sas. Em primeiro lugar, que a idéia da tradugao parte da multiplicidade das Iinguas ou, caso se queira, do aconteci- do em Babel: isso significa que nao hé uma lingua de todas aas, nem sequer como limite de uma tendéncia ou como substrato profundo siltimo; que as préprias linguas vivem em uma mutagéo perpétua que faz com que tam- » sejam as mesmas em dois cortes hist6ricos relativa- que no interior de cada ingua ha enormes diferencas entre os grupos sociais que remetem a fatores como o lugar geografico, o estrato social, a ideologia, os estudos realizados, a profissio, a idade, 0 nite, que cada falante fala uma lingua particular. A traducao, portanto, € inerente 4 compreen- so humana, e ha traducao de uma lingua para outra, de Literati, exp 0 um momento para outro da de falantes para outro e, no limite, de qu ou escrito) ao seu receptor. Ler é traduzir. Interpretar é tra duzir, E toda tradugao € producao de novidade de sentido, contecimento tinico de sentido, Se h4 um argumento empirico para provar a multiplicidade e a mutabilidade in- finita da experiéncia humana, esse é 0 fato de que dezenas viduais. var de Babel, A lingua adamica, como se sabe, assegurava ma conexao perfeita entre os nomes ¢ os objetos € entre as. frases e os fatos. A transparente da realidade e a comunicacio imediata e sem sobras, entre os homens, estava garantida. Mas depois de Babel, como se tivesse acontecido uma segunda queda, as inguas j4 ndo so representacdes diversas dos mesmos es- tados de coisas ou expressdes distintas das mesmas vivén- cias: as linguas perderam sua congruéncia com as coisas, a compreensio se fez uma tarefa drdua ¢ infinita, Inde- pendentemente dos relatos miticos, a lingiiistica moderna criticou também a idéia de que a linguagem seja essenci mente representacao, uma espécie de superficie refletora em que a realidade se refletiria e se condensaria. A linguagem flutua sobre as coisas e cria sentido. A representacao no € seno um efeito do sentido, o realismo nao é senéo uma figura ret6rica e a verdade nao é sendo uma fabula solidi: ficada. Desse ponto de vista, a tradugio é algo muito mais complexo do que mudar o envoltério de uma tepresentagio erdadeira da realidade. Minha terceira observacao poderia se formular a partir do modelo esquemitico da traducio como a passagem de ‘um sentido de uma lingua-fonte para uma lingua-receptora e, como toda lingua difere da outra, tal passagem s6 se dé depois de um processo de transformagao. Traduzir, por- tanto, é re-significar. E qualquer modelo de comunicagéo 153 154 ‘Todo o ato de compreensio deveria ser um modelo da transferéncia e da transforma- ao do significado. No entanto, até aqui falamos como se se transformasse mas as linguas permanecessem se uma mera transferén- semantica. E 0 importante, me parece, é que cada ato de traducao de compreensio) desestabiliza fonte como a lingua receptora. difica a Iingua-fonte porque a constréi de uma determinada maneira. Aqui, a tese seria de que nao ha sentido original, sendo que todo sentido é ji resultado de modifica a Iimgua-receptora porque a forg possa acolher um sentido que nao havia previsto. Aqui, a tese seria a de que a tradugéo compromete a estabilidade da lingua: nao é tanto apropriagao a prépria lingua ou fa- familiar, como expropriacao da pr6- rizacao da lingua familiar. Talvez intenso e mais enigmatico disso sejam as tradugdes que Holderlin fez de alguns versos de Pindaro, de S6focles e de outros autores geegos e romanos. Ali, nes- se esforco por conservar a estrutura do sentido primitive Hordern explora de tal maneira a snspiracdo original dow classicos ¢ © modo como o alemao pode dar forma a essa inspiragdo, que os Ié como eles mesmos jamais tinham sido lidos. A tradugao, em suma, questiona ¢ refaz tanto o gre- go quanto 0 alemio. Parece, ento, que a tradugdo é uma operagao com a multiplicidade, a criatividade, a relatividade e a contingén- cia do sentido. Depois de Babel, as linguas tendem a uma diversidade quase infinita, ¢ a prdpria traducao é um meio para esse movimento de pluralizacdo, Em relagio a esse movimento, os aparatos de produgao e de transmissiio do conhecimento (os aparatos pedagégicos) tentaram, quase sempre, forgar uma tendéncia corretiva. Sua aposta foi pela omogeneidade e estabilidade. Bas nogdes de univer dade, de consenso ou de verdade foram os instrumentos dessa homogeneizagao e estabilizacao do sentido. Os apa- ratos pedagégicos estiveram, quase sempre, comprometi- dos com o controle do sentido, ou seja, com a construgio ea vigilancia dos limites entre o dizivel ¢ 0 indizivel, entre a razao e o delirio, entre a realidade e a aparéncia, entre a verdade e o erro, E, nesse momento em que a princip: ameaca é a homogeneizacao, talvez seja a hora de deixar de insistir na verdade das coisas e comecar a criar as con- dices para a pluralidade do sentido. Parece-me que 0 pel do professor € fazer com que a pluralidade seja possivel E isso € dar um sentido de contingéncia, de relatividade e, enfim, de liberdade. AVN: Para coneluir, talvez possamos voltar a esse texto nao escrito ao qual apontam teus trabalhos. Gostaria de que dissesses alguma coisa sobre a tua relagao a esse texto inexistente. jt: O importante, me parece, nao é tentar converter a expe- riéncia formativa da leitura em um objeto do qual se ter de dar conta. Gostaria de me manter em um nivel de intet- rogago no qual a pergunta sobre a leitura e sobre a forma~ io nao se convertesse em uma questo de historia, ou de sociologia, ou de filosofia, ou de lingitistica. Trata-se, me parece, de se por a escuta dessas experiéncias e de tentar pensé-las, mas com o cuidado de nao as determinar em sua verdadé. Quando digo que tento pensar essas experincias, nao digo que o pensamento pretenda recobri-las e determiné- las a partir do exterior, sendo algo mais elementar e, por sua vez, mais enigmitico: pensar essas experiéncias si fica que, em contato com elas, atendendo aquilo que elas nndo-as naquilo que tém de impensével, 0 ensamento se libere e se abra 8 sua prOpria transformacio. oucault falava do ensaio como experiéncia, isto é, como “uma prova modificadora de si mesmo no jogo da verdade”. 155 156 Camsinbos imvestigativos I Ea aposta de penser autrement, de pensar de outro modo, ndo é mais para Foucault outra coisa senao exercer “o di- |reito a explorar 0 que, no prdprio pensamento, pode se | mudado pelo exercicio de um saber que Ihe é estrangeira” Alguma coisa assim como essa é o que significa, para mim, a experiéncia do texto nao escrito. Mas 0 escrito nao é se- nao a figura empobrecida dessa experiéncia. AVN: O escrito, todavia, aponta no sentido da experién- cia que 0 tornou possivel, ainda que seja como unia sina- lizagao para algo que estd mais para cd ou mais para lé do préprio texto. Jt: Escrever (¢ let) € como submergir num abismo em que acreditamos ter descoberto objetos maravilhosos. Quando voltamos & superficie, s6 trazemos pedras comuns e pedacos de vidro e algo assim como uma inquietude nova no olhar, O escrito (¢ 0 lido} nao é senao um traco visivel e sempre decepcionante de uma aventura que, enfim, se revelou im- possivel, E, no entanto, voltamos transformados. Nossos olhos apreenderam uma nova insatisfagao ¢ no se acos- ‘tumam mais & falta de britho e de mistério daquilo que se nos oferece a luz do dia. E algo em nosso peito nos diz que, na profundidade, ainda resplandece, imutavel e desconhe- ido, 0 tesouro. SOBRE AS AUTORAS E O$ AUTORES. ALFREDO VEIGA-NETO 6 graduado em Historia Natural e em Misica, mestre em Genética e doutor em Educagio. Foi pro- {fessor titular do Departamento de Ensino e Curriculo da F: culdade de Educagao da UFRGS. Atua como docente e pes- quisador nos Programas de Pés-Graduiagao em Educagio da UFRGS e da ULBRA. Nos iltimos ro anos tem se dedicado aestudar a obra de Michel Foucault e suas conexées com a Educacao, especialmente no que diz respeito as questBes so- bre a interdisciplinaridace, Atualmente investiga as relagdes, entre a escola, o neoliberalismo, o multiculturalismo e a glo- balizagio, no registro das mudangas no uso e percep¢ao do tempo e do espaco, Tem imimeras publicagdes sobre educa- io, curriculo, disciplinaridade, entre as quais se destaca a organizagdo de Critica pds-estruturalista e educacao (Sulina, 1995) € Estudos culturais da ciéncia e educacao (Auténtica, 2001), Participa do conselho editorial de varios periédicos. - JORGE LARROSA é professor de Filosofia da Educacao do De- partamento de Teoria e Historia da Educacio da Universi- dade de Barcelona. Suas pesquisas tém resultado em grande rimero de publicagées. Entre elas, € organizador de Tra ‘yectos, escrituras, metamorfosis: la idea de formacién en Ja novela (PPU, 1994), Escuela, poder y subjetivacién (Ma- dri: La Piqueta, 1995), Dejame que te cuente: ensayos sobre narrativa y educacién (Barcelona: Laertes, 1995), Imagenes del otro (Barcelona: Virus, 1996) ¢ autor de La experien- cia de la lectura: ensayos sobre la formacién bumanistica (Barcelona: Laertes, 1996). Em lingua portuguesa publicou Imagens do outro (Vores, 1998), Pedagogia profana (Autén- tica, 2000) e Habitantes de Babel (Auténtica, 2001).

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