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ANAIS DO CONGRESSO INTERNACIONAL PET ae sate Pas} A RELIGIOSIDADE E SUAS ROUPAGENS: SER OU SER? Claudir Burmann* Resumo E a religiosidade uma das dimensdes fundamentais da vida humana? Essa é uma questo, cuja resposta definitiva ainda nao se sabe, Entretanto, diversos estudiosos situam a irrupgao da religiosidade junto ao surgimento do homo sapiens e a afirmam como parte da esséncia humana. ‘Assim como pensar, raciocinar, ter consciéncia de que existimos, a vivéncia religiosa é considerada algo préprio e intrinseco aos humanos. E, a partir da abservacao da presenca do fendmeno religioso| tem diferentes sociedades, percebe-se como assume roupagens variadas em contextos especificos. Por mais que a ciéncia e a racionalidade avancem de forma muito positiva em navas descobertas, a religiosidade continua presente na vida humana. Assim, a religiosidade se mantém em diferentes contextos contemporaneos, apesar de nem sempre ser admitida. O presente artigo empreende e aprofunda essa andlise Palavras-chave: religiosidade, fendmeno religioso, vivéncia religiosa, ‘Summary Is religiosity one the fundamental dimensions of the human life? This is a question whose definitive answer is not known. However, several scholars place the eruption of religiosity together with the emergence of the homo sapiens and hold it as part of the human essence. As well as to think, to reason, to be aware that we exist, religious experience is considered something in its own right and. intrinsi¢ to humans. From the observation of the presence of the religious phenomenon in different societies, itis perceived as taking different guises in specific contexts. Even as science and rationality ina very positive move forward to new discoveries, the religious phenomenon continues to be present in human life. Thus, religion is kept in different contemporary contexts, although not always admitted. This article undertakes and deepens this analysis. Keywords: religion, religious phenomenon, religious experience. Ser humano: ser religioso? Uma das perguntas relacionadas ao estudo do fendmeno religioso na vida humana é desde quando o ser humano manifesta seu modo de ser religioso. Inimeros estudos tém sido realizados em perspectivas diversas com conclusdes divergentes. Diversos saberes, como, por exemplo, Histéria das Religides, * Graduado em Ciéncias Socials e Teologia, pés-graduado om Ciéncias da Religio, mestre em Teologia na Linha de Pesquisa Praticas Sociais e Cuidado ~ Gestéo e Redes Sociais. Alua como docente na Fundacao Universidade Regional de Blumenau/SC-FURB, no curso Ciéncias da Religiao, = Licenciatura em Ensino Religioso e no Centro Universitario Catélica de Santa Catarina, Joinville/SC, no curso de Teologia. E-mail: i: mann@hotmail.com CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1,, 2012, Sio Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.258-273 Sociologia, Filosofia, Psicologia, Ciéncias da Religido e Teologia, tém feito afirmagdes dissonantes. Mesmo dentro de cada uma das disciplinas que em algum momento se ocupou com a questéo hd pensamentos até opostos. Evidentemente, isso 6 salutar para a investigacdo cientifica acerca desse fendmeno, uma vez que desencadeia sempre novos processos de investigago, estudo e reflexdo. A televancia da questo esta no debate em curso nos tltimos anos com afirmagdes no sentido de que se esta indo cada vez mais para uma sociedade pés- metaft ica ou po -religiosa. Entretanto, mesmo estudiosos e debatedores da ‘questo n&o so concordantes entre si acerca do modo em que isso estaria se processando. Ferry e Gauchet’, filésofos franceses, séo exemplos desse debate que ha tem estado em voga. Ha concordancia no fato de mudangas profundas estarem ‘em andamento no ambito dos fenémenos religiosos e 0 que deles decorre. Porém, ‘enquanto um fala das mudangas em curso como nova forma de manifestagéo do sagrado, com certa humanizago do divino e, 0 inverso, certa divinizagéo do humano, outro insiste que a religiéo esté saindo de cena cada vez mais com afastamento e separagéo cada vez mais amplo entre o ser humano e Deus. De outra parte, num contexto préprio, Negrao, socidlogo brasileiro, faz uma abordagem acerca das mudangas que tém ocorrido em torno do fenémeno religioso ao longo da histéria, Fala do encantamento e do desencantamento que foi ocorrendo no relacionamento entre religio e mundo. Esse autor conclui que a religido esté ai, continua a existir, tem o seu proprio espago estabelece interfaces com as demais esferas da vida social, cooperativas ou confitivas. Nem secularizagao entendida como condenacéo ao desaparecimento, nem dessecularizagao entendida como retomo a um passado definivamente ultrapassado, mas, simples permanéncia enquanto fato social dindmico, ‘complexo e digno de ser conhecido’. De certo modo, isso vai a desencontro de posicionamentos que afirmam o retomo ao sagrado ou retorno do sagrado ou, ainda, revanche do sagrado no contexto contempordneo. Afinal, o sagrado nunca deixou de estar presente para ocorrer um. retorno ao mesmo, embora tenha passado, desde sempre, por crises, reformulagdes ‘e manifestagao sob novos formatos e fenémenos. | FERRY, Luc; GAUCHET, Marcel. Depois da Religifo: 0 que serd do homem depois que a religiéo oixar do ditar a lei? Rio do Janeiro: Difel, 2008. Esso lvro traz um interessante debate entre esses dois autores, cujas posigées so mencionadas resumidamente nesse parégrafo * NEGRAO, Lisias Nogueira. Sobre os deuses que nunca se foram: somos encantados ov desencantados. p. 140, In: AUGUSTO, Adailton Maciel (Org.). Ainda 0 Sagrado Selvagem. Sao Paulo: Fonte Editorial; Paulinas, 2010. . 131-154. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 Nesse debate, 6 fundamental ter presente o ponto de partida de cada afirmago e posicionamento, ou seja, a partir de onde e de qual realidade o ponto de vista 6 manifestado. O locus vivendi, bem como as opgies ideolégicas e religiosas de cada autor, s4o condicionantes @ determinantes aos posicionamentos emitidos. ‘Afinal, 0 ponto de vista sempre depende da vista que se tem do ponto e das intengdes e opgdes presentes no olhar de cada autor ou autora. Nao ha posicionamento livre de subjetividade por mais objetivo que pretenda ser. A partir disso, compreendem-se os posicionamentos opostos encontrados na literatura que aborda o assunto. E classica a afirmagao que encontramos em Eliade, enquanto historiador das religiées, no sentido de que o sentimento reli 50, ou mais, a busca pelo sagrado é algo inerente a existéncia humana. Esse estudioso afirma: Em suma, o sagrado é um elemento na estrutura da consciéncia, ¢ no uma fase na histéria dessa consciéncia. Nos mais arcaicos niveis de cultura, viver como ser humano & em si um ato religioso, pois @ alimentagao, a vide sexual tém um valor sacramental, Em outras palavras, ser — ou, antes, tornar-se - um homem significa ser “eligioso"? Evidentemente, Eliade apresenta extensa investigagao acerca do fendmeno religioso que corrobora sua compreensao e afirmagao. Conforme esse autor, apesar da “opacidade” seméntica de documentos pré-histéricos, 0 ser humano pré-hist6rico ja tinha uma “religiéo", embora seja dificil determinar seu contetido*. Nesse sentido, Eliade elabora sua compreenséo rebatendo inclusive os posicionamentos manifestados acerca do fenémeno religioso ao longo do século XIX e XX por distintos estudiosos e mestres. A partir de outra ética e com abordagem propria, Kiing, tedlogo, também se posiciona nessa diregdo. De acordo com Kiing, Desde suas primeiras origens, o homem ¢ religioso, Os cultos tomaram @ tornam possivel interpretar os mistérios da vida e da morte. Desde os tempos mais remotos o homem busca felicidade, salvagdo e cura. O que muitlas vezes nos parece ndo ter nenhum sentido © provoca nossa admirago, aqui possui sua légica prépria, sua fungao propria. Nem tudo & superstiggo, magia, ou mesmo obra do deménio, como pretenderam os ‘europeus: Esse autor, na obra em que a citagdo acima é extraida, analisa diferentes tradigdes religiosas, buscando destacar pontos comuns capazes de cooperar para a promogao de uma forma mais pacifica de convivéncia entre a humanidade e o mundo S ELIADE, Mircea, Histéria das Crengas e das Ideias Religiosas I: da idade da pedra aos mistérios de Eléusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 13. Grifos do autor. *ELIADE, 2010, p. 19. * KUNG, Hans. Religides do Mundo: em busca de pontos comuns. Campinas: Verus, 2004. p. 42. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 circundante. Nesse sentido, compreende a religiosidade como algo inerente ao ser humano para sua autocompreensdo e autoafirmagao, sendo que aponta a um potencial positivo que Ihe seria propria para a implementagdo de uma nova ética planetéria. Ainda na mesma dirego dos autores anteriores, encontramos Croatto que, através do estudo fenomenolégico da religiao, muito além do estudo do fato religioso ‘em si, busca estudar e compreender a intencionalidade, o significado e o sentido da experiéncia religiosa para quem a vive — 0 homo religiosus. Croatto afirma que: Todas as culturas © todos 0s povos tiveram @ tém uma exprossao religiosa. Dizer “expresso” ¢ falar de manifestacSes de ordem religlosa que tém seu veiculo na simbologia, na inguagem, na literatura, na arte, em rituas Variadissimos, nos corpos douirindrios, em modelos de vida. Aquilo que & expresso de tantas maneiras, que de fato compreende todos os registros da atividade humana, é algum tipo de experiéncia do transcendente' Croatto ressalta a importéncia que a experiéncia religiosa tem para o homo religiosus, sendo que somente a partir dessa ética é que seria possivel apreender as ‘expressies religiosas da maneira mais correta. Nesse sentido, entende que, desde sempre, 0 modo de ser religioso tem sido parte do existir humano. © préprio modo de expresséio do ser humano em diferentes circunstancias estaria perpassado de alguma maneira, explicita ou implicitamente, por elementos religiosos. De outra parte, se é possivel perceber expressées religiosas presentes na vida humana desde sempre, mesmo assim pode-se colocar a pergunta se assim sempre seré ou terd que ser, Num tempo em que tudo que 6 cognoscivel é volatil — mais que liquido — 0 fendmeno religioso em suas mais variadas formas nao poderia passar ileso a questionamentos. Também no contexto do estudo do fendmeno religioso, néo hd o que deva estar imune a investigagdes, mesmo que para certas compreensdes isso represente apostasia. E claro que em outras compreensdes a profunda investigagao acerca do fenémeno religioso representa até mesmo um estimulo a uma fé cada vez mais esclarecida. E importante considerar que, de fato, 0 fendmeno religioso tem passado por transformagées constantes ao longo da histéria, sendo que no contexto contemporaneo nao ¢ diferente. Entretanto, nao hé parametros, por ora, para afirmar sua eterna permanéncia ou definitiva retirada da existéncia humana em algum momento. Ha que se considerar que a forma de ser dos fenémenos religiosos tem ® CROATTO, José Severino, As Linguagens da Experiéncia Religiosa: uma introdugao & fenomenologia da religiao. 3. ed. Séo Paulo: Paulinas, 2010. p. 9. Grifos do autor. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 sido muito variada, sendo que cada formato tem peculiaridades muitas vezes contraditérias em outros contextos sociais. Enfim, o ser humano continua religioso — mesmo que manifeste a nao crenga em algum deus ou deuses. 0 fenémeno religioso e suas roupagens Ao falar de reli ido, religiosidade ou fenémeno religioso, 6 necessério ter presente que sao termos que tém longa histéria e nem sempre tiveram o significado que na atualidade Ihe so conferidos. Quer dizer, 0 conceito que essas terminologias evocam nao univoco. Desse modo, é facil entender a razio de haver uma multiplicidade de explicagdes do que ¢ religiéo e a maneira em que é expressa nos diversos contextos culturais e sociais. Assim também a fungéo que uma tradigao religiosa desempenha através da religiosidade em que se manifesta e do fenémeno ‘em que se concretiza varia de situagao a situacdo. Ora sua fungao pode ser de legitimagéo, ora pode ser um elemento profundamente desestabilizador de determinadas realidades. Diversos estudiosos ja se debrugaram nessa andlise, percebendo a variabilidade funcional das religi6es. Dentre as muitas possibilidades de descrever seu sentido, Meslin’, especialista em antropologia religiosa, destaca a palavra religido: a) enquanto sistema de crengas e praticas — nocdo presente na palavra latina religio; b) como verdade absoluta para seus fieis ¢ aos que a praticam — apesar de ser experiéncia histérica, portanto relativa, torna-se parametro para julgar outras praticas; c) na fungao legitimadora da realidade cotidiana e da sociedade construida pela atividade humana — sob 0 aspecto sociolégico; d) como impulsionadora para, além da devogdo a algum deus, mover para agdo em relagdo a outras pessoas — como reflexo pessoal do ser humano reli $0; e) enquanto justificadora das atitudes ¢ agées humanas — num cunho existencial. E, assumindo palavras de um bispo anglicano, Meslin afirma que “A religiéo & aquilo pelo qual um homem vive; um homem pode viver pelo whisky ou pelos dividendos, por sua mulher e seus filhos ou pela nova Jerusalém: isso é sua religido”, Evidentemente, ha aspectos na compreensdo do autor acima que podem ser questionados. Apesar de seu amplo conhecimento também de tradigées religiosas " MESLIN, Michel. A Experiéncia Humana do Divino: fundamentos de uma antropologia religiosa Petrépolis: Vozes, 1992. p. 38. ° MESLIN, 1992, p. 39. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 nao teistas, 0 que mais esta presente em sua abordagem sdo tradigdes religiosas monoteistas, especialmente o cristianismo, 0 judaismo e 0 islamismo. Como ja mencionado, uma religiéo nem sempre cumpre apenas uma fungao legitimadora da realidade ou de sociedades como nem sempre tem intengao de impulsionar para alguma ag&o em relacéo a outras pessoas. Nem todas as religiées tém alguma preocupagao ética ¢ moral. De todo modo, os aspectos que menciona acerca do sentido da palavra religiéo tém sua relevancia em apontar para além de uma significagdo muito restrita do termo. Num modo tradicional, 0 termo religiao tem sido relacionado a necessidade que o ser humano teria em estabelecer uma religagao — geralmente a um deus ou divindade, Nesse sentido, muitas vezes, ao se falar acerca de transcendéncia, igualmente esse termo tem sido relacionado a uma religagéo com algum deus ou divindade. Evidentemente, a partir da leitura de determinados contextos isso faz sentido, Entretanto, a religagao do ser humano pode ser consigo mesmo, a desejos ou a possibilidades, independente da crenga em divindades extemas a ele proprio. Quer dizer, mesmo quem se posiciona como no crente em algum deus ou deuses, nem por isso necessariamente deixa de manifestar o lado religioso ou a necessidade de se religar em sua existéncia, mesmo que sejam questées visiveis e palpaveis, aparentemente profanas. Assim, no mundo contemporaneo, o fendmeno religioso tem revelado novas faces em sua manifestagao, Do mesmo modo, a afirmagao de transcendéncia nao precisa ter o sentido de transportar a pessoa para algum além sobrenatural a partir de sua crenga. Por ‘exemplo, Ferry, ao falar de transcendéncia®, aponta que sua nogdo “nao é redutivel a de heteronomia ou de dependéncia radical", embora seja uma compreensao existente e valida. E perfeitamente possivel e viavel a compreenséo de transcendéncia afirmada e concretizada na imanéncia. Ou seja, vivenciada no horizonte cotidiano em que o ser humano esté necessitado de transpor permanentemente sua situagao de vida, seja através de pequenos ou maiores sonhos e atitudes, seja através de satisfagdes materiais ou imateriais. Nesse sentido, 0 préprio desejo de transcendéncia é uma dimensdo inerente ao ser humano, independentemente de haver ou nao crengas em entes externos subjugadores ou no de seu ser. ° FERRY; GAUCHET, 2008, p. 27-28. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 E certo que 0 fenémeno religioso nem sempre se manifestou com a mesma intensidade em diferentes momentos histéricos nas diversas sociedades. Em diferentes épocas j4 houve a sensagéo de que o fenémeno religioso estava enfraquecendo, Ou, na compreenso mais comum, que os deuses ou os espiritos estavam abandonando as pessoas, deixando-as “ao leu” ou a seus préprios (des)cuidados. Infinitos rituais podem ser encontrados nas mais diferentes sociedades, buscando trazer de volta a presenga das divindades e suas benesses. Isso abrange prdticas tanto em tradigdes religiosas politeistas como monoteistas, sendo um pouco diferente, é claro, em tradigées religiosas nao teistas. Nem sempre 0 ser humano expressou essa questéo de modo racional e organizado num pensamento légico, Em seu cotidiano, a distancia, o afastamento aparente ou 0 sentimento de auséncia das divindades em sua vida tem sido sentido ¢ vivenciado na forma de tristezas, anguistias, desalentos, chegando a situagées extremas até mesmo a dar cabo de sua vida. Entretanto, cedo ou tarde, as divindades reaparecem com mais intensidade outra vez, revelando que continuam ativos e que o fenémeno religioso ndo esté extinto. Pode-se deduzir que as divindades apenas haviam pedido licenca para retormarem com nova roupagem, em principio, até estranha a seus veneradores e adoradores. Apés algum tempo, porém, a adaptacdo miitua ao modo de ser de cada qual novamente se estabelece, Quer dizer, 0 fendmeno religioso, seja de qual tradigéo religiosa for, 6 algo dindmico e passa por mutagdes, ora mais, ora menos evidentes. Aos olhos do homo religiosus, que vivencia essas transformagées, so muitas vezes & algo imperceptivel. Outras vezes, 6 motivo de conflto e resisténcia até uma reacomodagao de rituais e simbologias se restabelecerem. A reacomodagao pacifica ou conflituosa depende geralmente da intensidade com que as transformagées no modo de ser do fendmeno religioso se processam. Nessa diregdo, Meslin’” menciona que se trata de um fenémeno humano, cujas raizes se firmam em realidades socioculturais, e que em outro contexto sociocultural pode ter seu ‘equilibrio de adaptacao e aculturagdo dificultado. Nessa dinamica, é inevitavel a influéncia reciproca entre contextos vivenci @ 0 proprium do fenémeno religioso. E ai que ocorrem os sincretismos inerentes a todo fenémeno religioso, razio de mutagdes em uma mesma tradigéo religiosa MESLIN, 1992, p. 197. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 existente em contextos geogrdficos e sociais diferentes. Embora muitas vezes se atribua sincretismo apenas a determinadas tradigdes ou manifestagées religiosas, se no impossivel, é dificil encontrar expressées religiosas que nao tenham incorporado elementos contextuais. Esses elementos, sejam simbolos, rituais, doutrinas ou outros, geralmente séo adaptados e incorporados de variados contextos e, apés algum tempo, passam a ser considerados préprios da tradi¢éo religiosa que deles se apossou, Nesse sentido, as tradigdes religiosas, de modo geral, séo uma mescla de elementos diversos que foram se acomodando ao longo dos tempos, consolidando a maneira em que atualmente se apresentam. Reimer, tedlogo, estudioso e investigador dos textos que compéem escrituras sagradas judaico-cristés, exemplifica a questéo acima. Segundo esse autor, especificamente na constituigao das tradigées do chamado povo hebreu, ou povo de Israel, ou povo de Deus, houve um intercdmbio cultural e religioso muito intenso com povos circunvizinhos, caracterizando uma construgdo sincrética de grande envergadura. Reimer afirma que “Israel toma de empréstimo elementos culturais de povos e grupamentos humanos vizinhos. Mas provavelmente também fornece elementos aproveitaveis pelos vizinhos"’ Nesse caso, pode-se dizer que houve uma variedade enorme de elementos culturais e religiosos existentes previamente na regiéo do Oriente Médio que influenciaram na formatagao do que hoje 6 conhecido e tido como préprio do judaismo ou mesmo do cristianismo. Nessa diregdo, Croatto'? aponta que a experiéncia religiosa é fundamentalmente experiéncia humana e, enquanto tal, uma vivéncia relacional. Sua relacionalidade se dé com 0 mundo - a natureza e a realidade que nele ha, com outros individuos e com grupos de pertenga em sociedade. Além disso, a propria dimensao individual humana com seus desejos, projetos ou frustragdes faz parte da formulagéo de experiéncias de vida componentes de experiéncias religiosas ¢ traduzidas nos mais variados fenémenos. E nesse processo que ocorrem trocas, incorporagées, adaptagses de elementos que perfazem o conjunto de representagdes de determinada religiosidade. Isso tudo & parte do sincretismo presente nos fenémenos religiosos. "REIMER, Haroldo. inefavel © Sem Forma: estudos sobre o monoteismo hebraico, Séo Leopoldo: Qikos; Goidinia: UCG, 2009. p. 63. " CROATTO, 2010, p. 41-42 CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 Assim, 0 fendmeno religioso vai assumindo variadas roupagens ao longo de toda histéria humana sob influéncia de distintos fatores e contextos das diferentes épocas. Em diversos momentos da histéria, esse proceso inclusive levou religiosidades a0 ocaso, impulsionando a emergéncia de novas maneiras de expresso religiosas. Pode-se dizer que ja desapareceram muito mais religiosidades — e deuses — do que 0 que se encontra ative no tempo contemporaneo, Ou seja, desde sempre crises envolveram o fenémeno religioso, sendo que, nem por isso, chegou a extingdo. E isso esta presente inclusive no tempo contemporaneo. Desse modo, também 6 possivel compreender como determinada tradigo religiosa assume uma veste ora mais liberal ora mais ortodoxa, A incompreensdo dessa dinémica, ndo raro, conduz a dissidéncias intemas as tradigées religiosas. A realidade religiosa brasileira 6 um campo em que se pode observar com vigor essa questo. As roupagens com que a religiosidade das pessoas se reveste nesse contexto tem motivado a multiplicagéo de dissidéncias, seja para pretensamente resguardar formas e formulas seja para inovar formas e férmulas. Diversos elementos criticados ‘em determinada pratica ressurgem tao somente ressignificados em outra pratica, Em relagdo @ realidade religiosa brasileira em especifico, ainda é fato relativamente recente a transigéo que tem ocorrido do campo para a cidade, em ‘outros termos, 0 processo de urbanizagao. O fendmeno religioso em sentido amplo e a religiosidade das pessoas em sentido estrito tém passado por mutagdes profundas. A maneira de expressdo religiosa ¢ diferente em cada contexto. Nem por isso € possivel dizer que a ou as divindades sao outras. Entretanto, a roupagem & outra, de modo que paregam mais préximas a pessoa crente, seja de qual tradigéo religiosa for. Pessoas que vivem em meio a florestas, outras que vivem no campo ou outras que habitam em contexto macigamente urbano, todas vivenciam sua religiosidade com roupagem prépria, mesmo que ndo o reconhegam ou tenham consciéncia disso. Além do mais, importante 6 constatar que no tempo contempordneo o invélucro do fenémeno religioso nem sempre se deixa perceber como tal, sendo que ‘© que muitas vezes se apresenta como secular ou mundano nem sempre o é de fato. Aliés, no caso da questo do secular versus mundano, no fundo, trata-se de contraposicao incoerente. Afinal, 0 religioso pode parecer secularizado e 0 que se imagina como secular pode se estar revestido com religiosidade, Nem sempre as CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 vestes deixam evidente 0 contetido de um fendmeno @ no caso dos fendmenos religiosos nao é diferente. A. partir 80, 6 necessério ter presente que eligi lade ndo 6 necessariamente a afirmagao da crenga em deus, deuses, divindades e coisas do género. A existéncia de tradigées religiosas nao teistas atesta essa questo. Entretanto, mesmo nas estruturas soci is no consideradas enquanto instancias especificamente religiosas, formas de religiosidade se fazem presentes. A necessidade de transcender sua prépria incompletude e finitude leva o ser humano a estabelecer ligagées ou religagées que Ihe tragam salisfagao, prazer ou a sensagéo de estar sendo bem sucedido. Nesse sentido, aquilo pelo que vive, seja a busca de riqueza, a necessidade de consumo, sua familia ou até a ingestdo de entorpecente pode estar se constituindo numa forma muito prépria de religiosidade, revestindo o fendmeno religioso com roupagem muito peculiar. 0 fenémeno religioso e seu futuro ‘Sem davida, em certos contextos socioculturais, ha um colapso em tomo de determinadas tradigdes religiosas em andamento. As mudangas que tém ocorrido nos séculos recentes e, principalmente nas tltimas décadas, tém desmoronado sistemas religioso-teolégicos, além de outras compreensées sociolégico-f loséficas. ‘As novas tecnologias tém transformado a economia em nivel global, mas também os relacionamentos locais. Além disso, a consciéncia do tamanho do mundo global tem levado a perceber que muitas crengas sdo insignificantes e costumes, tradicbes & valores nao precisam ser eternizados como parecia necessdrio. Relacionado a isso, Cupitt, ilésofo da religido inglés, pergunta: Portanto, se sabemos que a crenga no sobrenatural esta fora de moda © inlelectualmente em més condigSes, por que relutamos tanto em abandoné- la? A resposta ¢ que, apegando-nos 20 que resia de nossas velhas crengas, podemos adiar a crise que teremos de enfrentar quando elas estiverem finalmente perdidas”, Evidentemente, trata-se de uma posigao especifica ¢ a partir de uma concepgao intelectual propria Outro filésofo francés, Onfray, também elabora criticas perspicazes e contundentes ao modelo religioso em voga, baseado na afirmagao teolégica monoteista. A {6 religiosa em algum deus 6 caracterizada como infantilismo mental ® CUPITT, Don. Depois de Deus: 0 futuro da religido. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 77, CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 ‘ou mesmo miséria espiritual. Esse autor se autoafirma como ateu, alguém ‘livre diante de Deus — inclusive para logo negar sua existéncia...""*. Onfray propde um processo de desconstrugdo dos trés monoteismos — judaismo, crist moe islamismo desconstrugao do cristianismo e desconstrugao de teocracias. Afirma que se recusamos a ilusdo da fé, as consolagées de Deus e as fébulas da religido, se preferimos querer saber e optamos pelo conhecimento ¢ pela inteligéncia, entdo 0 real nos aparece tal como é, tragico. No entanto mais vale uma verdade que desespera imediatamente e permite ndo perder completamente a vida colocando-a sob 0 signo do morto-vivo do que uma histéria que consola na hora, certamente, mas nos faz passar ao largo de ‘nosso {nico verdadeiro bem: a vida aqui e agora” Entretanto, a partir de outra compreenséo, a religiosidade pode ser vivenciada na afirmagao da autonomia humana, tendo a propria potencialidade humana como mais ou menos absoluta. Religiosidade nao precisa estar concebida como dependéncia humana em relagao a deuses e divindades que de algum além sobrenatural controlam e manipulam seus subjugados. Ao mesmo tempo, isso nado precisa significar o fim das tradigées religiosas ou fim dos deuses. No modo dinamico em que o fenémeno religioso tem se revelado, cedo ou tarde, 0 que parecia ter desaparecido pode ressurgit outra vez em nova roupagem. Compreendido como inerente existéncia humana, o fenémeno religi manifesta muito além das estruturas religiosas institucionalizadas e tidas como oficiais. Numa concepgo mais alargada acerca de religido, religiosidade e fendmeno religioso, & possivel afirmar que novos templos religiosos tém se constituido: por exemplo, shopping centers (religagéo consigo pelo consumo), avangados centros de ciéncia e tecnologia (religagao consigo pelo saber), parques de diversées (religago consigo pelo prazer) ou ainda as “cracolandias” (religagao consigo pelo éxtase). Se em alguma conceituagao religido jé foi caracterizado como fuga da realidade, essas novas formas nesses novos templos néo fogem necessariamente desse conceito. Pode-se dizer que toda religiosidade contém racionalidade propria, a partir de quem a pratica. Nao é sem razdo para seus seguidores. Também as criticas contundentes a formas religiosas especificas trazem em seu bojo uma nova forma relacional consigo e com o mundo circundante. Sob esse aspecto acabam se * ONFRAY, Michel. Tratado de Ateologia: fisica da metafisica. Sd Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. p. 15. * ONFRAY, 2007, p. 55. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 Postando como nova possibilidade © nova op¢ao para estabelecer a religagao do ser humano com sonhos, desejos e projetos. Essas criticas néo séo desprovidas da afirmagéo de transcendéncia na imanéncia, tendo o mundo conereto e a vida cotidiana como palco. Nesse sentido, essas manifestagées criticas no fogem da racionalidade e légica presente em outras formas de religiosidade. Enfim, € certo que em diferentes periodos historicos tem havido a predominancia de determinados pensamentos e prdticas religioso-filoséficas, O teocentrismo ¢ caracteristico de determinado periodo. O antropocentrismo igualmente é uma marca de um periodo histérico. Talvez estejamos na transi um novo tempo com énfase no ecocentrismo (énfase na preservagao do universo) ou “caninocentrismo” (énfase no cuidado a animais — cuidado muito maior que a seres humanos que padecem mundo afora), Outros perfodos se sucederao dentro da dindmica da existéncia. E 0 fenémeno religioso perpassa todos os periodos assumindo vestes e roupagens novas e préprias em todas as situagGes. De algum modo, praticamente em todas as situages da vida o fenémeno religioso acaba sendo considerado, seja positiva e negativamente. Isso, por si 6, j4 demonstra seu reconhecimento, independentemente de ser determinante ou nao dentro de diferentes realidades e contextos. Dificilmente algum dia deixara de se manifestar reconhecidamente ou nao, Referén CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiéncia Religiosa: uma introdugéo a fenomenologia da religido. 3. ed. So Paulo: Paulinas, 2010. CUPITT, Don. Depois de Deus: 0 futuro da religido. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, ELIADE, Mircea. Histéria das Crengas e das Ideias Religiosas |: aos mistérios de Eléusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. la idade da pedra FERRY, Luc; GAUCHET, Marcel. Depois da Religiéo: o que sera do homem depois que a religiao deixar de ditar a lei? Rio de Janeiro: Difel, 2008, KUNG, Hans. Religides do Mundo: em busca de pontos comuns. Campinas: Verus, 2004, CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Séo Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286 MESLIN, Michel. A Experiéncia Humana do Divino: fundamentos de uma antropologia religiosa. Petrépolis: Vozes, 1992 NEGRAO, Lisias Nogueira. Sobre os deuses que nunca se foram: somos encantados ou desencantados. In: AUGUSTO, Adailton Maciel (Org.). Ainda 0 Sagrado Selvagem. Sao Paulo: Fonte Editorial e Paulinas, 2010. p. 131-154. ONFRAY, Michel. Tratado de Ateologia: fisica da metafisica. Sao Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. REIMER, Haroldo. Inefavel e Sem Forma: estudos sobre 0 monoteismo hebraico. ‘S40 Leopoldo: Oikos; Goidnia: UCG, 2009. CONGRESO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. Sio Leopoldo: EST, v. 1, 2022. | p.274-286

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