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HisTORIA, MEMORIA, INVENCAO: A POLONIA DE PAULO PEMINSK! Marcelo Paiva de Souza (UFES) Projeto de monge e bandido, pé-de-cana e judoca, vanguardista e ‘marqueteiro, curitibano e universal. A pletora colorida e algo estapafiir- dia dos atributos - varios deles cunhados caprichosa ou relaxadamente pelo proprio Leminski —adverte logo de saida quanto a impropriedade de classificagdes simples e definigdes estreitas. E até ai tudo étimo, Por outro ado, ha de se convir que os rétulos acabaram pegando, ¢ sua constante recorréncia, em variantes mais ou menos espirituosas, jé tem muito de um ritualismo trivializado, t30 compulsivo quanto inécuo. Bom exemplo dessa espécie de folclore que se criou a roda do nome e da obra de Paulo Leminski sio as mengdes a ascendéncia polaca do escritor. Devem se contar nos dedos os depoimentos e estudos onde no haja uma alusio qualquer ao assunto, mesmo que sumiria. No entan- to, ao contritio do que se poderia inferir da freqiiéncia com que vem & baila, a questo do vinculo étnico de Leminski com a Polénia' nao parece ter despertado ainda um interesse propriamente critico, ficando antes res- trita a0 dominio nio raro tacanho da curiosidade e da anedota. Nao se trata de modo algum de fechar os olhos ao que de curioso ‘ou anedético possa haver no que concerne as raizes polonesas do autor. Mas o dado biografico pode levar bastante além, desde que se faca dele uma das chaves de leitura da criago, um dos fios a seguir por entre as tra- mas dos textos. Consiste nisso a hipdtese de trabalho esquematicamente desenvolvida adiante. A obra de Leminski tangencia em diferentes mo- mentos 0 mundo polonés. Desses pontos de contato resultam problemas especificos, & cuja delimitagdo e analise, posto que incipientes, ndo sera talvez ocioso proceder. Que o digam por exemplo os (poucos) leitores do Carataw. Ao se aventurar pela meditada algaravia do livro, eles foram depressa topan- do com a figura exoticissima de Kraystof Arciszewski. E a despeito das eventuais aparéncias, pronunciar aceitavelmente tanta consoante junta no seria nem de longe o mais dificil nessa histéria. Afinal, quem é 0 dito-cujo? "Para informagoes sobre a genealogia de Leminski, cf. Vaz, Toninho. Paulo Leminski: 0 ‘bandido que sabia latim, Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 20-21. Content ano XIV. 13-2008 199 Historie, meméia,invengdo: a polénia de paulo paminsk) Do fluxo moroso e erritico do romance-idéia coneebido por Le- minski vai aos poucos se deduzindo que, para o narrador e protagonista do relato, ninguém menos que certo René Descartes no mais rigoroso dos delitios em pleno Brasil colonial, Arciszewski é um amigo, um amante € uma espécie de guia, Luneta européia na mao ¢ uma erva nativa na cabega —“riamba, pemba, gingongé, chibaba, jereré, monofa, charula, ou pango, tabaqueagio de toupinamboults, gés e negros minas™ —o tal Cartesius bem que procura, mas nao acha latim com que explique 0 estranho mundo novo gue Ihe afronta os sentidos e a razao. Atarantado ¢ $6, a8 voltas com os monstruosos espécimes da fauna ¢ da flora tropicais reunidos nos jardins do palacio nassaviano em Olinda, o filésofo pergunta: “Brasilia, enlouque- ceste Cartésio?” E se no afunda de todo na terra movediga dessa suspeita, € apenas porque se agarra a teimosa esperanga da chegada, que acredita iminente, de seu querido companheiro polonés. Homem de armas, ha dez anos naquelas plagas a servigo dos holandeses, perfeitamente familiarizado com os enigmas e prodigios do lugar, Arciszewski, excogita Cartésio, “me tirard pelo coragdo a tempo da via das minhas dividas. O personagem tarda, porém. Vird de fato? Chegaré a tempo? Seri capaz de deter a degrin- golada do pensamento cartesiano, sustando a voragem das incertezas que 0 assaltam ¢ reconduzindo seu discurso aos trilhos seguros do método? ‘No momento oportuno, tudo isso € revelado pela efabulagdo do Catatau, Basta 0 que ficou exposto acima, entretanto, para que se tenha idéia do que o livro conta sobre Krzystof Areiszewski, para que se esboce um juizo acerca do papel ¢ da importincia do personagem na estrutura do romance. Verdade seja dita, o que se conta na obra sobre o misterioso po- Jonés no grande coisa, Mas em parte alguma esta escrito que devemos nos ater aos elementos explicitos no texto. Haver’ porventura outros a considerar, apenas insinuados na organizagao formal, mas to relevantes quanto os demais. Em nota de pé de pagina a narrativa, o leitor toma conhecimento de que Arciszewski é um personagem historico, um fidalgo de opinides lute- ranas que acabou banido da Poldnia e de fato combateu no Brasil a soldo dos holandeses. A informagdo decerto nao pertence a0 dominio piiblico ¢ talvez chegue até a surpreender. Em que pese no entanto o interesse do dado extraliterdrio tomado em si mesmo, importa antes de mais nada sa- lientar que se acusa aqui um padrao formal, um dos principios construtivos Leminski, Paulo. Catatan; sexunda edigio. Porto Alegre: Sulina, 1989, p. 15. primeira edigdo do livro € de 1975. 5 Leem. ibidem, p. 195. * Idem, ibidem. 9.18. 200 coments an XV, 19-2008 Marcelo Paiva de Souza do Catatau, Assim como no caso de Cartesius, evidente decalque ficcional do pensador francés René Descartes, o Arciszewski de Leminski espelhia distorcidamente uma figura histérica, duplica no ambito da ficgdo 0 merce- nario polonés arregimentado pela Companhia das indias Ocidentais.’ Prosador de assumida indole experimental, o autor curitibano nao tera recorrido a esse lastro mimético por apego a tradigdo e as convengdes do romance histérico. Nao se tera tratado de fazer da narrativa um regis- tro da histéria, mas antes 0 contrario: de transformar a historia em um dos registros do que se narra, um horizonte implicito no espago da ficgdo, uma instncia com a qual o romance — ironicamente ~ dialoga e cuja irradia ‘Ho galvaniza as pegas da intriga com uma determinada carga simbélica. Pressuposto em Cartésio, Descartes ¢ como que absorvido pelo Caratau, a biografia e a obra do personagem histérico se tornam de certa maneira ingredientes da forma do romance, Ihe emprestam ressonancia e signifi- cado. O que isso implica em termos analiticos parece decisivo. Para além da mera referéncia extratextual, esté em jogo todo um naipe de compl cadas relagdes intertextuais, um conjunto virtual de textos evocados pelo livro mediante alusdes, (cripto) citagdes, parafrases, transposigdes temi- licas, reminiseéncias estilisticas, variadas estratégias, em suma, 4s quais, correspondero outros tantos percursos de sentido. Ora, no que conceme a Renatus Cartesius, nfo hd qualquer difi- culdade para delimitar, ao menos em suas linhas gerais, o tepertorio in- tertextual assim mobilizado. Em suas incursdes pioneiras pelo Catatau, datadas respectivamente de 1976 € 1989, Antonio Risério e Haroldo de Campos nao deixaram de apontar, ainda que en passant, as relagdes exis- tentes entre o romance e 0 Discurso do méiodo, por exemplo, a inversio parédica a que Leminski submete a autobiografia intelectual de Descar- tes. Contrariamente ao firme roteiro do fildsofo, em seus esforgos “para bem conduzir a propria razdo e procurar a verdade nas ciéneias”, no car tesanato leminskiano, conforme Risério, 0 cogito acaba fraquejando, “a lamina da légica européia” acaba “‘irresistindo ao calor dos trépicos.”” Haroldo por sua vez sugere que a “Iengalengagem” do inebriado Carté- sio promove “um ensaio de liquefaciio do método e de proliferagao das 5 Conquanto © caso seja distinto, no personagem Occam também & fundamental a re- feréncia histérica. Dessa vez, a0 franciscano € filésofo inglés William of Occam (c. 1285-c.1349), 6 Descartes, René. Discurso do metodo; tradugao, preticio e notas Joao Cruz Costa. Rio de Janeiro: Eiigdes de Ouro, sem data, p. 57. 7 Risério, Antonio, “Catatate: cartesanato”. Jn: Leminski, Paulo. Ob, cit, p. Conta an XM +n 18-2006 201 istvia, mem6xe, evengio: a poténia de pauo peminski formas em enormidades de palavra (...)."* Em data mais recente, “com a finalidade nao s6 de evidenciar pontos em que acontece a subversio do sistema cartesiano, mas também de sedimentar 0 terreno para uma poste- rior caracterizagiio da visdio de mundo (...)"" presente no romance-idéia, 0 contraponto entre o livro de Leminski ¢ as obras de Descartes é retomado ¢ desenvalvido por Romulo Valle Salvino, que reserva para 0 problema um capitulo inteiro do belo estudo que dedicou ao Catatau. Enfim, a eri- tica tem avangado, e muito embora a pesquisa ¢ a discussdo do assunto ndo devam se encerrar por aqui, o fato € que jé sabemos com razoavel seguranga aonde vao dar as trilhas intertextuais indicadas por meio da figura de Cartesius. Salvo melhor juizo, no entanto, ndo caberia afirmar coisa seme- Thante, hoje, a respeito de Arciszewski. A quais infertextos a figura do mereendrio polonés abre caminho? E refazendo o trajeto de tras para dian- te, aque leituras do Catatau se pode chegar a partir daqueles intertextos? ‘Nem Haroldo nem Risério se propuseram tais perguntas, ndo se dispondo a ir muito além dos dados explicitamente fornecidos pelo romance sobre © intrigante personagem, Salvino se ocupa de modo mais detido da ques- 180, e dedica algumas paginas de seu estudo a um breve levantamento de fontes historiogrificas que informam sobre Arciszewski ¢ o periodo das invasdes holandesas"*, Nao que se confunda o ser produzido pela narrati- va com a criatura que deu o ar de sua graga em terras brasileiras durante 0 séc. XVII. O pesquisador procura, isto sim, empreender um exercicio interpretativo “envolvendo 0 texto de Leminski e 0s da historia”. Salvino parece todavia insatisfeito com os resultados da manobra, cujo “carster especuilativo” ele frisa, para em seguida concluit argumentando que o Arciszewski leminskiano, tanto quanto seus companheiros Cartésio ¢ Occam, € apenas um signo aberto a varias leituras, um conjunto de fragments, de cacos retirados da reserva intermindvel do passado, ao mesmo tempo esvaziados de algumas de suas caracteristicas originais ¢ preenchidos com outras para compor tum amplo leque de possiveis sentidos para seus virtuais leitores." ‘Campos, Haroldo de. “Uma leminskiada barrocodélica”, fn: Metalinguagem & outras ‘metas; quarta edigdo revista e ampliada. Sio Paulo: Perspectiva, 1992, p. 214. ° Salvino, Romulo Valle. Cafatau: as meditagdes da incertesa, $80 Paulo: Educ, 2000. p. 117, "S30 citados a esse propésito Gaspar Bariéu (Historia dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil), José Antonio Gonsalves de Melio (Tempo dos flamengos) Evaldo Cabral de Mello (Olinda restaurada: guerra e asticar no nordeste, 1630/1654). '" Idem, ibidem, p. 72. Os tiechos citados poucas linhas acima enconttam-se, respectiva~ mente, as p. 70.€ 72 Contato ano XV-n 13-2008 Marcelo Paiva de Souza Ninguém dira que nao, mas a modesta impressio que fica nesse momento & que voltamos & estaca zero, Pois se trata justamente de escla- recer a quais leituras o signo Arciszewski esté aberto, com que redes de outros signos ele se comunica, para assim tentar especificar as possibili- dades de sentido pertinentes no caso. Esta fora de diivida que a figura do polonés introduz no Cataraw um coeficiente de obscuridade que de ime- diato trai um célculo, um designio artistico. Arciszewski talvez seja um personagem destinado a operar to-s6 como uma incégnita no romance: no a rigor um signo aberto a varias leituras, mas antes refratério 4 inter- pretagao. As conexdes intertextuais presumiveis nele podem se provar in- significantes ou até inexistentes, 0 “movimento extroverso” que parece animé-lo no texto quem sabe leve apenas a um beco sem saida, Falsa ou no, contudo, a pista continua por ora inexplorada, Quem se habilita? E nao é s6 no Catatau que a obra de Leminski contém pistas apon- tando em diregdo a Polénia, Na pagina de abertura de Polonaises (e 08 acordes chopinianos desse titulo sem divida mereceriam um estudo a parte) lemos, primeiro no original ¢ logo abaixo dele em tradugdo para a nossa lingua, um poema do grande escritor romantico polonés Adam Mickiewicz. (1798-1855): Polaly sig Izy me czyste, rzgsiste, ‘Na me dziecitistwo sielskie, anielskie, Na moja mlodosé gérna i duma, Na mj wiek mgski, wiek kleski Polaly sig tay me czyste, rzesiste. Choveram-me légrimas limpas, ininterruplas, Na minha infancia campestre, celeste, ‘Na mocidade de alturas e loucuras, ‘Na minha idade adulta, idade de desdita; Choveram-me lagrimas limpas, ininterruptas...”” ‘A expressio provém de um conhecido comentério de Leminski sobre o Cataraw. Segun- do 0 escritor, a temperatura seméntica de seu romance se origina da “abrasdo entve 2 ‘mpulsos", entre dois movimentos contrapostos. Um deles. a “sistole cardiaca” do livro, sponta para as “raias subterrineas e canais atavicos da linguagem e do pensamento™. 0 outro, “documental, centrifugo, extroverso, se dirige para uma realidade extratextual precisa (referente), com toda 2 paratemalia de marcagao duma ambigneta fisica. geo- srifica,historica e portanto épica(...” CE. Leminski, Paulo, “Quinize pontos nos iis” in ob. cit. p. 211 2 A primeira edigio de Polonaises foi custeada pelo priprio autor, em Curitiba, no ano de 1980, Mais tarde 0 pequeno volume tornou-se uma das seedes de Caprichos ¢ rela- -x0s (¢f. Leminski, Paulo, Caprichos e relaxos; segunda edig&o. Sao Paulo: Brasiliense, 1983, p.45). const -an0 XV 18-2005 203 iste, mem6ria,invengdo: a polinia de paulo peminski O texto pertence as “iras de Lausanne”, pequeno conjunto de po- emas escritos a0 que tudo indica entre 1839 e 1840, e jamais publica- dos em vida pelo autor." Mickiewicz alids nao Ihes deu sequer titulo; a designagio atual se cristalizou por forga de uma tradigdo de leitura que remonta a 1856, a certa nota andnima publicada apds a morte do poeta, onde alguns dos textos eram chamados de “devaneios em Lausanne”. Os poemas alcangaram 2 posteridade na forma de manuscritos, autografos em estado lacunar, conservados hoje no Museu Mickiewicz em Paris. Como nao viria a propésito um exame mais minucioso dos intrin- cados problemas de ecdética relativos ao caso e da interessante historia da recepgfo das obras na cultura literdria polonesa, convém abrir mao neste ponto dos dois assuntos. Sera suficiente acrescentar, no que toca 20 primeiro, que o ar de parentesco que as liras compartilham entre si parece em principio encontrar respaldo nos manuscritos: os poemas foram nu- merados. Mas a numeragao nao abrange todos os poemas e, além disso. a parte da folha em que supostamente estaria 0 autdgrafo de “Polaty sig jzy” (*Choveram-me Ligrimas”, na versio de Leminski) foi arrancada e se perdeu. Teria 0 poema recebido um niimero? Teriam sido as liras de fato orquestradas como uma espécie de ciclo? As palavras de Marian Sta- la, critico responsaivel pela edigdo mais recente das liras, resumem com franqueza o estado da questo: “restam suposigdes ¢ conjecturas..."'* Se as lacunas no manuscrito privam os estudiosos de uma prova concludente da unidade de composigdo das liras, por outro lado impie-se constatar que o que tem sido reiteradas vezes designado de “carater de ras- cunho”® das obras parece corresponder a algo de substantivo em sua post ca, Desse ponto de vista, mais do que vicissitudes de registro, transmissio € conservagao, mais do que percalgos a contornar de um jeito ou de outro no proceso de edigao critica dos textos, o inacabamento ¢ o fragmentaris- mo seriam inerentes a forma das liras. Os sitbitos cortes ¢ interrupgdes, os abruptos vazios e siléncios interealando os versos remeteriam em tiltima instincia ndo a condigao dos autografos, mas a um principio de indetermi- nacdo depreensivel da estrutura mesma dos poemas ¥& Nas observagdes seguintes me valho da excelente edido das lias preparada pelo critico polonés Marian Stala, Além dos poemas propriamente ditos, acompanhados de uma cri- teriosa antologia de textos crticos que Ihes foram dedicados,a edigdo contém ainda umn erudito e licido estudo introdutdrio de autoria do organizador. CF. Stata, Marian (org). Liryki lozarskie Adama Mickiewicza ~ Strona Lemanu (antologia). Krakow: Universi tas, 1998 "© Stala, Marian. Ob. eit, p. 18 'S Idem, ibidem. p. 10 204 Comers - ano X=. 13-2008 Marcelo Paiva de Souta Para esclarecer melhor © ponto, devemos retomar por um instante ‘a0s versos transcritos acima. E inequivoca alia presenga de um eu liri- co, 0 qual, no entanto, néo sé nao aparece em nenhum momento, como sequer constitui o sujeito gramatical da Unica oragdo de que se compoe © poema. Sao as lagrimas que se derramam, jorram (acepgdes do verbo “polaé sie”), chovem, na perfeita solugdo tradutria escolhida por Le~ minski. E é por trés do espesso cortinado dessa chuva que se desenham © vulto do eu ¢ as paisagens elipticas de sua meninice, juventude e ma- dureza. Ignoramos 0 porqué das ligrimas, nao sabemos que dor lateja no aspero laconismo da formula “idade adulta, idade de desdita” (e aqui, no obstante recupere o pulso aliterativo do original, a tradugdo nao da conta da expressiva rima interna que solda “wiek meski, wiek kleski”), no sabemos que paixdes arrebataram © jovem, que esperangas brota~ ram nos campos da infincia. Dai precisamente, de tudo que se cala, a aura encantatéria do que € dito no texto. ‘Ao chegar & Suica, onde acupou um cargo de professor de literatu- ra latina na Universidade de Lausanne, Mickiewicz ja era autor de obras notaveis como o drama poético Dziady (Antepassados; 1823 ¢ 1832) e 0 painel épico do Pan Tadeusz (O senhor Tadew, 1834). E néo seria custo- 50 rastrear pontos de contato entre essas realizagdes ~ e as anteriores a essas - ¢ as firas. A imponente arquitetura teatral de Dziady, por exem- plo, € obtida pela justaposigao de fragmentos; na profusio de cores tons do hexametro do Pan Tadeusz, na sua riqueza melédica, plastica ¢ emocional, nao faltardo elementos que de algum modo reverberem nos ‘ersos escritos em Lausanne, A novidade das liras, porém, sua diferenga em relago a tudo aquilo que até ento Mickiewicz tinha produzido, néio poderia ser diminuida ou negligenciada. As peculiaridades formais dos poemas explicariam porventura a decisdo do autor de manté-los inéditos? A julgar pelas reagdes dos leitores da segunda metade do séc. XIX, havia bons motivos para cautela. Vindos a piblico, os poemas so acolhidos com a deferéncia de praxe diante do legado de um escritor de importancia reconhecida ~ mas sem entusiasmo, O fato de que os textos nfo tenham sido impressos du- rante a vida de Mickiewicz néo significa necessariamente que nao esti- vessem prontos para a publicagdo, No entanto, parece ter prevalecido na~ quela altura o raciocinio inverso. Na fase inicial de sua recepcdo, as liras no foram vistas como obras, no sentido pleno da palavra, mas sim como sobras da oficina literdria de seu autor, simples esbogos que a inspiragdo ou a paciéncia do poeta ndo teriam bastado para finalizar, Cones ano XIV. 13-2006 205 Histéia, meme, iwengdo: a polénia de paulo peminski Como ja foi dito, nao cabe aqui um excurso pela extensa fortuna critica dos textos. Vale a pena entretanto observar que a relativa indi- ferenga em face deles € decididamente coisa do pasado. Se aos olhos dos leitores do séc. XIX as liras puderam passar por simples esbogos, no séc. XX a posigio que conquistam é a de uma obra-prima da literatura polonesa, O divisor de aguas nessa historia foi o surgimento, em 1946, de um ensaio do poeta de vanguarda Julian Przybos. Ali se chamava a atengao, com sensibilidade e discernimento, para a forga de irradiagao artistica de uma das liras: “Desconhego poema mais compacto”, afirma Przybos, “pega litica em que a vivencia se tenha prendido a uma arma- 0 de palavras de modo tio firme e lapidar como em ‘Polaly si¢ zy”. ‘As conseqiléncias dessa intervengdo nos estudos mickiewiczianos nao se fizeram esperar. Dando prosseguimento as andlises de Przybos ~ sob a clara influ- éncia do juizo de valor defendido pelo poeta —o critica Czestaw Zgorzel- ski reconheceria pouco tempo depois nas liras o produto “de um tipo mais moderno de poesia”, separado por um abismo das etapas precedentes na trajetoria criativa de Mickiewicz. Bastante menos comedido nos ter- ‘mos, outro critico, Juliusz Kleiner, relé os versos discutidos por Przybos e conclui que esta diante de um “milagre da lirica mickiewicziana™”, s6 ‘comparavel em beleza ¢ intensidade a pérolas da poesia mundial como a ~Cangao noturna do andaritho” de Goethe." A mudanga nos protocolos de leitura e apreciagdo das obras nao poderia ser mais completa. Tanto as~ sim, que se torna aconselhavel recordar os bices da situagao de partida. ‘Nada garante que os autografos de Mickiewicz apresentem textos que o autor tomava por ultimados. “A verdade", conforme salienta 0 jit citado Marian Stala, “é incontroversa ¢ dramatica: as liras de Lausanne nao sio apenas uma obra-prima em manuscrito (gragas ao manuscrito?), mas tam- bém ~ uma obra-prima sem um formato definitivo. Uma obra-prima cujo texto & e permanecerd uma reconstrugo"™', escorada menos em certezas, de resto sempre frageis, do que em numerosas duvidas ¢ hipdteses. ™ Przybos, Julian. “Wierz-plac2”. In Stala, Marian. Ob. cit, p. 116. Apud Stala, Marian. Ob. cit. . 7. Kleiner, Juliusz. “Liryki lozafiskie”, In: Stala, Marian. Ob. cit, p. 134. 2 Iguaimente sugestiva é a comparagiio proposta por Micezystaw Jastrun, que enxerga ‘uma semeihanga entre as litas € 0s poemas escritos por Héldertin no periodo da loucura, Estes iltimos, assim como aquelas, conteriam uma mesma “extremada solidio, uma tensa concentragdo, uma luminosidade oculta no tecido do verso", Apud Stala, Marian. Ob. cit, p. 22 9. idem, p. 10. Conento =n X=. 13- 7006 Marcelo Paiva de Sure ‘Ao recriar em portugués um desses poemas de Mickiewicz, Le- minski no devia saber muito bem onde estava pisando”. E na verdade, isso pouco interessa. Importa, sim, que 0 leitor de Leminski no esteja desavisado. A epigrafe de Polonaises convida a it longe, e os rumos que ela sinaliza podem nao ser indiferentes para os estudos sobre o autor curi- tibano. Antes de mais nada, fique registrado o fato de que a tradugio de “Polaly sig Izy” inscreve Leminski na complexa histéria de recepgao das liras de Lausanne (e serve, por tabela, para que um outro brasileiro de ascendéncia polonesa dialogue criativamente com a obra de Mickiewicz: versa leminskiana foi musicada por Zé Miguel Wisnik).” Palmas entéo para o tradutor (e para o misico), que ele (s) merece (m) — quer pelo tino demonstrado na escolha do texto, quer pelo mérito artistico intrinseco & empreitada Uma anilise pormenorizada do fino lavor tradutorio de “Chove- ram-me lagrimas” exigiria tempo, ¢ ndo poderia dispensar a comparagaio meticulosa do texto com o maior mimero possivel de versées do poema de Mickiewicz para outras linguas. Na impossibilidade, aqui, de executar atarefa a contento, resta apenas dar uma nocdo das estratégias e achados de Leminski, cotejando-os brevemente com as solugdes de um segundo tradutor. 1 shed pure tears, countless tears, Over my childhood, idyllic, angelic, Over my youth, exalted, disordered, Over my manhood years, downfall years; | shed pure tears, countiess tears.” ® lids, segundo conta Henryk Siewierski, professor de literatura comparada na Liniver- de de Brasilia, ¢ tradutor de varias obras da literatura polonesa para 0 portugués, se Leminski tinha mesmio algum dominio do idioma polonés, seu nivel de conhecimento era muito rudimentar, O que toma a tradugdo da lira de Lausanne ainda mais interes- sante,€ claro. Ao que Siewierski se lembra, 0 escritor contou com a ajuda de alguém, & podemos supor que também teve & mio versdes do texto para outras linguas, Siewierski ‘conheceu Leminski em Curitiba no ano de 1986, ¢ conservou especialmente vive na memiéria uma cena que merece registro, Em dado moinento da conversa entre 0s dois, 0 eseritorcuritibano the mostrou, com uma expresso de certo orgulho e incontido enter- necimento, uma reliquia familiar, Era um velho tivro herdado do pai, uma velha edi¢a0 de poemas de Adam Mickiewicz. * A cangao, inttulada “Polonaise”, pode ser ouvida no dum José Miguel Wisnik (1992), dda gravadora paulista Camerati, Canta Na Ozzetti, acompanhada pelo proprio Wisnik {piano e strings), Jacques Morelenbaum (violonceios), Swami Junior (Baixo) ¢ Marcos Suzano (percussio). 0 arranjo € de Wisnik. * Mickiewicz, Adam. The Sun of Liberty: Bicentenary Anthology (1798-1998); Polish- English Edition by Michael J. Mikos. Warszawa: Energeia, 1998, p. 211 CConteno- ano XV 18-2008 207 istva, mena, nvengio: a pina de pauo peminek’ ‘A versio é de Michael J. Mikos, organizador de uma antologia lingtle dos poemas de Mickiewicz, publicada por ocasio do bicentenario de nascimento do escritor. De caso pensado ou nio, a tradugao se benefi- cia da caracteristica abundancia de monossilabos da lingua inglesa. De- corre disso um texto enxuto, nesse aspecto bastante préximo da economia verbal do poema de Mickiewicz. Em comparagto, os versos de Leminski parecem mais esparramados. Nao por falta de zelo, porém. Foi decerto em prol da contengo que se abriu mao do pronome possessivo na tercei- ra linha (“Na mocidade”), o que infortunadamente desarranja a rigorosa estrutura anaférica que amarra os versos centrais do texto, dando inicio, com preposigao seguida de possessivo, 4 segunda, terceira e quarta linhas do original (“Na me dziecifistwo"! “Na mojq mlodosé”/ “Na méj wiek”). ‘A versio leminskiana ¢ mais feliz entretanto ao restituir a marcagi0 ritmica do original. Neste, a cadéncia nao decorre de um molde versifica- torio®, mas da escansio natural da frase em suas unidades sintdticas, Va- riando entre dez e treze silabas métricas, os versos de Leminski mantém a mesma respirago, a mesma distribuigdo de pausas do poema de Mi- ckiewicz (observe-se a pontuagao nos dois textos). Na versio de Mikos, por outro lado, o balizamento ritmico no segue to de perto o original Repare-se como a virgulagao na segunda e terceira linhas do texto em inglés cria cesuras inexistentes nos versos mickiewiczianos. Repare-se também na escolha ~ sintomatica no que respeita ao estilo — de “idyll para substituir 0 polonés “sielskie”. A palavra utilizada por Mickiewicz significa, de fato, ristico, pastoril, idilico, Guarda todavia bem nitidas as humildes acepgdes do étimo “siolo”: aldeia, povoagao rural. O termo “campestre” nao se afasta dessa vizinhanga, 0 que ja ndo se poderia dizer da nobre genealogia do adjetivo inglés empregado (do grego eédvllion, diminutivo de eidos). Mas o lugar onde a versio de Mikos mais se diferencia da de Leminski, tanto no espirito como na letra, talvez seja a linha “I shed pure tears, countless tears”. A duplicagio de “tears”, a0 que tudo indica para 2 Em sev ensaio sobre a lira, Przybos chama a atengdo para esse aspecto: "Mas 0 que mais assombra é a construgao versificatéria do poema. Cam que verso Mickiewicz esereveu “Polaly sig lzy"? Escutemos 0 verso nao é nem sildbico. nem silabotdnico. nem tAnico. (Que €, entio? Esse verso nio pertence a nenhum sistema versificatério conhecido ~ ele uma descoberta precursora de novos caminhos ritmicos. O ritmo deriva naturalmente da construgio da sentenga, do desmembramento da frase nos elementos da sintaxe. E dificil distinguir onde age ainda o ritmo da versificagto e onde a cadéncia natural da frase, a alavanca que ergue e baixa os blocos de palavras opera com uma iniperceptivel precisio.” Cf. Praybos, Julian. “Wiersz-placz”. In: ob. cit, p. 19. 208 Contes - no XIV. 13-2006 ‘Marcelo Paiva de Souza manter o ritmo do original, tem a vantagem de acentuar 0 que ha de can- tabile no poema, Redunda entretanto numa repeti¢ao dentro de uma re- peticdo: a palavra corre duas vezes, num verso que aparece duas vezes, abrindo e fechando 0 texto. © procedimento envolve riscos num poema Go breve. Somada & reiteragao da linha, a reincidéncia do termo pe- tiga ganhar um peso indevido; repetida demais, a repeticao se desgasta, e j4 nao logra 0 desejavel reforgo expressivo.* Voltando as altemnativas lexicais, “ezyste”, em polonés, quer dizer castas, puras, asseadas, limpas. Leminski prefere “lagrimas limpas”, © que soa inusual, causando um leve efeito de estranhamento, € ndo ex- clui o sentido simbélico de pureza e purificagiio. A tradugao para a lingua inglesa, a0 contrario, opta por “pure”, solugao dbvia no contexto, e, salvo etro, poeticamente menos eficaz. A parte isso, a sintaxe da construgéio “to shed tears” entrega o ouro do poema, exibindo, tao maitisculo quanto inoportuno, aquele “I” que Mickiewicz nao por acaso oculta no original. Leminski, cioso das singularidades construtivas do texto que traduz, ndo discrepa do escritor polonés. E la esta, sob uma torrente de lagrimas que 0 revela a nossos olhos — mas a0 mesmo tempo o resguarda deles = 0 eu obliquo”” do poema, vibrando as cordas de uma lira de Lausanne impecavelmente afinada em lingua portuguesa. Nio basta entretanto que nos ocupemos de como Leminski wadu- ziu Mickiewicz. Resta ainda indagar acerca de seus motivos para fazé-lo. Por que, entre as linguas e literaturas 4s quais Leminski tinha acesso, a polonesa? Por que, no rico acervo da literatura potonesa, uma obra ro- mantica? Por que, enfim, na vasta obra de Adam Mickiewicz, uma lira de Lausanne? Sem temer (nem ocultar) o carter conjectural e provisério de uma tentativa de resposta, comecemos pela tiltima dessas trés perguntas. Isso, convém irisar, no medium da escrita. Na composicdo de Wisnik também se du- piicam as lagrimas do verso. Nada tem de expletivo, no entanto, a repetigao da palavra na linha melddica, que se propaga a forga de uma inflexivel necessidade interna, gota a ota, nota a nota, no espago-tempo da cancdo: “Choveram-me légrimas limpas, fégri= ‘mas ininterruptas.. 7” Os leitores de Leminski devem se lembrar daqueles versos de Distraidos venceremos, nos quais se tematiza uma espécie de ideal lingbistico, uma utopia de Finguagem. talvez imaleangavel, mas nem por isso menos desejada: “uma lingua bonita,’ misica, mais, que palavra,/alguma coisa de hitita praia do mar de Java", Nesse idioma perfeito, desimpedido de objetos (objectus, em latim, designa a agao de por diante, opor, batrei- +, obstaculo) ¢ das relagdes de sujeigdo, nesse idioma liberto de regras e modelos que Ihe cereeiem 0 uso, “Pronomes do caso reto, nunca acabavam sujeitos.” Cf. Leminski, Paulo, Distraidos venceremos: quinta reimpressio. S30 Paulo: Brasiliense, 1995, p.31. A primeira edigio do livro é de 1987. Content ano XIV. 19-2006, 209 stra, mama, evens: a polbnia de paulo perinski E coisa sabida que mesmo durante o periodo de sua atuagdo pro- fissional como tradutor, quando se incumbiu de uma série de trabalhos remunerados pela editora Brasiliense, 0 autor curitibano jamais descurou dos critérios na selegdo de seu repertério. Entre os titulos que verteu nessa época para 0 portugués, estéo o Supermacho de Jarry € 0 Sa- tyricon de Petrénio, Sol e aco de Mishima e Malone morre de Beckett™, “livros-pedreira”, na giria justa e cheia de admiragao do bidgrafo de Le- minski, Toninho Vaz.” Casos como a “prosa-pop™ de John Lennon ou a ficedo do italo-americano John Fante poderiam fazer suspeitar, a pri- meira vista, de uma concessdo ao mercado. Mas o palpite nao seria de todo correto, Nas estrepolias verbais ¢ na “verve cinica e sarcéstica” dos textos do bearle, Leminski discerne o “estranho habito” da portmanteau word lewiscarrolliana e “uma gota da baba de Dada." No romance de Fante, Perguirte ao pd, 0 tradutor acredita ter pela frente, na “hollywoo- diana Califomia dos anos 30”, a figura de um picaro, e um fluxo narra- tivo sorrateiramente atravessado pelo “fantasma de Joyce”. Em suma, quaisquer que sejam o autor ¢ a obra considerados, parece ter sido sempre determinante uma afinidade eletiva no plano da linguagem. Leminski se empenha em traduzir o que the interessa; como leitor, claro, e sobretudo = como criador. Se o quesito da forma tem a importaneia que tem nos titulos tra- duzidos profissionalmente, tanto mais relevante ele serd no caso de um texto destinado a constar como epigrafe em um dos livros de poemas do autor. Isto posto, ndo admira que a ateng’io de Leminski tenha se voltado para “Polaty sie izy”, Recorde-se 0 que foi dito paginas atras sobre as par- ticularidades das liras de Lausanne no conjunto da obra mickiewicziana. Retome-se ainda uma vez 0 texto para verificar seu rigor construtivo, sua densidade metaforica, suas inesperadas sutilezas ritmicas ¢ sonoras. sua concentragao ¢ intensidade. Julian Przybos salientow nesses versos uma en- ganosa, requintada singeleza, uma simplicidade conquistada “por tamanho “Todos publicados em So Paulo pela Brasiliense: 0s trés primeiros em 1985, € quarto ‘em 1986, © Cf. Vaz, Toninho. Ob. cit..p. 241 ® A expressto é de Leminski.C¥. "Lennon rindo”. fr: Lennon, John. Um atrapatio no tra- batho; transcriagao e posficio Paulo Leminski, So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 218. 3! Os termos entre aspas provém do jd citado posficio de Leminski aos textos de Lennon, « encontram-se. respeclivamente, as paginas 218, 215 e 218. 5 trechos eitados forain extraidos do ensaio “Double “John” Fantasy”, Cf. Leminski, Paulo, Anseios eripticos. Curitiba: Criar, 1986, p. 131 € 132. Originalmente, texto acom- panhava a traducdo leminskiana do fivro de Fante, editada pela Brasiiense em 1984. 210 Contest ano XV, 19-2008 Marcalo Paiva de Souza esmero artistico, que sequer o percebemos”.” O “maximo de substincia lirica no minimo de palavras"™, afirmou 0 poeta ¢ critico polonés, em cuja opinido exatamente por ai se mede o teor de radical inovagao da lira. ‘Alguém duvida de que Leminski assinaria embaixo? Com efeito, so de tal modo patentes 0s tragos formais compartilhados pelo poema do romantico polonés e a poesia do brasileiro. que, em vez de afinidade, quase caberia falar de uma relago de especularidade entre 0 traduzido @ 0 tradutor, Em sua compreensiva e ponderada apreciagdio da postica leminskiana, Leyla Perrone-Moisés nao nos deixaria mentir. Louvando a economia verbal do escritor, a pesquisadora sublinha os grandes perigos da forma breve. “O breve pode ser apenas pouco, 0 menos obtido por subtragdo,”* Nao assim, porém, nos versos do autor de Caprichos ¢ re- Jaxos ~“cifra certa”, “concentragao sem perda, o maximo no minimo”.* Leminski, segundo Leyla, é “poeta culto”, que trata a poesia como “pa- ciente trabalho de linguagem”.” O que em nada prejudica, no entanto, © desembaraco do gesto criador, sua limpidez e simplicidade. ‘Vejamos entdo, ponto por ponto, os resultados da analista: despoja- mento e esmero de linguagem, contengao e forga, concisao e densidade. A propésito de Leminski ou da lira de Lausanne que verteu para o portu- gués, as caracteristicas listadas possuiriam o mesmo grau de pertinéncia, Falou-se agora hd pouco de especularidade. A expressao pode dar margem a equivocos, ¢ requer portanto um esclarecimento. A sugestao de que 0 po- eta de Curitiba se vé de certa maneira no poema de Mickiewicz nao deve ser associada a nogées simpldrias de imitagao ou influéncia. Tampouco se deve confundir a concepgdo tradutoria em questo aqui com a idéia de reproducio, de mera transmissio do original de uma lingua para a ou- tra, Parafraseando um pouco Borges™, cumpriria constatar que a palavra “original” € indispensavel ao vocabulirio critico, desde que purificada de algumas de suas conotagées. Sio evidentes na lira de Lausanne as idios- sincrasias de Leminski, mas se ele nao a tivesse traduzido, nao as perce- beriamos. Logo, o parentesco entre o autor polonés € o escritor brasileiro talvez, jamais viesse a existir de fato. Nesse sentido, 0 original ja nao é 0 mesmo depois de traduzido, Leminski fez de Mickiewicz seu precursor. ® Prybos, Julian. Ob. cit. p. 117. * tbidem, p. M18. ° Perrone-Moisés, Leyla. “Leminski, 0 samurai malandto”. In: Jnl poesia. S80 Paulo: Companitia das Letras, 2000. p. 239. % Ioidem, p. 2360 239. * Ibidem: p. 239. CF. Borges, Jorge Luis. “Katka y sus precursores”. In: Obras compleras ~ I; decimano- 1a imprestin. Buenos Aires: Emecé, 1993, p. 89. Histéia, namie, ivengdo: a poldnia de pauio peminski Que 0 paradoxo nao assuste os mais prevenidos, nem entusiasme 05 mais afoitos; ele serve t4o-sé para realcar a dimensdo criativa do pro- cesso que temos em mira. O confronto com o poeta polonés representa para Leminski excelente oportunidade de pér & prova uma ligdo dos con- cretos a que foi especialmente sensivel: 0 postulado da tradugao como reinvengio da tradigdo e dispositivo de permanente estimulo 4 criagdo. A Juz das palavras de Haroldo de Campos, talvez se compreenda melhor a posigdo do autor curitibano: Em matéria de passado de cultura estou sempre atento (falando de poesia) Aquelas obras que respondam, de maneira viva, a uma pergunta extraida de uma circunstancia produtiva presente. E 0 que resulta dos meus escri- tos sobre “Poética sinerénica” (que datam de 1967). E 0 que eu encontro na aplicagao feita por Jauss, também em 1967, da “légica da pergunta ¢ da resposta” (via Gadamer) a leitura da tradicao artistica como uma dialética entre presente e passado, reencetada sempre a partir de uma questo atu- al, situada no presente. “Pois arrisca tomar-se irrecuperavel, desaparecer, toda imagem do passado que nao se deixe reconhecer como significativa pelo presente”, formulou luminosamente W. Benjamin na V das suas teses “Sobre o conceito de Historia” (1940). Nessa ordem de idéias, Mickiewicz teria desempenhado o papel de um importante interlocutor de Leminski, Em determinado momento de sua trajetéria criativa, o escritor brasileiro teria encontrado em “Polaly sig Izy” respostas validas para problemas artisticos cuja solugdo procu- rava. A tradugao da lira de Lausanne poderia ser entendida, assim, como parte da “pritica poética pessoal” de Leminski, como “construgo de uma tradig&io” que fosse, segundo preconizava Haroldo de Campos, “histéria sincronizada as necessidades de um presente de produgao".” Aceito em toda a linha o argumento, o item seguinte na pauta ganha redobrado interesse. Afinal, a historia que Leminski sincroniza ao agora de sua produgao, o pasado de cultura em que se reconhece e a0 qual traduz em presente criativo, é 0 romantismo. E todos sabemos que pauladas 0 esctitor jé levou por conta de suas inclinagdes (neo?)romanticas. Flora Sils- sekind denuncia os pactos subjetivos do que chama de literatura do eu no periodo pos-64 e, de passagem, cutuca “aquele ego que se expde, por vezes, de maneira tio onipotente na poesia de Paulo Leminski.”* Vinicius Dan- » Campos, Haroldo de, “Minha relagio com a tradigao & musical". fn: Metalinguagem & outras metas; quarta edigao revista e ampliada. Sao Paulo: Perspectiva, 1992, p. 258 Idem, tbicern p. 258-259, "CF. Siissckind, Flora. Literatura e vida literdria- polémicas, ddrios e reratos; segunda edigdo revista, Belo Horizonte: Ed, UFMG, 2004, p. 138, 22 onto -ano Xa. 13-2008 Marcelo Paiva de Souze tas pega bastante mais pesado, ¢ acusa a “posigdo lirica, intencionalmente mistificadora”, do autor de Caprichos ¢ relaxos, “o culto narcisico de Peter Pan como imagem do poeta (...)”."* De acordo com 0 critico, Leminski “se concilia absolutamente com tudo, inclusive com a imager do poeta mago, com a magia das palavras (no importa agora ser ela metalingiiistica), com © heroismo romantico”, o que equivale a dizer que 0 poeta mente € esti recaleando a perda de sentido da condigao modema da po- esia ¢ sua desimportancia social, (...) A graga ficil ¢ infantilizada de sua poesia, com seu faz-de-conta revolucionario, rebelde ou vanguardista, rutre sonhos adolescentes ¢ tem ouvidos moucos para o desmentido da realidade. Chegando tarde ¢ cansado para a vanguarda ¢ a revolugdo, $6 restou ao poeta curitibano se entregar & fantasia compensatéria de suas brincathonas palavrinhas. Hipertrofia do ego, mistificagao, narcisismo, infantilidade e fantasia ‘compensatéria. No entender dos estudiosos mencionados, a vizinhanga en- tre a poesia de Leminski e o romantismo ndo deu em coisa muito boa, A questo volta a baila em uma anélise mais recente, onde se che- ga, todavia, a conclusdes bem distintas, convictamente favoriveis dessa vez 4 obra em exame. Para Fabricio Marques, a concepgdo postica le- minskiana de fato se vincula, de um ponto de vista histérico, a matrizes romanticas, mas vai além destas.** Ora, os vinculos rominticos ninguém discute, € tampouco parece duvidoso que Leminski va alm dos limites do romantismo. O que ainda nao esta claro o suficiente € qudio além ele vai e como. Que medida atingem as apropriagdes ¢ convergéncias? Onde cedem o posto as divergéncias? Onde se da a superacao? E na hipétese contraria, por que ela nao se da? Fabricio frisa em seu estudo, com toda a razio, 0 estreito equacionamento de vida e poesia na obra do curitibano. Abre porém de imediato um paréntese, para ressalvar que a liga de verso e vivéncia nao implica um idealismo de estofo romantico, um privilégio inconveniente do eu criador as expensas do trabalho com a forma. A prio- ridade de Leminski, garante o pesquisador, consistiria em um rigoroso compromisso com a linguagem.** Vale a pena esmiugar esse raciocinio. CF, Dantas, Vinicius. “A nova poesia brasileira & a poesia. In: Novos Estudos Cebrap, mero 16, dezembro de 1986, p. 51. Idem, ibidem. “Cf, Marques, Fabricio. Ago em flor: a poesia de Paulo Leminski. Belo Horizonte: Au- tntica, 2001. Ver as paginas 58, 64 et passim. 8 Ibidem, p. 46, 70.¢71 Context ano XIV- 19-2006 213 Histo, meméra,invengéo’ a polénia de pauo peminski Salvo engano, 0 pressuposto técito é que uma concepgdo expressiva de poesia - como a romantica, por exemplo" — exclui um compromisso ri- goroso com a linguagem. E salvo novo engano, é de premissas seme- Ihantes que partem Flora Stissekind e Vinicius Dantas, no obstante suas conclusdes soarem muito menos lisonjeiras para com Leminski do que as, de Fabricio. Na verdade, a parte todas as suas diferengas, os trés juizos re feridos parecem se escorar numa sé definigao, implicita, de romantismo: inflagdo desmesurada (ingénua ou cabotina, tanto faz) do ego poético, sem a contrapartida do necessario lasiro critico de reflexdo ¢ construgao. Muito corrente entre nds, essa visto da literatura romantica padece de uma miopia ciclépica, que alias jé foi diagnosticada com exatidao por Arthur Nestrovski: Da forma como a nossa critica se refere, as vezes, ao romantismo, seria legitimo pensar que a poesia de Wordsworth, Holderlin, Keats, Shelley, Leopardi, Byron, Coleridge e Victor Hugo & uma experiencia ou de alu- cinados, ou de debutantes. Parte da intengio deste livro fo volume de ensaios Jronias da modernidade), entao, & mostrar, por um lado, como a literatura ¢ a musica do século XIX (romantismo e sucessores) nao é nada “romantica” nesse sentido trivial; e, de outro, como sto cruciais as continuidades entre a modernidade ¢ certas formas de pensamento e de expressilo que atingem um primeiro estdgio em tomno a Critica do juizo, no final do século XVIII. Para compreender melhor as diferenas da nos- sa modemidade, caberia, antes de mais nada, temperar com ironia nossa leitura das descontinuidades, que sem diivida existem, mas dentro de um contexto mais rico de vineulos e herangas.”” Para Nestrovski, isso “implica reconhecer o cardter marcadamente roméntico (no sentido histérico da palavra) tanto do modernismo quanto do pés-modemismo deste nosso fim de século.”* E suas palavras nao poderiam vir mais a calhar, Os quadros de referéncia que tém sido mobi- lizados para a leitura dos versos de Leminski incluem, invariavelmente, a poesia conereta, o haikai, o pau-brasil oswaldiano, a tropicalia, a geragdo marginal... Nada contra esse elenco, mas 0 autor curitibano pode e deve % Nesses termos a define o estuxlo formidavel de Meyer Howard Abrams, The Mirror ‘and the Lamp: Romantic Theory and the Criticat Tradition (paperback edition. Oxford: Oxford University Press, 1971). Sobre o assunto, consultem-se na obra, em especial, 0 capitulo introdutério ¢ 05 de nimero IV (The Development ofthe Expressive Theory of Poetry and Art) e IX (Literature as a Revelation of Personality) “CE Nesttovski, Arthur, “Ironia e modemidade”. In: Tronias da modernidade. S80 Pavlo: Atica, 1996, p. 14-15. * Ibidem,p.AS. 24 Contents ano XIV. 12 7006, Marcelo Paiva de Souza ser lido em “um contexto mais rico de vinculos ¢ herangas”. A tradugdo da lira de Lausanne de Mickiewicz instiga a tomar essa diregio, instiga a pensar, sem pressa ¢ sem prevengdes, em um Leminski romantico. (E para 0 caso de se objetar que 0 texto de Mickiewicz ¢ de tal modo ino- vador, que vai além do romantismo, ¢ bom insistir que problema se resume, precisamente, em demarcar essa distancia, em situar a obra, 0 melhor que se possa, em relagdo as coordenadas romanticas. O que nfio vale menos para Leminski.) Havia também se interrogado mais acima por que razio as distra- idas antenas poéticas leminskianas teriam se voltado, entre os apelos de tantos rumos e sinais, para os lados da longinqua Polénia, Uma das res- postas possiveis talvez ja esteja contida na propria pergunta. Para tratar do assunto, porém, sera preciso deixar de lado a atividade tradutora, ¢ passar Aqueles momentos na obra do autor curitibano em que seu “cora- ¢4o de poeta” pulsa, liricamente elaborado, como “coragao de polaco™’ Sirva-nos de ilustragao “Nardjow” (sic), texto que versa sobre 0 lugarejo onde, presume-se, nasceu o avé paterno de Leminski: ‘Uma mosca me pouse no mapa me pouse em Nardjow, aaldeia donde veio © pai do meu pai, 0 que veio fazer a América, ‘0 que veio fazer 0 contritio, a Poldnia na meméri oAtlantico na frente, © Vistula na veia, Que sabe a mosca da ferida que a distancia faz na came viva, {quando um navio sai do porto jogando a tiltima partida? Onde andou esse mapa que s6 agora estende a palma * In extenso, 0 poema de Caprichos e relaros do qual provém as expressies citadas diz: “meu coragdo de polaco voltou/ coragio que meu avé/ trouxe de longe pra mim! um ccorago esmagado/ um coragao pisoteado’ uni coracdo de poeta” Canes 0 XV <0. 19-2008 215 Fista, meme, invengSo\ a potinia de pauio peninski para receber essa mosea, que nele cai, matematica?®” O pano de fundo circunstancial detras do poema foi descrito assim por Toninho Vaz: Certa vez, diante das evidéncias de que suas origens estavam numa al- deia polonesa chamada Nardjow [sic], Leminski decidiria fazer uma investigagzo minuciosa no mapa-miindi, Debrugado sobre a mesa da bi- blioteca, ele gastaria um bom tempo tentando resolver esse mistério, sem nada conseguir, Nardjow, definitivamente, nao estava no mapa, J havia desistido quando percebeu uma mosca pousar sabre 0 mapa, dentro do territério da Poldnia. Calmamente ele pegou uma caneta e fez um circulo no ponto exato onde o inseto esfregava as patinhas ~ para decidir que ali estava Nardjow!"! “Logo depois”, anota o bidgrafo, Leminski “criaria 0 poema”®, ‘Nao precisamos aqui de escripulo em face dos fatos. Baste 0 modo como foram vistos e so contados, pois 0 testemunho fixa diversos dados de importincia. Estdo ali o interesse pelas origens, o esforgo aturado e meté- dico de investigagao, a intromissdo repentina do acaso. © mais precioso contudo no relato & a énfase que reserva a0 voluntarismo da reagao do poeta. Incapaz de localizar Narajéw no mapa, nem por isso Leminski deixa de alcangar a sua meta, Com um circulo de caneta, ele inventa Na~ rajéw. Atente-se para o tom imperativo das duas linhas iniciais do poema. Que 0 inseto pouse no mapa, e que me pouse onde eu quero, bem na aldeia de onde veio o pai do meu pai. O gesto inesperado, que transfor- ma a contingéncia em necessidade, tem um sutil correlato no nivel da forma, Entregue as moscas, em portugues, diz-se coloquialmente de algo abandonado, esquecido. Todo o contrario do que se verifica no texto, na geografia desse mapa esquadrinhado com amorosa minticia, repleto de aventura e lembranga, de feridas nunea cicatrizadas, de portos e partidas, de jogo, errincia e descoberta. Mas se importa sobretudo a vontade de descobrir, tanto melhor, entio, que sejam longinquas as terras prometidas, que haja todo um Atlin- tico na frente de quem viaja. Como que invertendo a rota de seu avo, Le- minski toma, ele mesmo, um navio para a Polénia. E nessa travessia imag CF. Disiraidos venceremos. Ob. * CE. Vaz, Tonino. Ob. cit, p. 247 ® poider, p84. 216 Content ano XV 19: 2008 Marcelo Paiva do Souza néria, trata-se menos de localizar raizes, que de enraizar-se no solo de uma escolha, trata-se menos de documentar o marco zero de uma origem, que ¢e forjar uma persona, de criar uma identidade. Sob esse aspecto, 0 Vis- tula na veia fiteraria feminskiana, 0 coragio de polaco batendo em verso € prosa, constitui um exercicio deliberado de autoconstrugao, de afirmagdo e cultive de uma diferenga. Leminski nao fez de sua polonidade um projeto estético ou politico. Nao fez da etnia um panfleto, De todo modo, como se procurou demonstrar neste ensaio, a presenga da Polénia ¢ uma constante em sua obra, Andando pelo pais de seu avd, sem nunca ter deixado o Brasil, Leminski visita muitos tempos ¢ lugares. Mal se percebe, as vezes, quando se cruzam as fronteiras entre a historia ea meméria, entre a provincia do lembrado € os dominios da invengdo. Resulta dai um roteiro complexo de leitura, que nao deveria ficar entregue as moscas, CConento ano XV =n. 19-2006 217

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