Resenha
Marcos Francisco Napolitano de Eugénio*
OBRA: “DO AMOR E OUTROS DEMONIOS” (tradugio de Moacir
Werneck de Castro). Editora Record, Rio de janeiro, 1994, p. 221.
AUTOR: Gabriel Garcia Marquez
Em 1949 um jovem repérter colombiano foi designado para fazer a
cobertura jornalistica da remogao das criptas funerdrias do convento de
Santa Clara, em Cartagena das Indias. Deveria ser mais uma cobertura
jornalfstica de praxe, mas um fato impressionou o repérter: a descoberta
de uma ossada de crianga; quando sua lapide foi aberta, a golpes de pica-
reta, “uma cabeleira viva cor de sangue saltou para fora da cripta” (p.
11). No total a cabeleira possuia “vinte e dois metros e onze centime-
tros”. A ossada era da pequena marquesa de nome Sierva Maria de Los
Angeles, filha do marqués Don Ignécio Alfaro y Duefias, “o 2° Marqués
de Casalduero”.
Espantado com o fato, o repérter Gabriel Garcia Marquez, imedia-
tamente lembrou-se das histérias contadas pela sua avé sobre uma
marquesinha que morrera aos doze anos vitima de raiva, que era venerada
em todo Caribe pelos seus milagres. “A idéia de que aquele timulo pu-
desse ser dela foi a minha noticia do dia e a origem deste livro” (p. 12).
A partir deste mote, Garcia Marquez, 0 consagrado escritor (Pré-
mio Nobel de 1982 pela publicagdo de Cem Anos de Soliddo), coloca 0
leitor no mundo colonial do século XVIII. O ataque de “um cachorro cin-
zento com uma estrela na testa” 4 marquesinha nas ruas de Cartagena é 0
acontecimento inicial que desencadeia a trama. A narrativa se desenvolve
num estilo labirintico, tfpico de Garcia Marquez, onde a trama nunca se-
gue uma linha continua, mas propée ao leitor um vaivém entrecruzado de
eventos ¢ personagens.
Depois da mordida no tornozelo a marquesinha, que havia sido re-
*Universidade Federal do Parand,
Rev. Bras, de Hist. | S.Paulo |v. 16,n°31e32] pp. 370-374 1996
370jeitada pelos pais e criada pelos escravos, dos quais recebera 0 nome de
Maria Mandinga, passa a ser o alvo das atengdes de todos os outros perso-
nagens. Sua morte acaba sendo prenunciada por uma fndia andeja, de nome
Sagunta, que tinha a fama de “aborteira e remendadora de cabagos, mas
compensava com a virtude de conhecer os segredos dos indios para fa-
zer sarar os desenganados”. Paradoxalmente, é a partir deste vaticinio
que o pai de Sierva Maria, D. Igndcio de Alfaro y Duefias, “um homem
fiinebre, mal humorado, e de uma palidez de lirio por causa da sangria
que os morcegos the faziam durante 0 sono” (p. 17), passa a perceber a
filha e desenvolver todos os esforgos para salvé-la. Por amor ou por vergo-
nha de deix4-la morrer de raiva, nio se sabe: “‘seja Id o que for, mas doen-
¢a de cachorro ndo!”, repetia. Primeiramente, D. Igndcio tira a filha do
convivio com os negros, com os quais vivia desde que sua mie a rejeitara,
por achar que a filha era uma feiticeira.
A mie de Sierva, chamada Bernarda Cabrera, outrora uma “mesti-
¢a bravia e com uma avidez de ventre de saciar um quartet”, pouco se
importava com a filha, chegando mesmo a desenvolver uma repulsa a sua
presenca. Decafda como ser humano, ao perder seu amante Judas Iscariotes,
perdera igualmente sua beleza e vitalidade, ao se entregar ao consumo
exagerado de mel fermentado ¢ barras de cacau. Sua vida definhava, e seu
cotidiano se resumia em ficar na alcova soltando “umas ventosidades ex-
plosivas e pestilentas que assustavam os mastins” (p. 16).
Na luta para salvar a filha, o marqués encontra um aliado: o médico
de origem portuguesa, cristo novo, e com fama de herético, Abrentincio
de S4 Pereira Cio; homem de letras ¢ sdbio de estilo medieval, que adora-
va citar saudagdes em latim. O médico, que abominava as cirurgias por
considerar uma arte inferior, “tipica dos barbeiros e curandeiros”, se es-
forga em salvar a crianga, utilizando-se de artes medicinais ancestrais,
baseada em ervas, poges e predicas.
Apesar dos esforgos do sdbio, Sierva Maria comega a manifestar
indicios da doenga, padecendo de febres e desvarios. Seu pai apela para os
“trés médicos formados, seis boticdrios, onze barbeiros sangradores e
um sem ntimero de curandeiros e mestres e feitigarias” (p. 77) que ha-
viam escapado das visitagdes do Santo Oficio. Mas a menina continuava
se afundando em “vertigens, convulsdes, desmaios, espasmos, solturas
de ventre e de bexiga” (p. 77), que passaram a chamar atengiio na cidade.
O bispo Don Torfbio de Céceres y Virtudes, um anciao espanhol,
preocupado com 0 vexame piiblico do padecimento de Sierva Maria suge-
re ao marqués que a menina deveria ser internada no convento de Santa
Clara para um diagnéstico de sua situagiio. Desconfiado dos antecedentes
371da misteriosa menina que aprendera a “dangar antes de falar, se comuni-
car em trés linguas africanas, beber sangue de galo em jejum e a esguei-
rar-se entre os cristdos sem ser vista ou pressentida” (p. 66), 0 bispo
acredita se tratar de um caso de possessio demonjaca. Para ele o deménio
muitas vezes “assume uma aparéncia de uma doenga imunda para se
introduzir num corpo inocente”.
Accontragosto, o marqués admite a internagiio de sua filha no convento.
* Também a contragosto, a abadessa espanhola Josefa Miranda, que comanda-
va as freiras espanholas ¢ nativas enclausuradas, accita a presenga de Sierva
Maria. Inicialmente, Sierva Maria é esquecida nos espacos do convento e a
prinefpio nao lhe reservam muita atengdo. Aproveitando-se disso ela se agrega
As escravas, revelando-lhes o scu nome de senzala: Maria Mandinga.
Depois de alguns dias, percebendo a sua estranha figura no convento,
a abadessa ordena que a menina fosse confinada numa cela solitaria, ao lado
de uma ex-freira acusada de assassinato. Coisas estranhas comegam a ocor-
rer no convento: seis galos cantam “como se fossem cem, um porco tinha
falado e uma cabra parira trés cabritinhos”. Todos os fenémenos, obviamen-
te, creditados & Sierva Maria de Los Angeles ou Maria Mandinga.
Enquanto isso 0 bispo havia designado o seu auxiliar, 0 padre-bi-
bliotecério Cayetano Alcino Del Espiritu Santu Delaura y Escudero, de
origem crioula, para realizar o diagndstico de possessao ou doenga natu-
ral. A partir daf a est6ria ganha uma nova dose de tensfo, caminhando
para o seu final trégico.
O padre Delaura, de s6lida formagao humanista, leitor de Leibniz
Voltaire, amante dos versos de Garcilaso de La Vega, ainda que assaltado
por temores e diividas, aceita a missao e vai conhecer a menina. A princi-
pio trata de melhorar as condigdes de higiene do cércere onde estava Sierva
Maria, aplica-lhe curativos nas feridas ¢ realiza uma série de perguntas as
quais a menina nao responde. Na segunda visita Sierva Maria, dominada
por um surto, ataca o padre, aplicando-Ihe uma mordida na mao. Apesar
dos reveses ii is, o padre Delaura nao desanima e acaba conquistando a
confianga da misteriosa marquesinha. Jé na terceira visita “foi embora
excitado pela revelagdo de que uma coisa imensa e irrepardvel comegara a
acontecer em sua vida” (p. 131).
A cada visita o sentimento do padre Delaura se tornava maior e ele
nota alguma reciprocidade em Sierva Maria. Ele aos 36 anos, ela aos 12,
passam a compartilhar a experiéncia de um amor sublimado, que adquiria,
paulatinamente, a forga das aguas represadas. Apés um encontro com
Abrentincio, que funciona como uma verdadeira sessio de psicandlise (p.
167 e 174), o padre Delaura transtornado, assume seu amor ¢ conclui ao
372bispo apés outra visita conturbada a menina: “E 0 dem6nio, meu pai. O
mais terrivel de todos!”.
Condenado a fazer peniténcia num leprosario da cidade, ao ser sus-
peito de libidinosidades com a marquesinha, o padre Delaura nio desiste ¢
descobre um ttinel que levava praticamente a cela de Sierva Maria. O pa-
dre passa a visité-la todas as noites. Ao longo das visitas, a menina passa
a corresponder ao amor do padre. Os versos de Garcilaso de La Vega tra-
duzem o amor dos dois: “Quando péro para contemplar meu estado e ver
‘0s passos por onde me trouxeste / Eu acabarei, pois me entreguei sem arte
a quem me saberd perder e acabar”, recitam em conjunto, “exaustos, mas
virgens, pois ele decidira manter seus votos até receber os sacramentos”.
Mas 0 processo de exorcismo de Sierva Maria se tornara irrevers{vel.
Raspam-lhe a enorme cabeleira ruivac 0 bispo pessoalmente resolve expul-
sar 0 deménio do seu corpo. O padre Delaura, disposto a libertar a menina
do convento, se vé impotente, vitimado pelas caltinias e pelo preconceito,
Numa noite resolve invadir 0 convento para libertar sua amada mas é desco-
berto pelas freiras. Julgado pelo Santo Oficio, o padre € condenado a cuidar
dos leprosos, entre os quais passa a viver em promiscuidade na esperanca de
contrair leprae morrer, j4 que seu amor havia sido abortado.
Sentindo-se abandonada, sem saber do paradeiro do padre Delaura,
Sierva Maria acaba definhando e, numa certa manhi, € encontrada “morta
de amor na cama, os olhos fulgurantes e pele de recém-nascida”, No cra-
nio raspado todos podiam ver os seus cabelos ruivos ainda crescendo,
O mundo colonial, retratado por Garcia Marquez, se configura num
jogo entre liberdade e opressio, onde os personagens vivenciam a histéria
através do estranhamento. Esse estranhamento se percebe em diversos as-
pectos descritos: 0 tédio do cotidiano colonial, a exuberfncia provocadora
da natureza, a artificialidade dos valores ocidentais, a convivéncia de cul-
turas e ragas diferentes e exéticas entre si.
tédio cotidiano acaba abrindo espago para que qualquer evento
diferenciado assuma ares de “maravilhoso”: as festividades populares com
a chegada das Frotas ou do novo Vice-Rei; a chegada de uma escrava
sedutora; a ocorréncia de um eclipse; a erupgao de alguma epidemia; a
possibilidade de uma possessdo demoniaca. Tal qual um cronista medie-
val, Garcia Marquez no assume nenhuma jactincia ao narrar estes acon-
tecimentos especiais, inserindo-os no cotidiano dos personagens, como parte
de um imagindrio fluido e ambiguo, a partir do qual a sociedade colonial
reelaborou suas referéncias histéricas fundantes.
373A opressio cotidiana vivida pelos personagens se traduz em sensa-
(do de exilio, solidio, claustro e no limite, na perspectiva da propria mor-
te, que é narrada sem solenidade. Nenhum dos personagens principais es-
capa a essa opressio, mesmo se tratando de clérigos, nobres, sdbios ou
administradores reindis. Aliés, Garcia Marquez parece sugerir que 0 pre-
go da dominagao colonial é a opressao individual vivida pelos membros da
elite mandante. Ironicamente, o autor descreve os exclufdos como os tini-
cos que podem escapar as regras sociais institufdas: mendigos, leprosos,
loucos ¢ escravos, bem como os seus espacos (respectivamente: as ruas, 0
leprosério, o asilo e a senzala) parecem estar aquém e além das normas.
Na senzala a menina Sierva Maria encontra abrigo ¢ felicidade depois de
ser rejeitada pela mae. No leprosario o padre Delaura passa a viver sem
regras, depois de ser condenado em praga publica e expulso da comunida-
de. J4 os espagos do poder, como a Casa-Grande ¢ 0 Palacio Episcopal,
sao descritos como espagos ligubres e decadentes, rufnas precoces de um
mundo recém instituido e ja decadente.
Nesse mundo opressivo, o sexo ¢ 0 amor surgem como promessas,
possibilidades de liberdade e encantamento de um cotidiano indiferenciado.
Mas as regras morais ¢ sociais acabam por impedir a sua consuma¢io,
fora dos estreitos padrées. Assim, a experiéncia do amor se confunde com
a presenca do “demdnio”, o “outro” que deve ser climinado para que os
valores, precariamente institufdos permanegam eficazes. Nessa tensdo, 0
mundo colonial consegue inventar formas de absorver o “maravilhoso”,
nas fissuras das estruturas sociais: Sierva Maria torna-se, postumamente,
uma milagreira popular. O fato do seu cabelo continuar crescendo apés a
sua morte, surge como uma vinganga contra 0 sofrimento imposto pelo
preconceito e pelo obscurantismo.
Ao configurar o mundo onde a realidade e a fantasia convivem sem
sobressaltos, magma a partir do qual se sedimentou a cultura contempora-
nea da América Latina, Garcia Marquez oferece ao leitor um exemple de
abordagem de temas caros as mentalidades, estudos do imagindrio e de
culturas historicamente datadas. Obviamente trata-se de uma abordagem
aria, construfda por uma genialidade impar, além dos limites e possi-
bilidades do officio do historiador.
De qualquer maneira, Garcia Marquez nos provoca uma reflexdo
hist6rica, na medida em que o “maravilhoso” ¢ 0 “cotidiano” continuam
presentes na nossa América Latina. Uma presenga que, por vezes, se anuncia
como um “dem6nio” apaixonante, perturbando, ainda hoje, os espiritos
iluministas e modernizadores que se recusam a olhd-lo de frente.
374