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Mo SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA & gah phe? ecs|A ER-000013e8~1 I comma “Tredugso de: Se/UERV]| ocagao I] PERMUTA [Bad Pah | PRAGMATISME ET SOCIOLOGIE SOCIOLOGIE ET PHILOSOPHIE , (3. recerados osdictos UES desta edigfo por " il RES-Editora, Lda, [19- 1920000592 RESEors Lda Sos, pra sa 4000 PORTO-PORTUGAL Evaristo Santos, ‘Titulos originaie: PARTE! PRIMEIRA LICAO (1) Introdugéo Quais os motivos que me levaram a escolher 0 assunto deste ‘curso? Por que o intitulei de Pragmatismo e Sociologia? Primeira- mente, porque a actualidade do Pragmatismo é, a bem dizer, a Unica teoria da verdade actualmente existente. Depois, 6 porque no Pra- ‘gmatismo hé um sentido da vida e da ace comum & Sociologia, jd que ambas as tendéncias so filhas de uma mesma época. E no entanto, as conclusées do Pragmatismo s6 me merecem repugnéncia, Interessa pois acentuar as posigdes respectivas das duas doutrinas. O problema suscitado pelo Pragmatismo é efectivamente muito grave. Assiste-se, hoje em dia, a uma investida contra a Razio a uma verdadeira luta & mao armada (2). De modo que o interesse pelo problema é triplo; 1° E, antes do mais, um interesse gera/. Melhor do que qual- | quer outra doutrina, 0 Pragmatismo é capaz de despertar em nés. a | ocesad de renovarmos 0, radicional, j4 que nos F patenteia a insuficiéncia deste ultimo. 2° E, seguidamente, um interesse nacional. Toda a nossa cul- tura possui uma base essencialmente racionalista. Nessa cultura, prolonga 0 século XVIII o Cartesianismo. Logo, uma negago total do Racionalismo constituiria um perigo: seria a subversio de toda @ (1) Curso de 9 de Dezembro 1913 (2) Provavel alusio & passager do livro de W. James, O Pragmatismo, onde se diz que 0 Pragmatismo ¢se ergue inteiramente armado, numa atitude de com: bate, contra as pretens6es e contra 0 método do Racionalismon, SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA nossa cultura nacional. Todo o espirito francés teria de ser trans- formado, se esta forma do irracionalismo, que o Pragmatismo re- presenta, houvesse de ser admitida. 3° E, finalmente, um interesse propriamente filoséfico. Nao € unicamente a nossa cultura; 6 todo o conjunto da tradicao filo- s6fica, e isto desde os primeiros tempos da especulacdo dos filé- sofos, que — salvo uma excepedo, de que trataremos seguidamente = possui uma tendéncia racionalista. Ter-se-ia, portanto, que pro- ceder igualmente a uma inverséo de toda esta tradig&o, se o Pragma- tismo fosse valido. E certo que, na tradigéio filosdfica, se distinguem geralmente duas correntes: a corrente racionalista e a corrente empirista. Mas é fécil verificar que 0 Empirismo e Racionalismo nada mais séo, no eo, undo, que duas maneiras diferentes de afirmar a raziio. De um e ‘if de outro lado, com efeito, se mantém um culto que o Pragmatismo ~s||_pretende destruir: 0 culto da verdade. Admite-se existirem jurzos > “'necessdrios. A diferenca reside na explicagdo que dessa necessidade se dé. O Empirismo fundamentase na natureza das coisas; o Raci nalismo, na propria razao, na natureza do pensamento. Mas, de am- bos os lados, se reconhece o carécter necessério, obrigatério de cer- tas verdades, e as diferengas so secundérias quando comparadas com este ponto fundamental. Ora, é precisamente esta forca obri- gatoria dos ju(zos légicos, esta necessidade dos julzos de verdade “que 0 Pragmatismo nega. Este afirimia que’o esp/rito se mantém livre “perante a verdade., "1. t-) Nesse ponto, o Pragmatismo aproxima-se da excep¢ao Unica ja que fizemos referéncia, a saber, a Sof{stica, que também ela nega- va toda a verdade. Esta aproximagdo nao é arbitréria: é confessada pelos préprios pragmatistas. E assim que F. C. S. Schiller se procia- © ma «Protagoreano» e lembra o axioma: «O homem é a medida de (1) Cf. Schiller, Humanism (1903), p. 17-19; Studies in Humanism (1907): U1, From Plato to Protagoras (trad. fr., p. 28-90), e XIV. Protagoras the huma- nist (trad. fr., p. 388-416); Plato or Protagoras?, Oxford, 1908, e no Mind Out. 1908; The Humanism of Protagoras, no Mind, Abril 1911; etc... 6 J tia_o. Pragmatismo ra PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA a Nao nos esquecamos, contudo, de que a Sofistica desempe- nhou um prestimoso papel na histéria das doutrinas filoséficas. Foi ela, em suma, que instigou Sécrates. Do mesmo modo, Pragma- tismo_pode, hoje em dia, servir para subtrair_o pensamento filo: ‘sbfico dese novo «sono dogméticoy em que tende_a merguihar, ‘apés O.impulso que Ihe havia sido imprimido pela critica de Kant. A sua utilidade consiste, como foi dito, em evidenciar as incor téncias do Racionalismo_antigo, Este terd.de-renovar-se,-para.sa _tisfazer as exigéncias do_pensamento moderno eevidenciar certos pontos de vista recentes, introduzidos pela ciéncia contemporanea. problema consiste em encontrar uma formula qué mantenha o essencial do Racionalismo, satisfazendo embora as cr'ticas fundadas que 0 Pragmatismo the dirige. As origens do Pragmatismo (1) |. Nietzsche Num livro recente (2), René Berthelot vé em Nietzsche a for- | ma_primeira do Pragmatismo. Muito melhor, Nietzsche representa: |e integral, Desse’ modo, 0 autor julga poder relacionar 0 Pragmatismo com o Romantismo aleméo, @ situd-lo sob a inspiragiio germanica. Nés relacioné-lo-iamos, de pre- feréncia, com a tradigéio do pensamento anglo-saxdo. Quais so, principalmente, os pontos_comuns entre. o, pensa- merito de Nietzsche e o Pragmatismo? Nietzsche recusa a qualquer, sspécie de ideal moral um carécter absoluto, um cardcter de verdade universal. Segundo ele, o ideal esté para além do verdadeiro e do (1) Lembramos que os t/tulos foram por nés acrescentados. (2) Un Romantisme utilitaire. Etude sur le mouvement pragmatiste, tome | le Pragmatisme chez Nietzsche et chez Poincaré, Paris, Alcan, 1911. SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA falso: «Este agora o meu caminho, diz Zaratustra (1),’— onde esté 0 vosso? Els 0 que eu respondia aqueles que me perguntavam pelo caminho, E que o caminho ndo existe. Para Nietzsche, tudo o = que for norma légica ou moral, é inferior. Ele aspira a uma liberta- G0 total, tanto da conduta como do pensamento. A verdade espe- “culativa no’ poderia ser, nem impessoal, nem universal. S6 podemos “ Jeonhecer as coisas mercé de processos que as mutilar, que as trans- jOrmari mMais-oul WieTiOs N1O_.dss0_préprio pensamento. Nos cons- ‘truimo-las @ nossa imagem, situdmo-las no espaco, classificémo-las em géneros ¢ em espécles, etc. Ora, nada disto tudo existe, nem sequer a relaco de causa com efeito. Substituimos a realidade por todo um sistema de simbolos, de ficedes, em suma, de ilusdes «Como podermos explicar-nos! Nada mais fazemos do que lidar com coisas que no existem, com linhas, superficies, corpos, to- mos, tempos divisiveis, espacos divisiveis, — como seria uma inter- pretagdo possivel, se de tudo comegamos por fazer uma imagem, a nossa imagem? (2). Mas, qual o motivo por que estabelecemos tais ficedes? Porque precisamos delas para viver, responde Nietzsche. Elas so falsas, mas devem ser verdades cruas, para que os seres da nossa espécie se possam conservar. Aquilo que nos ajudou a viver, sobreviveu; o resto, desapareceu: «Nenhum ser vivo se teria conservado, se a pro- pens para se afirmar, em vez de suspender o seu juizo, para se enganar e para imaginar, em vez de aguardar, para aprovar, em vez de negar, para julgar, em vez de ser justo, ndo se tivesse desenvolvi- do com extrema intensidade. A sequéncia dos pensamentos e das dedugdes légicas, no nosso cérebro actual, corresponde a um pro- cesso, a um conflito de instintos, eles prdprios ildgicos e injustos. Nés apenas nos apercebemos geralmente, do resultado do conflito, desde que esse antigo mecanismo em nés funcione agora, répida e ccultamenten (3). E portanto a utilidade que, para Nietzsche, (1) Zarathoustra, 3° partie, «De esprit de pesanteur» (éd. du Mercure de France, p. 226-227), cité par R. Berthelot, loc. cit., p. 36-37, (2) Le Gai Savoir, aphorisme 112, cité par R. Berthelot, p. 43. (3) 4bidem, aphorisme 111, cité ibid,, p. 42. 8 PRAGMATISMG E SOCIOLOGIA ‘ determing os juizos. considerados verdadeiros, e_afasta_os falsos. (Logo, 0 verdade ( € 0 préprio principio do Praama: Todavia, entre 0 pensamento de Nietzsche e o Pragmatismo, existe, profundas diferencas. Notemos, com efeito, que Nietzsche. que aquilo que é util & verdadeiro, mas sim que aquilo que “parece verdadeiro foi estabelecido por utilidade. A’seus olhos, 0 {Util é falso, Existe, segurido ele, uma outra forma de’ verdade que n&o aquela que é qualificada como verdadeira pelos homens do «rebanho», uma outra moral que néo a «moral dos escravos», uma outra légica que ndo a légica vulgar. Hé uma verdade que so- mente os espititos livres podem atingir. O artista é precisamente © espirito liberto de todas as regras, e capaz de se amoldar a'todas as formas da realidade, de aprender intuitivamente aquilo que se oculta nas aparéncias e na ficcdo. Nada de semelhante existe no Pragmatismo. Para este, nao hd superficie das coisas que se distinga do fundamento em que estas assentam. A superficie, so as coisas tais como elas se nos apresen- tam. Logo, é disso que vivemos, é isso que constitui a realidade. Nao hd motivos para se procurar sob as aparéncias. Hd que nos atermos ao mundo, tal como ele se nos afigura, sem nos preocu- permos em saber se nele existe outra coisa. O proprio William James apresenta a sua doutrina como sendo um empirismo radical, e a sua argumentacdo:consiste quase sempre em ridiciilarizar 6 ta: cioginio e a l6gica. Para ole, unicamente importa aquilo que se ver fica _na experiéncia imediata: o pensamento tMove'se” tio” somente “num plano nico, e nunca em dois planos diferentes. A prova esté no facto de, mesmo quando o Pragmatismo pare- ce admitir algo que transcenda a experiéncia, algo que se sobre- ponha ao mundo dos fenédmenos, na realidade nada resultar. Eo que se verifica nas tendéncias religiosas muito reais. Os entes sobre- naturais, os Deuses encontram-se, para ele, na natureza, e séo for- gas reais aparentadas connosco, com as quais ndo contactamos directamente mas cujos efeitos se nos revelam em certos momentos, em determinadas experiéncias. Podemos assim descobri-los pouco a pouco, tal como descobrimos muitas forgas fisices (electricidade, 9 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA etc.) que durante muito tempo haviam sido ignoradas e que, no en- tanto, existiam. Tudo se processa, portanto, a nivel dos fendmenos, E isto distancia-se muito do pensamento «nietzschistay E certo que, em determinados perfodos da sua vida, Nietzsche negou a existéncia de um substracto que se ocultaria sob as apa- réncias, e também ele admitiu que s6 estas Ultimas existiam. A miso do artista consistiria entéo em delas se libertar, e em criar, para as substituir, um mundo de imagens méveis, variadas, que se desenvolveriam autonomamente; eo pensamento, uma vez rasgado © seu ambito légico, poderia entdo, ele também, desenvolver-se livremente. Mas 0 Pragmatismo no 6 menos refractério a este modo de ver do que a0 primeiro, O pragmatismo no pretende aprofundar nem ultrapassar a realidade imediata, para a substituir por um mun- do de criagées do espirito. O que nele predomina, é um_sentido realista e um sentido prético, O pragmatista é um homem de acedo “que, por consequéncia, atribui importancia as coisas. A sua activi. dade no decorre num sonho, e nunca, como Nietzsche, 0 pragma: tista adopta o tom de um profeta ou de um inspirado, Néo conhece a angiistia nem a inquietagio; e a verdade, para ele, é al 11.0 Romantismo Haveria ainda a realgar certos tragos comuns entre o Pragma- tismo e 0 Romantismo, designadamente 0 sentido da complexidade, da riqueza, da diversidade da vida,tal como ela nos é dada. O Romantismo foi, em parte, uma reac¢do contra o que de simplis- ta havia no racionalismo e na filosofia social do fim do século XVII ‘Mas este sentido da complexidade das coisas humanas, este sentimento da insuficiéncia da filosofia do século XVIII, encontra- mo-lo nés também na base da socio/ogia nascente, em Saint-Simon e em Augusto Comte, que compreenderam que a vida social era feita, no de relagdes abstractas, mas de uma matéria extremamente riod, Um sentimento deste género no conduz necessariamente 20 misticisrno nem ao Pragmatismo. Comte, particularmente, é um ra- 10 PRAGMATISMOE SOCIOLOGIA cionalista no mais elevado grau, e no entanto, pretende fundar uma sociologia mais complexa, mais rica e menos formalista do que @ filosofia social do século XVIII. IL. O meio anglo-saxdo: Peirce Para se compreender o Pragmatismo, no hd motivos para re- montar a doutrinas t8o distantes, nem a filosofia alema. Basta simplesmente repor 0 meio anglo-saxdo no seu ambiente de origem. primeiro pensatior que teria pronunciado a palavra Pragma- tisimo, foi o sdbio americano Peirce (1). Foi ele quem, num artigo publicado em Janeiro de 1878, numa revista americana (2), e tra- duzido na Revue Philosophique de Janeiro de 1879 (3) com o'titu- lo como esclarecer as nossas ideias, expés pela primeira vez as ideias ‘que os pragmatistas reivindicam como suas. Eis o essencial desse artigo. Peirce interroga-se acerca do mo- tivo por que pensamos. E responde: é porque duvidamos. Se nos en- contrassemos num constante estado de certeza, ndo necessitarfamos de pensar e de nos esforgarmos por abandonar as nossas duividas. «A irritagdo produzida pela diivida, leva-nos a que nos esforcemos para atingirmos a situagéio de crenca?. Por outro lado, a erenca traduz-se por aceao: a crenga que néo actua ndo existe; e a accdo deve adqui rir o carécter da crenga que a gera. Ora, a situagiio de crenga uma situago de equilibrio, logo, de tranquilidade, e € esse 0 motivo pelo. qual nés @ procuramos. A caracterfstica essencial da crenga, sera portanto «a radicagao de um hébito ... O nosso hébito possui (© mesmo cardcter das nossas aceSes; a nossa crenca, 0 mesmo do (1) Charles Sanders Peirce (1839-1914), matemético e quimico. As suas Obras completes foram publicadas na Universidade de Harvard, em 1931-36. (2) How to make our ideas clear, dans Popular science Monthly, vol. Kll, p. 286-302, (3) Pages 39-57. 0 titulo geral 6: Légica da ciéncia. Um primeiro artigo havie surgido em Dezembro de 1878, p. 553-569. " SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA nosso hébito; e a nossa concepgéio, o mesmo da nossa crenca». Assim, a diivida gera a ideia; esta gera a accao e, transformada em crenga, traduz-se por movimentos organizados, traduz-se pelo hébito. O sentido integral da ideia reside no sentido do habito que essa mesma ideia determinou. Da‘, a seguinte regra: «Considerarmos quais os efeitos prati- | €0S que pensamos poderem ser produzidos pelo objecto da nossa concep¢so. A concepcao de todos esses efeitos é a concepgao com- pleta do objecto.» Se, em dois casos que considereis diferentes, os efeitos forem os mesmos, é porque vos encontrais perante uma falsa distingdo: 0 objecto é 0 mesmo. Suponhamos, por exemplo, as con- trovérsias entre cat6licos e protestantes, acerca da transubstancia- cdo. Estes véem na Eucaristia um simbolo, e os primeiros uma pre- senga real. Mas, para qualquer deles, o efeito final é0 mesmo: a héstia é 0 alimento da alma. Pouco importa, a partir daqui, que ela seja, realmente ou no, 0 corpo e o sangue de Cristo. A discussao é puramente verbal (1). Tudo isto s6 de muito longe prognostica o Pragmatismo. Além disso, no artigo em questo, Peirce nao imprime o termo. S6 em 1902 0 faré, no seu artigo do Dictionary of Philosophy, de J. M. Baldwin (2). Mas ele jé 0 utilizava, desde hé muito, na conversagao, conforme mais tarde (3) afirmard. (1) Parece que, neste caso, Durkheim modificou voluntariamente o texto de Peirce, por um motivo facilmente compreensivel. Lé-se na tradugo francesa floc. cit., p. 47): aPor vinho, outra coisa nfo entendemos do que aquile que produz nos seritidus efeitos diversos, directos ou indirectos; ¢ folar-se de um objecto dotado de todas es propriedades materiais do vinho, como sendo real- mente sangue, nfo passa de uma algaravia desprovida de sentido. No The Pragmatism, W. James serve-se do mesmo exemplo, mas num sentido total- mente oposto, para pravar que propria nogdo de substéncia é susceptivel de uma aplicagdo pragmétican. (2) Tome II, pags. 321-322. (3) Dans l'article What Pragmatism is du Monist, vol. XV, n® 2, avril 1905, p. 161-181. 12 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA’ Existe, certamente, uma certa analogia entre a tese defendida esse artigo de Peirce e o Pragmatism. Ambas as deutrinas concor- dam no estabelecimento de uma relacdo de estreita conexdo entre a ideia e a acco, para dissipar todas as questdes de pura metafisica, assim como as discusses verbais, para, em suma, apenas se porem problemas que apresentem um interesse prético 2 cujos termos sejam obtidos do mundo sensivel. Mas, aqui temos uma diferenga essencial: no artigo de Peirce, no existe qualquer teoria da verdade. O problema da verdade no se pe, jé que 0 autor se interroga acerca das possibilidades de con- soguirmos esclarecer as nossas ideias, e no acerca de quais sero as condigdes necessdrias para que a ideia de uma coisa represente verdadeiramente os efeitos sensiveis dessa mesma coisa. Muito melhor do que isso, Peirce admite, como a teoria cléssica, que 2 verdade se impde com uma espécie de «fatalidade», que o espirito dio pode inclinar-se perante ela. Assim, a verdade é uma opinigo que possui em si mesma os seus direitos, e todos os pesquisadores so obrigados a admiti-la. E precisamente o contrério do prinespio pragmatista, Assim, quando surgirem as obras de William James, Peirce recusar-se-d a solidarizar-se com ele, e esforgar-se-4 por acentuar as diferengas. Peirce no repudia 0 Racionalismo. Se, segundo .a sua 6ptica, a acgéo tem mérito, é porque ela é um instrumento de pro- gresso para a razéo. Em 1902, no seu artigo do Diciondrio de Baldwin, Peirce reconhece néo ter insistido suficientemente nesse ponto, e deixa de se solidarizar explicitamente com as interpreta- Ges de W. Jarnes. No artigo do Monist de 1905, What Pragmatism is, ele chega mesmo a inventar' um novo termo, o pragmaticismo, «nome feio demais, acrescenta ele, para que pensemos doravante em adopté-lon, a fim de evitar qualquer confuséo entre a sua tese e a tese de James. Num outro artigo, As consequénsias ultimas do Pragmaticismo (1), ele classifica a sua prépria doutrina de «doutrina (1) The Issues of Pragmaticism, dans le Monist, vol. XV, n° 4, oct. 1905, p. 481-499, 13 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA do senso comum». Nestas condigées, é bastante curioso que James tenha continuado a invocar o seu testemunho, tenha saudado nele © pai do Pragmatismo, e nunca se tenha referido a estas diver- géncias. William James William James (1), é 0 verdadeiro pai do Pragmatismo. E em 1896 que ele publica a sua Vontade de crer (2), que serd reeditada “em 1911, Ali se distinguem as questées puramente tedricas, que apenas derivam da ciéncia e nas quais, se a compreensiio se nao pro- cessar com perfeita clareza, é possivel esperar que a luz se faca —a ciéncia poderd um dia fornecer-nos os elementos necessdrios 4 nossa crenca — e, por outro lado, os problemas prdticos, aqueles em que a nossa vida se encontra envolvida.[Perante estes itItimos, nao mais podemos aguardar, hd que optar, tomar um partido, mesmo que nao tenhamos certezas. E fé-lo-emos, ento, em obediéncia a factores pessoais, a motivos que ndo tém a ver com a légica, tais como o ‘temperamento, a ambiéncia, etd) Cedemos aquilo que nos seduz: determinada hipétese parece-noF nas expresiva do qué at outa, realizamo-la, traduzimo-la por acces. Aqui, William James pensa sobretudo na crenca religiosa, ‘de que, segundo a sua éptica, a crenga moral é um simples aspecto. E a «apostay de Pascal: se bem que aqui a verdade néo possa ser de-_ _Mmonstrada, se bem que ela_no se_nos apresente_com clareza, hé ‘que tomarmos partido e agirmos de conformidade. E este o princi- pal ponto de partida do Pragmatismo, Em todos os pragmatistas que encontram estas preocupacées religiosas, e & assim que o Pragma- tismo surge pela primeira vez em James. Daf resulta ter a verdade, aos olhos de James, um carécter pessoal, e verdade e vida serem para. (1) William James (1842-1910). i (2)’ The Will to Believe and other Essays in popular Philosophy, Londres, 1896; trad. fr., 1916, 14 i PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA ele insepardveis. Um outro grande pragmatista, F.C. S. Schiller, de Oxford, sem chegar a6 ponto de’afirmar, como James, que é necessdrio ter-se uma atitude em questdes religiosas, afirma igual- | mente que se ndo deve «despersonalizarn a verdade, «desumani | zé-lan, © dd ao seu pragmatismo 0 nome de Humanismo. ] nunciada por James. Sé-lo-ia apenas no seu estudo Concepedes | filosoficas @ resultados préticos 1), publicado na «Crénica da Universidaden de Berkeley (Califérnia), de 9 de Setembro de 1898. (1) Philosophical conceptions and practical results réimprimé dans The Journal of Philosophy, tome |, p. 673-687 (déc. 1904), sous le titre The pragmatic method. 15 Entretanto, a palavra Pragmatismo continuava @ no ser pro- , SEGUNDA LIGAO (1) O movimento Pragmatista Foi portanto na América, entre 1895 e 1900, que surgiu o Pragmatismo. Se bem que, deste modo, ele seja de recente data, a historia das suas origens é bastante dificil de descrever. Isto porque ele se constituiu de forma insensivel, como um movimento lento, subterréneo, que foi alastrando pouco a pouco para além do cfreulo das conversas privadas. James definiu-o como sendo uma dessas mo- dificagdes «que a opinigo sofreu quase sem dar por isso». Tal como jé foi dito, Peirce apenas se servira do termo nas suas conversas particulares. Foi James quem, primeiramente, o aplicou @ um conjunto de ideias constitu(das, utilizando um termo que jé circulava antes dele. Durante varios anos, ele limita-se a defender 0 seu. pensamento em diferentes artigos de revistas, cs primeiros dos quais datam de 1895. Os mais importantes, publicados até 1898, foram recolhidos num volume publicado em 1909, intitulado, The Meaning of Truth}"e traduzido em francés (Ideia de verdade) em 1913. Em 1906, James leva a efeito uma série completa de |i: Ges, nas quais desenvolve mais completamente o seu pensamento. Estas so publicadas em 1907, com o titulo Pragmatism (trad. francesa de 1911). Em 1909, James nao receia deslocar-se a Oxford, a cidadela do Hegelianismo, para ali expor a sua doutrina; e apresen- ta-a sob 0 aspecto mercé do qual ela mais se opée A filosofia hege,, liana. James designa esse conjunto de li¢des pelo titulo deA plural” istic Universe, A obra 6 traduzida em francés, em 1910, com 6 t/tulo bastante impréprio de Philosophie de I’Expérience. (Filosofia (1) Curso de 16 de Dezembro 1913. 7 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA da experiéncia). Em 1910, finalmente, surgem os seus Essays in radical Empiricism, compilacao de artigos, o primeiro dos quais, viera a lume em 1904, com o titulo Existird a consciéncia? (1) Esse artigo importante (porquanto pée a questo: existiré uma dua. lidade especffica no universo?), fornece, sob a forma de um resumo em francés (2), a matéria de um importante comunicado ao Con. gresso de Filosofia de Roma, em-1908, Paralelamente a James, J. Dewey (3) iniciara uma campanha numa série de artigos em que’se ia prdgressivamente encaminhando para o Pragmatismo. A relacdo desses artigos veio indicada na Revue de Métaphysique de 1913, p. 575 (4). Nao possuimos obras comple- tas de Dewey, mas apenas estudos parciais, tais como os seus Estu- dos de teoria /égica (1903), obra colectiva de que somente os qua- tro primeiros cap/tulos Ihe pertencem (5), ou o seu optisculo Como pensamos (1910) (6). Foi a volta de Dewey que se formou a Escola de Chicago ou Escola instrumentalista, O seu principal discipulo é A.W. Moore (7). (1) Does consciousness exist?, no Journal of Philosophy, t. 1, n° 18, p, 477. 491. (2) La notion de conscience, apresentado em Essays in radical empiricism, . 206-233, (3) John Dewey (1859-1952). (4) No artigo de H. Robet, L “Ecole de Chicago et I'Instrumentalisme, t. XX\, P. 537 @ seg. Algumas bibliografias mais completas foram publicadas depois omeadamente em: Emmanuel Leroux, Le Pragmatism anglais et américain, Alcan, 1923, p. 346 e seg, (5) Studies in logical Theory, by J. Dewey, with the co-operation of members and fellows of the department of philosophy. Univ. of Chicagn Press. Os quatro Primeiros capitulos intitulam-se Thought and its subject-matter. (6) How we think, Boston, 1910; trad, fr., 1925, E claro que Dewey publicou seguidamente muitas outras obras acerca dos mesmos assuntos, designadamente Experience and nature (1925), The Quest for Certainty (1928), etc., etc... (7) Addison Webster Moore. Obras principais: Some logical aspects of purpose, 10s Studies in logical theories, cap. X\; Pragmatism and Solipsism, no Journal of Philosophy, tomo VI, 1909; Pragmatism and its critics, Chicago, 1910; Bergson and: Pragmatism, na Philosophical Review, t. XX\, 1912; etc. 18 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA Rapidamente essas ideias transpuseram o Atléntico, A partir. de 1902, em Oxford, um grupo de jovens filésofos reuniu-se para em- preender uma campanha, simultaneamente contra o evolucionismo materialista e contra as teorias de Hegel. Com o titulo Personal Idealism, esses jovens publicaram uma compilagao de artigos, o mais importante dos quais era o de F.C. S. Schiller (1), Axioms as Pos- tulats (2). No ano seguinte, Schiller reuniu os seus principais artigos no livro Humanismo (3). Na Itélia, a revista Leonardo (4) levou o Pragmatismo ao ex- tremo, até ao paradoxo, Em Franga, 0 Pragmatismo aparece sobretudo no movimento neo-teligioso, dito «modernistay. Edouard Le Roy pretende basear a sua apologética religiosa em princfpios trazidos do Pragmatis- mo (5). E de notar, aliés, que os pragmatistas anexam com demasiada facilidade alguns pensadores que esto longe de subscrever todas as suas teses. E assim que James enfeuda Henri Poincaré e M. Bergson (6), do qual utiliza, alids, alguns argumentos, e isto pelo simples (1) Ferdinand Canning Scott Schiller (1864-1937), (2) Personal Idealism, philosophical essays by eight members of the University of Oxford, Londres, 1902. (3) Humanism, philosophical Essays, Londres, 1903. Qutros artigos contendo alguns estudos originais, encontram-se compllados ‘nos seus Studies in Huma- nism, Londres, 1907. (4) Publicado em Florenga entre 1902 e 1906, sob a direcedo de Giovanni Papini e Giuseppe Prezzolini, com a colaborardo de G. Vailati, M, Calderon, ete. Sur le Pragmatisme en Italie cf. G. Vailati, em Revue du Mois, 10 fév. 1907 (5) Ed. Le Roy publicou entdo: Science et Philosophie, en Revue de Méta- physique et de Morale, t. Vil ¢ VIII (1899 e 1900), Le Probiéme de Dieu, ibid. t. XV (1907), retomado mais tarde (1930) em volume; ogme et Critique, Bloud, 1907. Sobre isto ver R. Berthelot, ouv. cité, tomo Ill, p. 303-308. (6) Poderfamos acrescentar igualmente Maurice Blondel, mencionado no pre- fécio do Pragmatismo, trad. fra.,.p. 18, Mas Blondel, que dev a palavra «aceon tum’ sentido muito mais lato que James, desvinculou-se energicamente do Pragmatismo (ver, designadamente Lalande, in Vocabulaire, §° ed, p. 784). 19 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA facto de M. Bergson haver apresentado o Pragmatismo em Franca, num prefacio (1) em que a ele se refere em termos bastante largos, denotando reservas acerca da doutrina. As teses essenciais do Pragmatismo Parte critica O Pragmatismo tem, portanto, trés protagonistas principais: Dewéy; Schiller e James, “Dewey é um l6gico, e esforca-se sempre por ser extremamente rigoroso. Mas é geralmente pesado, as suas dissertagdes so laborio- sas, € 0 seu pensamento é por vezes pouco claro. O préprio James confessava havé-lo compreendido imperfeitamente. Dewey, diz-nos ele, (2) «fez recentemente, com a palavra pragmatismo como titulo, uma série de conferéncias: foram ofuscantes lampejos no meio de trevas profundasy. Schiller e James sio, pelo contrério, muito claros. Mas a sua forma difere. Schiller caminha em frente, no receando 0 paradoxo e, longe de tentar atenuar a expressiio do seu pensamento, visa de preferéncia levé-lo a0 extremo, e provocar a admiracéo do auditor. Ele deduz as suas consequéncias com uma légica imprevista, sur- preendente, cheia de impeto e de intransiggncia. — James evidencia, também ele, um certo gosto pelo paradoxo, e isto, inclusivamente, nas suas teorias psicoldgicas. Ele enuncia ideias que mais facilmente seriam admitidas se ndo fora o rodeio a que as submete. De inicio, apresenta teses de arestas vivas. Mas, na discussao, possui o engenho de arredondar os angulos, sem que, para tanto, seja forcado a aban- donar os seus princfpios fundamentais, — acabando nés por nos in- terrogarmos se ndo estaremos de acordo com ele. O titulo do seu livro acerca do Pragmatismo, demonstra bem essa tendéncia do seu (1) Trata-se da Introdugdo acrescentada por Bergson & tradugo francesa do Pragmatismo, p. 1-18. (2) Ouvrage cité, p. 23, 20 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA espirito. Se bem que nele ilustre, no que ao Pragmatismo se refere, uma verdadeira revolucdo operada no seio do pensamento filos6fi- co, ele intitula 0 seu livro do seguinte modo: Pragmatismo, um nome novo para ideias velhas (1). Conforme as circunstancias, ele apresenta a sua doutrina num ou noutro destes dois aspectos. Esta diversidade (2) nao deixa de prejudicar a unidade do Pragmatismo (um escritor americano chegou a contat treze dissemelhancas da doutrina), tornando penoso um enunciado geral. Além disso, nenhum dos filésofos pragmatis:as nos ofereceu esse enunciado do conjunto (3). Deles apenas temos alguns artigos disseminados nas revistas, por vezes compilados em volumes, ou entéo lig6es, conferéncias «populares», mas nunca nenhumas aulas, dadas em presenca de estudantes, a quem o orador transmitisse a esséncia do seu pensamento. Trata-se de conferéncias que se dirigem ao grande publico, e nas quais os assuntos so apenas apresentados nos seus pontos salientes. Cada uma dessas conferéncias constitui, por si mesma, um todo; aquilo que numa é secundério, transforma- -se no ponto principal de uma outra, e vice-versa, Toda a fisiono- mia da doutrina se transforma, e néo é fécil discerirem-se as ideias importantes. Este aspecto um pouco fugaz do Pragmatismo, deu ensejo as objeccdes dos adversérios, que puderam acusé-lo de se contradizer. (1) 0 titulo completo é o seguinte: Pragmatism, a new name for some old ways of thinking. Popular Lectures on Philosophy. (2) No inicio do seu liveo (op. cit. t. |, p. 3), René Berthelot diz que 0 Pragma- tismo 6 como a nuvem que Hamlet mostra a Polénio, por uma das janelas do castelo de Elsenor, nuvem essa que ora se parecia com Lm camelo, ora com uma doninha, ora ainda com uma balela (3) Idéntico reparo é feito relativamente a Dewey e 8 escola de Chicago, por Emmanuel Leroux, O Pragmatismo americano e inglés, Alcan, 1823, p: 206. ‘Quanto a Schiller, esse justifica-se a si préprio, no inicio dos seus Estudos rela- tivos a0 Humanismo, com a «descontinuidade da forma» (trata-se, com efeito, de uma compilagdo de artigos) pela qual ele expe o seu pensamento (Studies. p. Vil). 21 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA Nao 6 todavia impossivel deduzirem-se teses essenciais, encon- trar-se uma base comum. E isso que eu me proporei fazer aqui, sem pretender oferecer uma explanagio histOrica, independente- mente de acentuar algumas «nuances» prdpries de cada autor. Em A Nogéo de Verdade (1), James declara partilhar as ideias de Peirce. Schiller reconhece James (2) como seu mestre. Quanto a Dewey (3), no deixa de formular certas reservas, mas parece distanciar-se, sobretudo de James, em certos pontos particulares. Verifica-se por- tanto, em todos trés, uma idéntica orientacao. Proponho-me evi- la, € apresentar nomeadamente as criticas que os pragmatis- tas dirigem ao Racionalismo. 0 Pragmatismo néo se apresenta como sendo um sistema asse! te, James € clarissimo a esse respeito. O Pragmatismo, diz ele, no um sistema, mas uma discusséio, um movimento, que poderd, aliés, vir a definir-se-methor, jormente; é menos uma organi zago definitiva de ideias, do que um estimulo geral em determi- nada direceo. Podemos caracterizé-lo simultaneamente (4) 1° como um método, uma atitude geral do espirito; 2° como uma teoria da verdade; 3° como uma teoria do universo. 1° Como método, o Pragmatismo outra coisa no é do que a atitude, @ fei¢o geral que a inteligéncia deve adoptar perante os problemas, e essa atitude consiste em volvermos 0 nosso olhar ‘para 08 resultados, as consequéncias, os factos». «0 método prag- mético consiste em procurarmos interpretar cada concepgao segun- dQ, as suas Gonsequéncias préticasy. Continua a ser o Pragmatism de Peirce, que visa sobretudo desembaracar-se das discusses verbais. _f.dos problemas initeis, que’se caracteriza pela escolha das ques- t6es e pela forma de as resolver. (1) Pagina 45. CF. também Le Pragmatisme, trad. fr, p. 87-58. (2) E também Peirce: ver Studies in Humanism, p.5, note (trad, fr., p. 7) (3) Em Le Pragmatisme, trad. fr., p. 23, James aponta Dewey como o proprio funtiador do Pragmatismo. (4) Ver Le Pragmatisme, segunda lied, trad, fr, p. 54 @ seg. 22 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA 2° Mas nada existe ainda ali que seja absolutamente peculiar a0 Pragmatismo. E sobretudo como teoria da verdade que 0 Pragma- tismo tem interesse, e é por este angulo que iremes estudé-lo. S6 falaremos do Pragmatismo como teoria do universo, desde que isso se torne necessdrio para que o compreendamos na qualidade de teoria da verdade. O método é-nos, neste caso, indicado pelo pré- prio James, O que faz a forga do Pragmatismo, diz-nos ele em A Nogéo de verdade, é a faléncia das teorias anteriores; 6, em parti- cular,,a insuficiéncia do Racionalismo, que levou a que se procu: “| rasse lima outra.concepeo da verdade. Infelizmente, esta contesta- io do Racionalismo, encontra-se o mais das vezes, em James, misturada com o enunciado da sua propria concepgéo da verdade. Importa contudo separé-la desse enunciado, j4 que necessitamos, antes do mais, de compreender quais 0s motivos que obrigaram os pragmatistas a julgar que o antigo Racionalismo deveria ser substi- tuido, Acontece, com efeito, que certos espiritos, a0 sentirem a forga das objeccBes que os pragmatistas apresentaram, passam ime- diatamente dali para as solugSes que eles propuseram. Ora é impor- tantfssimo, pelo contrério, separarem-se os dois problemas e, para isso, comecar por se examinar a forma pela qual os pragmatistas reproduziram essa concep¢do racionalista, — digamos mais generica- mente, dogmatista (1), — da verdade. ‘A concepeo dogmatica da verdade Esta concepeéio fundamenta-se, segundo James, num prine/pio muito simples, a saber, que a /deia verdadeira é a ideia conforme as coisas; & tuma imagem, uma cdpia dos abjectos. € a represantacko mentai_da coisa. A ideia é verdadeira quando.essa-representacéo Mental corresponde exactamente ao objecto. representado, Esta concép¢ao, alids, ndo é exclusiva do Racionalismo: ela é também a (1) Em Le Pragmatisme (trad. fr., p. 29), James apresenta um quadro déscritivo das caracter{sticas do racjonalismo e do empirismo. O racionalismo é nele con- siderado dogmatico, e 0 empirismo céptico. 23 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA do Empirismo, Para J. Stuart Mill, por exemplo, o espirito limita-se a copiar a realidade exterior. As ideias so dependentes dos factos, jd que elas apenas exprimem as sensacdes, resumem-se as imagens sensiveis e, por consequéncia, 0 pensamento pode tio somente traduzir as sensacdes que do meio exterior Ihe advém. Nao obstante as aparéncias, outro tanto se passa com o Racio- nalismo. Também para este, existe no exterior uma realidade que o espirito deve traduzir para atingir a verdade. Sé que tal realidade no é composta por coisas sensiveis, mas por um sistema organizado de Ideias que existem por si mesmas, e que 0 espirito deve repro. duzir. Reconhece-se aqui a doutrina de Platéo, e é efectivamente a Plato que Schiller, por exemplo, se entrega de preferéncia (1) Para outros, as ideias sto pensamentos de um Deus. « Deus é gedme- tra, dizia-se correntemente; ¢ julgava-se que os elementos de Eucl des reproduziam a letra a geometria divina, Existe uma «razéo» eterna e invaridvel, e a sua voz, julgava-se, repercutia-se em Barbara e Celarento». (Nocdo de verdade, p. 50),{Para Hegel — que James ataca duramente (2), — a Ideia absoluta identifica-se com a Razdo que tudo envolve, que é «o todo absoluto dos todos», na qual as, contradi¢des se conciliam. Mas, em todos estes casos, a verdade concebida.como existindo fora de nés: existe uma Razdo que domi- na todas as razdes individuals, ¢ que estas apenas terdo de copiar. ~~"“Ambas as formas do Dogmatismo admitem, portanto, que a verdade se obtém, quer no mundo sensfvel — e é 0 Empirismo, — quer num mundo inteligivel, num pensamento ou numa Razio absolutos — e é 0 Racionalismo —. Uma terceira solucio seria a do Idealismo de Hamelin, por exemplo, para quem as coisas so simples conceitos. Mas isso vem dar no mesmo. As situages ideais conti nuam a existir nas proprias coisas, e o sistema da verdade e da reali dade (aqui é um s6) é-nos dado inteiramente fora de nés. (1) Designadamente em Plato and his predecessors, in Quarterly Review, Jan. 1906 (retomado em Studies in Humanism; Il sob 0 titulo From Plato to Pro: tagoras; tad. tr, p. 28:90) (2) Toda a tereiraligéo de A pluralistic Universe (Philosophie de 'Expérience) 6 consagrada a Hegel 24 PRAGMATISMG E SOCIOLOGIA Assim, em todas as concepedes dogmaticas, a verdade s6 pode ser a transcrigdéo de uma realidade exterior. Uma vez que se encon- tra fora das inteligéncias, essa verdade ¢ impessoal: no exprime 0 homem, nada tem a ver com ele, Ela esté pois, de igual modo, totalmente elaborada. Ela impera, diz James (1), e impée-se-nos de uma forma absoluta. O espirito no é forcado construl-la, ja que copiar no ¢ criar. O esp(rito no tem qualquer papel activo. Ele deve, pelo contrario, apagar-se 0 mais possivel ¢ limitar-se a procurar, por assim dizer, uma duplicagdo da realidade. Isto porque, % 0 espirito possuisse uma actividade propria, se ele introduzisse © seu cunho pessoal, desnaturaria a verdade. Ele exprimir-se-ia a si mesmo, em vez de exprimir a verdade. Qualquer contributo do es- pirito seria uma fonte de engano. Em suma, enquanto que o:exte rior & impessoal, a verdade é, segundo 0 Dogmatismo, um sistema acabado um todo completo que escapa ao tempo e ao devir. «Nunca duvidei, diz um hegeliano de Oxford mencionado por James (2), que a verdade fosse universal, nica e eterna, nem que ela fosse una, integral e completa pelo seu tinico elemento essencial, pelo seu significado Unico». Algumas palavras a propésito. Surpreende-nes um pouco, & primeira vista, pensarmos que Leibniz e Kant se encontram englo- bados nesta definicdo do Racionalismo e do Dogmatismo. Os prag matistas, realmente, no se preocupam muito com tais precisées. Eles evidenciam uma certa negligéncia a respeito de doutrinas que, 2 seu ver, no tém uma importéncia de maior. Para Leibniz, objectar-thes-ao de imediato, 0 espfrito retira de si praprio todo 0 seu pensamento: a ménade no se relaciona com 0 universo; é dele prépria, e ndo do exterior, que Ihe advém todas as ideias. — E no entanto, vendo melhor, a critica pragmatica aplice -se tanto a Leibniz como aos restantes racionalistas. A ménade tra- balha, com efeito, num modelo que ela no criou, mas que Ihe é dado, que Ihe é trazido por Deus. O mundo aquilo que Deus fez (1) Le Pragmatisme, p. 207. (2) Em Philosophie de 'Expérience, p. 95. 25 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA dela, e no aquilo que a ménade quer. O plano que esta executa, A medida que se eleva até ao pensamento claro, é-lhe imposto; no é ela a sua autora Em Kant, é efectivamente o espfrito que cria a verdade, mas to somente desde que se trate da verdade fenomenal. Ora, a ver- dade fenomenal nada mais é do que a aparéncia; é até, num certo sentido, 0 érro, relativamente 20 Numen. Quando muito, seré uma repercusso no Numen, do mundo inteligivel, no plano fenomenal. O Numen, esse é um dado; ndo somos nés que o criamos. A nica via de acesso que para ele temos, é a /e/ moral quem no-la abre. E ela que nos avisa haver algo mais do que o mundo fenomenal. Ora, quais sao as caracteristicas da lei moral? E a fixidez e a imper- sonalidade. Num certo sentido, descobrimo-la em nés mesmos; mas no a inventamos, limitamo-nos a encontré-la. Néo fomos nés que a fizemos; ndo foi 0 nosso espirito quem a criou. Ela é, portanto, uma realidade mais fora de nds, que se nos impée. ‘Assim, podemos admitir que a concepeio dogmatica, raciona- lista, — digamos mesmo, a concepedo usual, — da verdade, é exacta- mente aquela que o Pragmatismo nos descreve. Critica ao Dogmatismo Quais as objecedes que o Pragmatismo faz a esta concep¢io? Antes do mais, alega ele, se a verdade é uma simples transori- eo da realidade, para que serve? Nao passa de uma redundancia indtil (1). Qual a necessidade das coisas terem uma traducso? Por que se nao bastariam elas a si mesmas? Tais representagdes nada viriam acrescentar a0 que jé existe. Ora, segundo James, a verdade deve ser «no uma duplicago, mas sim uma adi¢&o». Imaginemos, diz ele (2), um individuo que constitu(sse por si s6, por um instan- te, toda a realidade do universo, e que viesse seguidamente a saber (1) J. Dewey, Stuales in logical theory, p. 36-37: «... work of superrogation» ; . 47:4. futilely relterativer. (2) Ldée de vérité, p. 68. Ct. Le Pragmatisme, p. 214, 26 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA que iria ser criado um outro ser que o conheceria perfeitamente. Que poderia ele esperar desse conhecimento? De cue the serviria essa réplica de si préprio no espirito do recém-chegado? Em que é que © seu universo se encontraria com isso enriquecido. Sé é util aquilo que © nosso espirito acrescenta as realidades. Aquilo que para o homem importa, é menos a substéncia das coisas do que as suas qualidades segundas: a luz, a cdr, 0 calor, etc. Aquilo que conta, é a utilizaggo que da realidade fazemos. De que serviria, se 0 espirito se limitasse a «ver» a realidade? Suponhamos, com efeito (1), um sistema perfeito das verdades objectivas, como 0 mundo das ideias de Platdo. Que interesse have- ré em Que @ «luz da inteligénciay se venha reflectir na multiddo dos espiritos individuais que s6 muito imperfeitamente poderdo repro- duzi-la? Hé aqui uma faiha que se verifica igualmerte na hipdtese teolégica. Por que motivo Deus, a suprema verdade, nao se quedou sozinho na sua perfeigdio? O que é que Ele acrescentou a si préprio? E que, se a gente dele depende, a gente exprime-O, mas exprime-O muito incompleta e deficientemente! Mas, dir-se-4, interessa-nos conhecermos a verdade, tal qual é, tendo em vista a propria acedo, e essa verdade deve ser entdo uma copia téo fiel quanto possivel da realidade. No entanto, teriamos ainda que partir do principio que, para podermos acir, é necessdrio que 0 nosso pensamento copie a realidade. Chegamos assim a trans- formar a verdade num bem em si, que se imporia por si mesmo, € que 0 espirito procuraria pelo simples prazer de o contemplar. A verdade far-se-ia unicamente para ser pensada. E transforma-se num Deus a quem'se erguem altares. Nao custa a crer, efectivamente, quando consideramos um Idealismo tal como o de Leibniz, que possamos interrogar-nos acer- ca da func da verdade. Cada ménade copia 0 conjunto dos outros, isto 6, 0 universo, e todos copiam o mesmo universo. Para qué um tal desperdicio de forgas intelectuais, se no partimos do principio que 0 conhecimento é um bem por si proprio? (1) Inicia-se aqui uma passegem em que, nas nossas duas verses, a sequéncia das ideias no se nos afigurou perfeitamente clara. Reconstruirmo-le o melhor que pudemos. 27 30 vwaisis aomag TERCEIRA LICAO (1) Critica ao Dogmatismo (continuaeao): Verdade e conhecimento humano Nao é minha intencdo, repito, fazer uma histéria, nem sequer uma exposi¢Zo completa acerca do Pragmatismo. Aquilo que eu pretendo esclarecer, é sobretudo a tendéncia geral, comum aos seus diversos representantes, e também os motivos que os levaram a esta forma de pensar. Para tanto, hé que nos transfo-marmos, antes do mais e de algum modo, em pragmatistas, pondo de parte as ob- jecedes que nos vém ao espfrito. Quando, deste modo, tivermos compreendido aquilo que faz a sua forca, poderemos voltar a ser © que eramos, e passarmos a discussio Neste aspecto, 0 que de fundamental existe no Pragmatismo, 6 a sua critica a0 Racionalismo, ou antes, a0 Dogmatismo trad cional. Para compreendermos essa critica, procuramos ver como os pragmatistas encaram o Dogmatismo. Ora, segundo eles, 0 Dogma- tismo considera a imagem verdadeira.como.a cépia ce.uma.realidade. exterior, quer esta realidade seja_constituida:pelos objectos mate. tiais, quer por_Ideias, conceitos ou pensamentos do Esp{tito absolu: 10. A partir daqui, a verdade é objectiva, transcendente, impessoal. Jé se nos deparou uma primeira objecedo dirigida pelo Pragmatismo a esta concepedo: se a verdade, deste modo, se limita a duplicar a realidade, para que serve? Parece ser inditil Mas, eis que nos surge outro obstéculo. Se a realidade de que a ideia 6 a cépia, for exterior e transcendente, como poderemos conhecé-la? Se ela se encontra fora de nés, imanente ou transcen- (1) Curso de 23 Dezembro 1913. 29 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA dente as pessoas, totalidade ou parte das mesmas, como poder atin- gi-la? Lembremos, uma vez mais, a hipdtese platonica. As Ideias en- contram-se, por definiggo, acima do mundo da experiéncia, Como poderemos, por um, lado, elevar-nos até esse mundo ideal que é a Unica realidade? Entre ele e nés hd um abismo; como transpé-lo? Como poderfo, por outro lado, essas realidades ideais descer a0 nosso mundo? «E imposs(vel, diz Schiller (1), explicar, nem como 0 homem se pode elevar & contemplacao da verdade eterna, nem por que 0 motivo a Ideia desce e se desnatura nos pensamentos huma- nos». E em vao que Platao atribui poderes particulares ao espirito; tal facto no suprime o obstéculo. Assim também, segundo Aristoteles, o divino n&o pode conhe: cer o humano sem descer. Inversamente, porém, no se compreende como o homem poderia pensar o divino. Como é que 0 espirito limitado, como é 0 espirito humano, poderia conseguir pensar 0 espirito absoluto? Terfamos de admitir que ndo ha separacdo, e que os dois mundos so apenas um s6. ’ De uma forma mais geral, sendo o pensamento uma cépia das coisas, no se compreende como ele as pode atingir, jd que existe um abismo entre o espirito e 0 objecto. Por sobre este «abismo epi temoldgicon, diz James (Noeao de verdade p. 99), 0 pensamento deveria executar um auténtico «salto mortal». Apenas poderemos atingir 0 objecto, pensando-o. Se for pensado, é-nos interior. E entéo imposs(vel controlar a verdade da ideia, ou seja, na presente hipétese, a sua conformidade com o objecto, jé que o pensamento no pode sair de si mesmo. «Qualquer que seja a forma que dermos a teoria da verdade-cépia, pde-se inevitavelmente a questo de se saber como poderemos comparar as nossas ideias com a realidade, e assim conhecermos a sua verdade. Segundo esta teoria, aquilo que possuimos é sempre uma cépia; a realidade encontra-se mais longe. Por outras palavras, uma teoria deste género conduz logicamente @ faléncia do conhecimento» (Dewey (2)). (1) Studies in Humanism, essai ll, § 15, p. 58 (trad. fr. p. 74). (2) Studies in logical Theory, esssi VI, p. 141. Este 6° capitulo néo é do pré- prio Dewey, mas sim de um dos seus colaboradores (ver acima, p. 16, nota 4), Simon Fraser McLennan. Cf,, 0 proprio Dewey, 0 cap. IV, particularmente p. 71-72. 30 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA E esta a concepedo que Schiller, James e Dewey tém do Ra- cionalismo. O_Racionalismo_ tradicional separa_o_pensamento da isténcia. O pensamento encontra-se no espirito; mas a existéncia, em relacdo ao espirito, encontra-se fora dele. Desde logo, as duas formas de realidade jamais se podem associar. Se, por hipétese, situarmos o pensamento fora da existéncia, o abismo que separa 0 primeiro da segunda, nunca mais pode ser transposto. A dnica forma de se resolver a questo, seria, portanto, no admitirmos este vazio entre a existéncia e 0 pensamento. Se o pensamento for um elemento da realidade, se fizer parte da existéncia e da vida, deixa de haver «abismo epistemolégico», deixa de haver «salto mortal». Torna-se simplesmente necessdrio ver como estas duas realidades podem cooperar entre si, Ligar 0 pensamento a existéncia, ligar 0 pensamento 4 vida, eis a ideia fundamental do Pragmatismo (1). __ Verdade extra-humana e intelecto puro Aqui temos outra dificuldade da concepgio dogmitica. Se a verdade é impessoal, é alheia a0 homem, é extra-humana, Como po- derd ela ento actuar sobre o espitito humano, atre(-lo, seduzi-lo? Ela a nada cortesponde, na nossa natureza. E frequente dizer-se que a verdade nos obriga, que existe um dever de obediéncia as ideias verdadeiras, que é um «imperative categérico» procurarmos a verdade e desviarmo-nos do erro. Mas, como compreendé-lo, se a verdade no for algo de humano? Que forca poderia porventura obrigar-nos a dirigirmo-nos espontaneamente para aquilo que nos € estranho, ou a obedecer-lhe? E este o reparo que se faz frequente- mente & «lei moral», tal como Kant no-la apresenta. Na realidade, porém, dizem os pragmatistas que a questo nunca se pde nestes termos. As exigéncias da verdade, como todas as outras, so sempre fexigéncias subordinadas a determinadas condigées». Na vida, (1) Reproduzimos aqui, quase textualmente, uma das nosses duas versées, 3 ‘outra das quais, mais lacunar, é alidés muito aproximada, Limitamo-nos a su- blinhar a Gitima frase, comum as duas versées. 31 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA. quando se nos apresenta uma questo relativa a verdade, pergunta mo-nos: «quando deverei aderir a esta verdade, e quando aquelou- tra? A minha adesao teré de ser expressa, ou manter-se tacita? Su- ponho que ela deva ser, ora expressa, ora técita, em qual destes dois casos me encontro, neste exacto momento?» E certo que temos obrigacdo de acolher a verdade. Mas essa obrigacdo ¢ relativa as cir- cunsténcias, jé que nunca se trata da «Verdade com um V maids- culo e no singular, da Verdade abstractan, mas sempre de «verdades concretas», que podem ser mais ou menos oportunas, conforme os casos (Nogao de Verdade, p. 210-212). Suponhamos, pelo contrério que a verdade é puramente objectiva. Se assim for, ela deixard o ho- mem totalmente indiferente. Atribuir 8 verdade uma «independén cia» em relaco aos fins humanos, um «caracter absolutoy que a separa da vida, é «desumanizar» 0 conhecimento (Schiller, Estudos acerca do Humanismo, trad. fr., p. 89) Se se concebeu essa nogdo de uma verdade puramente.objecti- va e impessoal, foi porque se admitiu a presenca no Homem de uma faculdade muito especial: 0 intelecto puro, cujo papel seria preci samente 0 de se elevar a verdade mercé de um movimento espon- téneo e quase mecénico, o de pensar a verdade unicamente para pensé-la e contemplé-la, Para explicar como a verdade, em si mesma extra-humana de a coneeber, faculdade essa estranha a todos 0s outros factores da vida. Ora, dizem os pragmatistas (1) «negamos que possa, a bem dizer, encontrar uma inteleccéio totalmente pura. Aquilo que assim designamos, de uma forma bastante imprépria, é na realidade um pensamento intencional que persegue o que se Ihe afigura um fim desejével». Nao hd em nés qualquer razéo impes- soal; hé sim um intelecto que é uma funcdo viva, em estreita rela- ao com as restantes funcBes vivas que constituem 0 nosso pensa- mento. Longe de ser impessoal, ele participa de todo o particu- larismo da consciéncia. Quando procuramos a verdade, é sempre com um fim em vista. A verdade sé pode set determinada por via da selecetio e da opedo.. E aquilo que determina essa oped, é um “(1) Schiller, Studies in Humanism, essa V, p. 128 (trad. f.,p. 165). 32 be PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA wteresse humano, «O desenvolvimento de um espirito, diz Schiller (Estudos acerca do Humanismo, trad. fr., p. 239), 6 de principio a fim um assunto pessoal. O conhecimento, passa de virtual para actual, mercé da actividade intencional daquele que conhece, que 0 obriga a servir os seus interesses, e que dele se serve para concretizar 8 seus fins» Mas, dir-se-a, 0 intelecto puro é, ele mesmo, uma fonte de frui- 0. Do mesmo modo que Kant admite uma espécie de sensibilidade racional, a alegria que sentimos em nos submetermos a lei, também existiria um prazer especial em procurarmos, em descobrirmos, em contemplatmos a verdade. Esta concep¢do contemplativa da verda- de, & caracteristica de todo o Dogmatismo. Que o intelecto para nada sirva, respondem os pragmatistas (1), a no ser para propiciar esse prazer, € uma concepedo absurda,... a menos que nele se veja um simples mecanismo destinado a servir de divertimento a quem 0 Possuir. E certo que a nossa actividade intelectual ndo se pode man- ter permanentemente tensa. E necessdrio que ela se distenda, que 0 intelecto se distraia por momentos, para se recompor da fadiga causada pela assidua procura da verdade, e dat o prazer do sonho, da imaginaao, da meditacéio desinteressada. Mas essa diverso deve Ocupar to somente um’ lugar limitado na nossa vida Ela é, alids, susceptivel de excessos, do mesmo modo que qualquer outra di- verso. Ela nunca poderd ser a finalidade principal e constante do intelecto «qué, esse sim, se destina a um trabalho sério». E nas suas fungdes préticas (no mais lato sentido do termo), nas suas rela- ‘ges com a realidade, que o seu papel melhor se evidencia, Todos os Pragmatistas concordam neste ponto: a verdade é humiana, o .inte- lecto ndo pode isolar-se da vida, nem a /égica da psicologia.’ James, tal como Schiller e mesmo Dewey (se bem que este admita a neces. sidade de um certo controlo do elemento pessoal), recusam-se igual- mente a separar estas duas ciéncias (2). As nogBes légicas funda- (1) Schiller, ouv, cité, p. 7 (trad, fr., p. 9). (2) Ver desgradamente domes, Lage de Vbre, wa.fr p19; Sopile, ‘Studies in Humanism, essai II: Des rapports de la Logique et de lé Psychologie, ® Psychology and Knowledge no Mind, vol. XVI, Abril 1907; Dewey,:Studies in ogee theory. 1815, 1850 a0, te, 33 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA mentais, as da necessidade, da evidéncia, etc., nfo partem, alegam eles, de processos psicolégicos? — Assim, a verdade deve prender-se com os nossos «interesses» do homem, jé que ela é feita para a vida desse mesmo homem. Verdade ideal e verdades coneretas, Nova dificuldade. Se a verdade é impessoal, se ela consiste num sistema de ideais, tais como as ideias de Plato, essa verdade deve ser 2 mesma para todos os homens. Deve ser imutavel e Unica. Podemos no nos aperceber dela; mas, desde que a atinjamos, no podemos vé-la sendo como ela é: una, idéntica e invaridvel. Os pragmatistas verificam ento que uma tal verdade contrasta singularmente com as verdades que, na realidade, os homens aleancam. As verdades hu- Manas so fugidias, tempordrias, em constante via de transformacao. A verdade de hoje ¢ 0 erro de amanha. Objectar-se-é que, com od correr do tempo, essas verdades tendem para a fixidez? Mas, é qua- se 0 inverso que é verdade. Antes que as ciéncias tivessem sido cons- tituidas, as verdades admitidas mantinham-se sensivelmente imu- téveis, durante séculos. As verdades religiosas no se modificavam, pelo menos aos olhos dos fieis. Com a ciéncia, assistimos ao apare- cimento de diversidade e da mudanea. E certo que, ainda néo hé muito tempo, julgavamos existir, pelo menos na ciéncia, uma dni: ca verdade, e julgavamos até que essa mesma ciéncia nos oferecia a verdade total ¢ definitiva, Mas hoje sabemos que assim nao é: «A iplicagao prodigiosamente répida das teorias, durante estes Ulti- mos tempos, quase suprimiu qualquer veleidade em se atribuir, a uma mais do que a outro, um cardcter de objectividade mais exacto Existem tentas geometrias, tantas ldgicas, tantas hipdteses fisicas ¢ quimicas, tantas classificagées, cada uma quais ¢ de certo modo vé lida sem que o seja no todo, que a ideia de que a formula mais ver- dadeira pode ser unicamente uma inveng@o humana, e néo uma transcrigéo literal da realidade, acabou por surgir (1)». A verdade é (1) James, L‘teée de Vérité, trad, fr., p. 81. 34 PRAGMATISMG E SOCIOLOGIA pois uma realidade viva, que se transforma incessantemente, quanto mais avancamos, mais essa vida de verdade se evidencia Uma verdade que deixasse de ser flex/vel, maledvel, nada mais seria aque 0 coragao morto da drvore viva» (O Pragmatismo. p. 73). Que disténcia entre a verdade ideal, imutavel do Dogmatismo, € as verdades concretas, reais, que nés vivemos! As suas caracteris- ticas siio opostas. Aquela, apenas pode desacreditar estas diltimas. Is- to, porque a verdade ideal basta-se a si prépria. Mas é-nos inacessi vel. Somos assim levados a desinteressarmo-nos das verdades reais, que se nos afiguram insignificantes relativamente & verdade ideal. O Racionalismo intransigente pode redundar no cepticismo (1), uma vez que situa 0 seu ideal demasiadamente elevado, onde néo pode- mos atingi-lo. ‘ Vejamos, por outro lado, se a prépria natureza da realidade permite que se atribua a verdade essa unidade e essa fixidez. A rea- lidade compreende simultaneamente 0 espirito e as coisas. Ora, por que se caracterizam os espiritos (2), se nao pela sua extrema diver- sidade? O entendimento Gnico, comum a todos, néo existe; o que existe, s80 entendimentos que diferem muito uns dos outros. Por consequéncia, se a verdade é uma, a diversidade dos esp ritos s6 po- de impedir que os homens descubram essa mesma verdade, sempre una, sempre idéntica a si propria — Por outro lado, e na mesma hip6- tese, porque motivo os espiritos so to diversos? Essa diversidade é ‘como acabamos de ver, um obstéculo 4 comunhéo perfeita de todos ‘08 homens numa verdade Unica. Porque existiré ela, entdo, se o ideal 6 uma verdade essencialmente impessoal? Ela é a origem do «pecado légico», tal como do pecado moral, e permanece totalmente inexpli cavel (na doutrina de Leibniz, em particular, a pluralidade dos mi nades levanta um problema insoliivel). Nao seré mais simples e mais logico dizer-se que a diversidade dos esp {ritos corresponde a uma diversidade na verdade e na prépria (1) Cf, designadamente James, ouv, cité, p. 159; Schiller, Studies in Humanism, 78, p. 204 e seg, (essai VIII), etc, ltrad. fr. p. 98, 262 ¢ sep, ete.) (2) No que se refere as «coisasy ver a Quarta Ligdo. 35 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSFIA realidade? «Qual o direito que nos permite afirmar, pergunta Schil- ler (0b. citada, p. 459), que a verdade Ultima deva ser uma e a mes- ma para toda a gente?... Porque néo se adaptaria ela as diferencas das experiéncias individuais?» Porque no admitirmos que aquilo que é verdade para um, néo o seja necessariamente para outro, e que a verdade seja, deste modo, algo de muito mais complexo do que aquilo que 0, Racionalismo corrente admite? Os pragmatistas déo-nos aqui alguns exemplos que, a bem dizer, nem sempre sio muito demonstrativos. Esté neste caso o exemplo que Schiller (1) nos propée: 0 juizo «Isto é uma poltronal», pode ser verdadeiro para mim e no o ser para outro. Se procuro alguma coisa onde me sentar, a poltrona é verdadeira para mim, na qualidade de assento; mas pode no o ser, ou sé-lo diversamente para um outro qualquer, como por exemplo, para um coleccionador ou um mercador de méveis antigos, que nela veja uma «antiguidade de mobilidrio ornamental. Finalmente — ultimo inconveniente da concepeao dogmética, segundo o Pragmatismo — quando admitimos a existéncia de uma verdade Unica, quando néo compreendemos que a diversidade de jufzos e das opinides tem a sua razo de ser, arriscamo-nos a atingir as raias da intoleréncia. A verdadeira tolerancia, é a do homem que, no s6 admite que entre os pensamentos existem diferencas que é necessério respeitar, que ndo temos o direito de violentar as cons- ciéncias, como também compreende que a diversidade das opinides @ das crengas corresponde a uma necessidade, a exigéncias da vida sentimental e intelectual, e que, se tais divergéncias existem, é por- que é bom que as haja, Assim, 0 Pragmatismo tem a percepgiio muito viva da diversi dade dos espfritos, do cardcter vivente da verdade, Mas é mal sucedi- do ao explicé-los. O Pragmatismo esbarrd com um problema de filo- sofia geral que 0 transcende: porque existem individuos? Qual a ra- zo de ser da diversidade dos esp iritos? (1) Seudies in Humanism, essai Vil, § 8, p. 191-192 (trod. tr, p. 246-246) 36 QUARTA LIGAO (1) Critica ao Dogmatismo (continuagio}: A concepgiio estatica do real. Fagamos um resumo daquilo que jé foi dito. 1° Se a verdade for impessoal, torna-se alheia ao homem, desumaniza-se e situa-se exteriormente a nossa vida, — 2° Se a verdade for a mesma para todos os homens, deixamos de compreender a razéo de ser da diversidade dos esp/ritos, que deveré contudo possuir um funcdo na vida geral. — 3° Se a verdade for idéntica para todos, o conformis- mo transforma-se na regra, a disténcia é um mal, e néo hd uma explicago mais plausivel para o xmal Iégico» que para o mal moral Acrescentemos que, se representarmos a verdade tal como fa- zem os racionalistas, como algo de estético, de imtitavel rio tempo e no espago, e uma vez que a verdade é a expresso de realidade, esta deveré ser igualmente concebida como se se mantivesse eternamente num estado estacionério, Se, pelo contrério, a realicade for algo de vivo, se ela se transformar e gerar constantemente algo de novo, & necessério que @ verdade @ acompanhe nessas transformagées, que também ela se modifique e viva. Mas, perguntar-se-4, por que motivo a realidade se transforma? De onde the adver essa mudanca? Se 0 universo tende para qual- quer coisa, é porque qualquer coisa Ihe falta: ele ainda néo é total- mente realidade, Dar-se-d 0 caso dessa mudanga ser ilusdria, das no- vidades serem simples aparéncia? — A resposta é facil: aquilo que assim qualificamos de ilus6rio, é precisamente tudo o que constitui © interesse pela vida. Negarmos ou diminuirmos a realidade da mu- (1) Curso de 6 de Janeiro de 1914, 37 SOCIOLOGIA PRAGMATISMO E FILOSOFIA danca, é suprimirmos tudo 0 que nos prende as coisas; é depreciar- mos, quer 0 valor das coisas, quer a forma pela qual elas nos afec- tam. E no entanto, esta concepcdo estdtica da realidade é to cor- rente, que a encontramos até naqueles que nos pareciam dever seguir uma orientacdo. diferente, num evolucionista como Spencer, por exemplo. Partindo de um principio que deveria té-lo levado a Teconhecer a transformacgo universal, Spencer fundamenta-se em nogées como as da indestrutibilidade da matéria e da conservacao da energia, nogdes essas que sdo radicalmente incapazes de justificar ‘a concepggo de um progresso real, de uma modificacdo real no significado do mundo (1). Daf resulta que, no seu sistema, a trans- formagao é apenas aparente, que o fundamento das coisas se man- tém constantemente igual, e que, na base de tudo, se encontra a homogeneidade do universo. Spencer admite efectivamente uma espécie de didstole edsmica que consiste num processo de diferenci ago, mas que tem como contrapartida uma s/sto/e que restitui todas as coisas 8 homogeneidade, de modo que, ao fim e ao cabo, 0 Universo se encontra no mesmo ponto que anteriormente, «nem mais rico nem mais pobre, nem melhor nem piory. E muito | contentarmo-nos com tal concepedo que, levada as suas consequéncias légicas, nos conduz a nocdo de uma realidade sempre semelhante a si mesma e que, por consequéncia, s6 pode redondar numa atitude de desprendimento pela existéncia Houve quem dissesse que a conclusiio que daqui se poderia extrair, 6 que nés proprios somos meras ilusGes e aparéncias transitérias, ¢ que é por isso que damos tanto apreco ao que ndo passa de uma ilusdo, e aquilo que é transitério. Mas, nao serd isto reconhecer, num certo sentido, a realidade daquilo a que se chama ilusério? No serd dar um sentido a essas pertensas «aparéncias» (2)? (1) Schiller, Studies in Humanism, essai IX, p. 225227 (trad. frp. 288-280). (2)Durkheim refere-se aqui as criticas de Schiller contra a antitese caparéncia ~ realideden, tal como se encontra em Bradley e no seu disc(pulo A. E. Taylor: ver nomeadamente Studies in Humanism, p. 239. seg. (trad. fr. p. 307 e sg). 38 PRAGMATISMC E SOCIOLOGIA A tendéncia para tudo vermos sob o aspecto de imutvel, néo passa, na realidade, de um expediente. E um meio de concedermos a0 espirito uma espécie de seguranca intelectual. Existem inteligén- cias que experimentam a necessidade de se fundamentarem em algo de fixo, de possuirem uma linha de conduta completamente traca- da, que nao comporte hesitagdo ou duvida, de se convencerem que ndo existem duas formas de agir e que, por consequéncia, néo hé que procurar-se a melhor. Essas inteligéncias carecem de uma disci- plina totalmente elaborada, de um cédigo de leis e de uma verdade pré-estabelecidos. De outro modo, sentem-se desorientados. Tudo o que for mudanga, risco, esforgo de pesquisa, provoca-Ihes inquieta- do e malestar. Da‘, muito naturalmente, a tendéncia para crerem numa verdade e em realidades imutaveis. E essa atitude que, segun- do os pragmatistas, caracteriza o espirito racionalista: é uma neces: sidade de estabilidade, de seguranga e, para tudo dizer, de repouso, Mas por que preco, observam os pragmatistas, essa seguranca do fical Ela apazigua-nos, mas desvia a realidade da vida. Ela de- Paupera essa realidade, simplificando-a; e 0 meio 2elo qual ela é obtida, € puramente ilusorio. Que importa, aliés, a existencia de um cddigo de leis redigido antecipadamente, uma verdade pré-determi nada? Seria ainda necessério que nés as descobrissemos e, assim mesmo, elas seriam obra nossa.,£ com as nossas faculdades humanas que témos de os descobrir; é com as nossas forgas humanas que te~ mos de nos servir. Para o efeito, s6 connosco podemos contar. Encontramo-nos entregues a nds mesmos, na «jangada da nossa ex- periénciay e, ainda que existissem «roteiros absolutos», a unica ga- rantia que teriamos de podermos segui-los, encontra-se ano nosso equipamento humanoy. A fantasia do hamem e, com ela, o erro, so sempre poss{veis; «a unica garantia real que possuimos contra 0 desregramento do pensamento, é a propria experiéncia que de todo © lado nos pressiona» (Nogao de Verdade, p.62). © sentimento que domina o Pragmatismo, é portanto comple- tamente oposto a0 que inspira o Dogmatismo. E c sentimento de tudo 0 que de varidvel, de pléstico existe nas co'sas. Para ele, 0 Universo tem algo de inacabado, de nunca integralmente realizado. Existe uma diferenga entre aquilo que é e aquilo que seré, tal como 39 | | | | SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA entre aquilo que é @ aquilo que foi. O mundo ¢ rico de possibilida des ilimitadas, que podem revelar-se desde que as circunstancias 0 permitam: «Para 0 Racionalismo, diz James (O Pragmatismo, p. 233), a realidade é dada completamente feita e acabada para todo 0 sempre, a0 paso que, para o Pragmatismo, ela encontra-se perma- nentemente em vias de elaboracéo, aguardando que o futuro venha completar a sua fisionomia. Com o primeiro, o universo encontra- -se apresionado no porto, definitivamente; com o segundo, ele pros- segue incessantemente 0 curso das suas aventuras. «E as novidades que assim se podem produzir, nao incidem unicamente em porme- nores superficiais: podem interessar no essencial. No mundo, o principal factor de inovacao é a consciéncia. Lo- g0 que surge, ela introduz algo de novo. Suponhamos, por exemplo, a constelacdo da Ursa Maior (1). Quem foi que discerniu e contou sete estrelas? Quem foi que notou a sua vaga semelhanga com a for- ma de um animal? Foi o homem, incontestavelmente. E certo que se poderd objectar que, antes que ele o tivesse feito, tais estrelas jd eram sete, € que as mesmas jé se encontravam dispostas daquele modo. Mas elas s6 0 eram implicita ou virtualmente. Faltava uma condigéo, e essa condigio era «o acto do espitito que conta e que compara». © homem parece limitar-se a traduzir, a descobrir. Mas, de certo modo, ele também acrescenta e cria: cria o ntimero sete, cria a semelhanca, O seu pensamento nao é uma cépia da realidade: uma verdadeira criagdo. Esta inovagio que 0 espirito nos traz, é ainda mais evidente quando se trata do futuro. Os nossos ju‘zos tornam-se ento gerado- res.de actos que transformam o cardcter da realidade futura. So sobretudo verdadeiras as representacSes que precedem os actos im- Portantes, a saber, as convicedes (2). A convicgdo gera entio a pré- pria realidade: a convicedo no éxito é a melhor condigSo para 0 con- seguirmos. A conviceao de que gozamos de boa satide, é uma das condig&es para nos mantermos saudéveis. O pensamento néo é ,nes- (11,A Nogéo de verdade, p.79; of. Le Pragmatisme, p.228 (2) Ver o livro de James, La Volonté de Croire 40 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA te caso, a expresso daquilo que existe; é um factor da realidade vindoura. Por consequéncia, a propria realidade néio é algo de conge- lado, de acabado, de circunscrito dentro de limites intranspon{veis. Ela progride sempre a par da exporiéncia humana. A medida que es- ta avanga, aquela invade 0 nada e enriquece-se também. Assim ger- mina uma ideia essencial, sobre a qual se fundamenta todo o Pra- gmatismo : 0 pensamento, ligado 4 aceéo, cria, de certo modo, a prépria realidade, Este pensamento é importante. E certo que o mundo fisico parece ter chegado hoje & uma espécie de equilibrio. Deixdmos de assistiF & génese de novas espécies entre os seres vivos. Mas certas criagSes semelhantes produzem-se constantemente no dominio moral(1). Todas as sociedades humanas sfo forgas que se desenvol- vem, longe de permanecerem sempre idénticas a si préprias. Vao aparecendo sempre sociedades mais complexas, nas quais surgem forcas novas. Estas forcas que, quando se trata do passado, apenas podemos representar estatisticamente, vemo-las nés presentemente em actuagdo. Como quer que seja, hd todo um dominio do real que foi manifestamente criado pelo pensamento : € a realidad social, e este exemplo é certamente o mais significative que podemios menci- onar. A partir daqui se explica que, no sendo a realidade algo de acabado, a verdade no posse, ser igualmente algo de imutdvel. A verdade néo é um sistema totalmente feito: ela formase, deforma-se € reforma-se de mil maneiras; ela varia, evolui como todas as coisas humanas. Para fazer com que esta ideia seja compreendida, James compara a verdade a lei ou & justiga, 8 I(ngua ou a gramética (0 Pragmatismo, trad. fr., p. 218-219). Os magistrados, os professores, julgam por vezes que existe uma s6 justiga, um s6 cédigo de leis ou uma s6 gramética; e nés imaginamos igualmente que existe uma sO verdade : @ Verdade. Na realidade, «a verdade, a lei, a lingua, tudo isso diz James, thes escapa por entre os dedos, tudo isso se dissipa (1) 0 comentério exprime aqui, notoriamente, o pensamento de Durkheim, ¢ do apenas 0 dos pragmatistas. Ver a Décima Quarta Ligdo. 41 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA 20 minimo contacto com um facto novo... Os nossos direitos, agravos, prosbigdes, castigos, vocdbulos, formulas, locucdes, cren: a8 ... tudo isso so outras tantas novas criagSes que a histéria se vém juntar, prosseguindo 0 seu curso».Trata-se de coisas que se esto processando», néo de coisas totalmente elaboradas, e nelas reside verdade, como nas outras: a verdade é um processo ininter- rupto de mudancas. Tornam:se aqui necessérios alguns reparos. Os pragmatistas de- monstram-nos bem como a verdade se enriquece, como ela se tor- na mais complexa. Mas, deduzir-se-é daqui, rigorosamente, que 2 verdade se modifica, na verdade acepgaio do termo? Se, por exemplo algumas novas espécies se formaram, deduzir-se-é daqui que as leis da vida se tenham alterado? € igualmente certo terem surgido novas espécies sociais. Mas, assistir-nos-4 0 direito de dai concluirmos que as leis da vida em sociedade deixaram de ser as mesmas? NZo con fundamos enriquecimento da verdade (ou do real) com fugacidade da verdade. O Pragmatismo possui a sensagdo viva de que aquilo que é verdadeiro, em relacdo a um determinado tempo, pode nao o ser, relativamente a outro. Mas, quo pouco demonstrativas so as suas provast.. Nunca os seus representantes, como jé foi dito, se sujeita- ram a uma exposigéo metédica. Alguns argumentos muito seme- Ihantes, que parecem resultar na mesma conclusio, so expostos se- paradamente. Um mesmo exemplo tanto é formulado de uma ma neira como de outra. Todavia, aquilo que no Pragmatismo sobretu do nos interessa, é, mais do que os seus processos de argumentaco, © sentimento que o anima. Ora o Pragmatismo teve, repitamo-lo, 0 sentimento muito vivo da diversidade dos esp/ritos, e da variabilida- de do pensamento no tempo. Daf também, a diversidade das deno- minagdes pelas quais ele se designou a si mesmo: Pragmatismo, mas também Humanismo, Pluralismo, etc. A.concepedo pluralista da realidade € Acerca desse Ultimo ponto, contudo, apercebemo-nos bem da conexo. Tudo 0 que se disse, nos mostra como o debate entre'o 42 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA ene Pragmatismo e Racionalismo chega a concernir, como diz James (1), no mais unicamente a teoria do conhecimento, mas também 4a forma de se conceber a estrutura do proprio universow. A mesma antitese que se verifica entre o ponto de vista estético dos Raci nalistas e 0 ponto de vista da fugacidade da verdade, dos Pragmatis- tas, encontra-se entre a concepcao monista e a concepedo pluralis- ta do universo. Se, com efeito, 0 universo for uno, na exacta medida em que forma um sistema estreitamente ligado, do qual todos os elementos se encontram implicados uns nos outros, em que o todo comanda a existéncia das partes, em que os individuos sdo me ras aparéncias. Se ele nada mais constituir, em suma, que uma enti dade Grnifea, entdo a transformagio é impossivel. Isto porque a posi io de cada elemento 6 determinada pelo todo, e este, por sua vez, 6 determinado pelos elementos. Ora este, é 0 ponto de vista monista. Porqué, aliés, pergunta James (O Pragmatismo, p. 128), esta superstigo, esta religido do nimero «um»? Em que é que «um» ser superior a «quarenta e trés», por exemplo? Existem, alids, muitas outras formas de concebermos essa unidade. Nao hé divida de que, num certo sentido, o mundo é um. Mas, porque motivo ele © no seria, tal como 6 do ponto de vista pluralista, na medida em que é constituido por partes ligadas entre si por certas afinidades, mas que permanecem distintas, que conservam uma certa indepen- déncia e uma determinada autonomia, o que dé azo & mudanga, a diversidade e A contingéncia? Situemo-nos na éptica pragmatista, consultemos os factos, a experiéncia (2). Verificamos, primeiramente, que o mundo é uno, na medida em que constitui 0 objecto de uma representago: é uno para o pensamento e para o discurso. Mas isso de forma alguma nos condu7 ao monisma: 0 «eaos» uma vez denominado, tem, nesse sen- tido, tanta unidade quanto 0 «cosmos». O mundo é ainda uno, na medida em que todas as partes que o constituem so cont/nuas (3) (1) Le Pragmatism, trad. fr. p. 234 (2) Dukheim resume aqui a Quarta Ligao do Pragmatismo. (3) Nas nossas duas verses insere-se 0 termo contiguas. Reconstruimos a ligo que 0 texto de James nos dé, 43 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA No espaco e no tempo. Mas essa unidade é totalmente exterior. Pa- ra o Pragmatismo, espaco e tempo nada mais sio do que «instru- mentos de continuidade». — Uma unidade mais profunda resulta das acodes e reacdes internas, das influéncias que cada parte do mundo exerce sobre as partes restantes. A propagagio do calor, da electricidade, da luz, eis alguns exemplos dessas influéncias que unem todas as coisas no mundo fisico. Existe assim uma infinidade de ramificagées constituidas por diversas «linhas de influéncian, Pequenos mundos que serve de base & nossa acedo. Mas, cada uma dessas linhas de influéncia, deixa fora de si uma imensidio de coisas. Além disso, teremos de escolher convenientemente os intermed rios. Num circuito eléctrico, por exemplo, intercalemos um corpo que seja mau condutor. A corrente no passa, ou terd de desviar-se, deixando 0 corpo de fora do seu circuito. Semelhantes ramificagées existem igualmente, observa James, no mundo moral. Os homens encontram-se encerrados em amplas redes de relagdes sociais. Assim, suponhamos que A conhece B, que B conhece C que C conhece D Podemos entéo fazer com que uma mensagem passe de A para D. Mas também aqui no vamos longe, quando escolhemos mal um dos nossos intermedidrios. Se, por acaso, B ndo conhece C, a mensagem no chega ao seu destino, Existem igualmente linhas de simpatia que se difundem, se desenvolvem, se organizam em agrupamentos varios. Quanto mais uma sociedade evoluir, mais essas linhas de simpatia se organizam e se multiplicam. Em qualquer sociedade, existem deste modo sistemas que relacionam os individuos entre si: sistemas religiosos, grupos profissionais, etc., e estes vinculos fazem com que algumas forcas morais se transmitam a todos os membros. do grupo (1). Por vezes, tal como nas relages econémicas, essa transmissao é mais caprichosa. Mas cada grupo é alheio aos restan- tes, de forma que uma sociedade que, aparentemente seja una, compée-se na realidade de uma imensidéo de pequenos agrupa- mentos, de pequenos mundos sociais que, por vezes, interferem, embora cada um deles viva uma existéncia propria e se mantenha, em prine(pio, exterior aos outros. (1) Neste caso, Durkheim interpreta James, liveriente Le Pragmatisme, p. 132. 44 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA Verificamos, desde logo, em que consistem, para os pragmatis- tas, a unidade e @ pluralidade. Para eles, hd efectivamente uma unidade; mas no ¢ uma unidade dos monistas. O mundo é consti- tuido por um ndimero incalculével de redes que unem as coisas e os seres entre si. Essas redes so, elas préprias, formadas por malhas ‘complicadas e relativamente independentes. Os elementos que elas ligam nao so fixos, e a propria forma da rede encontra-se sujeita & modificacao: constituida por uma pluralidade de pequenos sistemas, cada um dos quais dotado de vida auténoma, a rede forma-se, deforma-se e transforma-se continuamente. Assim, o pluralismo dos pragmatistas opée-se a9 monismo dos racionalistas, Para os primeiros, a multiplicidade é t8o real quanto a unidade: existem simultaneamente unido e dijungao. A forma todo, admite James (1), existe; mas « a forma cada — a forma particular de cada elemento — é légicamente téo aceitével, e empiricamente to provaveln. Existe efectivamente um todo, mas, nesse todo, hd uma certa liberdade de acco. O mundo é uma repiblica federativa que permite a cada uma das partes uma grande autonomia; no é¢ uma sociedade monarquizada. Podemos, por exemple, representar 0 Universo fisico como um mundo em que todas as coisas seriam inertes, e seguidamente, acima dele, um mundo onde apenas existis- sem realizagdes_mecénicas, um mundo de forcas, etc. Podemos igualmente conceber seres conscientes que se abstreissern comple- tamente uns dos outros, ou ento, homens amandc-se ou odian- do-se reciprocamente, ou ainda, imaginarmos todas as conscién- cias acabando por comungar, por se confundirem umes com as outras. A unidade torna-se mais completa e, no entanto, ela man- tém-se sempre parcial, ralativa, progressive. O murdo néo é, diz James (2), algo de rigido, de compassado, de burocrético; ele néo Possu/ a bela arrumacdo que os racionalistas neles vislumbram: é «um universo desordenado». (1) Philosophie de Expérience (A pluralistic universe), trad. fr, p. 32; of ibid., p. 184, 312, ete, (2) Le Pragmatisme, trad, tr, p. 235. 45 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA Nao obstante o interesse desta argumentaco, compre-nos per- guntar se ela atinge 0 que de essencial existe no Racionalismo. Este admite que a verdade tem por funcéo traduzir a realidade. O Pragmatismo esforca-se por demonstrar que a realidade néo é imutével_nem é igual para todos. E conclui daf que a verdade nao poderia ser uma eépia da realidade. Mas, porque motivo a c6pia no evoluiria, tal como 0 modelo? Para o formular, teria sido necessério demonstrar que 0 pensamento ndo pode ser a cépia, néo s6 de uma realidade imutével, mas também de nenhuma outra realidade, qualquer que ela seja. Por outras palavras, que existe uma hetero- geneidade radical entre a realidade e 0 pensamento . Ora, esta demonstracdo néo foi efectuada pelos pragmatistas (1). Nos derradeiros anos da sua vida. James deduziu-a contudo das obras de Bergson. Foi af, em Bergson, por ele considerado o destru dor do intelectualismo, que James julgou encontrar os seus melho- res argumentos. (1) Ver, a tal respeito, a Vigésima Li¢éo. 46 QUINTA LICAO (1) 0 Pragmatismo ea cr ica do pensamento conceptual O préprio principio do Racionalismo, afirmei eu, parece néo ter sido atingido pela critica pragmatista. Esta eritica dirige-se sobretudo contra a nogéo da verdade-cdpia. Mas, porque motivo 0 verdadeiro pensamento ndo seria a propria cépia varidvel de. um modelo varidvel? Sera evidente, alids, bastar-se dizer que uma cdpia, desde que duplicacdo do real, é intitil? N3o se trata ce saber se ela 6 Util, mas sim se é verdadeira. Dizia eu a terminar que, para se esta- belecer a tesé pragmatista, era necessério provarmos a existéncia de uma heterogeneidade essencial entre o pensamento ea realidade. Es- s2 demonstracdo, tentou-a James no Capitulo VI do seu Universo pluralista (Filosofia da Experiéncia), inspirando-se nos argumentos de Bergson. Este capitulo, alids, intitulase Bergson e a sua critica do intelectualismo. Vejamos quais séo esses argumentos, tal como ele os apresenta. A verdade pressupée jufzos, diz James. Ora os ju(zos pressupdem conceitos. E pois o pensamento conceptual, e s6 ele, que parece po- der ser gerador da verdade. Mas, para isso, seria necesséria a oxistén- cia de um vinculo natural entre 0 conceito e as coisas, Para James, pelo contrério, tal como para Bergson, a realidade 0 conc possuem caracteristicas opostas. 1° O conceito (2) é algo de definido, de distinto; encontra-se nas ant{podas das representacdes méveis, vagas, confusas, como so (1) Curso de 13 de Janeiro de 1914. (2) Ver os 3 estudos Percept and Concept, em Some Problems of Philosophy, br. postuma, New-York e Londres, 1911, cap, IV, Ve VI, p. 47-112, 47 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA as imagens. Extraido da nossa experiéncia corrente, 0 conceito cir. cunscreve dentro de estreitos limites. Enquanto que, no fluxo sensi- vel das imagens, as expresses se compenetram mutuamente, os con- ceitos encontram-se isolados uns dos outros, Entre eles, ndo existe contacto, nfo hé confuséo, a0 contrério do que acontece com as imagens. 2° Cada conceito exprime um aspecto das coisas, e somente esse aspecto. E claro que existem conceitos que exprimem coisas ou grupos de coisas, mas esses so conceitos compostos. O conceito verdadeiro, puro, & simples. Ele é andlogo aquilo que, em Descartes, € 0 objecto da intuicdo: nunca o atingimos, mas para ele tendemos. Na vida do dia-a-dia, utilizamos, é certo, conceitos complexos, de contornos flutuantes, uma vez que eles no foram defenidos meto. dicamente. Mas 0 conceito propriamente dito, necessita de ser de- terminado, delimitado, de forma a que, quando 0 utilizarmos, so- mente nele pensemos, e néo noutra coisa qualquer. A caracteri tica do conceito, reside no facto de ele ser uma representagio iso- lade, e isto porque ele deve exprimir téo somente uma coisa ou um aspecto da coisa, um estado, um elemento. - 3° Daf resulta que o principio de identidade ou de néo-con- tradiggo domina toda a vida conceptual: «Para a légica dos coneei: tos, o mesmo é mesmo, absolutamente nada mais; e as coisas idén- ticas a uma terceira, séo idénticas entre si (1)». 0 conceito é aquilo que 6, e outra coisa no pode ser. Por consequéncia, para que o pen- samento conceptual pudesse ser uma cépia da realidade, seria neces- sirio que a realidade fosse constituida segundo o mesmo modelo, is- to é, feita de elementos estéveis, bem distintos uns dos outros, & sem comunicacdo entre si; que as proprias coisas apresentassem 0 mesmo caractér descontinuo, conclu(do e separado. Ora, diz James, a natureza apresenta caracteristicas diametralmente opostas: a reali dade é continua e encontra-se em constante formaggo. «O que exis- te na realidade, volto a repeti-lo, no s&0 coisas totalmente feitas, mas coisas em vias de formacdo. Uma vez feitas, s80 coisas mortas e, (1) Philosofie de lExpérience, p. 247. 48 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA para as definirmos, podemos recorrer a um niimero infinito de de- composigdes conceptuais, deixando sempre alternativas & escolha (1)». Admitamos mesmo, por momentos, que a realidade & consti- tuida por elementos estéveis e distintos; como sabermos o ndmero desses elementos? Para serem consequentes consigo proprios, os ra- cionalistas deveriam reconhecer que esse niimero é infinito e que, por consequéncia, o ntimero dos conceitos necessérios para os tra- duzir é infinito, também ele. Mas, uma vez que um nimero infinito no pode ser algo de actual, de realizado, nenhum movimento ja- mais poderé realizar-se ou concluir-se. Se um mébil tiver de percor- rer um ntimero infinito de pontos, nunca ele atingiré o seu termo, mantendo-se o termo sempre fora da série. E o velho argumento de Aquiles e da tartaruga, desenvolvido por Zenon de Eleia (N.T:). 0 universo é assim condenado a imobilidade. E no entanto, o movimento, a mudanga opera-se. E que efecti- vamente, diz James,«o paradoxo s6 & preocupante se a sucesso dos graus da mudanga for completamente divisivel no infinito». Ora, a mudanga néo se processa assim, por meio de uma infinidade de mo- dificag&es infinitesimais; processa-se sim, por unidades de uma certa grandeza, de uma certa amplidéo, por quantidades finitas. Se, quando esvaziamos uma garrafa, fosse necessério «que 0 contetido sofresse um numero infinito de redugGes sucessivasy, a operago ja- mais se concluiria. A garrafa esvazia-se mercé de um numero finito de reduces, cada uma das quais com uma quantidade finita: « ou 6 uma gota inteira que sai do gargalo, ou dele néo sai», E assim, «por (1) Obra eitada, p. 254. (N.T,) Os dois mais célebres arqumentos de Zenon de Elela, antigo filbsofo gre. go nascido entre 490 ¢ 485 A.C., so os de Aquiles e a tartaruga ¢ o da flecha ue voa. No primeiro, Aquiles, ndo obstante a sua prodigiosa velocidade, nunca poderd encurtar 0 pequeno avanco que sobre ele leva a pachorrenta tartaruga. No segundo, a flexe que vai disparada encontra-se imével, jd que a todo 0 mo- mento se mantém num ponto definido, o que equivale a permanecer em repou- 50, Os argumentos de Zenon de Eleia insurgem-se contra a crenga na realidade do movimento, 49 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA meio de uma série crescente de pulsagées distintasy, que a mudanga se processa no mundo; e de cada vez que uma dessas «pulsagdes» se produz, nds dizemos: «Aqui esta qualquer coisa a mais», ou Kaqui estd qualquer coisa e menos». A descontinuidade é ainda mais evi- dente, quando alguma coisa nova surge, ou quando alguma coisa an- tiga desaparece. «A expresso de Fechner, 0 /imiar, que téo impor- tante papel desempenhou na psicologia da percepedo, é téo somen- te uma maneira de designar a descontinuidade quantitativa da mu- danga que sofrem todas as nossas experiéncias sensiveis (1)». Seré que esta argumentagdo de James atinge verdadeiramente © intelectualismo? Podemos duvidar. 0 maior racionalista contem- pordneo, Charles Renouvier, que demonstrou a impossibilidade da infinidade actual das partes, retoma contudo os argumentos de Ze non (2). Insistir-se nessa impossibilidade, ndo é portanto, necessaria- mente, arruinar o intelectualismo. A questo é, alids secundaria. O que importa, é muito menos sabermos se o mundo é constituido por um nimero finito ou infinito de partes, que sabermos se ele é for- mado por partes distintas ou ndo..Quais so, a tal respeito, os argu- mentos de James? Os conceitos sio algo de estdve/. Para poder ex- primir 0 movimento e a mutacdo, bastaria que cada conceito.expri- misse uma das situagdes pelas quais passa 0, movimento. Mas, de- compor o movimento em situagdes, é transformé-lo em algo de fixo. © conceito s6 poder portanto exprimir o movimento, detendo-o num determinado instante, imobilizando-o (3). A Unica forma de fa- zermos com que os conceitos coincidam com a mutacdo, seria su- pormos arbitrariamente alguns pontos em que @ mesma mutago se detivesse, j4 que sto esses pontos de paragem que os nossos concei- ‘tos podem exprimir. Desse modo, porém, apenas conseguiriamos uma sequéncia descontinua de posig&es e de datas, mercé das quais, (1) Obra citade, p. 219-220. (2) Ver Essai de Critique générale, Primeiro ensaio, 1.° parte, XI, éd. Armand Colin, 1912, p. 42-49, O préprio James tece um rasgado elogio a Renouvier, em “Alguns Problemas de Filosofia, p. 165, n. (3) Some Problems of Philosophy, cap. V, p. 81-83, 87-88, etc. 50 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA € impossivel reconstituirmos 0 movimento, a préprie mutagio. Com efeito, por um lado, uma série de conceitos que exprimem pausas, suspensées, ndo poderia traduduzir aquilo que se move, E 0 velho argumento da Escola de Eleia: a flecha que voa encontra-se imével, 8 que, se considerarmos uma posi¢o da flecha num dado momento da trajectéria, essa posigiio & necessariamente uma situaggo de re- pouso. Por outro lado, para que os conceitos fossem capazes de ex- primir a mutagao, necessério seria que esta se pudesse decompor, se pudesse fragmentar em elementos descontinuos. Mas, como recons- ‘truir 0 continuo com o descontinuo? Como, uma vez interrompida a unidade da mutacdo, reconstituir essa mesma unidade? Entre cada conceito que exprime essa posicgo, uma situacdo daquilo que muda, € 05 restantes conceitos, existe um vazio, por pequeno que seja,.¢ es- se vazio néo se pode superar. Assim, nada mais conseguimos do que «um mosaico feito fora de tempo, uma dissecagao feita num cadé- ver (1). Isto é tanto mais grave quanto é certo que aquilo que muda é 0 préprio dmago das coisas, € o essencial. E precisamente isso que 0 conceito é incapaz de exprimir. Os conceitos podem propiciar-nos um «quadro sindpticon dos fenémenos. Mas 0 metefisico que pro- cura captar a realidade com profundeza, aquele cuja curiosidade in- cide na natureza intima das coisas e daquilo que as move, terd de «virar as costas aos conceito». Assim, o pensamento conceptual processa-se apenas superficialmente», sendo incapaz de penetrar na realidade (2): Eis uma outra forma de traduzir a mesma ideia. Aquilo que faz a realidade das coisas, é a trama das influéncias que elas exercem en- tre si, O meu pensamento actua no meu corpo, anima-o. Um gesto (1)Philosophie de I’Expérience, p. 252. (2) Obra citada, p. 240-241. A arqumentacdo 6, neste caso, muito semelhante 8 de Bergson, Cf. ibid., p. 227-232, onde James afirma que, antes de Bergson, 0 racionalismo nunca fora seriamente posio. em questo, «Sd Bergson foi radical». S6 ele «recusa os principios desta autori- dade te6ricay:: logica conceptual do intelectualismo, 51 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA do meu corpo exterioriza-o e, por seu intermédio, o meu pensamen- to comunica com o ensamento alheio. E pois necessério que as coisas se possam assim combinar, penetrar, «telescopar», escreve James (1). Ora, «o intelectualismo ndo admite que as coisas finitas possam agir umas sobre as outras, jf que, uma vez traduzidas em conceitos, todas as coisas se mantém fechadas em si mesmas (2). Os conceitos «tornam incompreensivel a prépria nogéo de uma in- fluéncia causal entre as coisas finitas (3)». Na dptica da logica con- ceptual, todas as distingdes so «isoladoresn. O contagio dos concei- tos seria a confusio; e a confusdo ¢ 0 pecado légico, por excelén- cia. Por maioria de razéo, a vida nfo pode traduzir-se por concei- 10s, jd que «o cardcter essencial da vida consiste numa continua transformagéo (4). Um ser que vive, é um ser que, ndo s6 se encon- tra, num dado momento, diferente daquilo que era anteriormente, como também, no mesmo instante, é diferente de si proprio. Aqui- les, que persegue a tartaruga, néo é unicamente o ser que, num dado momento, coincide com um certo e determinado espago; é o ser que parte impulsivamente, e esse impulso é um facto concreto no qual os movimentos do tempo e as divisdes do espaco se encontram im- plicadas indivisivamente: «o fim e 0 princfpio apresentam-se-the esse momento Unico que é 0 seu proprio impulso (5)». — Mas, outro tanto acontece se nos situarmos no ponto de vista estético. Nao € somente a vida que é feita de uma trama de relagées e de acgbes, Tomemos como exerplo um ser qualquer. Este é constitui- do por um conjunto, de caracteres, cada um dos quais é solidério com todos os outros e com o préprio conjunto, e que, por conse- quéncia, 86 poders ser isolado mercé de um artiffcin. Além disso, 0 seu presente nem por isso se dissocia mais do seu passado e do seu (1) Obra citade, p. 247. (2) Obra citada, p. 249, (3) Obra citado, p. 236, (4) Obra citada, p. 243. (5) Obra citada, p. 246, 52 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA futuro. © mesmo se passa com as coisas. Nao existe um conceito nico da coisa; cada coisa compreende uma pluralidade de elemen- tos, e cada elemento uma pluralidade de elementos. Que resulta de tudo isto? O pensamento conceptual vive de distingSes, ao passo que o mundo é continuo. Ora o que é conti- nuo, é vago, é confuso. Esta ant/tese explica o cardcter prestigioso que ao conceito foi atribuido. O pensamento conceptual esté anima- do de fixidez, logo de preciso e de clareza. Repugné-Ihe tudo quan- to seja fugaz. «A tradi¢go preponderante em filosofia, sempre foi a crenga platonica e atistotélica de que a estabilidade é algo de mais nobre € mais elevado que a mudanga. A realidade deve ser sempre una e imutavel. Os conceitos, gracas a sua fixidez, so o que de mais conforme existe com essa fixidez da verdade (1). Quando conseguiu constituir um sistema, desses conceitos iméveis, 0 pensamento filoséfico experimentou uma grande admira- 40 por si, proprio, e julgou que aquilo que assim havia criado era a realidade em si. E foi essa a ilusio de Plato, ilustio segundo a qual, acima deste mundo fugaz e mutdvel, existiria um mundo de essénci- as fixas e imutdveis. Ora, diz James, «a realidade é superior & l6gica (Filosofia da Experiéncia, p. 197). Temos de nos inclinar perante os factos, a realidade deve sobrepor-se a razéo. Dai resulta pois, tam- bém, que o princfpio de identidade e a lei de ndo-contradicao se nao apliquem a realidade (2), Lacunas da presente criti A gravidade desta consequéncia auxilia-nos @ descobrirmos uma no menos grave lacuna no pensamento de James. Este no nos explica como é que 0 pensamento ldgico, baseado no princi identidade, pode servir para nos orientar no meio daquilo a que, se- gundo ele, 0 principio de identidade se nao aplica. Nenhum dos pre- gmatistas julga, com efeito, que o pensamento conceptual seja (1) Obra citada, p. 226; ct. L’idée de Vérité, p. 216, (2) Ver em seguida a Vigésima Ligdo. 53 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA indtil, apesar dele no ser uma cépia da realidade. Ele «ins tes de tudo, diz James (1), nas conveniéncias da praticay. Mas, co- mo pode o pensamento conceptual desempenhar essas fungdes, se entre ele e a realidade no existe uma medida comum? Aliés, 0 pré- prio James reconhece que esses conceitos, recortados no decurso da nossa experiéncia, «nos fornecem conhecimentos» e «possuem um certo valor tedrico (2)». E efectivamente muito diffcil fugirmos aos conceitos e aos princfpios légicos: quando James nos diz que, com descontinuidade nao se pode gerar continuidade, nao se estd ele ser- vindo de um principio légico? Ngo afirma ele, com 0 auxilio do pensamento conceptual, algo que tem a ver com a prépria realidade (3). Toda esta argumentacaio de James se inspira, de muito perto, nos desenvolvimentos de Bergson. As conclusées positivas a que ambos chegam,ndo sto idénticas. Mas a sua atitude perante o Ra- cionalismo cléssico é exactamente a mesma. De parte a parte se veri- fica a mesma hiperestesia relativamente a tudo 0 que é mobilidade das coisas, a mesma tendéncia em apresentar a realidade sob o seu aspecto fugaz e obscuro, a mesma inclinagdo para subalternizar 0 pensamento claro e distinto ao aspecto confuso das coisas, Mas, aquilo que James foi sobreetudo beber de Bergson, foi a forma de argumentagio que faz a acusacaio do pensamento conceptual. Quan- to as suas ideias fundamentais, essas jé se encontravam desde hé muito no seu pensamento, como 0 comprovam os seus Princ/pios de Psicologia, nos quais, por exemplo, ele insistia na perfeita continui- dade da «corrente» da consciéncia (4). (1) Obra citada, p. 233 ¢ 237. (2) Obra citada, p. 235. 3) Na anotago que completa a sexta ligéo, no final da Filosofia da Experién- cia (p. 321), James esforca-se por defender Bergson de haver utilizado, ele préprio, cum sistema de conceitosn, para nos oferecer da realidade uma visio mais profunda que a dos racionalistas. (4) Principles, tomo |, cap. IX: The stream of thought. 54 SEXTA LIGAO (1) Os aspectos secundirios do pragmatismo Facamos um resumo do que atrés foi dito. Os pragmatistas criticam, antes de tudo, a concep¢io segundo a quel a ideia verda- deira seria uma cépia da realidade. A argumentacdo que patente- mos no é exclusiva de James. Encontramo-la noutros pragmatis- tas, se bem que estes nem sempre se exprimem numa forma téo defenida. Os pragmatistas sentiram efectivamente, além disso, que existe um verdadeiro contraste entre as complexidades confusas da realidade e os caracteteres do pensamento légico. Todos esto de acordo em recusar, ao pensamento légico, a primazis que o raciona- lismo de todos os tempos sempre Ihe reconheceu, e é esse 0 seu trago comum com a filosofia de Bergson. Mas 0 Pragmatismo nao se confina inteiramente a essas teses, fundamentais. Ele apresenta aspectos secundarios que, a bem dizer, no s8o menos importantes. Q Pragmatismo é efectivamente a pré- pria imagem do mundo, tal como o concebe: poliforme, apresentan- do aspectos to diversos que se torna dif cil percebé-lo exactamente. Encarémo-lo sobretudo como sendo um continuismo. Mas apresen- ta-se igualmente como um empirismo radical e como um pluralismo. 1. 0 pragmatismo como empi 10 radical. «O Empirismo radical», tal como é definido por James, ¢ a doutrina que nada admite para além da experiéncia: xA experiéncia, no seu todo, néo basta por si propria, e em nada se baseian (Mogao (1) Curso de 20 de Janeiro de 1914. 55 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA de Verdade, p. 108). Por isso, é necessdrio que a experiéncia se torne clara por si mesma, que o mundo encerre todos os principios neces- sérios 8 sua propria explicago. O que ¢, efectivamente, explicar? Para os pragmatistas, como para nés, explicar é estabelecer cone- x6es entre as coisas. Mas, das duas uma. Ou admitimos que a reali- dade 6 composta por partes distintas, ao passo que as relagSes que as unem s6 podem ser exteriores a essas partes. Dizer-se que as coi- sas so descontinuas, ¢ afirmar que os seus elementos se encontram separados, distintos, e que, por conseguinte, no encerram 0 seu principio de unio. Este princfpio deve encontrar-se entéo fora das coisas, num pensamento que crie essas relagdes e thas imponha do exterior, seja esse pensamento o de um homem ou o de um espiri- to absoluto, tal como no sistema de Thomas Hill Green (1). Porém, se admitirmos assim um absoluto, exterior @ realidade, separamo- -nos da experiéncia, renunciamos ao empirismo. Ou ento — segunda hipétese, que é a de James — 0 mundo é continuo, tudo se encontra relacionado no universo. Nao se pode afirmar que qualquer das suas partes «vai exactamente até determi- nado sitio, e néo mais longe», todas se compenetram e «se mantém unidas entre siv. Nesse aspecto, as «relagdes de toda a espécie, ‘tempo, espago, diferenga, semelhanga, mudanca, medida, causa, etc., fazem parte integrante do fluxo das sensagSes, tanto quanto as préprias sensagbesn, ¢ existem relagdes conjutivas do mesmo modo que relagdes disjuntivas (2). Essas relagdes so objecto de experién- cia, logo, sd to reais quanto os termos que elas unem. A mudan¢a que, ela propria, 6 um caso de experiéncia, constitui uma dessas relagdes conjuntivas (3). Proceder-se a experiéncia das coisas, é transitar de forma continua de um extremo para o outro; é sentir, experimentar os vinculos que as unem. Eis no que consiste, segundo James, o Empirismo radical. Por- qué este qualificativo de radical? E, diz-nos o préprio James, «para (1) Ver Philosophie de I'Expérience, p. 267. (2) Obra citada, p. 263 e 268-269, (3) Essays in radical empiricism, p. 42, 48-49, 107, 240, etc. 56 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA © diferencar da doutrina dos dtomos psicolégicos, que 0 termo empirismo tantas vezes sugere (1)». E, em suma, para o diferencar do empirismo de Hume. O empirismo de Hume julga nao se desviar da realidade quando se recusa a admitir um qualquer vinculo entre as coisas. A experiéncia ¢ feita, segundo ele, de elementos heterége- neos, logo, estranhos uns aos outros, Ele é pure descontinuidade, 0 puro caos, no envolvendo «qualquer espécie de conextion. Cada Precepedo represennta uma existéncia distinta, e «o espfrito nunca se apercebe de qualquer conexdo real entre existéncias distintas (2)», Mas um tal empirismo, segundo o qual esta experiéncia des- continua deve bastar-se a si propria, nada mais é que uma doutrina truncada. Ele deixa uma porta aberta, pela qual o espirito é tentado a dissociar-se da experiéncia, e é isso que fara Kant, que partindo dessa concepedo de Hume (a «rapsédia das precepcdes»), restabe- leceré uma realidade exterior e anterior & experiéncia no mundo das «coisas e em si (3)». Existe porém uma doutrina descontinuista, a que James se no refere: € 0 /dealismo radical, tal como foi exposto por Hamelin no seu Ensaio acerca dos elementos principais da compreenséo. Aqui, a realidade é efectivamente considereda como sendo formada por elementos descontinuos, que so os conceitos. Estes conceitos so definidos, limitados, bem distintos uns dos outros. E no entanto, a realidade assim composta, de forma alguma recebe a sua unidade de uma fonte exterior. Esses intimeros conceitos que constituem a realidade, solicitam-se reciprocamente, tendem uns para os outros, n&o so estranhos entre si. No seu livro, Hamelin tenta reconsti- tuir, elaborar as categorias: existem vinculos entre elas e, também aqui, podemos afirmar que os elementos da realidade no existem para além das relagdes que os unem. Ha uma unidade imanente & realidade. — Nem James nem Dewey tiveram em conta esta solu- ‘980. Nao viram que o Idealismo radical fornecia um meio de admitir (1) Philosophie de I’Expérience, p. 269. (2) Essays..., p. 43 e 103. (3) Phit, de 'Exp., p. 229-231; Essays, p. 163. 57 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA a realidade como constituida por um sistema de elementos, sem no entanto ser forgada a sair do sistema do proprio pensamento. Es- sa doutrina merecia, contudo, ser discutida. Num certo sentido, tal- vez ela apenas se diferencie, pela expresso, da hipétese continuista do Empirismo radical. O seu autor, com certeza, jamais teria admi- tido tal interpretago. Mas ha certamente nela uma grande afinidade entre as duas concepedes. 0 que caracteriza 0 Empirismo radical, é a unicidade absoluta do plano da existéncia. Ele recusa-se a admitir a existéncia de dois mundos, 0 mundo da experiéncia eo mundo da realidade. Uma das objeccdes que James mais frequentemente dirige (1) a Spinoza, inci- de na distingdo entre a natureza, desde que geradora, e a natureza, desde que gerada. Esta distingdo afigura-se-Ihe inadmissivel. Para ele, no existem dois aspectos das coisas; estas situam-se todas no mesmo plano, a0 mesmo nivel. O pensamento move-se, também ele, num plano tinico. E nisto que o Empirismo radical se distingue do Emipirismo simples, que, pelo contrério, mantem a dualidade entre © espirito e as coisas, James censura este titimo por ver mais a par- te de que o todo, e por no compreender que a realidade inteira, tal como todo o pensamento, se situam no mesmo plano, fazem parte do mesmo proceso. 11.0 pragmatismo como Pluralismo Podemos agora dar-nos conta daquilo que constitui esse outro aspecto do Pragmatismo, ou seja, 0 «Pluralismow. Nao é a nogéo de uma auséncia de unidade, é sim, a de um certo género de unidade, uma unidade «desabotoada», como id se disse, isto é, uma unidade muito simples, que nada tem de rigido. No amélgama continuo das coisas, cada uma deles tem a ver com as restantes. Mas esta unidade no implica a imutabilidade. Cada coisa pode destacar-se da sua am- biéncia, entrar noutras combinages, e assim, a0 mudar de contexto cada objecto muda ele mesmo de natureza. O que facilita esta diver (1) Especiaimente Phil. de Exp., p. 44; Essays in radical empiricism, p. 208. 5B PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA sidade de formas que uma mesma coisa pode tomar, é 0 facto de, uma vez que tudo é multiplo, também cada elemento da realidade comporta uma certa complexidade, uma imensidao de caracteres di- ferentes. E facil imaginarmos que uma coisa que se encontra relaci- onada com outra, por esta ou por aquela caracter{stica, dela se pode desligar sempre que as circunsténcias a levarem a combinar-se com outras, existindo deste modo uma imensiddo de combinagBes pos- siveis. Nada do que ¢ real é simples, e cada relacdo é to somente um dos aspectos varios dos caracteres ou das accdes das coisas. Esté-se vendo qual o verdadeiro significado do Pluralismo. Ele no supde que 0 mundo seja formado por uma pluralidade de seres estranhos uns aos outros. O termo ndo deve ser tomado letra, Po- der-se-ia mesmo dizer que, de certo modo, o Pragmatismo é,mo- nista, que ele é muito mais monista que o proprio Monismo metaf sico. O Pragmatismo reconhece a unidade do mundo, mas uma unidade suave, flexivel, multiforme, feita de uma quantidade de fenémenos que se nao dissipa, mas que se modifica constantemente @ que poderiamos comparar a um lago cujas 4guas, agitadas pelo vento, variam continuamente de aspecto, se separam e regressam a sua primitiva forma, agitando-se de uma imensidéio de maneiras. O aspecto do lago modifica-se, mas as dguas so sempre as mesmas. Esta concep¢do de uma unidade variével, 20 mesmo tempo que duradoura, é uma consequéncia da hipétese continuista Todos estes diferentes aspectos do Pragmatismo se encontram relacionados entre si: 0 proprio Pragmatismo é uma doutrina simul- taneamente una e diversa, As teses positivas do pragmatismo Termindmos a exposigéo da parte negativa do Pragmatismo, que constitui essencialmente uma critica a0 Racionalismo. Resta- nos saber qual 2 doutrina positiva porque o Pragmatismo pretende substituir a do Racionalismo. Mais do que nunca, a nqssa dificulda- de seré a falta de coordenacdo das teses pragmatistas. Cada autor 59 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA apresenta a sua doutrina a sua maneira. Tal como em relagdes a par- te negativa, n&o dispomos de uma exposi¢éo conjuntural completa, No entanto, se algumas divergéncias houver, néo deixa de haver igualmente uma orientagéo geral de pensamento, seguida por to- dos os defensores da doutrina. A coordenacéio encontra-se integral- mente por fazer, mas 0 trabalho nem por isso deixa de ser mais inte- ressante E certo que os diferentes argumentos que o Pragmatismo dirige contra o Racionalismo, néo so igualmente validos. Mas no hé dis vida de que 0 Racionalismo deve contar com essas eriticas, reno- vando-se em certa medida. A maneira certa de apreciarmos a valia das objecebes que Ihe s&o dirigidas, consiste em verificarmos a que consequéncias tedricas 0 Pragmatismo foi levado por essas mesmas objece6es. Foi nelas que ele se edificou, pretendendo fazer tébua rasa do Racionalismo. Experimentemos a solidez do edificio, e lembremo-nos de que, para nés, ndo se trata de reconstruir uma doutrina por simples curiosidade, mas sim de retirarmos dela algumas conclusdes que nos possam instruir. problema da verdade é 0 problema central do Pragmatismo. A doutrina resume-se, neste caso a trés teses essenciais: 10 a verda- de é humana; 2o a verdade é diversa e varidvel; 30 a verdade nao po- deré ser a cépia de uma dada realidade. O pensamento e a realidade Comecemos por esta Ultima tese, acerca da qual jé fornecemos algumas indicagées. Negarmos ser a verdade uma cépia, é admit mos que o valor da ideia no se aprecia mercé da sua relagéo com ume tealidade actualmente dada. Por outras palavras, ndo é posteri- ormante & ideia que é necessério procurar o critério da sua verdade, mas sim anteriormente & mesma. no é a sua relagéio com algo que estaria jé feito, que temos de considerar, mas sim a sua relagdo com algo que se encontra por fazer. Assim, a ideia encontra-se em estrei- te ligago com a aco, & mercé dessa ligacdo com a acco que ela gera, que o seu cardcter de verdade deve ser apreciado (Dewey, 60 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA Essais de logique, cap. |, e Moore, Le Pragmatisme et ses critiques (1). Imaginemos um organismo que encontrasse nc meio em que vive tudo aquilo de que necessitasse. Esse organismo ‘uncionaré me- canicamente: inttil, a consciéncia ndo se manifestard. E precisamen- te isto que se passa com os seres cuja acro apenas se exerce num ambito restrito. O que é verdadeiro quanto & consciéncia, é-0 ainda muito mais quanto & reflexéo, a0 pensamento propriamente dito, que Dewey distingue cuidadosamente do pensamento dito «con: tutivo (2)», Desde que a sensagao seja o bastante, nenhum problema se levanta: o animal sente se 0 objecto Ihe convém ou nao, afasta-se ‘ou aproxima-se dele, consoante o que essa sensacdo Ihe transmite. E isto que constitui a consciéncia simples. Porém, desde que se verifi- que uma desinteligéncia, um conflito, as coisas modificam-se. Se o animal nao encontrar aquilo de que necessita, a sensacao deixa de ser suficiente. Ele terd de procurar esse algo de novo que contenha aquilo que Ihe falta, Ele terd de «reflectiry, de se interrogar, para sa- ber onde iré encontré-lo. Portanto, a reflexéio apenas se verificard quando ele tiver de fazer uma opgao: & ento que o pensamento propriamente dito tem origem (3), jé que se no encontra no instinto, na rotina, nem no habito. O pensamento reflectido, 0 «conhecimento», surge em condi- Bes muito especiais, numa situac&o de indecisfio, em que o ser se (1) Durkheim néo se refere aqui aos Essays in experimental logic, que somente foram publicados em 1916, mas sim aos Studies in logical Theory, ié mencio- rnados. Quanto & obra de A.W. Moore, Pragmatism and its critics, i havia sido ublicads em Chicago, em 1910 (0 capitulo VIII desta obra surgira, com o mes- mo titulo, na Philosophical Review, em Maio de 1905), (2) Studies in logical Theory, p.3.¢ p. 44 ¢ seg. (3) Cf. Dewey, Studies in logical Theory, p. 1: «Ndo custa a crer que o pensa- mento, pelo menos o pensamento reflectido, desde que distinto daquilo a que or vezes se chama o pensamento constitutive, 6 derivado e secundério. Ele surge apés alguma coisa e através de algume coisa, tendo em vista qualquer coisa... We think about, we reflect overs. 61 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA ee encontra perante uma quantidade de soluges possiveis. Num caso destes, qual a sensacdo que experimentamos? Uma incerteza, um mal-estar, uma inquietude (1). Procuramos entdo fazer com que essa situagdo finde, restabelecer o equilfbrio destruido. O pensamento no esté portanto ali para completar aquilo que existe. Pelo contra rio, tudo © que estiver acabado, plenamente realizado, adormece a consciéneia. Longe de ter a fungdo de traduzir 0 que se encontra de- inido, estabilizado, o pensamento destina-se a estimular aquilo que se no encontra nessas condigdes, destina-se a procurar o que falta, a preencher um vazio. O pensamento no se encontra orientado pa. ra 0 passado ou mesmo para o presente; encontra-se inteiramente voltado para o futuro, olhando em frente. A sua fungdo no é especulativa; &, antes de tudo, prética, E uma primeira informaggo do acto, e um primeiro estimulo para o efectivar. E 0 acto que se icia, que desponta no espirito e em todo o ser. O pensamento surge, no para copiar a realidade mas sim para a modificar, Objectaréio os racionalistas, neste caso, que o pensamento so- mente se reune 4 realidade, mas no a transforma, E um exagero, alegaro esses mesmos racionalistas, pretender que a simples apari- a0 da ideia implique logo uma modificagao da propria realidade. Respondem os pragmatistas que, precisamente a partir do mo- mento em que a ideia surge, a realidade transforma-se. Moore (2) Propée-nos este exemplo: Tenho dor de dentes; a simples ideia de que 6 uma dor de dentes, de que a dor deve provir de determinado dente, etc., modifica a situagéo, uma vez que jé sabemos que é dat que vem o mal. A ideia ndo esté aqui para exprimir a dor; é um ins- trumento, uma causa da cessago da mesma, inicio {nfimo talvez, da situagiio contréria, mas inicio mesmo assim, Desde logo, o lugar ¢ 0 papel do pensamento no mundo, sur- gem a uma luz muito diferente. Para o Racionalismo, o espirito en- contra-se separado da realidade por uma espécie de abismo. O es- Pirito encontra-se num extremo, a realidade no outro; so dois (1) Cf, Dewey, Comment nous pensons, trad. fr., p. 25, 28, etc. (2) Pragmatism and its Critics, cap. V, p. 92. 62 ‘rpm PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA ess mundos diferentes. O Pragmatismo vé as coisas de uma forma muito diferente. Realidade e pensamento, segundo ele, fazem parte de um ‘mesmo proceso. Hé uma contiunidade perfeita na série: sensagéo, ideia, acco. O elemento gera a sensagdo de inquietacdo; esta gera a ideia; a ideia gera a acgéio. Este proceso perfeitamente continuo, é © proprio proceso da vida, e o pensamento néo poderd separar-se dele. O pensamento é um orgao vital, como os demais; em vez de se situar fora ou perante as coisas, ocupa o seu lugar entre as mesmas. Ha portanto um estreito vinculo entre a realidade e o pensamento: ambos so instrumentos que concorrem para a vida, facto que explica 0 termo /nstrumentalismo, expresso pela qual a Escola de Chicago designa @ sua prépria interpretagéo do Pragmatismo, En- quanto que o Empirismo de Hume ainda admitie dois plénos diferentes para a realidade e para o espirito, toda a realidade se encontra assim situada no mesmo plano: O espirito est nas coisas, as coisas residem no espirito; no existe qualquer soluc&o de con. tinuidade, Esta ideia, aliés, ndo é de forma alguma particular a Dewey. Encontramo-la em James, talvez sob uma forma ainda mais nitida, designadamente no seu célebre artigo de 1904: A conssiéncia exist 14 (1)? E sabido que, nesse mesmo artigo, James critica 0 dualismo geralmente admitido entre a consciéncia ¢ as coisas e que chega a fundir a propria consciéneia na realidade, gracas & nogdo de expe. riéncia pura (2) (1) Ver antes, pagina 18, (2) Essays in radical Empiricism, p. 4; p. 93-94; p, 228; e 0 artigo completo A World of pure experience ibid., p. 20 e seg. 63 SETIMA LIGAO (1) pensamento ¢ a realidade (continuagao) Enquanto a maior parte dos tedricos consideram o pensamento. como um espelho no qual as coisas se viriam reflectir, os pragma- tistas, pelo contrdrio, consideram que 0 pensamento se incorpora nas coisas. Ele é um orgio vital que serve para restabelecer 0 equi- Ifbrio num organismo vivo cujo funcionamento foi perturbado. Pa- ra James, mais ainda do que para os restantes pragmatistas, no sé 0 pensamento faz parte do processo Unico e continuo que parte da realidade, sob a forma da sensac#o de mal-estar criada por essa per- turbagdo, para regressar & realidade sob a forma de una acedo sobre ‘essa mesma perturbago, como também, entre a coisa e o pensamen- to nada mais existe que uma diferenga de aspecto e ce ponto de vis- ta. A realidade encontra-se integrada no processo activo da consci- éncia. ‘A concepedo corrente, segundo a qual se considera o sujeito, por um lado, e 0 objecto, por outro, e que admite entre ambos uma heterogeneidade radical, foi por James considerada insustentével, a partir dos seus Principles of Psychology (2). Se ainda fosse, diz ele, (1) Curso de 27 de Janeiro de 1914, (2) A bem dizer nos Principles, James comeca por admiti sendo uma hipétese nacesséria ao psicélogo, salvaguardando embora os direitos © dualismo como do metaffsico. Mas, nos cap/tulos ulteriores, ele afirma que é «uma suposigo totalmente gratuita» julga-se «que o pensamento, para conhecer suficientemen- te uma coisa, deve destuinguir expressamente a coisa e ele préprio, enquanto eu. James insurge-se contra a teoria segundo a qual as qualidedes sens(veis seri- 65, SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA © conhecimento seria impossivel. Com efeito: 1° suponhamos que deduziamos da consciéncia tudo aquilo que do exterior Ihe advém; que ficaria? um simples poder, uma pura virtualidade despida de qualquer contetido, ~ pouco mais ou menos como a ménade de Lei- bniz, que é feita de apercepgées», isto é, de representagées do mundo, e que nada seria se a esvaziassem dessas representacdes; — 2° Existe toda uma série de atributos que néo séo nem objectivos nem subjectivos, de forma exclusiva, e que nés aplicamos ora a0 pensamento, aos estados de consciéncia, ora as coisas: os pensamen tos, tal como as coisas, s40 complexos ou simples. Podem ser confrontados, acrescentados, subtrafdos, dispostos em diferentes séries; so naturais e faceis, ou laboriosos; dizem-nos «felizes, vivos, interessantes ou insipidos, prudentes ou estupidos, focais ou mar- ginais, confusos, vagos ou precisos, racionais, fortuitos, gerais ou particulares (1). As qualidades que apreciamos, atribuimo-las nos as proprias coisas, mas «a beleza, por exemplo, encontrar-se-d na estétua, na sonata, ou no nosso esp{rito?... Falamos de uma tempes- tade pavorosa, de um homem odioso, de uma acco indigna, ¢ julgamos falar objectivamente, se bem que essas expresses expri: (cont.) am primeiramente percebidas «no espirito» e somente depois project: ddas para o exterior: «A primeira sensaggo que a crianca recebe, é para ela 0 uni- verso, E 0 universo que ela mais tarde vier a conhecer, nada mais é que uma ampliago © um desenvolvimento desse primeiro e simples germen. Finalmente, mais adiante, James afirma que a realidade no possui conteddo, consciéncia distinta: «A forma pela qual as ideias se combinam, ¢ a parte da constituiggo interior do objecto ou do «contetido» do pensamento». No canitula final do Texbook (de 1892, James reconhecerd que «é dificil sustentar por muito tem- po esse dualismoy segundo 0 qual ¢o universo existe primeiramente, ¢ depois (0 estados de consciéncia que dele adquirem um conhecimento progressivon. Finalmente, no seu artigo The Knowing of things together, publicado na Psycho- logical Review, de Marco de 1895 (parcialmente reproduzido em Nogéo de Ver- ~ dade, cap. 11), James afirmaré claramente que 2s cosas nade mais s8o do que as experiéncias efectivas ou posstveis do nosso espirito, ou dos espitites alheios, (2) Essays in radical Empiricism, p. 29. 66 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA mam to somente conexdes da nossa sensibilidade objectiva propria (1), Como poderiamos aplicar indiferentemente esses ep{tetos aos 1nossos estados subjectivos e aos objectos exteriores, se entre ambos néo existisse qualquer afinidade natural? Depois de Descartes, tornou-se classico definir o pensamento como algo de absolutamente inextenso, e opor a alma ao corpo como o inextenso ao extenso. Mas, objecta James (2), serd certo na- da haver de extenso na consciéncia? «Que sentido pode ter a propo- si¢éo segundo a qual, sempre que pensamos o comprimento de um pé ou uma jarda quadrada, a extensdo néo é atribuivel ao nosso pen- samento? A imagem mental adequada de um qualquer objecto ex- tenso, deve possuir toda a extensao do proprio objecto. «A Gnica diferenca entre a extenstio objectiva e a extenséo subjectiva, consis- te na relago com um contexto, A extensio subjectiva é mais acomodaticia, mais eldstica: nenhuma das suas partes se encontra li- gada por um vinculo inflexivel a qualquer das outras, ao passo que, no mundo fisico, elas se encontram ligadas entre si de forma estével. Verifica-se aqui, em James, uma ideia muito antiga que jd se encontra nos seus Princ/pios de Psicologia: todas ¢s nossas sensa- Ges, sejam elas quais forem, apresentam mais ou menos acentua- damente, um cardcater especial. A imagem mental de um triéngulo tem algo de um tridngulo, logo, tem algo de extenso. As préprias sensagdes do ouvido, do paladar, as sensagdes exteriores possuem um cardcter extensivo (3). A razo dialéctica que levou James a esta conclusio, foi que, se 0 espaco jd ndo se encontra-se nas nossas re- presentacdes subjectivas, jamais teriamos conseguido produzir a no- g80 do mesmo. A observaco pode, alids, ser generalizada: na sen- sago de calor, algo existe que corresponde ao calor. Uma imagem muito viva pode provocar uma sensacao; isto significa, portanto, que na imagem alguma coisa hd da mesma natureza que na sensa- Go. A homogeneidade é ainda menor se, vimos mais atras, consi- (1) Obra citada, p. 217 e seg. (2) Obra citada, p. 30. (3) Principles of Psychology, t. 11, p. 134-138, 67 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA derarmos propriedades que so objecto de apreciacéo: a percepcio de uma coisa bela é uma «bela» percepgdo. Existem assim, no pen- samento, propriedades que fazem lembrar as dos objectos. Ora, se 0 objecto e 0 pensamento fossem diferentes, as suas respectivas susci- tagdes deveriam ser discern(veis, ¢ as suas similitudes no teriam ex- plicagdo. Sujeito e objecto so portanto uma s6 e mesma realidade que, segundo ‘as circunstancias, se apresenta com diferentes contex: tos. «Afinal, as coisas e os pensamentos nfo so, de forma alguma, fundamentalmente heterogéneos. Uns e outros sio feitos do mesmo tecido, tecido esse que ndo podemos definir como tal, mas apenas, comprovar, e que podemos designar, se quisermos, por tecido da experiéncia em geral (1)». Esta conclusio explica 0 paradoxo do titulo: «A consciéneia existira?». Recapitulemos, com James, os diferentes tipos de conhecimen- to. Na percepedo sensivel, 0 objecto percebido e a representacdo que dele temos, ndo se distinguem: «A realidade é a propria aperce- podo (2)». As coisas so a compreenséo que delas tivermos. Quan- do digo: «as paredes desta sala», estas palavras nada mais querem dizer que «esta brancura fresca e sonora que nos envolve, entrecor- tada por estas janelas, orlada por estas linhas e por estes angulosy. Assim, «o fisico, neste caso, outro contetido nfo tem do que o fi- sico. Sujeito e objecto confundem-se. «As coisas no possuem uma «vida secretay diferente das suas aparéncias. Se atentarmos na sua «vida publica», aquela que o senso comum nos obriga a conhecer, ‘compreenderemos que existe homogeneidade entre elas € 0 pensa- mento. Num aspecto, porém, hd efectivamente um certo dualismo. Mas, onde se encontra exactamente a diferenga? O dualismo pode transformar-se em algo de verificdvel e concreto, se dele fizermos «uma questio de relagées (3)». Um ponto pode ser comum a duas linhas, se se situar na intercecgéo das mesmas. De igual modo, um (1) Essays in radical Empiricism, p. 233. (2) Obra citada, p.211; cf. ibid, p. 11. (3) Obra citada, p. 10. 68 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA object pode encontrar-se simultaneamente localizado em dois pon- tos diferentes da realidade: ele encontra-se, de algum modo, na in: tersecefio de dois processos que se liga respectivamente a dois gru pos de relacdes. Faz parte de dois contextos, de dois sistemas asso- ciativos que se cortam numa parte comum (1). Por um lado, com efeito, na qualidade de pensamento, de representagdo, 0 objecto é um elemento da minha biografia pessoal: é 0 ponto de convergéncia de uma sequéncia de sensagGes, de emocdes, de recordagdes, de vo- ig6es, € 6 0 ponto de partida de uma série exactamente semelhante de operagées «internas» que se projectam no futuro. Por outro na qualidade de «coisa», 0 objecto é um elemento que pertence a outra histéria, a das operagdes fisicas de que ele é 0 produto, Por exemplo, a sala em que nos encontramos, faz parte da historia da casa, Ela deve a sua existéncia a operagdes de arquitectura, dealve- naria, de carpintaria, de pintura, de mobiliério, etc, Essa sala relaci ona-se com as restantes partes do ediffcio. Aqui esté um conjunto de factos e de relagSes muito diferentes daqueles que constituem a minha biografia. Esta diferenca tem uma importancia prdtica: a sala, na qualidade de «coisa», pode ser destrufda pelo fogo por exemplo. Na qualidade de representacdo ela nada tem a recear do fogo; e, para a suprimir, basta alids que eu feche os olhos. Assim, «os atributos sujeito e objecto, representado e representativo, coisa pensamento, significam uma distin¢go prética, de infima importan- cig, mas apenas de ordem FUNCIONAL, e de forma alguma ontol gica, como 0 dualismo cléssico e representa (2)». Existe uma sd realidade apercebida do ponto de vista de dois grupos de experién- cias distintas, O que foi dito acerca da percepgao sensivel, pode ser igual- mente referido acerca das imagens, se bem que estejamos habitua- dos @ opormos as nossas imagens interiores aos objectos. Na imagi nago do sonho ou do devaneio, o ffsico € o psiquico confundem- -se. Se eu sonhar com uma montanha de ouro, essa montanha é, no meu sonho, de natureza perfeitamente fisica (3). (1) Obra citada, p. 12-14 e 227-229; cf. L ldée de Vérité, p. 42, note. (2) Obra citada, p. 233, (3) Obra citadl, p. 213-216. 69 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA Idéntica conclusdo ¢ extensiva aos conceitos. Os conceitos so efectivamente fragmentos de experiéncia, e foram um dominio co- ordenado com o das percepgSes. Tal como estas, eles entram pois, por um lado, no contexto dos objectos, e por outro lado, no dos nossos estados mentais e da nossa «histOria interior (1)». Resumindo, em todas as nossas formas de conhecimento, «su- bjectividade e objectividade so apenas atributos funcionais que s6 se realizam apés a experiéncia», mas cuja unidade se mantem radi cal, enquanto 0 desdobramento de ambos os aspectos desta exper éncia, correspondente aos dois diferentes contextos, ndo se proces: sar (2). Um problema se levanta aqui: é 0 de sabermos em que consiste 0 contexto da experiéncia inicial, qual o tecido primeiro dos centros de subjectividade. Segundo James, esses primeiros centros so constituidos por sensagées internas: sensagdes muscula- res, respiratérias, etc. A ambiguidade entre o interno e 0 externo, ainda hoje nelas se encontra mais acentuada do que em todos os outros. Todavia, nas nossas primeiras sensagées de movimento, «era © mundo inteiro que se movia connosco», facto que vamos encon- trar ainda em certas iluses de movimento, ou em situagées de vertigem (3). Unidade do conhecimento e da existéncia O interesse destes desenvolvimentos reside em acentuar 0 qu- anto os pragmatistas se obstinam em afirmar a unidade do plano da existéncia e do conhecimento. O «pluralismo» pragmatista re- dunda mais uma vez, neste caso, num verdadeiro monismo: 0 sujeito ¢ 0 objecto sio feitos da mesma substincia. O dado primordial ndo 6 0 espirito nem as coisas: é «a experiéncia pura». Desaparece as- sim aquilo que, aos olhos dos pragmatistas, constitui o grande es- cfndalo légico da filosofia cléssica: 0 fosso cavado entre 0 pensa- (1) Obra citada, p. 15-16. (2) Obra citade, p. 22-23. (3) Obra citada, p. 219-220. 70 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA Mas, que acontece entdo ao conhecimento? Ele n&o mais con- siste nesse salto mortal que deveria projectar o espirito no mundo das coisas. Existe uma continuidade perfeita do pensamento para a realidade. Basta que aquele percorra os degraus intermédios que conduzem insensivelmente a esta Ultima, para que ele a possa atin- gir. Assim, 1° qualquer doutrina se baseia na nogéo fundamental dessa continuidade; 2° observémos, por outro lado, que esta conce- podio anterior, nomeadamente em James, as teses pragmatistas: ela j4 se encontra formulada nos Principles of Psychology; 3° para que © conhecimento seja possivel, parece que efectivamente nele deva existir uma certa afinidade entre a realidade e 0 pensamento: nos idealistas, o pensamento é essencialmente 0 conceito, e é 0 conceit que se encontra na base da realidade. Para James, seria antes 0 inver- so: é a realidade que se encontra na base do conceito. Existem aqui, ‘to somente, duas formas de uma mesma concepcac. Esta posiciio do Pragmatismo requer uma observacao. E um pouco estranho vermos o Pragmatismo chegar a es:e resultado, ele, que havia comecado por supor o conceito como sendo heterogéneo & realidade (1). Nao é alids, a Gnica contradi¢&o que pode ser assina- lada na doutrina, e é isso que nos mostra aquilo que ela pode ter de revisivel. A objecg&io adquire um alcance ainda maior se conside- rarmos 0 conhecimento como sendo, acima de tudo, um instrumen- to de acco. Ora, é esta precisamente a tese do Pragmatismo. Nao podemos, sustenta o Pragmatismo, considerar o conheci- mento de um outro ponto de vista. Se 0 mundo se encontrasse subi tamente paralisado, reduzido 8 inacedo, como distinguiriamos a ideia verdadeira, aquela que favorece a accdo, da ideia falsa, daquela que prejudica ou impede essa mesma acrao? O que caracteriza 0 er- ro & 0 fracasso: 0 fracasso é a sang&o do erro. «Todas as sang&es de uma lei de verdade se encontram no interior do préprio tecido da (1) Ver Quinta Ligdo, e ef. Some Problems of Philosophy. p. 81.0 editor dos Essays in radical Empiricism, RB. Perry, chama entretanto @ atenodo (p.16, 1.1) para 0 facto de ter havido, por parte de James, um «reconhecimenton dos conceitas como constituindo «um dominio coordenadon de realidade, n SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA. experiéncia, Quer haja ou no um absoluto, a verdade concreta, pa- ra nés, sera sempre a forma de pensar em que as nossas diferentes experiéncias se combinam mais vantagosamente (1)». Qualquer ac- 80 visa efectivamente um interesse humano. E portanto um interes- se humano que a ideia verdadeira visa também. A verdade vem deste modo incorporar-se nos outros interesses vitais do homem. O ter- mo verdade & to somente uma «etiqueta aprovadoray, como diz Schiller (2), que se incorpora decorativamente na nossa experiéncia, para acentuar o seu valor. Unidade da verdade @ dos valores Ponderemos as consequéncias da seguinte tese. O bem moral, tal como a verdade, serve os nossos «interessesn, os nossos valores. Por consequéncia, deixa de haver distingdo entre a verdade e a mo- ral. A oposicdo, instituida pelo Kantismo, entre a realidade e a mo- ralidade, desaparece. O verdadeiro e o bem nada mais sdo que dois aspectos diferentes do util, do vantagoso. «O verdadeiro consiste simplesmente naquilo, que for vantagoso para o nosso pensamento, do mesmo modo que o justo consiste apenas naquilo que for van- tagoso para a nossa conduta (3)». Assim, «o verdadeiro insere-se no bem, ou a verdade é de algum modo um bem (4)», Existe apenas uma diferenca de grau, que néo de natureza, entre as duas ordens de valores ( sempre, notemo-lo, a mesma tendéncia do Pragmatismo em no admitir, seja onde for, uma qualquer solucao de continuidade). O til, 0 bem, sao valores: todos os juizos, tanto os de verdade como os restantes, so portanto, segundo ele, julgamentos de valor. 0 valor légico nao é um valor aparte. Existe um s6 valor: 0 til, que toma simplesmente tormas diversas, consoante os casos particulares. (1) Ltée de Vérité, p. 63. (2) Studies in Humanism, p. 211: 4a laudatory label» (trad. fr, p. 275). (3) Le Pragmatisme, p. 203, (4) Ibid., p. 83. Cf. Schiller, Studies..., essai V, § 1V, p. 155 (trad. fr., p. 199): «Verdadeiro e falso so formas intelectuais de bom e mau. 72 OITAVA LIGAO (1) © Conhecimento, instrumento de acgao Recordemos algumas ideias expressas anteriormente. Uma vez suposta a consciéncia com a sua funedo prépria, podemos inter- rogar-nos como € possivel que um mesmo abjecto esteja simultane amente dentro e fora de mim. Esté em mim, respondem os pragma- tistas, pelo seu prolongamento. Mas esse prolongamento continua a ser a prépria consciéncia. Assim, existe efectivamentz em mim algo do objecto. Verificémos isto mesmo no que se refere a sensado. O obje- cto resplandece de algum modo em mim. Os efeitos que ele produz ali esto, no mesmo instante e no mesmo espaco. Alids, 05 objectos nada mais sio do que a representacdo que deles fizermos em nés. Por consequéncia, na sensacio, 0 objecto e os seus prolongamentos interiores confundem-se. ‘Quando se trata da imagem, a diferenca parece maior entre 0 objecto e estado interior: a imagem do objecto encontra-se em nés, a0 passo que o objecto exterior deixou de estar presente. Esté claro, diz 0 Pragmatismo! Mas, entre ambos, existe uma séie de imagens intermédias que restabelece a continuidade: o vinculo entre o inte- rior e 0 exterior, entre 0 subjectivo e 0 objectivo, ndo se encontra quebrado; é constituido por graduagdes insensiveis. E isso que ex- plica © facto de James se atrever a dizer que os objectos exteriores se confundem com as representagdes que deles temos. Isto auxiliar-nos-é a compreender outros aspectos de doutrina pragmatista, A ideia, segundo ela, outra fungdo néo tem do que ori (1) Curso de 3 de Feversiro de 1914. 73 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA entar a nossa aceo. Como o conseguiré, poderemos nés perguntar, se ela de forma alguma é uma cépia da realidade? Quanto a sensa- ¢40, a questo mal se pée. Para todos os representantes do Pragma- tismo, a sensago confunde-se, voltamos a repeti-lo, com a coisa percebida: 0 sujeito confunde-le aqui com o objecto. Também para eles, seria fundamentalmente nesta fustio do sujeito com 0 objecto que residiria 0 verdadeiro conhecimento: «O maximo de verdade que numa ideia se pode conceber, escreve James (1), seria, segundo parece, que ela nos levasse a uma efectiva fuséo de nds mesmos com © objecto, a uma confluéncia reciproca ¢ a uma completa identifi- cago... Uma confluéncia total do esprrito com a realidade seria 0 li mite absoluto da verdade». Podemos mesmo perguntar-nos se, para ‘0s pragmatistas, poderd nela haver uma verdade propriamente dita: 6 preferentemente de identidade entre 0 sujeito € 0 objecto que se- ria necessério falar. E isto a um ponto tal, que néo houvesse mais lugar a erro. Quanto a imagem, uma idéntica fuséo n&o é possivel, jé que no existe uma distancia entre os dois termos. Mas, como jé vimos, essa distancia no é um vazio. Quando é verdadeira, a imagem despertada pelas imagens conexas que com ela se relacionam. E as- sim, restabelecendo essa série de imagens, chegamos ao objecto. E aqui que se inicia, na sua forma mais simples, o dominio da verdade. (1) A Nogéo de Verdade, p. 136, Cf. ibid., p. 197: «Enquanto nos mantiver- mos a0 nivel do pensamento do senso comum, o objecto ¢ 0 sujeito fundem-se no acto de ¢apresentagov ou apercepgdo sensivelv. Esta concepeio é muito evidonte no capitulo de James acerea de Bergson (Filasofia da Experiéncia, 6.° igo, nomeadamente p. 240, 250-254, etc.). Cf. também a distingso muito an tiga de James entre knowledge about, ou o conhecimento indirecto, e knowle- ge of acquaintance, ou conhecimento directo, ou ainda familiaridede (Princi- ples of Psychology, t. |, p. 221; Vontade de crer, p. 108; Nogao de verdade, p. 9-10 e 90; Essays in radical Empiricism, p. 54, etc.), e as frequentes alustes de James & «filosofia da Identidadey dos idealistas, que ele repudia mas pela “qual parece exprimentar uma certa-atracgao (Pragmatismo, p. 297; Nogdo de verdade, p. 134, 197, 202, etc.) 74 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA O seu verdadeiro dominio, porém, é 0 conceito. O conceito, diz James, é heterogéneo 20 objecto e desnatura as coisas. Como poderé ele, portanto, desempenhar um papel prético, um papel iil? Segundo James, 0 conceito é ideia geral. Postulade contestével, j8 que, se toda a ideia geral fosse um conceito, daf néo se concluiria necessariamente que ali se encontrasse todo 0 conceito (1), Admi: ‘tamo-lo, contudo. Cada conceito representa uma categoria especial: as coisas apresentam semelhangas @ «parecem ter sido, de uma vez por todas, criadas por categorias (2)». Notemos, de passagem, que esta suposigio de James ndo deixa de supreender: se, como ele sustenta, os conceitos so inadequados a realidade, como podere- mos encontrar na realidade algo que corresponde as categorias que esses mesmos conceitos representam? © concsito e a acgdo Como quer que seja, existem espécies. Ora essas espécies so conexas: existem entre elas determinadas relagdes. Cs conceitos que as exprimem so pois, também eles conexos, jd que s integram num sistema de relagdes. O processo que nos certifica da veracidade do conceito, é pois o mesmo que aquele que nos gararte haver veraci- dade das imagens: verificamos 0 conceito, tal como verificamos a imagem, por uma conexéo com 0 conjunto: «A verdade, neste caso, 6 uma relacaio, no das nossas ideias com realidades extra-humanas, mas das partes conceptuais com partes sensiveis da nossa experién- cia (3)». Mas a diferenga é a seguinte. Por um lado, a sensagao e @ imagem so particulares. Assim, elas abrangem apenas uma peque- (1) Comprenderemos esta reserva de Durkheim reportando-nos as Formas ele- mentares da vide religiosa, p. 22 e seg., ¢ sobretudo, p. 617 e seg., onde Dur: kheim se esforca por demonstrar que 0 conceito nao é unicamente @ ideia ge- ral, mas uma representacdo sui generis que se ope a0 empirismo, tal como 0 social se ope ao individual. Cf. além disso, mais adiante, o Apéndice I. (2) Philosophie de l'expérience, p. 208; cf. Le Pragmatisme, p. 191. (3) L Tdée de Vérité, p. 70. 75 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA nissima parcela da realidade. Por outro lado, 2 sensago no nos permite que actuemos rapidamente, porquanto traduz, em compen- sagdo, a multiplicidade das qualidades de toda a espécie que se encontram no objecto a que ela se refere: a sensac&o torna assim mais lento 0 curso do nosso pensamento e da nossa accdo; ela ndo nos permite que facamos a distinedo entre aquilo que nos interessa, ‘em determinado caso, e aquilo que ¢ indiferente. O conceito apre- senta caracter(sticas totalmente opostas. Sendo universal, cada conceito encerra, recolhidos por assim dizer num pequeno volume, uma imensidao de casos particulares. E por isso que o gedmetra que tem a sua frente uma figura definida, sabe perfeitamente que os seus raciocinios se aplicam a inumeras figuras da mesma espécie (1). Além disso, os conceitos so «resumosy: eles «fornecem-nos tran- sigdes de uma inconcebivel rapidez», e «gracas ao seu cardcter universal e a sua capacidade de se associar entre si em vastos siste- mas, as ideias antecipam-se ao lento encadeamento das proprias coisas, e conduzem-nos para o termo final com muito menos dificuldade do que aquela que dispenderiamos se tivessemos de seguir 0 rumo da experiéncia sensivel (2)». Para desempenhar esse papel, precisa W. James, 0 conceito ndo necesita de ser a cdpia do objecto: basta ser um sinal desse objecto. A palavra que o designa é suficiente para desencadear todo 0 processo necessirio, e deste modo orientar a nossa acco, porquanto possui relages, conexbes (1) Principles of Psychology, tome |, p. 472 (2) A Nogio de Verdede, p, 9B. Cf. ibid, p. 145, © Alguns problemas de Filosofia, cap. \V: 0 Alcance do Conceito, p. 64: «Se ndo possufssemos conceitos, teriamos de viver «agarrando» muito simplesmente cada momento sucessivo da experiéncia, tal como a anémona do mer, agarrada no seu rochedo, recebe um qualquer alimento que o marulhar das ondas Ihe traz. Com 0s con- ceitos, empreendemos a busca daquilo que se encontra distante, substituimos fgcilmente determinado meio por um outro, aplicsmos a nossa experiéncia pas- sada, e servimo-nos dela para nos orientarmos» 76 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA dindmicas, ou pelo menos, virtuais. Esta interpretagdo faz lembrar 0 «esquema dindmico» de Bergson (1). Resumindo, 0 papel do conhecimento consiste em colocar mais rapidamente ao nosso alcance os objectos que nos so necessd- rios. A virtude do conceito reside em abreviar os trémites indespen- siveis @ nossa existéncia, As ideias vale, como diz James, na medida em que nos permitem que «deambulemos» através das relagSes entre as coisas: «eu digo que conhecemos um objecto por intermédio de uma ideia, sempre que deambulemos em direcc&o a0 objecto, sob o implulso que a ideia nos transmiten. E James contra- Ge geralmente esse cardcter ambulatério do pensemento ao caré- ter sa/tador que a concepedo descontinuista do universo supde (2) De resto, a faculdade conceptual, assim entendida, de forma al- guma se apresenta a James como algo de desprezivel; muito.pelo contrério, ela afigura-se-Ihe como uma verdadeira maravilha que nos permite dominarmos 0 espaco e o tempo: «Gracas a nossa faculdade de formarmos e fixarmos conceitos, eis que, de um momento para o outro, procedemos como se dispusessemos de uma quarta dimensiio do espaco: pasando por cima de agentes intermédios, como faria- mos com asas de um poder sobrenatural, atingimos exactamente 0 ponto desejado, sem mais nos preocuparmos com os contextos da realidade (3)x. Assim, a sensaco tem o seu papel, 0 conceito tem outro. A sensacdo é limitada e, por outro lado, néo nos permite que enfrentemos as exigéncias da vida que nos obrigam a andarmos de- presse. O conceito, que acima de tudo possui uma fungéo prética (4), preenche estas duas lacunas. Mas a sensa¢do dé-nos em profun- didade aquilo que ela nos faz perder em extenséo (5). (1) Bergson havia desenvolvido a sua teoria do wesquema dinémicon num arti 90 seu acerca do wesforco intelectualn, da Revue Philosophique de Janeiro de 1902 (reproduzido posteriormente na L ‘Energie spirituelie, cap. VI. (2) Notavelmente /oée de Verité, p. XII, p. 121-124, p. 216-218; Essays in re dical Empiricism, p. 67; ete. (3) Philosophie de I'Expérience, p. 237. (4) Ver antes pagina 54. (5) € 2 diferenga jé anteriormente apontada (p. 104) entre Knowledge of 7 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA Continua a por-se, contudo, a questo de se saber como pode © conceito, uma vez que se encontra to distante da realidade, per- mitir que nos adaptemos a essa mesma realidade, tal como é defini- do por James. N&o existiré aqui um parcial regresso ao Racionalis- mo? Para os Pragmatistas, 0 conceito é efectivamente a ideia de uma realidade, de algo que existe realmente. James insiste nisto fre- quentemente (1): 0 mundo das ideias abstratas é real, também ele, exactamente como 0 dos factos sens/veis. Cada conceito representa, de conformidade com o seu alcance, parte da experiéncia passada, logo, de uma experiéncia bem fundamentada; e 0 processo conce- ptual leva-nos assim a um dado. Todavia, somente poderiamos ver nisto um retorno ao Racio- nalismo, se 0 Pragmatismo admitisse que, uma vez em presenca de uma dessas séries, 0 pensamnento nos obrigasse verdadeiramente a ca- ptar algo da realidade. Ora, para ele, o estado inicial a que o conhe- cimento nos leva, é muito menos a representacdo de uma coisa, de uma realidade, do que um plano de ac¢do, do que a representagao de um acto a cumprir. Na origem do processo do conhecimento, a ideia que se trata de verificar, é a ideia de algo a fazer; e aquilo que se encontra no termo desse mesmo proceso, no é mais a contem- plaggo do objecto finalmente encontrado (como no Racionalismo}, 6 sempre uma aceao. A verificacao consiste em.vermos se 0 acto vai resultar, se vai produzir os seus efeitos esperados. A funcéo da ideia verdadeira, é muito menos a de nos encaminhar para 0 objecto como tal, do que de nos relacionar com ele, de nos colocar peran- te © mesmo da forma conveniente: «A ideia, considerada na sua fungao, é um instrumento que nos permite contactar com 0 objecto nas melhores condigdes, e melhor agirmos sobre o mesmo (2)». ¢O conhecimento nada mais é da que um meio de encetarmos relaces frutuosas (fruitful) com a realidade, quer a cépia dessa realidade se- ja ou no uma dessas relag6es (3). (cont. acquaintance e Knowledge about. (1) Le Pragmatisme, p. 124, p. 241, ete. (2) Ldée de Vérité, p. 123. (3) Obra citade, p. 68. ssays..., p17 @ seg. 78 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA A satisfagio. Como sabermos que o acto final a que a ideia nos conduz é exactamente aquele que nos convém? James responde: pela satis- fag&o que com ele experimentamos. Esta satisfago 6 0 indicio da verdade: «A verdade, considerada concretamente, ¢ uma atributo das nossas crencas, ¢ estas sio atitudes que visam satistagdes (1). Assim, 0 critério da ideia verdadeira é duplo: rE necessério, primeiramente, que a ideia que nos oriente, nos guie, para determi nada realidade e, no para qualquer outra. E necessério, depois, que @ orientag&o indicada, a direcco fornecida, propic'em satisfacdo mercé dos resultados obtidos (2). Uma objecedo ocorre aqui, naturalmente. Transformar a «sati fagio» num dos crotérios da verdade, no seré cair no subjectivis: mo? Qualquer satisfago nada mais é, em si, do que uma condigéo subjectiva. O_pragmatismo propée-se portanto coneluir que a verda- de nada é exteriormente ao sujeito, e que este, por consequéncia, pode moldé-la a seu gosto (3). Na realidade, um pragmatista como foi John Dewey (4), deixou de ser solidério com James, a tal res- peito, recusando-se energicamente a admitir que uma qualquer satisfagdo gerada pela ideia, seja um critério bastante da verdade. Ja- mes respondeu que a satisfagaio em causa, — a que néo passa, alids, (1) Obra citada,-p. 73, Cf. também Pragmatisme, p. 199, 280 2 seg., Studies in radical Empiricism, p. 247; etc. Schiller escreve também (Studies in Humanism, p. 83; trad. fr., p. 106): «Se os processos congnitivos se encontrassem despro- vidos de qualquer sentimento de satisfacio, a obtencio da verdade no seria sentida como tendo valor. Na realidade, algumas satisfagSes deste género so experimentadas @ todo 0 momento durante o raciocfnion. Cf. enfim A.W. Mo- ore, discute Royce, nos Stuales in logical Theory, p. 361-372. (2) Le Pragmatisme, p.281; L'Idée de Vérité, p. 166. (3) James expe ele mesmo esta objecedo, obras citadas, p. 280¢ 165, (4) No seu artigo What does Pragmatism mean by pratical, no Journal of Philo~ sophy, 13 de fev. de 1908, p. 85-99 (reproduz nos seus Essays in experimental Logie, cap. XII) 79 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA de um dos critérios da verdade, — ndo é uma satisfacdo qualquer (1). Torna-se necessirio que o resultado seja, nfo s6 aquele que corresponde a representago antecipada que dele tinhamos, mas, sobretudo, aquele que a satisfagdo convém. a Notemos, apesar de tudo, como tal critério é incerto. A ide a inicial pode ser falsa, e a satisfacdo, contudo, obter-se 4. Suponha- mos, por exemplo, que um homem de espirito rude tenha sido pre- suadido de que o mal fisico de que padece se deve aos espiritos ma- lignos que se introduziram no seu corpo (0 caso é alids frequente nas sociedades primitivas). Obrigam-no a ingerir uma substancia muito desagradével, garantindo-the embora que ela afugentard os espiritos que 0 atormentam. O homem cré no que the dizem e fica curado. O resultado é efectivamente 0 esperado; é mesmo o resulta: do que «convém». A ideia nem por isso é menos falsa, (1) Cf. Le Pragmatisme, p. 282 e seg.; LTdée de Vérité, péginas 167 e seg. 80 NONALIGAO (1) Os critérios pragmatistas da verdade Relembremos, antes do mais, os principios pragmatistas, O re- sultado mercé do qual a verdade se define, nao é um resultado. qual- quer: deve ser um resultado Util. Sabemos o que se deve entender por util: qualquer processo de conhecimento tem a sua origem ‘nu: ma perturbacao sofrida pelo organismo; trata-se de pdr fim a essa perturbacao, de restabelecer um equil/brio e acalmar assim um sofri- mento, de findar com um padecimento, etc. O que importa néo 6 tanto sabermos se o equilfbrio obtido é exactamente aquele que ti- nhamos em mente: é sim assegurarmo-nos de que é afectivamente aquele que nos convém. Mas, qual o meio de que dispomos Para disso nos assegurarmos? E esse sentimento de satisfacao que, para os pragmatistas, € um sinal to indespensével, que o proprio Dewey que, como vimos, se-recusou a fazer o critério propriamente dito da verdade, se julgou no entanto obrigado a reconhecer-Ihe um certo valor. Com efeito, dados os princ(pios pragmatistas, é impossivel re- tirar este elemento de satisfacdo. Reside, mesmo af, fundamental- Mente, a necessidade essencial de que a ideia deve satisfazer. A ideia verdadeira, diz James (2), 6 aquela que «nos auxilia a “elacionar, in- telectual ou praticamente, quer com a realidade, quer cum os seus apoiantes ou confiantes; aquela que, em vez de entravar a nossa marcha por meio de uma série de contratempos, adapta e ajusta efe- ctivamente a nossa vida a qualquer engrenagem da realidade». (1) Curso de 10 de Fevereiro de 1914, (2) Le Pragmatisme, p. 196. 81 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA A satisfagdo das caréncias intelectuais James esforca-se por dar lugar @ outras caréncias que ndo as ca- réncias puramente «praticasy, no sentido vulgar do termo, designa- damente para satisfagdes de ordem especulativa. Desagrada-Ihe no- toriamente que 0 Racionalismo parece ter sobre 0 Pragmatismo a vantagem dé explicar sozinho certas.caréncias do espirito humano, e empenha-se em demonstrar que 0 Pragmatismo também dela se da conta, Certamente, diz James, necessitamos de estar «de acordo» com as coisas. Mas 0 nosso espiritoé também real: ele 6 compa- ravel a um organismo vivo e possui as mesmas caréncias que qual- quer outro organismo. Quando esse organismo funciona mal, somos nés que sofremos. E esse 0 motivo pelo qual expetimentamos tam- bém a necessidade de estarmos de acordo com nés proprios: «Veri- ficamos que é satisfat6rio possuir um pensamente coerente, — um pensamento em que a ideia actual concorda com a nossa restante bagagem intelectual, — incluindo 0 dominio integral das nossas sensagbes, — incluindo igualmente_o das nossas intuigdes de seme- thangas e diferengas, — incluindo finalmente toda a nossa reserva de verdades anteriormente adquiridas (1)», Quando uma nova ideia se gera no nosso espirito, quando um novo facto se produz € o impres- siona, desde que ndo haja uma relacdo entre eles e aquilo que ja existe, interrompe-se a harmonia do organismo mental. Nao basta portanto que a nova ideia esteja em «concordéncia» com as coisas; & necessrio ainda que ela se harmonize com as restantes representa- Ges preexistentes que fazem parte da nossa vida mental. Com efeito, as ideias que jé se encontram no nosso espirito correspon- dem as formas de reaccado que nos séio habituals. Ora, se essas fur- mas se tornaram habituais, foi por serem exactamente aquelas que convinham, as ideias que as desencadeiam fixaram-se no esp' com a mesma forca do que essas préprias reacgdes. A nova ideia é pois obrigada a conformar-se com as ideias jé presentes no espirito. Ela s6 é integralmente verdadeira se com estas se conciliar. A con- (1) Le Pragmatisme, p. 282; L‘Idée de Vérité, p. 167. 82 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA cordancia com as coisas exteriores néo é pois a Unica condigéio da verdade: hd que se considerar igualmente as repercussbes internas, Verificaeao e verificalidade Em ambos os casos, aliés, a «concordancia» ein questéo é um acordo pratico. So «os actos que elas em nosso nome Provocam» que justificam as ideias. € através desses actos, do masmo modo que «através das outras ideias que elas em nés suscitamy, que tais ideias «OU Nos obrigam a penetrar em algumas outras partes da experién- cia, ou a elas nos conduzem, ou nos orientam pelo menos, na sua direccao, e isto de forma a transmitir-nos, durante todo esse tempo, © sentimento da sua concordéncia persistente com as restantes par- tes da experiéncia. Entdo, as ligagdes e as transi¢des apresentam-se- -nos como se se estivessem processando de uma forma regular, har- moniosa, satisfatoria (1). Assim se vai precisando, cada vez melhor, a concepedo pragma- tista da verdade. A verdade nao é uma c6pia fria da realidade: é sim ‘algo de vivo, cuja funcdo consiste em desenvolver o nosso ser, em o enriquecer. A ideia verdadeira permite que nos movimentemos com mais desembaraco através das coisas e, a0 mesmo tempo que mais desembaragada, a acco torna-se mais segura. A ideia verdadeira Propocia-nos assim a paz interior, e ao mesmo tempo a exterior: & uma situagdo compardvel a satide, ao bem estar, a riqueza, a felici dade. Tudo isto, porém, satide, riqueza, felicidade, somos nés que © fazemos. © mesmo se passa pois com a verdade. A verdade, diz James (2), 6 algo que se faz, algo cujo papel consiste em nos ajudar a viver, em facilitar simultaneamente @ nossa acco e 0 nosso pensa- mento, ¢ cujo devir se cumpre 4 medida que a nossa vida se desen- volve. De certo modo, somos nds que a fazemos; longe de ser um carécter imanente a ideia, a verdade carece do nosso contributo. A ideia s6 é verdadeira, s6 se torna verdadeira, quando dela nos ti (1) Le Pragmatisme, p. 185-186. (2) Obra citada, p. 185, 219, etc... 83 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA vermos servido, quando a tivermos experimenta, posto 4 prova, quando ela nos tiver permitido conciliarmos as verdades mais antigas com as verdades mais recentes. A verdade ¢ deste modo «um acontecimento que se produz relativamente 4 ideia» e que resulta de um trabalho mercé do qual ela se tornou verdadeira. A palavra «verdade» nada mais representa do que a fun¢do que consiste em acombinar a experiéncia recente com determinados elementos da experiéncia anterior (1)». Assim, verdade e verificagdo sio termos sinonimos: «Verdade 6, para nés, to somente um nome colectivo que resume processos de verificagao, absolutamente como savide, riqueza, forga sao nomes que designam processos relativos a vida (2). Quando muito, podere- mos destinguir um sentido abstrato ou légico, segundo o qual a vida seria, ndo mais esses mesmos processos, mas 0 produto dessas verifi- cagées. ‘James encara aqui uma objecgao possivel. Seré que néo exis tem ideias verdadeiras que ndo aquelas que nés verificdmos? Nés acreditamos, no entanto que existe um pafs chamado Japiio, se bem que nunca ld tenhamos ido, é uma ideia verdadeira, e contudo nunca a verificémos, — James contesta que se tais ideias n&o se veri- ficam actualmente, so todavia verificdveis: «A verdade, num caso deste género, nada mais é que uma verificagdo eventual (3)». O pra- gmatista, diz James, é 0 primeiro a reconhecer a utilidade pratica do proceso que consiste em substituir a verificagao pela verificabi- idade, que é a verdade «em poténcia (4)». Existem, alids, ideias em que confiamos, porque acreditamos na experiéncia alheia: «A ver- dade vive do critério, o mais des vezes...Vs aceitais a minha verifi- Cardo relativamente @ uma coisa, ¢ eu aceito a vozsa om relaggo a outra. Processa-se entre nds um tréfego de verdades. Mas existem (1) Obra citada, p. 73, 290, ete. {J2) Obra citadl, p. 200; ibid., p. 185, 189; Volonté de croire, p.118-116, etc. (3) Obra citada, p. 189 e 201. (4) Obra citada, p. 291, ou lade de vérité, p. 79. 84 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA OO convieedes que, verificadas por todos, servem de base a toda a su- perestrutura (1) James sustenta que a verdade implica uma certa concordén- cia com a realidade, com a simples diferenca de que, enquanto para © Racionalismo essa concordéneia € puramente teérica, para o Pra gmatismo ela é essencialmente prética. Mas, a menos que suponha- mos que uma tal concordancia é 0 resultado de um acaso inexplicé- vel, ou a obra misteriosa de uma Providéncia transcendente, é efect vamente necessério, para que a realidade seja capaz de satisfazer as nossas necessidades, que essa mesma realidade seja plastica, de for. ma a poder-se-lhes adaptar. Daf a nog de uma realidade que se faz, oe ela, que é parcialmente obra nossa, tal como ja verificd- mos Necossidade e liberdade Em suma, existe no universo do Pragmatismo uma dupla cor- rente: uma corrente de necessidade, de determinag&o, e uma corren- ‘te de liberdade, de indeterminacao. A necessidade tem a ver, simul- taneamente: 1° com a ordem, tanto interna como externa, das sen. sag6es e das percepcdes; 2° com a soma das verdades ja adquiridas. Apanhado entre estes dois termos, o nosso esp rito ro pode pensar © que deseja, e James insiste.na idela de que as nossas abstragdes no se nos impdem menos do que as nossas sensagdes: «Nao pode- mos continuar a entregar-nos a sortes de prestidigitagdo com as (1) Obra ctado,p. 190-181 (2) Ver a Quarta Liedoe cf. no mesmo sentido Schiller, Stuies in Humanism ensaios V, VII @ XIX, nomeadamente p. 425-426: nés transformamo-las real. mente (as reolidads) merce dos notsos estorgos cognitives..Este eaultad revestese de uma importéncia filosica imenss, pelo facto de barra sista ticamente © caminho & nogso persstente mas lusria de que verdade rea. dade se encontram de algum mode seperadas uma da outra,e ambos separadat de nbs. Reaidede realidad para née para ns conhecida, do mesmo modo que verdede & para nds verdaden 85 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA relagdes abstratas, a no ser com os dados dos nossos sentidos. Elas constrangem-nos. Tenhamos forca para Ihes respeitarmos a simetri- 4, quer os resultados obtidos nos agradem ou ndo (1)», Mas, para- lelamente a esta corrente de determinago, existe uma corrente de indeterminago (e, para os pragmatistas, ndo é a menos importante). O que atenua a dupla necessidade em questéio, e aquilo que faz com que sejamos mais livres do que 0 que julgamos, ¢ que a realidade, tal como a verdade (2), 6, em certa medida, um produto humano. O mundo é «um caos» em que o espirito do homem «projectay alguns objects, ordenados, organizados em categorias. Espaco, tempo, causalidade, todas estas categorias de nés proveém; fomos nds que as criamos para correspondermos as exigéncias da vida pratica (3). Assim, 0 mundo tal como existe, é na realidade, tal como nés © construimos. A sensagio pura néo existe. Ela apenas se consubs- tancia segundo a forma que nés Ihe dermos. Verifica-se aqui, basicamente, um primeiro substrato, um pri- meiro «caosy que obteriamos se acaso despojassemos o universo de todas as adig&es sucessivas trazidas pelo nosso pensamento, se pu- dessemos imaginar'um mundo sem o homem. Mais apenas a isso po- demos aspirar, sem nunca podermos consegui-lo. Esse substrato, despojado de todas as qualidades e categorias que derivam do espiri- to humano, seria uma pura Wn, ura matéria prima sem forma (4), a0 passo que, inversamente, aos olhos dos pragmatistas, a prin- cipal caracter(stica do universo real é a de ser pldstico (5), que o (1) Le Pragmatisme, p: 193. (2) Obra citada, p. 201 (3) Obra citada, p. 160-172. (4) James, Volonté de craire, trad. r., p. 137; Le Pragmatisme, p. 220 e 225; Schiller, Personal Idealism, p. 60; Studies in Humanism, p. 433 (trad. fr, B. 552). (5) A ideis foi sobretudo desenvolvida por Schiller: ver Studies... 427 (trad. fr, p. 545) © 444-445 (trad, p. 568-569). Em Axioms as Postulats (1902), § 6, J havia afirmado que ¢ 0 nosso espirito que transmite a essa matéria in- forme a figura harmoniosa de um cosmos, 86 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA mesmo sera dizer, de se prestar a todas as formas que o pensamen- to @ a ac¢do humanas Ihe conferem. Reencontramos aqui a conce- pedo pluralista: 0 universo é maledvel. Ele apresenta-se-nos, nfo sob uma forma tinica, mas sob formas diferentes, consoante o modo pe- 6 qual sobre ele pretendemos agir. 87 DECIMA LIGAO (1) Construgdo do real e construgao do verdadeiro Segundo 0 Pragmatismo, a realidade é obra nossa Somos, diz Schilfer, «autores auténticos da realidade 2)», néo porque sejamos ucriadores» no sentido absoluto do termo, porque extraiamos a rea- lidade do nada, mas sim porque «cooperamos» na sua constru¢ao. Além disso, somos nés ainda que «fazemos» o mundo pelas nossas acces: as nossas instituigdes, nomeadamente, modificam o mundo vindouro. Nés construimos, «fazemos» o mundo pera nossa propria comodidade, tal como construimos a verdade, também ela um pro- duto humano cujas finalidades so igualmente finalidades praticas. Construgao da verdade e construgao da realidade, nada mais so do que um sd e mesmo processo. «Aquilo que julgamos verdadeiro, consideramo-lo real e aceitamo-lo como um facto...€ nesta constru- 40 cognitiva da experiéncia que a verdade e a realidade se desen- volvem ambas pari passu (3)». Ao criarmos verdades, criamos igual- mente realidades: «Na nossa vida intelectual, tal como na acco, diz James (4), nés somos criadoresy. Esta identificacdo do proceso /égico (o do pensamento) e do processo activo (0 que «cria» o real), suscita no entanto uma grave dificuldade para o Pragmatismo. O mundo, o real, prossegue James, € construfdo pelo pensamento do homem. Seja! Mas, para poder- mos dizer que ambos os processos ndo passam de um s6, necessério (1) Curso de 17 de Fevereiro de 1914. (2) «Genuine makers of reality» (Studes..., p. 446; trad. fr., p. 569). (3) Schiller, Studies in Humanism, essai XIX § 2, p. 426 (trad. fr., p. 543). (4) Le Pragmatisme, p. 232 89 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA eee seria que pudessemos igualmente dizer que essa construcdo do real é verdadeira pelo simples facto de existir. Ora, uma afirmagao do gé- nero é desprovida de senso: esta construgdo ¢ um facto, ela existe. Dizer-se que ela € verdadeira suscita um problema muito diverso. Perceber ou construir a realidade, ndo implica necessariamente que essa percepego ou essa construgio néo seja iluséria. Por outras pa- lavras, uma coisa é organizarmos as nossas sensages, outra coisa é interrogarmo-nos acerca do valor /dgico dessa organizagao, e compe- te-nos a nés formularmos esse problema. O Pragmatismo limita-se @ dizer-nos que ambas as construgdes, a do real e a do verdadeiro, se Processam tendo em vista uma finalidade prética. Mas parece nao ter conseguido estabelecer uma distingdo entre as duas questdes. A interprotago de Dewey Dewey, no entanto, apercebeu-se da dificuldade e procurou escapar 2 confusdo destes dois problemas. Segundo ele, o unico mundo que para nés conta, 6 0 mundo tal como ¢ qualificado e valorizado pelo homem. Somos nés que Ihe atribuimos os valores que ele para nés tem. Realcamos as coisas que nos interessam e pre- ferimos as restantes. O mundo é constitu(do por um sistema de va- lores que nés demos as coisas, e estas tornam-se assim factores orien- tadores da nossa conduta e do nosso pensamento. Por nos encon- trarmos inseridos neste ou naquele meio, tomamos as coisas num ou noutro sentido. Mas, acrescenta Dewey, esta constitui¢ao das quali- dads e dos valores néo 6, de forma alguma, um acto reflectido ou voluntario. E a experiéncia pura que nos adverte, antes de qualquer reflexéo, de que os objectos se repartem por determinados grupos, de que possuein vertas qualidades, E a consciéncia que nos propici © valor imediato dos objectos; existem «valores empiricos da da néo reflectida (1)». Pelo contrério, a verdade é obra do pensa- (1), Studies in logical Theory, p. 9, 41-42, etc.; Essays in experimental Logic, . 17-18; cf. também Experience and Nature (1925), p.31 e seg. 90 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA mento reflectido que, como se sabe (1), apenas intervem quando 0 sistema de valores é perturbado. A esse nivel, jé n&o é a propria natureza do mundo que nos dita a nossa conduta: é 0 pensamento reflectido. Por muito engenhosa que seja, esta tentativa pera manter a dis tinedo entre as duas categorias do real e do verdadeiro, é contudo muito pouco defensdvel. Hé primeiramente em Dewey um postula- do segundo o qual s6 ha conhecimento propriamente dito, logo, ver- dade, se tiver anteriormente existide ruptura de equilibrio e, por consequéncia, diivida. Se essa duvida nao se verificar, ndo pode ha- ver verdade. Ora, semelharite postulado ¢ dificilmente admissivel: 1° existem proposi¢des que para nés so verdade, se bem que nunca delas tenhamos duvidado ou que desde hd muito, delas tivessemos deixado de duvidar por exemplo: 2 2 so 4; 2° a diferenca entre consciéncia institiva e consciéncia reflectida, tal como, pelo menos, ela 6 concebida pelo Pragmatismo (2), nao é suficientemente gran- de para justificar a diferenca que Dewey estabelece entre aperc- pedo da realidade e construgao da verdade. E certo que ambas nos ajudam a viver melhor. Mas, enquanto uma concilis, organiza o re: al, a outra reorganiza-o em novas bases. Parece nao haver aqui mais do que uma cambiante, mas mesmo assim ela é a capital. Ora @ propria consciéncia instintiva nao ignora estas red'sposicdes, estas teorganizagGes: sempre que 0 equilibrio se desfaz, o proprio animal Brocura, tenteia, experimenta outros movimentos adequados a situ- acdo, A divida e a incerteza no so portanto privilégios do pensa- mento reflectido. Por consequéncia, elas ndo bastam para diferenci- ar a nossa construcéo do real e 0 nosso exame do valor légico des- sa mesma construcdo Talvez fosse preferivel procurarmos do lado do elemento satis- fagdo, a que 0 Pragmatismo concebe um to largo espaco. A partir (1) Ver antes pig. 61 (2) Pressente-se aqui que, no que Ihes diz respeito, Durkheim concebe-a de uma maneira muito diferente. Para o Pragmatismo, apesar de tudo, existe con: tinuidade da consciéncia instintiva para a consciéncia reflectida. Rara Durkeim, hi toda a distancia que separa o individual do social. 1 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA $e do momento em que insisté-neste elemento, o Pragmatismo muda de nome e chama-se Humanismo, designaggo que, como € sabido, Ihe foi dada por Schiller. © Humanismo tenta provar que o factor indi- vidual é um elemento essencial para a construgao da verdade: «Ne- nhum juizo pode nascer, mesmo no mundo do pensamento, se um qualquer espirito individual no for instigado por todo o seu con- teido e toda a sua histéria psiquicas a afirmé-o em qualquer opor- tunidade conveniente, e a apostar inteiramente nessa afirmacdo pes- soal...O juizo pressupée essencialmente um espirito, um mébil, uma intenego (1). Na procura da verdade, hé que se procurarem ideias que satisfacam as nossas necessidades de acco e de pensamento. Todo 0 acto, todo o movimento é pessoal e, dado que a ideia é 0 instrumento do acto, também ela é algo de pessoal e, a0 mesmo tempo, um pouco funggo do meio. Isto porque, quando a ruptura do equilibrio que se encontra na base do acto de conhecer se pro- duz, a ideia varia segundo 0 meio e segundo a pessoa que ela afecta. Todos os pragmatistas so unénimes em repudiar a distingdo que habitualmente se faz entre o pensamento real ou pessoal ¢ o pensa- mento /égico ou impessoal (2). No ha duivida de que o factor pes- soal nunca funciona’ isoladamente; mas 0 seu papel é importante decisivo até, Da verdade individual a verdade impessoal Uma questéo se coloca aqui. Se o factor pessoal e afectivo de- sempenha um papel to importante, no deveriamos concluir da/ que a verdade é essencialmente individual e, por consequéncia, inco: municével, intraduzfvel, jd que traduzi-la equivale a exprimi-la em (1) Studies in Humanism, essai 11, § 9, p. 90 (Trad. f., p. 116) cf. ess8i XVI, § 9, p. 361 (trad. p. 461): «E realmente impossivel prescendirmos do lado pes. soal do conhecimentov (2) Outras referéncias jé dadas p, 56, cf. James, Le Pragmatisme, p. 224; Schile ler, Studies..., p. 96 (trad., p. 124) © 384 (trad., p. 452); Dewey, Comment ‘nods pensons, trad. fr., p. 82-88; etc. 92 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA conceitos, logo, em algo de impessoal? Se, por outro lado, os ju‘zos forem afectados por um coeficiente de subjectividace, daf se con- clui que eles possuem um valor desigual:: alguns deles so preferiveis a0s restantes, Estabelece-se uma op¢do totalmente espontanes, dizem-nos, ¢ gragas & experiéncia, 0s juizos que menos valia tiverem so elimina- dos, a0 paso que 0s outros se libertam, se aproximam uns dos ou- tros, e acabam por constituir o tesouro comum da humanidade. Mas, poder-se-é perguntar, para quem é desigual o valor destes ju‘- 20s? Ha juizos que sto bons, logo verdadeiros para mim, e que sfo maus, logo falsos para os outros. Para diferentes pessoas, a usatisfa- 40» incide em pontos diferentes (1). Quais sao, dentre esses juizos, aqueles que iro constituir esse «tesouro da humanidade?» Os pra gmatistas dizem-nos que so aqueles que mais valerem para a maio- ria dos homens, e aqueles que corresponderem as semelhangas que entre eles houver. A «verdade» mostra-se assim como sendo um res siduo de crencas particulares. Mereceré uma tal verdade o nome de «impessoa'y? Dizem-nos 0s pragmatistas que podemos indubitavelmente conceber uma ver- dade objectiva, impessoal e, nesse aspecto, absoluta,verdade essa que ndo mais comportasse diferengas sem modificagdes, que fosse ‘to somente como um idea/ para o qual tendessemos, soliddrio com © progresso do conhecimento humano, e que apontasse unicamente para uma orientag&o do pensamento (2). O risco de erro seria neste caso 0 de tomarmos esta tendéncia para uma realidade jé actual. Seja como for, verifica-se aqui como poderia explicar-se, do ponto de vista pragmatista, que a verdade, sendo embora individual, nas suas orfgens, no 0 é rigorosamente. Mas, acima de tudo, aquilo que iré orientar e reforgar a con- vergéncia dos espititos, é a acco da sociedade. Uma vez estabele- cido esse wconsenso das opinides (3)», uma vez atingido esse «gran- (1) Le Pregmatisme, p. 70. (2) Schiller, Studs. essai VII, § 6, p.213 (Trad. t., p. 274) (3) Ltée de Vérité, p, 234-235 93 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA de estadio de equil/brio no desenvolvimento do espirito humanoy a que James dé 0 nome de «estddio do senso comum (3)», a socie- dade exerce uma presséo para impor aos espiritos um certo confor- mismo (1). Hd uma padréo de verdade que se forma gradualmente e que a sociedade tende a patrocinar e a garantir. Isto porque, se as verdades continuassem a ser particulares, teriam de se enfrentar entre si (2) seriam ineficazes. Assim, para explicar a existéncia de uma verdade impessoal (atributo alids secundario, segundo o Pra- gmatismo), verificamos que o Pragmatismo é levado a propor interpretagdes de ordem sociolégica. Consideremos agora a Concepeao geral da verdade que desta andlise resuta. Proclama-se geralmente 0 carécter determinante, necessitante da verdade. Uma vez conhecida, a verdade impor-se-ia aos nossos es- Piritos com a preciso de um decreto divino, @ os processos median- te os quais a ela acedemos apresentariam idéntica caracteristica. Ore, do ponto de vista pragmatista, sendo a verdade obviamente boa, til, «satisfatoriay, no possui todavia qualquer caracteris- tica de necessidade légica. Somos nés que a fazemos, e fazemo-la as- sim para as nossas necessidades. Assiste-nos portanto inteira /iber- dade no processo da sua construggo. E 0 que aliés nos mostra bem, diz James, a epistemologia moderna que, em vez dos princi absolutos de outrora, nos patenteia os axiomas ou os postulados mais ou menos convencionais e, em vez de leis rigorosas, simples aproximagées: « a necessidade divina viu-se substitufda, na légica (1) Le Pragmatisme,p. 160. (2) Schiller, Studies in Humanism, essai V, § Ill, p. 153 (trad. fr. p. 197):« A, sociedade exerce sobre as excentricidades e sobre o inconformismo intelectual dos seus membros, um controlo quase to severo como sobre os desvios morais desses mesmos membros». (3) James insiste frequentemente no fenémeno desse conflito das crengas: d nadamente em Pragmatisme, p. 84-85, 110; /dée de Vérité, p. 178, etc 94 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA cientifica, pelo que de arbitrério existe no pensamento humano (>. ‘As consequéncias que resultam desta concepslo, no que ao ‘método se refere, sio de considerar. Jd se ndo trata de instituir um método Unico, nem sequer uma regra de conduta defenida. Néo existe controlo cujas regras sejam fixadas de forma absoluta. A ati- tude @ assumir perante 0 universo no deve ser 0 hébito doutrinario, autoritério do Racionalismo: a do pragmatismo é uma atitude «in génuay (1). Hd que se renunciar ao farisaismo, tanto cientifico co mo moral, j4 que doravante é impossivel pesar-se, no se sabe em que balanca, a valia dos testemunhos. Sé a forma pela qual a verda- de intensifica a nossa vitalidade permite que a reconhagamos, Assim, é a propria légica que se encontra em discusséo. Seria ou no possivel que um método mais ou menos definido permitisse que os homens descobrissem a verdade e seguissem determinada via preferentemente a uma outra? Se o pensamento légico for uma forma inferior do pensamento, necessério se tornaré encontrar uma forma capaz de desempenhar esta fungio. (1) Le Pragmatisme, p. 66-67. (2) Obra citada, p. 236. 95 DECIMA PRIMEIRA LICAO (1) Parece faltar aqui —e isto nas nossas duas verses — uma ligdo intermédia que se destinava a responder & questo formulada no fi- nal da liggo precedente: Qual o método que o Pragmatismo entende substituir aos métodos ldgicos geralmente adoptados? Essa li¢éo preenchia igualmente uma lacuna: na segunda li¢do (p. 22), Durk- heim caracteriza 0 Pragmatismo como sendo simultaneamente um método, uma teoria de verdade e uma teoria do universo. Ora, s6 estes dois tiltimos assuntos foram tratados. Temos razdes para supor que Durkeim utilizava designadamente aqui as indicagdes forneci das por James em O Pragmatismo, paginas 56-64, acerca do «mét- do pragméticon. As ideias essenciais séo as seguintes: 1°, que «a ati- tude» que o Pragmatismo representa, se situa na linha do Empiris- mo, mas de um empirismo renovado; 2° , que ele tome posi¢éo con- ‘tra 0 pensamento abstrato e, mais geralmente, contra o intelectua- lismo e 0 racionalismo; 3°, que é héstil a todos os dogmas metafi- sicos, a todos os «sistemas fechados», a todas as solugGes definitivas que fecham a via a pesquisa; 4°, que, na sua éptica, somente impor- tam, ndo 0s princ/pios primeiros, mas as consequéncaas préticas, € que se torna necessério «deduzir de cada palavra o valor que ela possa ter como coisa certay, ou seja, a capacidade do pensamento que ela exprime, de «modificar as realidades existentes». (1) A que deveria ter sido proferida a 24 de Fevereiro de 1914 (), 7 DECIMA SEGUNDA LIGAO (1) pragmatismo e a religido Encontrando-se assim o Pragmatismo exposto, nas suas teses € métodos gerais, é-nos agora licito perguntar como é que ele se aplica a problemas especificos e determinados. A bem dizer, os exemplos destas aplicagSes séo muito raros em todos os enunciados que os pragmatistas nos legaram. Nenhuns hé referentes ao conhecimento do mundo fisico. Deveria havé-lo no émbito das coisas de ordem humana. Mas também esses so raros. Esperariamos contudo que o método pragmatista pudesse ser aplicado aos problemas morais. Ora, na realidade nao existe moral pragmatista. Existem efectiva- mente alguns artigos de Dewey acerca de assuntos de ordem moral (2).Porém, quando Dewey trata destas quest6es, 0s seus enunciados no se revestem de qualquer cardcter pragmatista: as suas teorias morais parecem totalmente independentes da sua teoria da verdade. 6 em Moore encontramos algumas vagas indicagGes nesse sentido (3). (1) Curso de 3 de Margo de 1914. (2) Notavelmente: Outlines of a critical Theory of Ethics, Ann Arbor, 1891; ‘Moral Theory and Practice, no International Journal of Ethics, Janeiro de 1891; The Study of Etnics, a Syllabus, Ann Arbor, 1894; Ethics, em colabor. com H. Tufts, New-York e Londres, 1908; The Bearings of Pragmatism upon Education, no The progress. Journal of Educ., 1908; Maeterlinck’s Philosophy of life, no Hibbert Journal, 1911, n° 36; etc. S6 mais tarde Dewey se dedicou 20 assurttos de educardo e & filosofia da democracia. (3) Notavelmente no seu Pragmatism and its Critics. 99 | i H | } SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA 0 unico assunto que teria sido minusiosamente tratado, segun- do o método pragmatista, é 0 da religio. Demos designadamente a tal respeito o livro de W. James acerca das « Variedades da expeién cia religiosa (1}». De que forma é tratado esse problema? James interroge-se acerca do valor da religiGo. Para a resolugdo deste problema, hd que se inventariarem todos os factos que apresentem um carécter reli- gioso, Onde os iremos encontrar? Segundo James exclusivamente na Acreligido interior», na experiéncia intima da consciéncia individual. 4A religido pessoal, escreve James (2), € algo de mais fundamental do que os sistemas teolégicos e do que as instituigdes eclesidsticasy. James pée portanto de lado tudo o que forem instituigées, igrejas, préticas consagradas, Na sua éptica, a vida religiosa no o seré en- quanto no se fixar: como qualquer género de vida, é uma corren- te (course). Torna-se portanto necessério separar as formas rigidas da religiéo para as remontar as suas proprias origens, antes que ela acabe por se cristalizar, ou seja, em suma, a consciéncia indivi- dual. Isto porque «a realidade se compe exclusivamente de experi- éncias individuais (3)». Quais sao por conseguinte, os factos que o estudo de conscién- cia individual’ nos mostra na rafz da vida religiosa? James distin- gue (4) cinco tipos de factos: 0 sentimento do invisivel, 0 optimis- mo religioso (confianga , crenga na felicidade), 0 pessimismo relig 080 (as «almas dolorosasy, desejo de salvagao), os estados de esp/i (1) The Varieties of religious Experience, a Study in human nature, 1902; trad. ‘fr. por Fr. Abauzit, Alean ¢ Kiindig (Genave), 1908. (2) Variedades da experiéncia religiose, trad. fr., p. 26-27; cf. ibid, p. 288: lmporta estabelecer uma distingdio entre a religio pessoal, parte integrante da consciéneia de um individuo, e a religigo colectiva, formada por ritos e por ins- tituiges que so 0 produto ¢ © patriménio comum de todo um grupo social As instituigSes eclesiésticas no so, de modo algum, © objecto do nosso estu- don. + (3) Obra citade, p. 417, (4) Na Primeira Parte da sua obra, cap. III a VII. 100 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA rito dividido entre a divida e a fé, enfim, a converséo. Esta escolha afigura-se-me perfeitamente arbitréria, mas eu no quero discuti-la aqui (1), Limitar-me-ei a constatar que existem religides em que esses sentimentos individuais no se verificam, a bem dizer. De resto, segundo W. James, 0 valor da religido pouco depende destas andlises. Ele nao depende de situagdes organicas nem de situ- aces psicolégicas. A ciéncia das religides deve estabelecer um jul- 20 acerca da verdade da religiéo, no por meio de um método do- gmético (2), mas segundo os seus resultados: «O pragmatismo é a melhor atitude relativamente a religiéo (3)». Para sabermos o valor de uma arvore, néo considerdmos as suas raizes, mas sim os frutos que ela nos dé, O mesmo se deve verificar relativamente a vida reli- sa. Interroguemo-nos pois acerca de quais os produtos da vida re- ideré-los no exacto momento em que a vida reli- giosa atinge a sua intensidade maxima, Inclusivamente para termos uma ideia daquilo que ela nos pode oferecer em casos intermédios. Por outras palavras, hd que os estudarmos nos santos. A santidade O que é a santidade? Seré necessério, para respondermos a esta questo, optarmos entre diferentes teologias? Serd necessério esta- belecer a existéncia de Deus e admitir «duas ou trés formulas pre sas e irrevogéveis» acerca da sua natureza, acerca da natureza do homem, etc.? E iniitil, diz James (4), formularmos outras questées. O resultado seria nulo, jé que, se admitimos ou negamos a existé (1) Estabelecermos um confranto com a classificagio que 0 rpéprio Durkeim rnos oferece nas suas Formas elementares da vida religiosa, livro III: 0 culto ne- gativo (ritos ascéticos), 0 culto positive (sacrificio, ritos mimétricos, ritos re: resentativos ou comemorativos), ritos espiatérios, noedo do sagrado. As duas classificardes, como é evidente, nada tém de comum. (2) Obra citada, p. 408, (3) Ibid, p. 436, (4) tbid, p. 280. 101 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA p cia de Deus, ndo é por razBes especulativas, mas sim porque as nos- sas aspiragdes © as nossas necessidades nos sugerem determinada concep¢ao preferentemente a uma outra. Os tnicos pontos de refe- réncia que na matéria temos, so «os preconceitos filoséficos, os ossos instintos morais e © nosso bom senso (1)»: sdo eles que nos servem de critério. Esses «preconceitos» (no entanto etimolégico do ‘termo}, esses instintos e esse bom senso, e com eles as nossas con- cepges religiosas, encontram-se em permanente evolucdo. De modo que, conforme o santo esteja ou ndo de acordo com os sentimentos que nos levam a operar esta evolu¢do, veremos nele um modelo ou discuti-lo-emos. Nao hé divida de que, reconhece James (2), este método empiric é «um pouco vago e indefenido, um pouco subje- tivo». Mas esse «é um reparo que temos direito de endossar a todos 08 ju/zos humanos em semelhantte matérian. As grandes virtudes do santo sao: a devogdo, a caridade, a forca de énimo (resignagao, desprezo pelo perigo), a pureza da alma (aver- so a tudo quanto seja artiffcio ou mentira), 0 ascetismo (que pode ir até ao amor pelo sofrimento), e finalmente a obediencia e a po- breza (3). Estas virtudes opéem-se, pelo menos de um modo geral, as do homem de ac¢o. Qual o seu valor respectivo? Certamente, centre 0s santos, a conduta ideal seria a santidade; mas esta no é de forma alguma adaptével entre os homens, bem poucos dos quais so santos (4)». Nas sociedades imperfeitas, como as nossas, a cari- dade, a néo-resisténcia a0 mal, afiguram-se quase sempre como néo se encontrando no seu devido lugar; e as virtudes do homem de acg&o parecem preferiveis. Mas, como uma sociedade perfeita seria precisamente uma sociedade de santos, nela reside, apesar de tudo, a situacgo ideal. Por outro lado, acrescenta James (5), mesmo nas nossas sociedades, no deixa de ser itil que certos homens oponham (1) tbia., p. 281-283. (2) Obra citada, p. 285. (3) Ibid. cap. VIL. “(4) (bid, p. 306. (6) fbid., p. 307-308, 102 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA a bondade a dureza, o perdéo a ofensa, etc. Os santos sfo ¢criatu- ras bondosas»; a sua misséo consiste em reanimar os instintos de bondade que em nés residem; e assim, o seu fervor «desempenha um papel essencial na evolucao social. Mistica e cou subliminar» Até aqui, apenas nos referimos & fecundidade prética da reli- io. Mas, diz James (1), no mundo fisico é impossfvel julgar a re- ligido pelos seus frutos: «Trata-se de saber se ela é verdadeira, no se ela é Util». Seré a religido verdadeira? Para tenter resolver esta questo, James repudia desdenhosamente os argumentos dos fild- sofos e tedlogos (2). Manifesta, pelo contrério, muita indulgéncia em relagdo as intuigdes misticas (3). O que se encontra na base da experiéncia mistica, é uma comunicagao directa com a realidade, algo de andlogo a sensago, desde que apreensao da propria coisa e no conhecimento acerca dessa coisa (4). Somente os que experi- ‘mentaram essa espécie de sensacdo, sentiram o poder do divino. ‘A tinica justificaggo tedrica das crengas religiosas que se encon- tra no livro de James, deve ser procurada nos dltimos capitulos (5). James pretende provar, no que Deus existe, mas que a crenca no ivino se pode conciliar com «os dados cient{ficosn, que ela faz par- te «das concepeies que ainda séo possiveis (6)». Ora, segundo ele, 0 que se encontra na base da vida religiosa é a ideia de haver algo MAIOR que.nés (7). Esta ideia vai precisamente ao encontro da concep¢go do subconsciente, do eu subliminar a que, segundo Ja- mes, 08 psicélogos contemporanéos déo um téo importante lugar (1) Ibid, p. 323. (2) Ver capitulo XI do seu livro: Spéculation. (3) Ver capitulo X: Mysticisme (4) E sempre a distingio entre acquaintance e Knowledge about. (6) Fim do capitulo XI, p. 381-382, e conclusdo principalmente p. 424 e sag. (8) Obra citada, p. 381. (7) Obra citada, p. 424-426. 103 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA SSS nas suas interpretagées. «A nossa consciéncia normal é téo somente um tipo particular de consciéncia, separado como que por uma fina membrana de vérios outros (1)». Para além do ambito desta consci éncia normal, outras ha que incidem em realidades psiquicas de di- ferente natureza, E é daf que surgem as inspiragées, as iluminagdes sibitas: 0 estudo das situagées misticas, da conversio, da oracdo, demonstra 0 importantissimo papel que na vida religiosa desempe- nham estas incurses do subconsciente. A forma pela qual estas for- Gas actuam na nossa vida espiritual, demonstra a sua superioridade. Necessdrio se torna portanto admitir que existe algo além dos cor- pos, do mundo material, e até mesmo algo além da consciéncia, tal como ela se nos afigura. Assim, «por muito além que ele se possa si tuar dos limites do ser individual que com ele se relaciona na experi Encia religiosa, o «MAIOR>» faz parte, aquém destes limites, da vida subconsciente (2)». A «ciéncia das religides» — ou a filosofia — po- de portanto fundamentarse «num facto psicolégico por todos admitido», e justificar simultaneamente a afirmagdo do tedlogo segundo a qual o homem, na sua experiéncia religiosa, sofre a influéncia de uma forga que o ultrapassa. O divino entra no mundo da experiéncia: Deus transforma-se numa dessas forcas experimen- tais que afirmam a sua existéncia por meio de efeitos empiricamente constataveis. «Deus existe, j4 que a sua aco é real (3). Politefsmo Ter-se-4 mesmo que dizer «Deus» no singular? A Unica «verda- de» que a experiéncia religiosa exige, é «que a alma se possa unir a algo de MAIOR, e encontrar assim a libertacdo». Deste «MAIOR», (1) Obra citade, p. 329. Ver também o tltimo capitulo de Vontade de Crer: «As pesquisas psiquicase seus resultados» e o capftulo XVII dos Studies in Hux ‘manism de Shciller: «The Progress of psychical research». Trata-se sobretudo das interpretagdes de Myers, (2) Obra citada, p. 427, (3) Obra citada, p. 429, 104 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA © filésofo inflamado de unidade e 0 mistico propenso a0 «mono- teismo» fazem um Deus Gnico e absoluto. Mas, para satisfazer as anecessidades praticasy do homem e os dados da experiéncia religio- sa, basta admitir que «para cada individuo» existe um poder supe- rior a0 qual ele se pode unir e que Ihe é favordvel. Nao é necessério que ele seja Unico e infinito. Podemos mesmo concebé-lo «omo um eu maior e mais divino, de que o eu presente seria apenas a expres- sfo reduzida. O universo espiritual seria ent&o 0 conjunto desses eu, mais ou menos compreensivos, e no a unidade absoluta (1)», Che- gamos assim — e reencontramos aqui uma vez mais a nogdo de pluralisino — a uma espécie de «politefsmo» que, alids, acrescenta James, sempre foi «a verdadeira religio do povo»: existem 8 nossa volta espiritos dotados de forga e de acedo, consciéncias andlogas & nossa, mas distintas e superiores 4 mesma, que no entanto «se infiltram nelay e séio capazes de enriquecer e fortificar a nossa vida (2). Sdo estas experiéncias que constituem a reli Certamente, os factos referidos por W. James ooderiam seri terpretados de uma forma diferente. Os casos de consciéncia sub minar poderiam relacionar-se, tal como numerosos autores pensa- ram (3), com factos de desdobramento ou de desagregacdio da per- sonalidade. Mas o que explica e apoia a arqumentacio de James, é 2 declaragtio que ele faz (4) de haver exprimido ali os seus proprios sentimentos, as suas proprias aspiragSes ou, como ele diz, as suas «super crengasy (over- beliefs). Os sentimentos e as aspiragées de cada um possuem o seu valor (5), — jé que supem experiéncias an- (1) Obra citeda, p. 436. (2) Obra cited, p. 436. (2) Ver por outro lado James ele mesmo na Philosophie de I'expérience, p. 289. Mas ele conclul: «Quanto a mim, verifico alguns desses casos anormais ou su- ppra-normais, os mais fortes suspeitos a favor da existéncia ce uma consciéncia superiors, (4) Variétés de 'expérience religieuse, p. 436-437. (5) Em As formas elementares da vida religiosa, p. 696, Durkheim jé se referia 20 livro de W. James, @ escrevia: «Tal como um recente apo ogista de 6, admi 105 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA . teriores, — mas dese que as ndo transformem, como faz James, num manancial de luz. E por idéntica razéo que James concede a primazia ao elemento satisfacdo. Quer isto dizer, em suma, que de- vemos obedecer as nossas proprias aspiracées, que é necessdrio per- corrermos 0 declive menos ingreme. Conclusao da exposigao: 0 espirito geral do pragmatismo Podemos agora, 4 maneira de conclusdo desta exposigao, ten- tar definir o esp/rito geral do Pragmatismo. Dissemos que o Pragmatismo era, antes do mais, uma tentati- va de libertagao da vontade. Para que o mundo solicite a nossa acti- vidade, é necessdrio que possamos transformé-lo e, para isso, que ele soja maledvel. As coisas ndo contam sobretudo por aquilo que séo, mas sim por aquilo que valem. Aquilo em que a nossa conduta se baseia, 6 numa hierarquia de valores por nés estabelecida. A condi 40 da nossa acco, € pois que esse sistema de valores se possa rea- lizar, se possa incarnar no mundo em que vivemos. © Pragmatismo oferece assim um sentido & accdo. Todavia, esta preocupagdo pela acco, relativamente a qual pretenderam defenir o Pragmatismo, néo é, a meu ver, a sua caracte- ristica dominante. Essa impaciéncia dos homens em transformarem as coisas, encontra-se em todos os idealistas: quando se tem um ideal, vé-se 0 mundo como se ele devesse vergar-se a esse ideal. Mas © Pragmatismo no é um Idealismo: é um Empirismo radical. Como poderia ele permitir um tal anseio de transformacdo? Ja vimos que, para © Pragmatismo, nao existe dois planos de existéncia, mas um 86, © por conseguinte no se percebe muito bem onde o ideal pode- ria situar-se. Deus, inclusivamente 6 como acabamos de demonstrar, objecto de experiéncia na doutrina pragmatista. (cont.) timos que as nossas erencas religiosas se fundamentam numa experién- “cia espectfica cujo valor demonstrative nfo 6, de certo modo, inferior ao das experincias cientificas, muito embora seja diferenten. 106 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA Podemos portanto concluir que o Pragmatismo é muito menos um empreendimento destinado a favorecer a acgao, do que uma tentativa dirigida contra a especulagao pura e o pensamento tedrico. que propriamente o caracteriza, é uma impaciéncia por qualquer disciplina intelectual rigorosa. O Pragmatismo pretende «libertarn 0 pensamento muito mais do que a acco. A sua ambigo, como diz James, consiste ‘em «desenrigidecer a verdaden. Veremos seguida- mente quais as raz6es que ele invoca para afirmar que a verdade se no deve manter «r{gidan. DECIMA TERCEIRA LIGAO (1) Critica geral ao pragmatismo Podemos pasar agora a discucedo das doutrinas pragmatistas. Podemos, antes do mais, censurar-Ihe certas lacunas. Como jé referi (1), os pragmatistas usam frequentemente de demasiadas li- berdades com as doutrinas histéricas. Interpretam-nas segundo a'sua fantasia, e por vezes de forma pouco exacta. Mas 6 necessario realgar sobretudo o cardcter abstrato da sua argumentago, que contrasta com a orientaggo geral, pretensamente emp(rica, da doutrina. Os sous testemunhos possuem, o mais das vezes, um cardcter dialéctico: tudo se resume a uma pura construcao Jégica. Dai, uma primeira contradi¢ao. O seu pensamento apresenta, aliés, outras contradi¢des flagran- tes. Eis, por exemplo, uma delas. Dizem-nos os pragmatistas, por um lado, que a consciéncia ndo existe como tal; que ela nada é de original; que ela no é um factor sui generis nem uma verdadeira realidade, mas sim um simples eco, um «verdadeiro estrondo» que atrés de si deixou «a almay desaparecida do céu da filosofia (2). Es- te 6, como se sabe, 0 tema do célebre artigo A consciéncia existird?, que James retomou sob a forma de um comunicado, em francés, a0 Congreso de 1905 (3). Por outro lado, porém, afirmam-nos os pra- (1) Ver mais atrés, p. 25. O proprio James parece reconhecer isso mesmo quando escreve, por exemplo, no seu prefacio de A Vontade de crer (trad. fr., pp. 19): «O meu ensaio acerca de alguns pontos da filosofia hegeliane, aborda superticialmente um assunto importante e apela para a indulgéncia’do leitor. (2) Some Problems of Philosophy, |, p. 2. (3) Ver mais atrés p. 18. 109 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA gmatista que a realidade é uma construgdo do pensamento; que 0 real é a propria apercepedo (1). Atribuem assim ao pensamento as mesmas qualidades e 0 mesmo poder que as doutrinas idealistas Epifenomenismo de um lado, idealismo do outro: verifica-se incom- patibilidade entre ambas as teses. © pragmatismo carece assim das caracteristicas fundamentais que temos 0 direito de exigir de uma doutrina filos6fica. Mas, devemos aqui formular uma questo: como é que com semelhantes imperfeicBes o Pragmatismo se impés to répidamente a indimeros espiritos? E efectivamente necessdrio que ele se baseie em algo da consciéncia humana, que nele exista uma forga que nos falta descobrir. (© mébil fundamental da atitude pragmatista Procuremos pois saber qual é 0 sentimento que anima a dou- trina, qual o mébil que é 0 seu factor essencial. Nao é, jé 0 afirmei, a necessidade prética, a necessidade de ampliar o campo de accao humana. Hé na verdade, designadamente em James, um gosto pelo risco, uma necessidade de aventura: James prefere um mundo incer- to, «maledvel», a um mundo fixo, imével, porque é um mundo em que hé algo’a fazer, e é bem esse 0 ideal do homem forte que pre- tende alargar 0 ambito da sua actividade. Mas entdo, como pode o mesmo fildsofo apresentar-nos 0 asceta que renuncia ao mundo, que dele se afasta, como sendo um ideal? A bem dizer, o Pragmatismo néo se preocupou em nos delinear um ideal determinado. O que nele prevalece, é a necessidade de «fle- xibilizar a verdadey, de a adesentorpecer», como diz James, que 0 mesmo ¢ dizer, em suma, de a libertar da disciplina do pensamento légico. E 0 que se verifica com muita nitidez no livro de James A vontade de crer. — Posto isto, tudo se explica. Se o pensamento ti- vesse 0 objectivo de «reproduzir» simplesmente o real, ele seria 0 es- cravo das coisas, estaria acorrentado @ realidade. Bastar-se-ia «copi- (1) Ver mais atrés p. 68, 110 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA ary servilmente um modelo que tivesse diante de si, Para que o pen- samento se liberte, pois necessério que ele torne criador do seu proprio objecto, e 0 Unico meio para se consegui’ essa finalidade, 6 oferecer-Ihe uma realidade para fazer, para construir. Assim, 0 pensamento tem por objecto, ndo a reproducéo de um dado, mas a construg&o de uma realidade futura, Desde logo, 0 valor das ideias no mais pode ser apreciado relativamente ao objecto, mas sim se- gundo o seu grau de utilidade, segundo 0 seu cardster mais ao me- os «vantagoso». Verifica-se assim o alcance das teses pragmatistas. Se, no Raci- onalismo cldssico, 0 pensamento apresenta esse caracter de «rig dezy que 0 Pragmatismo the aponta, & porque 2 verdade nele foi concebida como sendo uma coisa simples, quase divina, que obte por si sé todo o seu valor. Esta verdade, concebida como bastan- do-se a si propria, 6 entio necessariamente localizada acima da vida humana, Ela no pode ceder as exigéncias das circunstancias e dos diferentes temperamentos. Vale por si mesma, jé que a sua boa qua- lidade é absoluta. Ela néo existe para nés, mas para ela: seu papel consiste em deixar-se contemplar. Como que divinizada, transfor- ma-se num objecto de um verdadeiro culto. Continua a ser a conce- poo de Plato. Esta concepgdo da verdade estende-se & faculdade mercé da qual atingimos 0 verdadeiro, a saber, a razdo. A raz3o serve-nos para explicarmos as coisas: Nesta concepedo, porém, ela propria ndo se explica, situando-se fora da andlise cient/fica, «Flexibilizary a verdade, é retirar-he esse carécter absoluto como que sacrossanto. E arrancé-la desse estado de imobilismo que a subtrai a todo o devir, a toda a transformago e, por consequén- cia, a toda a explicacdo. Imaginai que, em vez de se encontrar assim confinada num mundo aparte, a verdade fizesse, ela mesmo, parte da realidade e da vida, no por uma espécie de queda, de degradago que a disfiguraria e a corromperia, mas sim porque ela é naturalmente uma parte da realidade e da vida (1). Ei-la entéo (1) Cf. Formas elementares da vida roligiosa, 3° ed. (1931), p. 634: wAtribuir 20 pensamento ldgico orfgens socials, no é rebaixé-lo, diminuir-he 0 valor.., 6, pelo contrério, relacioné-1o com uma causa que o implica naturalmenten. m1 SOCIOLOGIA, PRAGMATISMO E FILOSOFIA localizada na série de factos, no préprio seio daquilo que comporta antecedentes e consequentes. A verdade suscita problemas, jé que Permite que se pergunte de onde vem, para que serve, etc. Ela pré- ria se transforma em objecto da ciéncia. E isto que faz o interesse do empreendimento pragmatista: podemos ver nele um esforco para compreender as proprias verdades e razio, para Ihes restituir 0 seu interesse humano, para delas fazer realidades humanas dependentes de causas temporais e geradoras de consequéncias temporais, «Fle- xibilizary a verdade, é transformé-la em algo de analisdvel e explicé vel. E aqui que podemos estabelecer um Paralelo entre o Pragma- tismo e a Sociologia. A Sociologia ¢ levada efectivamente a formu lar o mesmo problema quanto & aplicacao do ponto de vista hist rico 4 ordem das coisas humanas. O homem é um produto da histéria, logo, do devir. Nada existe nele que Seja antecipadamente dado ou definido. A historia no comega em parte alguma, e em parte alguma termina. Tudo o que no homem reside é feito pela humanidade, a0 longo dos tempos. Por consequéncia, sendo a verdade humana, ela é igualmente um produto humano. A Sociolo- gia aplica idéntica concepedo a raz8o. Tudo 0 que constitui a razéo, 0s seus prinefpios, as suas categorias, tudo isso se processa no decurso da histéria. Tudo é produto de determinadas causas. Ndo devemos imagi- nar os fenémenos em séries fechadas: as coisas possuem um cardcter «circular», @ a anélise pode prolongar-se indefinidamente. E por isso que eu no posso admitir que se diga, como fazem os idealistas, que na orfgem existe 0 pensamento.nem, como fazem os pragmatistas, que na or(gem existe a accao. Mas, embora a Sociologia coloque o problema no mesmo sen- tido que 0 Pragmatismo, encontra-se mais bem situada para o resol- ver. Com efeito, o Pragmatismo pretende explicar a verdade psicolo- gicamente, subjectivamente. Ora, a natureza do individuo é bem li- mitada para ser capaz de explicar, por si s6, todas as realidades hu- manas. O facto de se considerarem exclusivamente os elementos in- dividuais, leva a que se atenue indevidamente a vastido dos efeitos 112 PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA de que se trata de dar conta. Como teria podido a razéo, designa- damente, ser elaborada durante as experiéncias efectuadas por um Unico individuo? A Sociologia permite-nos explicacdes mais amplas. Para ela, a verdade, a raztio, a moralidade, so os resultados de um devir que engloba todo o processo de desenvolvimento da historia humana. Verifica-se, desde logo, qual a vantagem do ponto de vista so- ciolégico apresenta em relac&io ao ponto de vista pragmatista. Para 05 filésofos pragmatistas, a experiéncia, tal como jé por varias vezes referimos, apenas pode comportar um sé plano. A razio encontra-se assim situada no mesmo plano da sensibilidade, e a verdade no mesmo plano da sensaedo e dos instintos. Mas, desde sempre se re- conheceu na verdade algo que, de uma ceerta maneire se nos impe, independentemente dos factos relacionados com a sensibilidade com os impulsos individuais. Uma concepeao téo universal, deve efectivamente corresponder a algo de real. Uma coisa é pormos em duivida a correspondéncia entre os simbolos e a realidade, outra coi- sa 6 rejeitarmos, juntamente com o s{mbolo, a coisa simbolizada (1). Ora, esta reconhecida pressio da verdade sobre os espiritos & um simbolo que necesita de ser interpretado, mesmo que nos recu- semos a fazer da verdade algo de absoluto e de extra-humano. Pragmatismo, que tudo nivela, priva-se do meio de o fazer, a0 menosprezar a dualidade existente entre a mentalidade que resul- ta das experiéncias individuais e a mentalidade resultante das expe- rigncias colectivas. A Socilogia, pelo contrario, lembra-nos de que tudo quanto é socia/ possui sempre uma dignidade mais elevada do que aquilo que for individual. E de presumir que a verdade, tal co- mo a razSo ea moralidade, conservaré permanentemente essa cara- cteristica de uma mais elevada valia, o que de forma alguma impede (1) Cf. Formas elementares da vida religiosa, 3° ed., p. 625: «Uma represén- taco colectiva...pode exprimi-lo (0 seu objecto), sem duvida, com o au- xilio de simbolos imperfeitos; mas os préprios simbolos cient{ficos nunca séo mais que aproximacdes; também ibid. p. 26, onde as nocdes de origem social sio ditadas «s/mbolos bem fundamentados». 113

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