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POR QUE O DIABO RI?

Havia muita gente no Cemitério das Camélias.


Familiares e pelo menos uma centena de policiais
acompanharam as exéquias de Caveira. Tito e Nina
ficaram juntos todo o tempo; a moça tinha especial
preocupação com o estado do rapaz, que a muito custo
segurava um choro constrangido e culpado. Tito recebeu
abraços de colegas que intentavam mitigar o notório
sofrimento do jovem policial. Sentiu especial mal-estar
quando das condolências à viúva e aos dois filhos
pequenos que não paravam de chorar a morte do pai.
Após o enterro, todos caminharam cabisbaixos e
silenciosos pela alameda do cemitério. Vozes baixas já
começavam a cochichar os assuntos comezinhos e
diários à medida que se aproximavam do portal de saída
do campo santo. O novato imaginou então que não era
mais um novato. Talvez a partir de agora não o
chamassem mais de cabaço ou coisa parecida; talvez até
mesmo atingisse um certo status e angariasse respeito
dos colegas, porém, nada disso aliviava a dor que sentia.
Estava experimentando uma espécie de torpor
existencial, nunca passara por aquilo; sempre quis ser
policial e sabia que um dia enfrentaria esses problemas,
realmente não era isto que o incomodava. O que lhe
corroia por dentro era o fato de ter precipitado os
acontecimentos com total lucidez sobre seus
pensamentos e atos, procurou aquilo, quis fazer aquilo!
Aí estava o problema... quis mesmo? Esta era a dúvida
que o torturava. Foi seu, aquele certeiro tiro e todas as
conseqüências que dele adveio? Ou foi de...
Epaminondas! Tinha de reconhecer que Epaminondas o
impressionara quando da sua convicção em matar.
Disse mesmo que era um homem que precisava matar!
Aquilo havia o inebriado, ou seria o álcool daquela
noite? Aquela situação de sonho e pesadelo numa
mistura ébria e etérea teria se incrustado em suas veias
a ponto de ele tomar alguma atitude que não sua, apesar
de bem pensada? Ou teria sido mal pensada? Suas
divagações foram interrompidas por uma pedrada que
veio na forma da voz trepidante de Santos.

- Tire o resto do dia de folga, é quase meio dia, não


acredito que você tenha alguma utilidade na delegacia
hoje. Porra, você está um trapo meu filho! Lhe espero
amanhã bem cedo, e tomara que esteja bem recuperado.
Esse carrossel não pára, irmão, até lá.

O rapaz agradeceu com um sorriso forçado e foi com


Nina para um lugar a salvo de ouvidos curiosos.

- Preciso uma horinha para mim. Não estou muito bem.


Amanhã bem cedo falamos na delegacia.

- Claro – disse Nina compreensiva – me ligue se


precisar. E... bem, eu queria dizer que adorei a noite
anterior. Pra quem está meio broxa de espírito até que
você foi bem tesudo.
- Nos falamos amanhã, acho que preciso realmente de
uma boa noite de sono, mas até lá tenho muito que
raciocinar; botar as idéias em ordem. Amanhã estarei
melhor tenha certeza. – os dois então se despediram
com beijos no rosto para não despertarem suspeitas e
cada um rumou para seu destino.

***

Tito, ao contrário do que havia imaginado não conseguia


concentrar-se e um torpor embalado pela tarde
modorrenta o fez afundar cada vez mais em sua cama.
Então as delicias do sono começaram a dançar sua
dança de cigana até que desapareceram por completo
todos os vestígios do Sol. Lentamente abriu suas
pálpebras pesadas e à sua frente, um cenário que já
conhecia tomou conta de sua visão. Lá estavam os
demônios zombeteiros, as velas e os incensos. Tito,
porém reparou em alguns detalhes que destoavam
daquela outra noite; as velas não eram em número tão
elevado, fazendo com que a sala ficasse mais escura,
lúgubre e assustadora. Olhou com atenção e divisou a
pira, esta não estava acesa. No entanto, sobre a mesa
redonda havia três objetos que fizeram gelar seu sangue.
Eram três caveiras, uma das quais, a do meio, portava
uma vela vermelha afixada no topo da cabeça; a vela
estava consumida pela metade e a cera derretida caia-
lhe por sobre o crânio dando um aspecto por demais
sinistro. As outras duas tinham o topo do crânio virado
para baixo encaixados em delicados suportes, sem
dúvidas serviam como taças; horrendas taças. Taças de
crânios humanos! Aquilo revoltou o estômago do
policial e este reparou também em uma garrafa ao lado
destes artefatos nefandos. A pouca e bruxuleante luz das
velas davam um aspecto tenebroso a tudo aquilo, os
demônios das paredes pareciam mais ruidosos do que
nunca. Deu-se conta então de que Epaminondas não
estava no local. Levantou-se do velho sofá e,
cambaleante, encaminhou-se à porta. Respirou fundo
por algumas vezes; que merda seria essa que o negrão
usava para drogá-lo? Pensou. Ficou ali parado por
alguns momentos e quando se achou em condições, deu
prosseguimento à sua curiosidade; abriu a porta
vagarosamente e saiu. Para sua surpresa, saiu em um
corredor com archotes que ardiam em ambos os lados
das paredes, os fogos deixavam o corredor com
iluminação suficiente para que Tito percebesse a cor de
terracota e o longo comprimento deste. Em seguida
percebeu varias portas intercaladas por distancia
regular, talvez uns cinco metros entre cada uma, tinham
portas dos dois lados do corredor. O rapaz então apurou
os ouvidos e escutou gemidos que vazavam através de
uma porta entreaberta. Era a porta mais próxima de
onde então se encontrava; curioso, aproximou-se e
espiou para dentro do quarto. Ficou impressionado. Era
um imenso quarto com uma grande cama redonda ao
centro, rodeada por círios que ardiam com tanta
intensidade que praticamente não havia onde pudesse
ter um ponto de escuridão. Na cama, três corpos nus e
em completo êxtase enroscavam-se como serpentes em
um ninho. Epaminondas estava no meio, e enquanto
beijava com sofreguidão a boca e acariciava os seios de
uma garota escultural, com a outra mão dedilhava
carinhosamente a boceta de uma fantástica mulata. Em
seguida, inverteu os papéis. As mulheres riam em êxtase
e o negão, embora banhado em suor, gemia de prazer.
Tito começou a ficar excitado e começou a manusear seu
pau por cima das calças. Epaminondas então se deitou
de barriga para o teto e a mulata veio por cima
enterrando calmamente a imensa pica do negrão em sua
boceta empapada de prazer; a outra mulher sentou sem
cerimônias no rosto do homem, oferecendo-lhe a xoxota
inchada, no que foi atendida de pronto por uma língua
ébria e úmida de tantas bebidas alucinantes. O trio
entrou em êxtase. Corpos que tremiam em prazer
incontido, gritos e gemidos eram acompanhados agora
por gestos frenéticos. As mulheres beijavam-se
abraçadas; bocas, seios, tudo agora entrava naquela
ciranda vertiginosa enquanto por baixo, um escravizado
Epaminondas estava totalmente à mercê daquele
frenesi. Tito reparou que os olhos do negão, que
apareciam e desapareciam no vai e vem decidido da
bunda da mulher, reviravam de prazer e não
agüentando mais, o voyeur tirou o pau para fora e gozou
junto com aquelas bacantes alegres e seu sátiro. Seus
gemidos foram abafados pelo gozo frenético que vinha
daquele quarto. Satisfeito, o rapaz ajeitou-se e quando
espiou novamente viu o trio alegre que, em gargalhadas,
enchiam taças de vinho. Epaminondas vestiu um roupão
de cetim preto e encaminhou-se para a porta. Tito
correu para a outra sala e sentou-se rapidamente no
sofá, em seguida surgiu o negrão.

- Você é foda mesmo, compadre! – disse Epaminondas


com seu tom bêbado e brincalhão – ficou batendo
bronha na porta em vez de participar! Não sou egoísta,
você já sabe. Poderia muito bem se juntar a nós; ou
continua com medo da minha piroca negra? Há,há,há...

Tito ficou sem jeito e tentou se explicar, mas o homem


interrompeu em tom jocoso – sei como é essa estória de
pudor. O sóbrio é cheio de pudor, mas adora bater sua
punhetinha em lugar seguro, he,he... bem, me desculpe
se não fiquei para assistir seu despertar mas você há de
concordar que eu tinha compromissos inadiáveis, e tudo
que envolva prazer tem minha total atenção. Esta
surubinha é um bálsamo para mim, não estou mais em
idade de poder passar sem um ménage, você tem de
entender. – o rapaz então olhou para as sinistras taças e
comentou – fiquei meio assustado com isso, são... São
crânios de verdade?

- De verdade meu filho. Aqui não tem nada de


mentirinha. É um presente de Lord Byron.

- Quem?
- Esquece. São para comemorações especiais, e hoje
devemos celebrar. Mas para tanto, ofereço-lhe meu
cachimbo da paz. – Epaminondas tirou de um recipiente
que estava em um canto da sala, o que parecia ser um
imenso charuto, acendeu e sentou-se em seu ‘trono’. -
Mas o que está esperando? – prosseguiu – sirva esse
delicioso vinho nessas taças que preparei especialmente
para você.

- Nessas taças?

- Ora, como não? São para ocasiões especiais, a poucos


dou o privilégio de realizar libações nesses maravilhosos
recipientes. Ficaria realmente desapontado se você não
me desse a honra de me acompanhar; hoje é dia de
muitas efemérides, celebremos! Fume um pouco. –
Epaminondas estendeu o charuto ao rapaz que o pegou
titubeante – Mas o que é isto afinal, maconha, haxixe?
Tem cheiro de maconha ou coisa parecida. Será que não
vou pirar demais com isto?

- A idéia é essa, coragem irmão. Quero leva-lo a lugares


que você nunca sonhou existir; quero leva-lo ao meu lar.

- Pensei que seu lar fosse aqui.

- Muitos são os meus lares. Pobre daquele que vive


somente nas outras coisas e esquece de viver nele
mesmo. Vou lhe mostrar coisas espantosas, coisas em
que jamais você ousou pôr sua mente sóbria.
Tito fumou o charuto uma, duas, três vezes. Sentiu que
era chegada a hora de aprender alguma coisa e não
queria titubear, fosse o que fosse, queria ir até o fim.
Precisava tornar-se mais forte, não estava agüentando
as contingências da vida lá fora. Queria arcar consigo
mesmo, coisa que lhe parecia por demais penoso
naqueles dias. Estava totalmente perdido e precisava
agarrar-se a qualquer coisa, sentia que uma imensa
força emanava de Epaminondas e se pudesse dispor de
alguma parte deste poder, resolveria a sua vida. Queria
muito expor ao veterano policial o ocorrido no Morro do
Tigre. Queria sua opinião não como policial experiente,
posto que era um apóstata, queria sim, sua opinião de
matador, de homem implacável das ruas, sim, ele
precisava saber sua opinião, e não seria surpresa se o
negão já não soubesse do ocorrido.

- Sabe... – iniciou Tito, enchendo os crânios com vinho


– aconteceu uma coisa lá no Morro do Tigre...

- Espere aí meu velho! Antes de falar me alcance a taça


com esse delicioso vinho. E se já fumou, apague isso
naquela vasilha. – o novato obedeceu e sentou-se no
sofá.

- Quer me falar do que? Do homem que você matou? –


Tito arregalou os olhos, mas em seguida ficou calmo,
Epaminondas de tudo sabia no âmbito policial e ele até
já esperava por isso. – É... eu...
- Há,há,há... meu caro, quando se encosta a ponta da
espada, se empurra até o fim. Beba esse vinho nesse
crânio, beba... – o rapaz começou a ficar nauseado, o
efeito da droga começou, pensou ele, pois estava
realmente enojado com aquele crânio na mão e
começava a suar frio, porém, estava disposto a ir até o
fim. Virou a taça macabra deixando escorrer o líquido
pelos lados da boca.

- Curta este momento glorioso! – disse Epaminondas


abrindo os braços – este é o crânio do homem que você
matou, e o que você bebe é o seu sangue, há,há,há...

As risadas de Epaminondas acompanhadas daquelas


palavras cortaram o coração de Tito. Este começou
então a sentir o gosto de sangue em sua boca; apavorado
olhou para a taça de osso, esta estava toda vermelha de
sangue. Os dentes da caveira estavam mais assustadores
do que nunca e de repente, um par de olhos
esbugalhado apareceu onde antes havia apenas dois
buracos escuros no crânio. Tito jogou a monstruosidade
na parede, mas esta não se espatifou e rolou de volta aos
seus pés.

- Mas você realmente acha que pode matá-lo


novamente? – disse Epaminondas em tom de escárnio –
já não bastou uma vez? Há,há,há... Este é o vinho da
culpa, irmão! Transforma-se em sangue na boca!
Há,há,há...
Tito ia dizer alguma coisa, mas petrificado pelo pavor,
apenas conseguiu visualizar uma transformação
demoníaca à sua frente. Epaminondas agora ria muito, e
havia se transformado em um terrível demônio. Olhos
puxados e imensos chifres afloravam em meio ao
intenso fogaréu surgido do que ainda pouco, eram
inocentes círios bruxuleantes. Epaminondas agora tinha
a metade inferior extremamente peluda seus pés
viraram cascos de bode. De bode também era sua barba.
Soltava sonora gargalhada, e um fedor incrível tomou
conta de tudo.

- Sabe por que o diabo ri? Perguntou o demônio ao


rapaz, que meneou a cabeça sem conseguir dizer
palavra.

- Ri porque não tem medo! A risada é a antítese do


medo; não a risada tola, de claque, risada de sóbrios!
Falo da risada livre, desafiadora, demolidora! Capaz de
fazer desmoronar o mundo estabelecido. Você tem a
capacidade de rir? Acho que não. Olhe para você,
apavorado! Pensa que vê o que não vê. Não poderá
chegar nunca perto de mim! Como prefere me ver, meu
filho? Através de quais crenças? De quais preconceitos?
De quais filtros morais? Essas crenças é que me moldam
em sua mente, através delas vem a formula da forma
como me vê; eu de minha parte continuo sendo o bom e
luxurioso Epaminondas. Você terá coragem suficiente
para me seguir? Se tiver venha comigo, mas desde já
jogue fora todas as imundícies que os sóbrios lhe
inculcaram nessa cabecinha mole! Qual a vantagem de
sentir tanto medo? Digo, qual a vantagem para você?
Para os donos da sua consciência as vantagens são
inúmeras, você será sempre o cordeirinho assustado
atrás de proteção. Eles então poderão lhe abençoar com
seus dinheiros, seu preconceitos, suas mentiras, seus
medos e suas dádivas. São fracos cuidando de fracos.
Quando me olha o que você vê? Digo-lhe o que vê, você
vê os estereótipos patéticos nos quais foi condicionado.
Sente cheiro de enxofre, porque disseram para sentir. Vê
coisas que lhe parecem feias porque disseram que era
isso que tinha de ver. Tem medo porque disseram para
ter. Mas eu não sou nada disso! Sou o contrario! Sou a
coisa mais simples que pode existir, o dia que você
perceber isso estará livre! Sou apenas o homem que
mora na sombra, nada mais. Mas você... olhe para
você... está empapado em suor, sinto o fedor de seu
medo! Seu sóbrio idiota! O que você sente é o medo de
você mesmo! Do seu ‘eu’ verdadeiro, que os sóbrios
batizaram de diabo para que você ficasse longe, tivesse
medo, visse como algo profano. Seu tolo! O dia que você
incorporar seus demônios, o dia em que você
compreender que o diabo é você, nesse dia então poderá
dizer que é o homem mais poderoso do mundo, porque
então o mundo, humildemente, vai aninhar-se
finalmente na palma de sua mão. A partir desse dia,
descobrirá que tudo está ao alcance da mão, mas os
sóbrios lhe adestraram para acreditar ao contrário.
Basta ser um pouco inteligente para perceber quem sai
ganhando com essa farsa. Criaram tantos fantasmas no
percurso entre sua mão e a coisa desejada, que não é de
estranhar que a imensa maioria dos sóbrios não
consegue mais levantar os braços, tirar as mãos dos
bolsos, da segurança dos bolsos. Saiba, não existe
empecilho nenhum entre você e a coisa desejada, pegue-
a! Caralho, pegue-a! Um dia vou entender esse mistério
do mundo sóbrio; de jogar fora a força e ficar com tudo
que é débil, fraco, anêmico e patético. Vendo por esta
ótica, não posso deixar de achar divertido todo esse
medo do ‘diabo’. Como já disse, os sóbrios me divertem
muito. Bom, minha garganta secou, bebamos vinho!
Vinho sangrento, há,há,há... vocês sóbrios são tão
idiotas que têm medo de sangue, mais que isso, o usam
como um apanágio terreno. Sangue é coisa ruim, lembra
a falta de ‘alma’, esta sim, é coisa boa, não tem sangue.
O fogo por sua vez é a característica do diabo, do
inferno, no entanto imaginem o planeta sem o Sol!
Simplesmente não haveria vida na Terra. Sempre
imagino uma imensa ‘alma’ suspensa no espaço
‘aquecendo’ as ‘almas’ dos sóbrios. Sou fogo e sangue
meu jovem! Meu sangue ferve em minhas veias
embriagadas! Por isso danço muito e faço muito sexo.
Tenho também a minha imaginação, este é outro
delicioso vinho! Ah, minha imaginação... o que eu seria
sem ela? É mais uma das delicias a quem dou meus
instintos. Crio lugares fantásticos para meu deleite, vou
lhe apresentar alguns, se estiver mais calmo. Venha
comigo. – Epaminondas encaminhou-se à porta da sala
e Tito reparou que seu aspecto já não era tão assustador,
o negão apenas mantinha dois imensos chifres e a parte
inferior de seu corpo continuava peluda, os pés
continuavam fendidos em patas de bodes. O anfitrião se
desfez do roupão, pegou a taça de crânio com vinho e
saiu pela porta nu, com seu imenso pênis pendurado
num balanço despreocupado. Tito saiu logo atrás.

****

- Meu Deus, o que é isso! - exclamou o rapaz diante da


paisagem demoníaca.

- Não é bom blasfemar por aqui – divertiu-se


Epaminondas. Na escuridão, os dois estavam diante de
um imenso mar. Um mar de sangue. As ondas
levantavam e quebravam à beira da praia gerando
brumas vermelhas. A areia era extremamente amarela, e
no mar pululavam ilhas, ilhas de fogo! Algumas
levantavam labaredas extremamente altas, talvez
quilômetros de altura, que conseguiam iluminar a orla o
suficiente para discernir-se claramente as cores. Tito
estava petrificado.

- Isso... isso é o inferno? – perguntou tentando não


vomitar, nauseado pelo cheiro de sangue.

- Para um sóbrio sim. Mas, isto aqui é minha escuridão,


meu sangue, meu fogo, meu lar! Olhe tudo isso meu
garoto, é aqui que danço minhas danças mais
demoníacas! – dito isto Epaminondas começou a
dançar, a dança foi tornando-se mais frenética e em
seguida o demônio correu para o imenso mar vermelho
pulando e mergulhando nas ondas, imprimiu então
fortes braçadas até sumir na imensidão. Tito tremia de
pavor e não conseguindo mais segurar, vomitou vinho
naquelas areias amarelas. Sim, ficou aliviado, era vinho,
nada mais. Tentava agora se concentrar para escapar
daquela ‘viagem’; sabia que tinha fumado algo
extremamente poderoso e que aquele vinho do crânio
também tinha gosto estranho, uma coisa era certa,
estava profundamente drogado. Mas algo então chamou
sua atenção, o calor aumentara muito, então olhou para
o mar novamente, e para seu espanto, como se fosse
possível espantar-se mais, o oceano de sangue agora era
um imenso mar de chamas que iluminava quase toda a
escuridão. No meio do mar uma gigantesca silhueta
humana de fogo se ergueu e quanto mais se aproximava
da orla mais terrível era seu gigantismo, chegando a
ponto de clarear toda a escuridão. Uma gargalhada bem
peculiar fez Tito reconhecer a terrificante figura. Já não
havia mais o mar de fogo, todas as chamas estavam
concentradas no gigante. O rapaz se deixou cair sentado,
vencido pelo paroxismo da bizarria. Já não tinha mais
nada na cabeça, apenas observava como um autômato.
Conforme o monstro se aproximava ia diminuindo de
tamanho, chegando à frente de Tito no seu tamanho
normal. Era Epaminondas no seu aspecto mais trivial, e
só não estavam em completa escuridão porque este
deixara um rastro de fogo atrás de si. Deu a mão ao
rapaz que a segurou tremendo, Epaminondas levantou-
o e lhe disse: - Venha, quero lhe mostrar outro lugar,
você merece um descanso – Tito começou a andar com
um passo trôpego, quase não se agüentava nas próprias
pernas; observou, porém, que seu anfitrião caminhava
com passos firmes; sim Epaminondas não estava
embriagado. Pensou que talvez estivesse no único lugar
onde isto pudesse ser possível. Por ironia, quem estava
totalmente embriagado, ou mesmo drogado, que é uma
forma de embriaguez, era ele Tito. Na sua ‘viagem’
então, raciocinou num lapso, de que Epaminondas
deveria ser um homem infinitamente mais forte do que
ele, posto que levava sua embriaguez aos sóbrios, até
mesmo a impondo como seu modo de vida. Já Tito, no
mundo da embriaguez ‘epaminôndica’ portava-se como
um ‘embriagado sóbrio’ – Aqui não passo de um
drogado medroso, não passo de um merda! – pensou.
Realmente não podia deixar de sentir admiração por
aquele estranho demônio. Os dois então caminharam
por um deserto em plena escuridão, iluminado
parcamente pelo rastro de fogo que agora era bem
diminuto. Contornaram uma montanha muito alta e ao
terminarem de fazê-lo, Tito vislumbrou uma paisagem
noturna que o deixou mudo de tanta beleza. Sete
imensas luas refletiam uma claridade intensa; esse
clarão derramava-se sereno em outro mar, porém, este
era calmo e de águas transparentes. As águas eram tão
límpidas que era possível ver com clareza as areias
brancas no fundo, bem como, os imensos peixes
prateados serpenteando em suas trajetórias a esmo. Os
peixes refletiam aquela claridade serena e ficavam mais
graciosos quando de seus saltos para fora da água; eram
saltos lentos e alegres, como se estes animais aquáticos
quisessem sorver toda a paz daquele clarão; parecia
mesmo que havia uma cumplicidade surda entre eles e
aquelas maravilhosas luas. O endiabrado então começou
a correr na direção daquele calmo mar e o rapaz não
pode conter um riso, ao ver aquela silhueta negra e nua
no contraste fantástico daquela luz. Não se conteve e
começou a tirar rapidamente suas vestes; uma vez nu,
correu também para aquelas águas transparentes.
Entrou correndo e se atirou, sentindo o frescor delicioso
daquele misterioso e diáfano mar. Agora ria como uma
inocente criança, pulava, mergulhava, divertia-se; olhou
para Epaminondas, este ria às gargalhadas e o reflexo
prateado das milhares de gotas no corpo negro daquele
velho diabo lhe davam um aspecto de dragão, um alegre
dragão das águas. – Venha comigo – disse, e mergulhou.
Tito fez o mesmo. Epaminondas nadava feito um peixe
imerso naquelas águas, Tito procurava imitá-lo e com
alegria constatava seu sucesso. Reparou com calma
naquelas areias tão brancas, passando-nas suavemente
sua mão; um cardume de imensos peixes prateados os
acompanhava e quando olhava para cima podia ver
claramente as sete luas, sete luminárias de serenidade.
Estava feliz, numa felicidade nunca sentida; estava tão
feliz que nem precisava pegar ar na superfície, como se
ali sempre tivesse sido seu lugar. Sua fadiga ficou para
trás, e agora ele serpenteava como uma enguia,
levantava a areia por onde passava e apostava corrida
com seus amigos peixes. Nadou e brincou até cansar
novamente. Ao retirar-se das águas, reparou que o
negrão descansava sentado à margem. – E daí garoto! –
saudou-o Epaminondas – que achou deste lugar,
gostou?
- Você está brincando! Nunca vi nada assim, tanta
beleza e tanta paz.

- Pois este também é meu lar, sabia que ia gostar. É


sereno. Também gosto. Porém, não sou homem de me
acomodar. Sou feito também de sangue e fogo! Embora
tenha me parecido que este aspecto lhe perturbou
muito. As pessoas não nasceram para ser espelhos creio
eu, por isso esse seu pavor com o desconhecido; não
posso fazer nada. Gosto das pessoas que são pontos de
partida. Sempre são as mais interessantes, aonde vão
chegar? Ninguém sabe, nem elas mesmas, não raro
perdem-se para sempre; todavia, não se conformaram
com essas embalagens às quais teriam de vestir. Sou
sim, meu filho, sou estas águas calmas e límpidas, mas
também sou sangue e fogo. Neste exato momento você é
um hóspede da minha imaginação. Como havia lhe dito,
sou um homem de muitos lares, e acaso não estaria eu
em casa quando crio? A criação é a chama da existência.
Enquanto vocês sóbrios freqüentam os supermercados
das idéias, eu crio. É muito mais divertido, e eu adoro
me divertir, como, é óbvio, você já notou.

- Você me deixa totalmente confuso, quase que não


quero mais vestir minhas roupas. -Tito então ficou com
um ar melancólico – quase que não quero mais vestir a
mim mesmo, a minha própria carapuça. Olhar para tudo
isso e retornar para o dia a dia concreto e violento.
Quem sou, afinal? Serei aquele tolo do dia a dia? Serei o
tolo do ramerrão profissional? Mas o pior é que... eu não
saberia fazer outra coisa. Uma vez você disse que os
sóbrios se acovardavam na sua condição por não terem
para onde ir, puxa, nunca uma carapuça me serviu
tanto.

- Se não pode ser você mesmo, seja o que você faz, que
remédio? Já lhe disse uma vez que não tenho pendores
para mestre, então não tente me seguir. Cada um é cada
um, de minha parte sofri uma grande ruptura com o
mundo lá fora e fiz deste limão uma laranjada! É da
minha índole, gosto dos desafios, quero sim ver quem é
mais forte do que eu. Nesta queda de braço sou mais eu.
Vivo na sombra, poderia despedaçar um sóbrio pegando
em seu pé e o puxando para baixo, para a escuridão;
seus gritos alucinados poderiam se fazer escutar em
todo o Planeta! Todos os demais, os ‘irmãozinhos no
infortúnio’ viriam em seu socorro, mas bastaria que eu
botasse meu rosto para fora e os fitasse com meus olhos
de fogo para que todos saíssem em disparada e
passassem o resto da noite agarrados em seus livros-
frauda. Agarrariam-se a todas essas chupetas que os
homens-nenês recorrem quando vêem fogo! Gosto de
fazer ‘buuuu’ e vê-los correr. Quem pode com meu fogo?
Cuspo fogo. Ejaculo fogo. Que sóbrio poderá comigo?
Minha imaginação desbrava mundos inimagináveis, vôo
acima de céus vermelhos, amarelos e de cores que ainda
não foram inventadas; assumo tamanho impensável,
engulo o universo. Não foram criadas ainda medidas
que possam mensurar o tamanho de minhas asas. Vejo
coisas com o lado de dentro do olho! Coisas
inimagináveis que só eu crio. Isto que você está vendo
não é nada, é só o que posso lhe mostrar sem que você
pire total! Como poderia levar um sóbrio para dentro da
minha imaginação sem enlouquecê-lo ou matá-lo?
Ademais, não tenho propensão a Vergílio. Este inferno é
só meu. E sendo meu, não é inferno, é paraíso! Meu caro
sóbrio, esse caminho não posso seguir por você, se não
tem condições de trilhar, refugie-se no dia a dia e era
isso. Reze com os demais e me esconjure, tenha medo
do escuro porque é lá que habito. E quando ver minhas
encarnações em pedra, papel, tela, seja lá como for,
apenas tenha a presença de espírito para dizer: - Porra,
mas esse cara está muito bonito com esses chifres
pagãos maravilhosos!

- Você acha mesmo que eu não passo de um sóbrio


irrecuperável não é? – disse Tito com visível desalento.
Epaminondas sorriu e prosseguiu: - Você é o que vocês
chamam de ‘um homem de bem’; sei muito bem da sua
tortura moral por causa daquelas mortes. Não tente me
seguir, insisto. Sou um homem instintivo, sou o homem
que vocês chamam de mau. Mato sem remorsos. Mato e
vou tomar vinho. Se você não tem isso nas entranhas,
aconselho a parar de tentar ser uma coisa que não é. E
daí? Se for no girar da roda morta dos dias sóbrios que
você pode fazer sua casa? Não sendo um embriagado o
que você vai fazer? Forçar a sua natureza? Mas meu
caro, se você entendeu alguma coisa que eu disse,
deverá compreender que é da Natureza que estou
falando. Minha natureza é assim e a sua é assado, não
nesta ordem, he,he... sou a Natureza pura! Só sei ser o
que sou, não sei ser outra coisa! Nem conseguiria
mesmo que quisesse. Sou instintivo demais, instinto é a
Natureza, irmão! Nem no mundo sóbrio se pode
eliminá-la. É impossível. Mas podem sim anatematizá-
la, dizer que é corrupta, que é o que de pior eles têm. A
Natureza é o diabo! Há de ser combatida com seus
flagelos espirituais e a alma invisível e santa deverá
tomar o lugar da Natureza! Há,há,há... mas isso é
impossível! Com isto só podem distraí-la, os sóbrios
precisam distrair a Natureza para que a roda da
civilização continue girando. A economia de mercado,
esperta, usa a Natureza para vender seus produtos e até
do tesão da rapaziada eles já se apossaram. O
interessante é que essa vontade sub-reptícia de eliminá-
la ou então usá-la para fins de negócios, está fazendo
com que a destruição do Planeta seja iminente. O sóbrio
tem o vezo de detestar qualquer vida que não seja a dele
próprio. Nisto são sempre egoístas, criaram até
doutrinas para poderem tolerar-se; numa delas a
Natureza leva a culpa pelos seus ‘pecados’. Meu irmão,
os sóbrios adoeceram a filosofia para poderem arranjar
culpados pela sua existência anêmica, até isto fizeram.
Sob esse verniz de civilização existe uma tal podridão
existencial que toda vez que ocorre uma pequena
ruptura nesse frágil tecido, sentimos um fedor
insuportável. A civilização é uma tentativa, nada mais.
Imagino que se fosse rasgado repentinamente esse
contrato social, todos mostrariam as verdadeiras caras,
só então se poderia dizer – Muito prazer fulano, não lhe
conhecia, você era esse imbecil o tempo todo? – a
máscara ‘civilizatória’ é a salvação da grande maioria.
Mas nesse contrato surdo, certos fatores colocam em
risco essa organização. As drogas, por exemplo, exercem
um verdadeiro medo pânico. Toda vez que alguém
acende um baseado am algum lugar, é rompido o elo do
comportamento aceito. Isso me diverte muito! O que
preocupa e gera a repressão dos governos é tão somente
o fato de não poderem botar suas garras famintas nos
negócios gerados pelo vício; ou você acha, meu amigo,
que os comandantes sóbrios não querem botar a mão, a
título de impostos, nestes bilhões? Uma vez não
podendo, e aí sendo vítima da sua própria moral,
repreende para deixar claro que é ilícito tudo o que não
lhes gera dinheiro para meter no cofre. Ingênuo é quem
pensa o contrário. E aí tem de se entender, pois os
sóbrios são criados e doutrinados para serem ingênuos.
Penso que o efeito secundário dessa repressão é o fato
do rompimento irreverente com o compromisso sóbrio.
É, irmão, os caras têm verdadeiro pavor de que numa
‘viagem’ o sujeito enxergue a sua condição de
prisioneiro e arrebente com seus grilhões. Se a moda
pega... bem, mas não creio que a grande maioria possa
ter condições de olhar e ver. A maioria não consegue
enxergar, o sóbrio é adestrado para esbarrar sua vista na
muralha da Razão; e essa herança socrática é cultivada
hoje por seus sucessores. Gosto de brincar com a Razão
como uma criança que se diverte pulando pequenos
muros. Não, meu filho, não me siga, pelos portais que
passo você não poderia cruzar. Cada um carrega a si
mesmo por baixo da roupa diária, e eu, eu carrego um
turbilhão! Sou uma bomba atômica, e esta é toda a
minha alegria. Não tenho alma, espírito, nada... sou
Epaminondas, o embriagado... sou o diabo! Há.há,há...
– a gargalhada do negrão ecoou por todos os lugares
assustando Tito; era como se o risonho estivesse em
todos os cantos ao mesmo tempo, no céu, na areia e no
mar. De todos os lados vinha aquele som estrondoso; o
rapaz tapou os ouvidos para não enlouquecer e não
agüentando mais soltou um grito alucinante. Estalou
então os olhos e viu Epaminondas rindo sentado em seu
indefectível trono. – Caramba! – exclamou, olhou para
os lados e constatou que estava na sala mística dos
demônios, dos círios e dos incensos; estava deitado no
velho sofá e a luzes das chamas brincavam na fisionomia
alegre do anfitrião. Tito fechou os olhos por alguns
instantes e reminiscências de sua ‘viagem’ lhe surgiam
como ‘flaches’; via fogo, águas cristalinas, peixes
dourados saltitantes e o demônio de fogo. – Cacete! O
que foi tudo isso? – disse enquanto reabria suas
pálpebras pesadas.

- Meu lar, filhote! – respondeu um alegre Epaminondas


– Você conheceu algumas dependências da minha
imaginação, uma parte ínfima é verdade; jamais poderia
expô-lo a mais que isto, você enlouqueceria ou até
mesmo poderia morrer. Sua mente é bastante singela e
destreinada, é viciada na trivialidade do pensamento
cotidiano, seria como jogar uma bolinha de papel pela
boca de um vulcão.

- Mas estou realmente fascinado, puxa vida! Que


experiência louca! Nunca imaginei que pudesse existir
algo assim. Existe pelo menos alguma esperança de eu
poder conhecer um pouco mais?
- Ah! A esperança! – exclamou o negrão – isso é bem
sóbrio da sua parte. Meu filho, esse negócio de
esperança me embrulha o estômago! A esperança foi
inventada pelos sentados. Se vocês tivessem condições
de entender melhor as metáforas eu lhe contaria a
estória da caixa de Pandora! Os pré-socráticos eram
sábios. Mas quem tem ouvidos para as coisas bem ditas?
Preferem tapar os ouvidos e esperar, esperar e esperar...
enfim, é a esperança. A esperança é a melhor desculpa
para não se sair do lugar; fodam-se os sóbrios e seus
ensinamentos mortificantes. Para os antigos gregos esta
senhora, a Esperança, era alguma coisa a ser evitada
como uma peste! Mas afinal, eram pagãos! Dançavam
para celebrar a alegria de estarem vivos! Os sóbrios por
sua vez precisam de avatares que justifiquem a agonia
de estarem vivos. Que inversão hein? Não é de estranhar
que invertam interpretações para que possam repousar
nelas. Não, querido, não conheço essa tal esperança,
quando quero algo estendo a mão e pego; se não estiver
ao meu alcance, caminho, me aproximo e pego. Quem
pode me impedir? Os fantasmas que pululam no
caminho? Mas meu caro, eu não acredito em fantasmas!
Acredito em demônios, mas estes são meus; fantasmas
são obstáculos que sinalizam de fora para dentro,
impedindo a ação. Demônios são soldados que saltam
de dentro para fora, são as próprias ações! Portanto,
quem tiver medo de fantasmas que se agarre à
esperança. Eu não, eu sou formado por milhões de
demônios de fogo, os demônios da minha singularidade,
he,he... contra estes ninguém pode! Digo isto porque se
você quer alguma coisa, faça! Jogue fora esta palavra,
‘esperança’, e realize-se na ação! Outra coisa que sempre
me intrigou nos sóbrios é a essa tal ‘felicidade’. Todos
procuram a felicidade, institucionalizaram esta senhora,
sim, é tratada como uma senhora matrona sempre
distante, mas de braços abertos para seus filhinhos que
um dia chegarão... ou não. Para serem felizes cometem
um crime lesa-majestade, ou seja, ‘expulsam seus
demônios’, ou melhor, botam-nos para dormir; é isto
que eu chamo de ‘vida santa’ ou ‘assepsia da alma’.
Realizam uma verdadeira faxina existencial, jogando
fora a si mesmos, como se com isto pudessem, enfim,
sedimentar o caminho para a felicidade, a senhora
matrona. Somos um amontoado de sentimentos,
pensamentos, atitudes, riso e choro, enfim... rancores,
ódios, alegrias, vitórias e derrotas. Somos humanos não
é isso? Pelo menos é o que dizem; então que tipo de
assepsia poderá passar sua régua niveladora para
reduzir um ser tão complexo deste a alguma coisa vazia,
mas ‘feliz’? Porém, os sóbrios vestiram esta senhora com
vestido azul celeste, e agora ela paira flutuando no nada
fazendo seus sinais carinhosos e conclamando: ‘venham,
venham meninos, a mamãe Felicidade quer abraçar
vocês eternamente’. De minha parte, penso que esta
dama rivaliza com a ‘esperança’ na intenção de manter
as pessoas sonhando com o nada, são duas velhas
enganadoras, mas sem as quais os sóbrios não podem
viver. Não sou ‘feliz’, sou apenas eu, na alegria e espanto
de mim mesmo. Amo meus demônios como animais de
estimação, eles são a minha força, minha alegria, são o
que sou! Amo suas danças infernais espalhando seus
amáveis rastros de fogo pela minha existência
embriagada. São a minha imagem e semelhança, seus
cornos são os meus, suas risadas despudoradas são as
minhas, são os meus próprios instintos em ebulição!
Ah... que delicia! Sabe garoto, se me atiram uma pedra,
eu a abocanho no ar, mastigo e engulo; ela é alimento,
então, estou mais nutrido e mais forte. Que me atirem
mais! Sou um homem faminto, aquilo que machuca o
sóbrio é almoço para mim. As pessoas precisam abrir
mão delas mesmas para serem ‘felizes’; precisam
enquadrar-se no padrão ‘felicidade’. Nunca consegui
entender isso. É como convencer um cravo de que ele só
será feliz tornando-se uma rosa. É extremamente difícil
enfiar na cabeça de um sóbrio que a alegria de existir
não está nos padrões de suas crenças, e sim, na própria
existência! A singularidade deveria ser a meta a ser
almejada, porém, é o comportamento de rebanho que
justifica sua patética existência. Bem, não é de estranhar
então que nessa corrida de galgos, a felicidade seja o
coelho. Já a alegria de existir se faz sentir numa grande
gargalhada, debochada e livre! É o riso do diabo! – dito
isto, Epaminondas soltou uma de suas melhores
gargalhadas – Este riso incomoda tanto que é atribuído
ao diabo! Há,há,há... são uns fodidos esses sóbrios, mas
não me divertiria tanto se eles não existissem!

- Sabe – disse Tito – você me confunde muito... vivo


entre os chamados ‘sóbrios’ e até mesmo sou um deles.
Mas quando escuto você falar, gostaria de não sê-lo.
Sinto-me um merda, mas olho para os lados e... acho
que não teria para onde ir... isso esta começando a me
incomodar.
- Existe um ditado, meu caro branquelo, que diz: o que
não tem remédio, remediado está. Não tente avançar em
terras desconhecidas, se não nasceu para desbravador.
Poucos são os que têm realmente condições para esta
viagem fantástica e colorida que os recônditos negros
proporcionam; se você não tem demônios por dentro,
tenho pena de você, porém não force a barra. Siga o
script oferecido e vá atrás da senhora de azul, seja um
bom reprodutor ‘civilizatório’ e fique tranqüilo, se você é
uma função, paciência! Mas nunca tente me imitar ou
coisa parecida. A imitação é coisa de ‘alma’ e essas
mazelas das quais detesto; sou minha singularidade, isto
não pode dar certo para um outro e quem procede assim
é um picareta! Quem quer seguidores, se for honesto,
sabe que é um picareta! Viverá com seu dedo apontando
para a ‘felicidade’ e fazendo sinais para que o
acompanhem pela sua estrada santa e sábia; a muito
custo eu poderia deixar de imaginar que esse serzinho
tolo, porém metido a esperto, não queira dinheiro em
troca. Este descobriu rápido o perfil do ente ‘sóbrio’.
Sim do ente, ou melhor, doente; os metidos a espertos
são aqueles que desvendam a doença sóbria e se
aproveitam dela. Não é o meu caso. Se você está
procurando um guru ou coisa parecida, saiba irmão,
este não sou eu. Tudo o que tenho para lhe mostrar é a
minha própria anatomia e talvez lhe perguntar se você
possui uma; se tiver, bem, então você tem uma
individualidade e poderemos festejar uma amizade dos
diabos! trocarmos idéias, leituras de mundo, enfim... se
não tiver, a culpa não é minha. Você é um sóbrio, foi
criado para ficar longe de você mesmo... longe do diabo!
Você está confuso porque nunca pensou. Este nosso
breve convívio talvez tenha lhe ressuscitado uma
qualidade que estava morta; a de pensar. Não sei se é
isso, tomara que seja, e tomara também que você seja
daqueles que consegue pensar sem as muletas sóbrias,
porque do contrário, estará perdido. Agora, se me
permite, darei mais um gole neste delicioso sangue da
videira... ahhhh.... o falerno... sabe, minha imaginação é
também um vinho delicioso e poderoso, é ela que me
conduz a lugares perdidos no tempo. Com minha
imaginação, mergulho de cabeça no DNA da História e
então bebo o falerno com os romanos quando eu quero.
Visito pérolas da antiguidade: Alexandria, Babilônia,
Etioquia, Cartago... enfim, vou onde me dá na telha; por
que não? Caminho sob o sol escaldante da Mesopotâmia
entre assírios e caldeus, só em minhas viagens ando sob
o Sol; viajo com os fenícios pelo Mediterrâneo
barganhando mercadorias pelas costas da península
imperial. Vejo coisas: vi Aníbal abrir mão de mudar a
história do Ocidente ao dormir às portas de Roma. Vi
Lucio Séptimo enfiar sua adaga covarde nas costas de
Pompeu; vi também um vil Ptolomeu entregar a cabeça
do Imperador a César. Vi o legado romano negociar com
os aqueus: quod autem isti dicunt non interponendi vos
bello... sim, vi os papas medievais e suas horrendas
bulas assassinas! Vi pessoas que foram torturadas e
queimadas naquelas fogueiras que reduziram meu
amigo fogo a mero carrasco a serviço de idéias funestas.
Humilharam o fogo! Atearam-no contra o pensamento
livre! Até isso fizeram aqueles covardes bolorentos e mal
intencionados! Escondendo-se atrás de seus símbolos,
mas sempre com suas mãos nos sacos dos reis. Por isso
não me admirei quando Felipe IV, codinome o Belo,
mandou dar um ‘susto’ no papa Bonifácio VIII, com isto
matando-o e arejando as finanças de França. Sim,
garoto, eu vi. Vi com quanta ‘santidade’ foram tratados
os africanos! Não é a toa meu caro, que hoje o neo-
paganismo corporativo encontre o terreno fértil para
vender seus novos deuses de consumo, ou seja, as
grandes marcas. Essa é uma massa que já vem sovada
há centenas de anos. É a eterna história da esperteza;
até a filosofia deixa de ser o pensamento perscrutante
para se transformar em algo comprometido e doente,
exalando o mau hálito daqueles que a morderam. Não
vou nem falar em escolástica, urgh! Que nojo! Para
mim não há dúvidas, a História é a história da esperteza,
e só há espertos se há submissão, e só há submissão se
há crença. Crença em qualquer coisa, qualquer coisa que
as pessoas julguem ser maior que elas; veja que terreno
fértil para oportunistas! Adestradas para imaginar que
não são nada, obviamente vão acreditar em quem disser
qualquer merda metafísica! Espero pelo menos que você
seja um pouco mais esperto e aprenda uma equação:
não é porque alguém pensa azul que terá o direito de
convencer os outros de que as outras cores são ruins. Se
eu penso vermelho, como poderei ser ‘feliz’ pensando
azul? Impossível. Sempre imaginei o ser humano como
um ponteiro em um dial de rádio, procurando sua
musica preferida de estação em estação, quando a
encontra enfim, pára e curte com prazer. Assim é
quando enfim sintonizamos a nós mesmos! Quem, que
picareta, poderá nos tirar a delícia da existência em nós
mesmos? Acho que é o que Epicuro chamava de
ataraxia! Os sóbrios não gostam de sofrer, não querem
morrer, então inventaram o Céu, a Alma e o caralho a
quatro! É uma infinidade de cores se iludindo com o
azul! Mas como pode existir uma cor melhor que a
nossa, só nossa, seja ela qual for? Por isso é que eu
bebo! Um brinde! Que vinho delicioso! Hummm... você
já pensou quantos dragões foram convencidos de que
são ovelhas? Quantos lobos vivem como cordeirinhos? A
sociedade sóbria assim se protege deles. A sociedade
tem medo, então cria medrosos, é natural. Porém,
irmão, lhe digo: quem é diabo que se assuma! É a hora
do diabo! É a hora de rasgar o véu azul enganador e
deixar os autênticos voarem finalmente com suas
imensas asas de morcego e seus risos ensurdecedores
até atingir seu próprio tamanho. É hora de dominar o
mundo! Chegou a era dos risos! Chegou a era da dança!
Chegou a era do sexo! Chegou a era do pensamento livre
e ardente! Chegou a vez dos demônios risonhos! Viva a
embriaguez dos vivos! E que os mortos continuem
sóbrios. Os vivos sabem que este deleite não é eterno
por isso curtem o prazer da vida! Os sóbrios estão
mortos e seguirão mortos pela eternidade lá no céu
assexuado deles, que deve ser chato pra caralho, diga-se
de passagem! Se o inferno é aqui, então meu querido
vem e abrace aqui o negão, porra! Há,há,há.... o que
dizer da embriaguez do riso! O que pode ser mais
gostoso? Rir, rir de verdade! Demolir o mundo com uma
risada. Não sobrar pedra sobre pedra e então
reconstruirmos este à nossa imagem e semelhança. Nos
vermos em pequenas coisas, e que estas coisas reflitam a
nossa vontade; que tudo tenha nossa impressão digital;
pois é, ou você assume o seu mundo, meu caro, ou o
deixa a mercê dos picaretas da esperteza. Não há meio
termo. Sempre temos uma escolha, eu fiz a minha! Vivo
na sombra, onde é o meu lugar, não existem meios de
me doutrinar, me cooptar, me convencer... então passo a
ser o abominável, o inimigo, o adversário, o diabo!
Quanto mais adjetivos encontram para me jogarem,
mais feliz eu fico! Se existe alguma coisa que me provoca
uma alegria incontida é o ódio dos sóbrios para comigo;
desde menino me diverti com isso. Quando eu era
garoto sofri preconceitos na escola, pela minha cor. Os
meninos brancos vinham zoar comigo, me chamavam
de cara de sapo, essas coisas; fui ficando puto! Eles
andavam em bando, como tinha de ser. A valentia
apoiada no número é o apanágio do idiota; é o sentido
de massa sendo trabalhado para que desde cedo a força
da individualidade seja exorcizada; mas comigo não,
violão! Chamei de canto os pequenos aprendizes de
bestas e avisei: se não largassem do meu saco iria
quebrar os cornos burgueses deles. Eles então se
agigantaram e partiram para a briga, que era tudo o que
eu queria... estavam em quatro e apanharam todos. Bati
mesmo, com raiva; detesto essa gentalha perfumada que
anda em bando para poder imaginar... supor, ser
alguma coisa, mesmo se tratando de meninos idiotas.
Botei-os para dormir de tanta pancada, empilhei-os
envoltos em sangue, para espanto geral da garotada que
assistia a tudo incrédula. Peguei minhas coisas e sai
tranqüilo pelo portão para nunca mais voltar. A partir
daquele dia eu já sabia o que queria ser quando
crescesse: diferente deles. Pois é meu caro branquelo, a
vocação para ser do contra já nasce com a gente. Cresci
enojado com o que via, ninguém queria ser alguém; era
o esforço de um ‘alguém’ para ser um ‘ninguém’. Eram
oferecidos estereótipos, que eram consumidos
avidamente! A garotada mergulhava sua nascente
individualidade nos comportamentos oferecidos, assim
dissolvendo-se na mão daqueles a quem este tipo de
redução interessava. É bem verdade que não podemos
comparar com o que acontece hoje em dia, ministrado
pela economia de mercado. Hoje existe uma verdadeira
fábrica de comportamento, as ‘tribos’ pululam, gastando
uma bela grana para obterem o direito de fazerem
publicidade gratuita de marcas, conduzindo-as nos seus
próprios corpos. Naqueles tempos os interesses eram
outros. Porém sempre houve e haverá interesses por
trás dos comportamentos exigidos pela sociedade
sóbria. O pensamento encaixotado e comprometido de
hoje, carimbado com as marcas das grandes corporações
são a ‘alma’ do comportamento padrão idiota exigido,
não é isso? O pensamento não tem mais asas nem
espada, não rasga mais o véu azul para ganhar o infinito,
para uma vez chegando lá, engoli-lo porque uma coisa
maior que o infinito foi criada, e depois criada uma
outra que engolirá tudo para dar a luz a alguma coisa
esplendorosa nunca antes imaginada pelos mortais;
todos os conceitos conhecidos morrerão aos pés do
novo, que não se chamará novo porque não existirá
denominação para essa apoteose. Só quem voa longe,
muito longe, sabe que o pensamento não tem fim e esta
agonia do querer ir mais e mais só ameniza um pouco
quando se vai com o pensar aos lugares que não são
lugares, às coisas que não são coisas, ao tudo que é
nada, ao encontro do inominável. Quando nos
encontramos, enfim, onde tudo há por criar, inclusive os
conceitos pelos quais poderíamos explicar por onde
estivemos, pois não temos como traduzir em palavras. O
vinho delicioso do pensar! Ahhh, delícia colorida, luz da
escuridão, escuridão na luz, quando o pensar encontra-
se no tesão cósmico do não-pensar; nas alturas das
alturas e nas profundidades das profundidades ao
mesmo tempo! Então explode a bomba atômica da
mente! Estamos onde ninguém nunca esteve, e nem
nunca estará! Estamos a sós no nada! No orgasmo da
criação, na arte que cria a nós mesmos... na imensidão
das imensidões... mas que digo eu? Falo de coisas que
não tem como serem ditas, pois que para elas não foram
criadas palavras! Bom, o negócio então é beber mais um
pouco da alma da uva, hummm... que vinho inebriante.
Vejo que você me escuta atento, pois lhe pergunto
respeitosamente: você consegue pensar? Já ao menos
tentou? Já conseguiu soltar-se das amarras sóbrias que
fazem com que seus pés e sua cabeça fiquem
aprisionados ao cotidiano, tão mesquinhamente
repisado no ramerrão eterno dos dias? Você consegue
voar? Consegue viajar no tempo? Consegue visitar o
futuro? Consegue usar sua inteligência para ler o mundo
que o cerca e sua imaginação para pular por cima dele e
brincar com ele como uma foca brinca com uma bola e
assim até chagar a amá-lo? Responda-me garoto!
- É o que lhe disse, - respondeu Tito - quanto mais você
fala, mais confuso eu fico. Nunca pensei nestas coisas. É
tudo novidade para mim, uma fascinante novidade; mas
nesta confusão na minha mente, tenho certeza de que
talvez não possa mais viver sem este mundo que você
me apresenta...

- Calma lá! – interrompeu Epaminondas – acho que


você não entendeu nada! Este é o meu mundo, você terá
de encontrar o seu. Estes são os meus demônios, são os
meus mares, minhas luas, meus peixes prateados,
minhas orgias! É o meu vinho que aqui lhe ofereço, é o
meu fogo que aquece sua imaginação, é o meu incenso
que lhe inebria! Será que falei para as paredes até
agora? Sou o anfitrião aqui, esta sombra é minha, onde
está a sua? Será que joguei conversa fora quando disse
que não tenho nenhuma propensão a mestre? Vocês
sóbrios são foda! Precisam sempre de alguém que o
conduzam pela ‘espinhosa estrada da vida’, nem que
seja pelo nariz! Será que você não enxerga, isto aqui sou
eu! Não faça com que me arrependa de minha gentileza!
– Tito percebeu que Epaminondas se exaltava, e estava
bastante embriagado para se tornar imprevisível;
começou a ficar com medo, principalmente porque o
negrão levantou-se de seu trono e andava com seu passo
cambaleante de um lado para outro da sala.

- Acho que realmente nunca vou entender vocês! –


prosseguiu Epaminondas – você quis me conhecer, foi
impertinente o suficiente para botar sua carreira em
risco e me procurar; eu fui gentil então e o recebi, mais
que isto, fui buscá-lo em casa, olha que mordomia!
Recebi-lhe em meu mundo, apresentei uma ínfima parte
deste a você, coisa que faço raramente, e você quer levá-
lo para casa! Quando você visita alguém e gosta de sua
casa, o que diz quando se despede? – adorei seu
apartamento, vou leva-lo comigo, se você não rapara... –
É isso que você faz? O que me deixa puto é ter falado
para as paredes este tempo todo; não foi educado de sua
parte não me oferecer em troca um pouco da sua
inteligência. Se o tivesse feito, teria percebido que
estamos falando de singularidade; que uma pessoa não
pode ser outra, que cada um deve encontrar seus
próprios demônios, deve incorporar os infortúnios e as
delicias da responsabilidade de ser quem é. Será que me
expresso tão mal assim? Ou estarei tão embriagado que
enrolo a língua a ponto de não ser compreendido? Não
lhe ofereci um mundo, apenas o convidei para conhecer
o meu. Ninguém pode oferecer mundos a ninguém! A
não ser os picaretas! Já não falamos disso? Ou você...
você... caralho! – Epaminondas parou e fitou Tito, este
olhava para o chão desolado, então se sentou
novamente. Serviu-se de vinho na taça de crânio e
prosseguiu, porém agora em tom paternal – Você não
tem um não é? Não tem um mundo só seu. Você é oco...
é a forma mais acabada de sóbrio; esses filhos da puta
conseguiram! Falei-lhe o tempo todo em demônios, sem
você ter a mínima noção do que pode ser senti-los. Você
é inteiramente um deles! Um homem fabricado para
não ter profundidade; é plano, horizontal e coletivo...
sua mente é condicionada para pagar impostos,
consumir e ter alegrias idiotas. Como não percebi isso?
Por que eu, que sou bom em deduções não deduzi isto?
Que magia, maroto, você tem? Enganou-me direitinho,
caralho! Diga-me por que quis tanto ter comigo? Logo
você, um sóbrio da ‘gema’? O que viu em mim, porra?
Por que não me teme como todo mundo? Que parafuso
esqueceram de apertar aí?

- Não sei – Tito tinha agora lágrimas que escorriam


pelos olhos que teimavam em ficar cravados no chão,
estava arrasado – você é diferente, é bom no que fez e
no que faz; é valente, foi ótimo policial, tem ótima
dedução em crimes, fiquei fascinado então pensei: -
Puxa, se eu fosse assim! Que belo profissional eu seria!
Queria realmente um mestre, um professor da sabedoria
policial. Queria reverter todo o conhecimento que
pudesse angariar com você, para a minha profissão.
Mas, tudo o que você me disse... esse negócio de
embriagados e sóbrios, isso tudo me confundiu... ao
mesmo tempo que me dava conta de ser um sóbrio, me
apaixonava por esse seu mundo embriagado na sombra.
Tudo aqui é delicioso, nunca senti nada parecido, se
pudesse não sairia mais daqui... do seu mundo. Você diz
coisas que despertam minha curiosidade, me mostrou
uma ínfima parte do seu mundo, mas foi o suficiente
para que eu percebesse de que nunca poderia ter o meu.
Sinto um grande vazio. Nunca me senti assim, talvez
porque nunca tivesse olhado para outro lugar; imaginei
que não existisse nada além do que temos para fazer.
Agora, bem, agora estou meio perdido.
- Há,há,há... você se aproximou de mim com intenções
profissionais? Ora, que tolinho! – debochou
Epaminondas – Irmão, peça a Santos para lhe ensinar
sua experiência policial sob a parca luz; peça para
Fidelis lhe ensinar como se ascende na carreira, Fidelis e
seu comando de fancaria! Da minha parte, não tenho
nada a lhe passar a não ser como agarrei nojo a tudo
isso! Mas, esta não é minha intenção, porra! Nunca foi!
Já lhe disse que essa didática toda enche meu imenso
saco negro, que nasceu pra produzir e expelir e não para
aturar. Sou inimigo mortal dos conceitos; estes, na
minha opinião são os ‘anjos sóbrios’; flanam com suas
asas azuis sempre no intuito amoroso de abraçar e então
vestir com sua mortalha azul a tudo que não tem nome,
mas ‘precisa se expressar’. Os conceitos são as carapuças
mortais que voam rodeando como urubus ao inverso,
não querem as coisas mortas, pois são os arautos destas,
querem as vivas, muito vivas, que ainda não se deixaram
capturar para serem dissecadas sob a luz sóbria dos
conceitos inventados. Sim, reconhecem o odor do recém
nascido com velocidade espantosa. Cada ramo de
atividade manobra com seus próprios conceitos, então a
mente do pequeno se submete amiúde a estes e encontra
nisso a própria razão de viver. Ali são apresentadas à
‘felicidade’, ‘esperança’, ‘liberdade’ etc. e humildes, estes
pássaros sem asas aceitam a escravidão com resignação
e alívio, pois quando nasceram tudo já estava inventado,
já havia os conceitos; beijam então as grades que os
aprisionam, na demonstração servil de seu comodismo
existencial. Beijar a mão do carrasco então vira
profissão, e esta tem nome: obediência. Sem obediência
não existe sociedade e sem sociedade não existem
ingênuos e picaretas. Os picaretas são os mais espertos
na lida com conceitos; apossam-se destes rapidamente e
os usam como peças de dominó para conduzir os
ingênuos a outras prisões, talvez ‘mais confortáveis’.
Você, meu caro, é só mais um ingênuo, um sóbrio, que
agora se deu conta disso, que fazer? Evocar seus
demônios? Mas você não os têm! Isso me deixa
penalizado. Pois é meu caro, só os demônios libertam.
Quando evocados eles surgem da escuridão, lascivos,
risonhos e ruidosos... fortes e amedrontadores para tudo
que está estabelecido, botam tudo abaixo! Derrubam,
quebram, destroem! Passam por cima, vão adiante!
formam a corrente poderosa deste rio que é a própria
vida! Instintos! Alegria! Natureza! Singularidade! Força!
Nada pode ser igual ou parecido, são nossos, só nossos!
São os nossos vinhos mais preciosos, nossa melhor
embriaguez! Viva irmão, viva os demônios! A eles
ofereço esta libação! – Epaminondas ergueu então a
taça de crânio, esta transbordava de vinho - Porque os
fortes não conhecem o conceito de ‘força’, isso é uma
piada! A força só pode surgir como produto do próprio
ser, é flor que nasce da própria existência! O resto são os
conceitos-fantasmas para enganar tolos! Meu coração
negro agora transborda de alegria! – bate com força no
peito – sou Epaminondas, o homem da sombra! Sou o
alegre, o exuberante, o exultante, o homem-mundo, sou
o tesudo, sou um homem de pau duro! Sou, sou, e sou,
na alegria inigualável de ser! Como você pôde ter a
ingenuidade de imaginar que eu poderia ser seu mestre
na arte de ser? Ou você é ou não é! Você quer ser
Epaminondas? Mas de que jeito? Quer o mundo de
Epaminondas? Mas de que jeito? Não tenho culpa, meu
irmão, se você foi criado por doutrinas broxas que lhe
ensinaram a não ser. Você é o fragmento de uma imensa
alma coletiva; sozinho não é nada. Quando confrontado
com sua própria solidão sente esse imenso vazio que
está sentindo agora, não é de admirar, mas veja, se você
tivesse algum pendor para diabo, há muito já estaria se
questionando sobre tudo. E se refugiaria
freqüentemente em sua solidão; esse é o momento em
que sintonizamos a nós mesmos e só aí podemos medir
e sentir nossa força e nosso misticismo. Não entenda
mal, quando digo misticismo falo daquele surgido de
nossa singularidade, do teatro que montamos para
representar a nós mesmos a partir de nossa mais
profunda raiz, os rituais são as flores nascidas dessa
raiz. Fazemos isso para expressar a alegria de nossa
existência livre e tesuda! Mas vocês sóbrios não...
Espantam-me, embora eu me divirta em assisti-los, com
seus rituais de mortificações, negação do mundo e da
vida, fico impressionado! Querem arrastar suas vidas
mortas para sempre! Entrarão finalmente no Céu Moral,
e viverão pela ‘eternidade’ sem os impertinentes
instintos, sem as pulsões da vida mais pura e selvagem,
sem desejos, sem nada, assumirão, enfim, em triunfo,
seus papéis de mortos, mas então para sua ‘felicidade’
estarão assim por toda a ‘eternidade’. Poderão exercer lá
toda a sua broxisse existencial, posto que finalmente
esta estará legitimada. E eu rio aqui na minha
eternidade, que não é eternidade, que é este
delicioso aqui e agora em que a fonte cristalina da vida
jorra sem parar. Comecei a descobrir esta delicia de
existência ainda muito pequeno, quando me questionei
por que, justamente quando estava mais feliz eu era
repreendido; diziam que eu estava fazendo ‘arte’; veja aí
que este rótulo tem a conotação de arte como coisa
ruim, mas enfim, os sóbrios estavam trabalhando na
minha doutrinação; diziam também que eu tinha ‘outro
por dentro’ e finalmente que ‘cabeça vazia é a oficina do
diabo’, leia-se ‘cabeça vazia’ como uma definição para os
pensamentos autônomos, que os sóbrios suspeitavam
não tirar proveito algum. Mas aí foi demais! Juntei as
peças - arte, outro por dentro, oficina do diabo e daí
concluí: se me repreendem justamente em meus
momentos de alegria, se para ser igual a eles tenho que
abrir mão do melhor de mim, então esse ‘outro por
dentro’ só pode ser eu mesmo, em meus momentos mais
lúdicos e que não interessam a eles, pois destes não
pode tirar proveito sua sociedade. Foi com algum
espanto então que percebi que me ameaçavam com a
minha própria imagem refletida, embora deformada,
para poderem assustar-me. Nesse dia eu desvelei a face
do diabo! Percebi também porque a arte assusta tanto os
sóbrios. Nesse dia eu sacudi todos os farelos restantes
do mundo desfeito e assumi meu papel de demônio!
Assumi a mim mesmo! São rupturas, meu amigo,
precisamos romper com muitas coisas se quisermos
descobrir nosso próprio tamanho; e você, pergunto,
quais preconceitos já rompeu? Já se olhou no espelho
sem máscaras? O que viu? Pois é, eu desde cedo tive de
ensinar-me as coisas de mim! Um autodidata de mim,
na delicia da autodescoberta alegre, zombeteira e
demoníaca! Tive de remover com cuidado as cascas das
feridas impingidas pelos sóbrios; estes tutores
fantasmagóricos colaram na minha pele seus rótulos e
conceitos para que eu não saísse nunca mais do mesmo
lugar, mas, romper as grades dessas prisões é a delicia
das delicias! É impossível prender o criador na jaula do
criado, portanto, deixe-me lhe oferecer estas mal
compostas que me ocorrem agora:

De repente um estrondo, uma explosão!

Treme Céu e treme Chão

É pânico na multidão!

Mas ouça... aos poucos se acalma

E vai virando canção

Mas, não se assuste não

É só minha imaginação, num momento de criação

É só o que não era...

Assustando as coisas...

Que já são...
Tito olhava para Epaminondas como que hipnotizado.
As danças de ciganas daquelas palavras embriagadas
acalmaram a angústia do rapaz, que se sentia totalmente
oco. Tito sentia uma espécie de catarse e vergonha, não
sabia ao certo por que, porém sentia-se envergonhado
por não poder oferecer alguma troca com Epaminondas.
Não era também de estranhar que o negrão se exaltasse
algumas vezes com ele, pois parecia realmente meio
patético e fez colocações patéticas, era um sóbrio, agora
tinha certeza disso, e esta verdade crua o incomodava,
não queria sê-lo! Porém, por mais que olhasse para
dentro de si não encontrava nada. Um demônio quem
sabe? Unzinho! Até mesmo meio inofensivo, qualquer
coisa afinal, mas não, nada! Sentia que era e não era;
quem é Tito? Pensava. A sensação que experimentava
era de um bonifrate que de repente dá-se conta das
cordas que provocam seus movimentos e também de
que se as cortasse cairia no chão feito um amontoado
inútil de ripas de madeira. Agora, a força da presença do
velho diabo quase o esmagava contra a parede da razão
sóbria. Perdido, começava a sentir um leve bafejar de
desespero: quem é Tito? O que fazia ali? Por que estava
ali? Epaminondas acendeu serenamente um charuto,
colocou seu chapéu na cabeça e deu uma profunda
baforada – Não bebe mais, irmão? Este vinho está
delicioso – Tito rejeitou com um sinal negativo
qualquer, estava enjoado e totalmente perdido, a bebida
só complicaria mais as coisas. O negrão então
continuou: - Logo mais realizarei algumas práticas
infernais, mas gostaria que você não estivesse presente,
desta vez não, você não está em condições, não encontro
mais aquela alegria instintiva em seus olhos. A tristeza e
a melancolia não são bem vindas aqui, porém, não vou
ser cruel, pois a crueldade do diabo é puro preconceito,
he,he... se não tivessem lhe embaçado a visão com seus
preconceitos, talvez você tirasse de letra essa depressão.
Mas não é o caso, como eu disse, você é um sóbrio da
gema, é um produto finalizado para ser função, nem
demônios têm, caralho! É asséptico, tem alma, é branco
e meio transparente por dentro. Eu não! Sou feito de
sangue e carne! Sou carne! Amo o cheiro da carne! Do
sangue! Cuspo, ejaculo, defeco, mijo, peido, tenho
excreções corporais, transpiro pra caralho, irmão!
Tenho bafo de trago, tenho cheiro de humano, sou
Natureza, tenho fome, sede – e como! – gosto da
embriaguez dos sentidos; adoro sexo, adoro o cheiro das
carnes generosas e transpirantes de perfumes excitados,
amo a vida, amo estar vivo, amo o aqui e o agora. Sou o
causador, o mentor, o demolidor, o pensador de mim
mesmo! Também o criador de mundos, o engolidor de
demônios brincalhões, o festeiro, o homem que celebra;
amo as orgias, amo os sátiros e as ninfas! Amo o vinho,
sangue da existência embriagada! Tenho pêlos, tenho
dentes caninos, tenho orgulho de ser irmão dos animais!
Sou um animal e grito isso aos quatro ventos! Sou um
animal caçador, destruidor e criador ao mesmo tempo.
Crio rituais para meu deleite, me divirto muito! Crio
meu misticismo. Adoro rir, rio muito! Crio eventos para
meu prazer, sou um hedonista incorrigível! Delicio-me
com meus pensamentos, vou a lugares inimagináveis,
crio cenários incomparáveis, sou um artista! Crio tudo,
não há nada que eu queira que não possa achar em mim
mesmo! E se você, sóbrio, quer conhecer minha alma eu
lhe mostro – ato continuo, levantou-se, não sem alguma
dificuldade, agarrou sua imensa pica e sacudiu na frente
de um assustado Tito – esta é a minha alma! Eu pego
nela, posso tocar nela, está aqui! Cadê a sua, branquelo?
Mostre-me a sua, pegue nela, toque nela, vamos! Cadê
sua alma sóbria? Está ai dentro? Dentro do seu corpo, é
isso? Onde? Quem sabe escondida atrás de seu
esqueleto! Mas não há nada por dentro de seu corpo!
Queria que se olhasse no espelho agora, você é um
farrapo humano, assustado, seus olhos não dizem nada!
Estão mortos! Você está com medo, estático, sem
atitude, abatido, é isso uma alma? Ser oco é ter uma
alma? Vocês sóbrios são patéticos. Veja, o animal em
você está morto, de onde você vai tirar sua força? Ou
você não precisa ser forte para nada? Ou mesmo, quem
sabe, procurará encontrá-la nas ‘sábias palavras’ de
algum sóbrio picareta. Ah, sim, me esqueci, você é um
civilizado e os civilizados não precisam mais do animal;
têm até vergonha dele! Lembro-me muito bem do
quanto não precisam! Olho para você e meus instintos
assassinos afloram, porque sinto o cheiro do medo e isso
me excita – Tito olhava inerme para o negrão, sentia
agora um medo terrível, achou melhor apenas calar e
esperar passar a fúria verborrágica de Epaminondas,
porém, já imaginava alguma forma de defender-se de
uma possível investida – olhe para você: patético! Se eu
o matasse ninguém ficaria sabendo, você está agora na
boca do demônio, decidi: depende da minha vontade se
você vive ou não; é assim que se sentiu quando atirou no
vagabundo? Mas eu não sou você... não sou piedoso,
não tenho remorsos e detesto fraqueza. Quanto mais
débil lhe percebo mais vontade tenho de matá-lo, e se
não parar de decair vou fazê-lo, pode acreditar, eu não
minto. Vamos fazer uma brincadeira, pode chamar de
brincadeirinha do diabo, dependerá de você morrer ou
não, se demonstrar que pode ser mais forte do que esse
sujeito com cara de idiota no qual se transformou, irá
recuperar meu respeito e estará salvo, do contrário, já
era, irmão! – Tito não sabia o que fazer, Epaminondas
havia lhe quebrado o espírito e a agora queria perseguir
e pisar no que sobrou. Precisava de um plano, temia
realmente por sua vida, sabia que aquele homem era
totalmente imprevisível e precisava reagir, demonstrar
tranqüilidade e equilíbrio, então pela primeira vez
lembrou-se de Nina e no que ela havia dito sobre brincar
com fogo. Olhou para o chão e avistou a taça de crânio
que havia jogado contra a parede, tomou fôlego,
levantou-se, apanhou-a, foi à mesa e a encheu, tudo isso
sob o olhar curioso do velho diabo. Tremia de medo,
mas disfarçava relativamente bem, embora a
Epaminondas não escapasse nada. Retornou ao sofá e
num frêmito de coragem ergueu a taça para o negrão –
Um brinde, amigo, reconheço meus pecados, já estou
melhor! – disse, fingindo segurança.

- Começou bem e cagou no final – disse Epaminondas,


em tom de deboche – seu esforço é louvável, porém aqui
não se fala em ‘pecado’, esta palavra desagradável é
evitada em meus domínios. Esta palavra fede, e não
quero outros odores por aqui além dos oriundos dos
incensos; então seja gentil com seu anfitrião e evite
exalar o mau hálito de certos conceitos. No mais está
bom, vá lá! Até sua cor está voltando. Agora há pouco
você estava da cor da sua alma, há,há,há... – o rapaz
bebeu avidamente no crânio e limpou o canto da boca
com as costas da mão, então olhou para seu anfitrião
com algum desânimo.

- Diga-me, eu preciso saber, quem afinal sou eu?

-Você não é você, você ‘é’ todos. Esse é o truque mais


moderno para acabar com a individualidade de alguém.
Há bem pouco tempo eles eram ‘massa’, uma besta sem
cabeça que sempre assustou os picaretas. Mesmo as
melhores pinceladas de civilização não são suficientes
para deter esse monstro quando está em seu elemento;
muitos conceitos e fantasmas foram criados para
manter essa besta dormindo, mas não é fácil. Quando
em seu elemento natural é violenta, assassina e acéfala,
vai para o lado que bater o vento destruindo tudo por
onde passa; é realmente uma arte conservá-la
desmembrada. Os antigos romanos lhe davam sangue,
seu alimento natural, para mantê-la dócil e
subserviente, mas agora na pós-modernidade está
apenas caramelada com o tênue verniz da civilidade,
sem se alimentar regularmente. É um vulcão que dorme.
Os picaretas sabem que precisam fazer muita mímica
para distraí-la, dar-lhe divertimentos, de preferência os
mais estúpidos e idiotas, pois a massa detesta qualquer
indício de inteligência. Não abrem mão também, os
picaretas, do ilusionismo político, artimanha esta que os
mantém no topo para melhor chupar-lhes o sangue.
Quando fora de seu elemento natural é de se ver com
que dificuldade suas unidades, ou fragmentos isolados
do monstro, - eu os chamo de ‘ogros’ - se comportam
‘civilizadamente’ pois não têm autonomia,
individualidade, são ‘massa’ nada mais, precisam do
censo comum, precisam estar juntos para formarem a
besta da qual fazem parte, só assim encontrando a
felicidade ruidosa de seu estado natural. Remova um
pouco desse verniz e sinta o cheiro do que se encontra
por baixo. Não é mole irmão! Mas a estes, todos toleram
porque são gregários, enquanto não puderem formar
seu grande e acéfalo corpo, tudo estará a salvo, pensam
os picaretas. Mais que isto, eles até praticam suas
pantomimas e suas mentiras só para ela, sempre com
bons dividendos, pois sabem que a massa é crédula por
natureza. Para adocicá-la, atualmente guindaram-na ao
status de consumidores, mesmo que aí haja a
predominância burguesa, é um nome mais pomposo,
mas a merda é a mesma. Abrindo sua imensa bocarra
para abocanhar tecnologia e os estereótipos que
acompanham essa porra toda, se satisfazem distraindo-
se com novos brinquedinhos e vestindo
comportamentos planejados se transformam em massa
mansa, verdadeiros exércitos de autômatos. Porém, há
sempre os descontentes, e aí pode estar o perigo, quem
consome muito menos, ou pior, não consome. Mas a
estes lhes costuraram as bocas, embora reclamem de
seus tiros mortais. Raciocine e me diga: como se poderia
exercer domínio se não houvesse pensamento
planificado? Quanto mais pessoas pensarem com a
mesma cabeça, mais fácil o controle você não acha? Para
isso as mentes têm de estarem ocas, só assim são
condicionadas para o pensamento sóbrio. Pois é, este é o
seu caso, irmão. O imenso vazio que sente agora nada
mais é do que este funesto resultado: de dar de cara
consigo mesmo e não encontrar ninguém; você não foi
planejado para esse encontro. Você é um produto
pensado para ser ‘livre’! He,he... livre para obedecer as
ordens surdas e sorrateiramente coloridas que fazem
você caminhar na direção que lhe é indicada. Aí é que
está, se você fosse mais animal e não ficasse lavando
seus odores corpóreos com o sabonete da alma, hoje não
estaria com essa cara de bunda na minha frente. Porra,
às vezes me surpreendo comigo, nunca imaginei que
estaria aqui, trocando fralda de sóbrio. Pelo menos
percebo que o vinho melhorou seu aspecto; é bom,
porque você não sabe do que sou capaz quando sinto
cheiro de fraqueza, já lhe disse que não sou piedoso; isso
você tem de procurar entre os seus pares lá na parca luz,
não aqui na escuridão do meu reino. Aqui não é lugar
para fracos! Se você quer ser forte e poderoso aprenda
uma coisa definitivamente: não se afia a espada no mel.
Quer colo? vá para os sóbrios! Este é o reino da
embriaguez e da loucura! Da força dos sentidos, da
desmesura! Dos paus duros e bocetas molhadas! Dos
cantos e danças de alegria! Das libações com vinho de
sangue! E o que você me traz? Que oferenda me traz?
Traz a sua debilidade, sua anemia existencial. É com
esse presente que você pensa agradar seu anfitrião? No
mínimo você me deve um pouco de vivacidade! É certo
que não tem nada para trocar comigo, paciência... não
posso culpá-lo, não há nada em seu mundo que eu não
conheça, este escambo é impossível. Porém, quando não
se tem nada a dizer, oferecer um pouco de alegria não é
de todo mau. Você por acaso já reparou que veio até
aqui sem nada e quis levar tudo? Não tendo um mundo
para oferecer, quis adotar o meu, levá-lo nas costas tal
qual uma lesma carrega seu caramujo! Com isso
demonstrou toda a sua patetice sóbria. Você ainda tem a
cara de pau de me perguntar quem é você, me tirando
para psicólogo ou coisa que o valha! Enquanto não tirar
algum proveito você não desiste, é isso? Bem, como
estou de bom humor vou lhe dizer: você bem poderia ser
uma pulguinha azul que pulou para o escuro, picou,
encheu o bucho de sangue e descobriu que isso era bom.
Quando voltou para a luz percebeu que o alimento
sanguinolento ia terminando, então voltou e pulou para
o escuro novamente, picou, viu que isso era bom e
quando saia para a luz percebeu que o alimento logo
estaria consumido, então pensou: - Caralho! Não posso
ficar neste vai e vem eternamente. Tive uma idéia! –
retornou então e quis levar o escuro consigo. Descobriu
que se tratava de uma tarefa impossível, e entrou em
depressão porque não tinha seu próprio escuro. Moral
da história: quem não tem tamanho para fazer sombra,
que vá picar o Sol! E tenho dito! Vejo que você esboça
um pequeno sorriso; ótimo, está salvando a sua vida,
mas precisa melhorar mais, embora o cheiro de medo já
tenha desaparecido. Ah... agora é só este cheiro
maravilhoso de incenso e este sangue que a videira nos
oferece em holocausto! Hum... que vinho bom. Sinto
que serpentes douradas e indolentes enroscam-se em
meus neurônios, meu fogo interno ilumina esta orgia
que se ensaia em minha mente – Epaminondas
recostou-se fechando lentamente os olhos – sim, já vejo
dragões em seu vôo calmo trazendo a coroa de hera para
seu Rei. – Tito que a tudo escutara com silencio
respeitoso, mantinha uma postura tranqüila, mas
realmente seu medo quase havia descambado para o
pânico, sentiu que sua vida correu sério risco. Agora
apenas acompanhava com curiosidade o negrão, porém,
continuava com o incômodo vazio e queria em momento
oportuno retomar o assunto.

- Haaa... Estes portais de altura infinita, estes capitéis de


sonho – prosseguiu o embriagado – estes demônios
dançarinos em êxtase ao redor da minha fogueira. Que
delicia, meu irmão, que delicia... como é bom ser o
centro, tudo gira em minha órbita, mulheres aladas
agora me trazem oferendas: trazem nas mãos alvas,
águas incrivelmente cristalinas retiradas de meu poço.
Tudo brilha sob a luz serena destas luas, reflexo
amoroso do meu sol, o sol risonho que nasce das
entranhas da minha sombra – o rapaz não pôde deixar
de sentir inveja do que via; sim, Epaminondas
mergulhava calmamente em seu mundo íntimo, e por já
ter estado lá a convite, Tito sabia da sensação etérea que
aquilo tudo provocava, mas não podia demonstrar
fraqueza, pois estava sentado no fio da navalha criada
pelo velho diabo; tinha que continuar sereno, sem
demonstrar medo. Neste momento observou que a
porta abriu e o ajudante forte e sério do negrão entrou
postando-se atarás do trono, cruzando os braços e sem
mover um músculo de sua face de pedra, cravou seu
olhar de aço em Tito. Estava claro que chegara ali para
velar pela ‘viagem’ que se iniciava na mente de
Epaminondas. Este ainda abriu os olhos com alguma
dificuldade e se dirigiu ao rapaz: - Você já não deveria
estar aqui, paciência. Compromissos inadiáveis no meu
interior aguardam pela minha chegada. - sua voz agora
era extremamente arrastada, e os seus olhos de sapo
estavam em uma vermelhidão assustadora; em seguida
se deixou cair em seu profundo abismo com um sorriso
de gozo nos imensos lábios. Tito ficou extremamente
excitado, precisava ir novamente para aquele mundo
fantástico. Sentia-se como uma criança na qual lhe
bateram a porta de uma festa na cara. Olhou então para
o recipiente no qual apagara o charuto. Observou atento
o soldado e anjo protetor do anfitrião e apontou o dedo
para o recipiente, olhando em seus olhos à procura de
um salvo-conduto para o que intentava fazer, porém, o
homem mantinha-se imóvel. O rapaz então, não sem
receio, levantou-se e foi ao recipiente, apanhou o
enorme charuto e acendeu-o na chama de uma vela; em
seguida, encaminhou-se à garrafa e serviu sua taça de
crânio, sentou-se e observou o valete, que se mantinha
impassível. Epaminondas jazia de maneira assustadora,
parecia um defunto com os olhos semi-serrados
expondo sua conjuntiva vermelha; as pupilas pareciam
definitivamente estarem fitando para o interior escuro
do homem. Tito fumava e bebia, à procura da liga
fantástica entre aqueles dois elementos. As luzes das
velas brincavam nas carrancas demoníacas das paredes;
observou então com mais calma aquelas expressões
alegres e ruidosas que agora já lhe eram familiares.
Eram máscaras pagãs maravilhosas, com seus cornos
fantásticos, alguns enrolados como os de bode;
lembrou-se de que alguém alguma vez lhe dissera que os
cornos, na antiguidade eram sinônimos de força e
poder, e era realmente a sensação que lhe passava
aquelas estranhas máscaras. Começou a sentir sua
mente aos poucos se desmembrar em deliciosa
algazarra, mirou então na bocarra de um dos demônios
e mergulhou ali, naquela escuridão, sua mente excitada.

***
Tito caminhava sob um intenso negrume, em direção a
uma luz que, tal qual o Sol, parecia nascer atrás do que
poderia ser a silhueta de enormes montes. O que lhe
impressionava era aquela escuridão intensa, temia
desabar em algum abismo, pois não tinha condições de
enxergar absolutamente nada que não fosse aquela
distante luz. Pela primeira vez decidiu que não sentiria
medo, queria muito tudo aquilo e seguiria adiante
acontecesse o que acontecesse, porém, desta vez estava
só, sem Epaminondas, seu anfitrião. Aos poucos
percebeu vozes que lhe acompanhavam pelo escuro,
risadas e deboches que se somavam à sua caminhada e
cada vez estavam mais perto. Sentiu um frio na espinha,
mas prosseguiu impassível; aos poucos reparou no
alarido de uma multidão de seres em completa
algazarra, já estava quase ensurdecedor tudo aquilo
quando a luz inofensiva que lhe servia de guia, explodiu
num estrondo fenomenal! Uma gigantesca bola de fogo
subiu aos céus das trevas iluminando tudo ao seu redor.
Pôde perceber então uma multidão de seres bizarros e
disformes, verdadeiramente apavorantes, que
copulavam ruidosamente, um deles ao passar por Tito
comentou, como que querendo lhe orientar: - Este aqui
é o mar de trevas, quando o diabo mergulha para seu
banho diário, ilumina estas profundezas, é normal; mas
você não parece um demônio, está assustado! Se
continuar assim vai se dar mal! – o rapaz então apenas
prosseguiu, mas não foi sem apreensão que percebeu
todo o horizonte começando a ficar delineado, e onde
sua vista podia alcançar, via uma claridade amarelada
que aos poucos ia tomando uma tonalidade vermelha;
para seu horror, percebeu tratar-se de chamas que
aumentavam assustadoramente de altura até clarear
novamente tudo. O calor se tornou insuportável e as
chamas atingiram altura inimaginável, quase cegando
um apavorado Tito. O diabrete insolente aproximou-se
de novo – E esse que aí vem, deixe que lhe apresente, é o
mar de fogo! - sim, não havia dúvidas, as terríveis e
gigantescas chamas começavam a descer lentamente
sobre a multidão exultante de seres sinistros, como uma
gigante onda marítima que quebra na praia. Apavorado
Tito corria para qualquer lugar, como se fosse realmente
possível encontrar algum abrigo. Seus pés nus agora
queimavam naquela areia escaldante em que se
transformara o piso; tudo isso sob os olhares, risos e
deboches daqueles seres, e o rapaz em pânico, clamou
por um segundo, um átimo de segundo, um buraco de
tempo em que pudesse mergulhar para escapar daquele
fogo que desabava das alturas, mas foi em vão, a massa
compacta de chamas inundou tudo. Tito deu um grito
lancinante do mais profundo pavor! Sentiu o impacto
tenebroso! Estava agora sendo devorado pelas chamas e
se debatia ardendo em dor infinita em meio ao amarelo
intenso, sem chances de mais nada, só a angustia
gritante da morte na dor inclemente! Era o que estava
acontecendo, sua mente se retorceu na dor, pôde ainda
ver, em meio ao holocausto, algumas partes do que
antes tinha revestido com carne em seu corpo, agora
podia divisar vagamente, entre labaredas, seu esqueleto
sendo calcinado, que se debatia automaticamente,
mesmo sem os nervos e músculos, no desespero de uma
morte nas chamas. De repente tudo cessou. Só
escuridão. Morte. De chofre, foi cuspido ao infinito. Não
contava com aquilo, pensou que estivesse morto,
deliciosamente morto. A morte fora um alivio para seu
martírio, no entanto, a sensação balsâmica durou
pouco; não morrera, agora percebia espantado que sua
saga continuava; caia no nada, numa sensação deliciosa
de desabar no que não existe, sentiu que estava em um
carrossel estonteante de acontecimentos bizarros. Foi
quando se deu conta de que dois demônios se
materializaram, e voando com suas imensas asas de
morcego lhe pegaram, cada um em um braço e
começaram a conduzi-lo, tal qual anjos das trevas; neste
momento deu-se conta com pavor, olhando para seus
braços, de que havia se transformado em um esqueleto
queimado; era o que lhe sobrou das chamas. Não
agüentando mais, quis acabar com aquilo: - Qnde está
Epaminondas? – gritou alucinado – Onde está? Não
agüento mais, foi um erro segui-lo em seu mundo!
Admito! Não farei mais! Onde está Epaminondas? – um
dos diabos alados olhou calmamente para o rapaz e
respondeu: - Está em todos os lugares, ou você já
esqueceu onde está? – Tito percebeu o olhar do velho
diabo no olhar daquele demônio, realmente, tudo ali
tinha as ‘impressões digitais’ de Epaminondas. Os
demônios então pararam, batendo suas imensas asas, à
frente de um espelho gigantesco com uma moldura
vermelha estilo rococó. Tito ficou então frente a frente
com o que sobrou de seu corpo e soltou um terrível grito
de pavor! Era um esqueleto preto, totalmente calcinado
pelas chamas, mas ainda mantinha seus olhos mesmo
que queimados. Veja – disse um dos demônios – você
nem deveria estar falando, não tem terminações
nervosas, carnes, músculos, cérebro, não tem nada além
de ossos queimados; você só o faz por licença poética do
criador! Então não reclame tanto; não pergunte onde
está Epaminondas, ele está em todos os lugares, ele é
tudo que acontece. Entre de boa nesta dança, amigo,
pois agora não tem mais volta! – dito isto, os diabos
seguiram em seu vôo levando o horrendo esqueleto. Tito
entrou e saiu de galerias bizarras, de tamanhos que
julgou infinitos, nada do que conhecera até então podia
emprestar alguma similitude para a avaliação consciente
daqueles lugares, voava através de um mundo novo com
formas novas, sua mente foi ficando cada vez mais
retorcida por tudo aquilo, ficou sem nenhuma noção das
coisas, a ponto de esquecer as palavras. Sem saber o que
dizer e o que pensar, virou algo amorfo, carregado por
demônios com imensas asas de morcego, demônios da
escuridão. Entrou em breus extremos e saiu destes para
imensidões impensáveis, apenas se deixava levar,
morto, diante de tanta vida que explodia em erupções de
infinitas cores. Mares transparentes eram acariciados
por calmas luzes prateadas onde uma infinidade de
seres submersa copulava alegremente, peixes imensos
saudavam esta orgia aquática com saltos alegres em que
se retorciam nos ares antes de caírem novamente
naquelas águas cristalinas. Alguns destes tinham asas e
acompanhavam por algum tempo os demônios e o
esqueleto, formando uma alegre comitiva prateada. No
topo de montanhas, imensas fogueiras clareavam tudo
ao redor delas e deixavam às claras bacanais infernais
embalados por muita musica advinda de flautas
ruidosas; seres dos mais diversos exerciam suas
incontidas alegrias instintivas. Tudo isto passava diante
dos olhos abertos, porém, de janelas fechadas do
esqueleto. Finalmente se aproximaram de uma fogueira,
a maior de todas, tão imensa que podia iluminar
possivelmente num raio de centenas de quilômetros. Os
demônios então soltaram o esqueleto, despencando este
de uma altura espetacular, vindo a espatifar-se contra o
solo, voaram ossos para todos os lados atingindo
distancias imensas. No centro do descomunal fogaréu,
um homem de complexão gigantesca que parecia ser
feito de larva incandescente, gargalhava sentado; suas
gargalhadas faziam estremecer tudo ao redor; ele então
se curvou para melhor divisar aquele ínfimo punhado de
ossos espatifados. Tinha chifres gigantescos e presas
assustadoramente proeminentes, eram as feições de
Epaminondas num rosto exótico e extremamente belo.
Só a caveira do esqueleto sobrou na frente do diabo; o
rapaz então aos poucos foi retomando a consciência e
enxergou pasmado o gigantismo daquele ser, entrando
em seguida em pânico ao perceber que sua cabeça
estava caída no solo, e não passava de uma reles caveira.
O gigante fez um sinal qualquer e uma estranha e
assustadora figura com rabo de dragão aproximou-se
trazendo nas mãos o que parecia ser uma imensa lança,
em seguida pegou a caveira cravou-a na ponta afiada da
lança trespassando-lhe o crânio e a outra ponta cravou
nas areias escaldantes, afastando-se em seguida. O
rapaz, ou o que sobrou dele, sentia-se meio morto, meio
vivo, e os farelos de memória que pode ainda ajuntar
formaram o quadro do arrependimento. Era agora
apenas um crânio estaqueado no chão. Já não podia
falar, era só um pedaço de osso, só restava esperar a
hora fatal. Quem era ele? O que fazia ali? Como fora
parar naquele lugar? Uma coisa não deixava duvidas,
estava na frente do diabo! E este se curvava em sua
direção, queria falar-lhe. E falou: - Você é um grande
cabeça dura, não? Dei-lhe uma amostra do meu lar, mas
você, impertinente, quis mais. – a caveira não sabia do
que o diabo estava falando, e este prosseguiu – Agora
veja! É o que dá vir aqui sem ser convidado, entrar pela
porta dos fundos. Isto aqui não é qualquer brincadeira!
Quando lhe trouxe, sabia até onde podia levá-lo sem que
se machucasse – a caveira não sabia do que ele estava
falando – agora me diga, como se sente sem seu corpo?
– a caveira não sabia do que ele estava falando – veja
que falta faz a carne! Digo-lhe, na minha opinião não
são quatro, mas cinco, os elementos da Natureza; a
saber: Fogo, Água, Terra, Ar e... Carne! Por que
esqueceram da Carne? Por que odeiam tanto a Carne?
Olhe para você! O que restou? Digo-lhe o que restou:
restou a mortalha de sua ‘eternidade’; sim, eis o que é
seu e seguirá pelos longos tempos vindouros, esse seu
crânio patético que jaz empalado na minha frente. Mas
quero dar-lhe as minhas boas vindas, pois tenho a
intenção de ser bom anfitrião. – o diabo fez um sinal, e
uma mulher de longos cabelos negros, linda e
estonteante em sua silhueta de contornos voluptuosos,
saiu do meio daqueles seres e nua, começou a dançar
danças sensuais à frente da caveira estaqueada. Retirou
o crânio da estaca e o segurando com uma das mãos, a
acariciava com a outra; caricias sensuais que iam
aumentando assim como o ritmo frenético daquela
dança. A mulher então se deitou naquelas areias brancas
que dançavam ao crepitar da imensa fogueira, abriu
suas pernas e enfiou a caveira entre elas, começou a
esfregar sua boceta no macabro artefato que, indefeso,
transformara-se em objeto de fetiche e gozo na lascívia
da dançarina. Agora a mulher parecia um ‘frango
assado’, esfregando o crânio em sua xoxota
extremamente molhada, a excitação fazia com que
soltasse ganidos agudos e revirasse os olhos se
contorcendo no chão. Uma multidão de seres bizarros
acompanhava em volta copulando e se masturbando
ruidosamente; urros, gritos e gargalhadas
acompanhavam uma trilha sonora composta por alegres
flautistas que dançavam e pulavam ao redor da cena. O
demônio acompanhava tudo sentado em seu trono de
fogo e também caprichava numa punheta dos infernos!
Finalmente a mulher atingiu o êxtase, emitindo gritos
alucinados e realizando movimentos frenéticos com o
objeto morto, parecia mesmo que queria agora enfiá-lo
inteiro em sua boceta empapada. Enquanto gozava, a
dançarina era atingida por centenas de jorros de prazer,
ejaculados em oferenda, por assistentes ensandecidos
na mais alegre volúpia! Mulheres rolavam pelo chão,
esfregando-se e produzindo uma sinfonia de gritos e
gemidos. De repente, a garota levantou-se, atirou a
caveira para longe e saiu correndo, no que foi
acompanhada por todos os participantes da orgia numa
interrupção abrupta da satisfação, abrindo uma imensa
clareira como se já soubessem que algo estava para
acontecer, algo habitual e conseqüente, resultante
daquela viva festa. Ato contínuo, o gigante
incandescente levantou-se com seu descomunal pênis
na mão punheteira e com gestos cada vez mais rápidos e
determinados atingiu um gozo infernal! Urrou como
um leão lascivo, expelindo extensos jorros de fogo que
voavam para longe e clareavam como relâmpagos o
horizonte de trevas onde eles caiam como mísseis; mas
mísseis de alegria, pois era possível escutar ao longe a
algazarra e festa das multidões de demônios que eram
agraciadas com seu sêmen incandescente e criador. A
caveira por sua vez, atirada a esmo, a tudo observava
sem saber nada, escutava, mas não ouvia, enxergava,
mas não via, apenas presenciava aquelas orgias e
folguedos, quieta em algum lugar, de olhos abertos,
queimada, lambuzada e... morta. A gigantesca entidade
de fogo então se agachou e olhando zombeteira para o
ínfimo objeto de osso inerte no chão, deu uma grande
gargalhada e disse: - Vai, meu filho, vai... volte para sua
prisão ou aprenda a ser diabo! Encarna! Encarna!
Encarna! filho da puta!Leva o mel dessa boceta consigo,
o mel da vida! Encarna! Caveira de merda! Caveira
inútil! Ossos mortos! Veste a vida! – deu então um
pequeno peteleco no crânio, e este voou como um grão
de areia atirado ao infinito.

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