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A LAICIZAÇÃO DA ESCOLA
Texto apresentado num colóquio realizado no Agrupamento
Visconde Juromenha em 15 de Março de 2010
David Luna de Carvalho

INTRODUÇÃO
O Cinco de Outubro não constituiu apenas uma mudança de regime
político. Constituiu sobretudo a introdução do Liberalismo Cultural no estado e na
Sociedade que a Monarquia Constitucional nunca soube aceitar. Este Liberalismo
Cultural baseava-se num ideário programático optimista e “regenerador” que
associava uma vertente iluminista –racionalista- a outra de carácter positivista e
cientista-. Acreditava-se que a conquista do bem comum residia na instrução, na
educação e na ciência. Assim pressupunha a necessidade de uma autêntica
revolução cultural na sociedade portuguesa1 baseada na laicização do Estado e da
Sociedade.
Além de se manifestar pela rejeição da estreita relação entre religião e
política através da separação do Estado da Igreja, o projecto laicista republicano,
assumiu-se também pela implementação de novos valores descristianizadores.
A produção sistemática, persistente e muito rápida de legislação laicizadora,
praticamente coincidente com a implementação do próprio regime republicano,
demonstra-nos que o processo institucionalizador da laicização foi de facto o grande
objectivo do republicanismo após a sua revolução.
Logo a 22 de Outubro de 1910 proibiu-se o ensino da doutrina cristã nas
escolas2, alguns meses depois da revolução, publicou-se a Lei do Registo Civil
Obrigatório e a Lei da Separação do Estado das Igrejas, leis que coroaram o fim do
Estado Confessional.
A escola e os professores passaram a ser considerados como os novos
templos e os novos sacerdotes que, no dizer de Fernando Catroga, procederiam à
“laicização interna das consciências”. Além de ter sido dada uma grande prioridade
pedagógica à doutrinação republicana nas escolas, os professores parecem ter sido
1
O grande mérito da Primeira República esteve em fornecer a legislação e o enquadramento indispensáveis para uma revolução
Cultural em Portugal. (Oliveira Marques 1973)

2
Decreto de 22 de Outubro de 1910, Diário do Governo, n.º 16, 1910.10.24
2

os maiores garantes da republicanização das aldeias, sobretudo através das escolas


móveis. A análise que aqui exporemos não irá tratar das medidas políticas,
doutrinais ou até pedagógicas. Tratará sim dos casos de aplicação das medidas
laicizadoras da escola e das actividades afins nos casos em que foi recebida com
resistência das comunidades. Esta é uma nova vertente de análise historiográfica
que, não se destinando a diminuir o novo regime, pretende revelar com objectividade
as tensões socio-culturais que originou e que nada fazia prever não poderem ser
resolvidas.
A primeira coisa que podemos dizer é que todos os registos de conflito com
a escola ou suas actividades afins se deveram de facto a disposições que visaram
laicizar a escola.
Considerando todos os tipos de registo a única classificação que estas
acções de resistência nos permitem para enquadrar a sua análise divide-se em três
grupos: resistências no âmbito das escolas , no âmbito de festividades escolares e
no âmbito médico-sanitário escolar.

A RESISTÊNCIA NAS ESCOLAS


As resistências no âmbito das escolas relacionaram-se sobretudo com as
escolas estatais e, principalmente com as escolas com carácter temporário, as
Escolas Móveis.
O grande número de registos de resistência às escolas móveis, isto é
àquelas que se instalavam temporariamente pelo período de quatro a seis meses
numa localidade, advinha de estas escolas terem uma tradição eminentemente
propagandística que datava do seu início em 1882, quando Casimiro Freire criou as
“missões” que começaram a percorrer o país em campanha de alfabetização e
republicanização3. Além disso as escolas móveis eram conotadas com a Maçonaria
que, aliás, não o escondia.
A consciência da tarefa propagandística e da sua delicadeza é atestada em
muitos registos. Um dos mais interessantes por ser escrito por um professor das
escolas móveis reflectindo sobre as dificuldades das missões, refere que “no tocante
à propaganda, ela [tinha] de ser feita com o máximo cuidado, com verdadeira
habilidade jesuítica, sem o que, o fracasso [era] infalível. Professor que [fosse] para

3
A primeira “missão” da Associação das Escolas Móveis decorreu de 24 de Novembro de 1882 a 25 de Fevereiro de 1883 em Castanheira de Pera, Pedrógão Grande.
(Cf. Associação de escolas Móveis e Jardins-Escolas João de Deus, Relatório de Contas de 1 de Julho de 1912 a 30 de Junho de 1913, Lisboa
3

lá pôr-se em bicos de pés, a fazer propaganda por meio de discursos, [estava]


arranjado”4.
Outra das graves dificuldades apontadas para os professores das Escolas
Móveis foi a “crença religiosa”. Se o professor transigisse e fosse à missa falseava a
missão que o Estado lhe incumbira porque não tinha sido enviado para tal, estando
“irremediavelmente perdido”, não podendo “com justiça” continuar como professor
das escolas móveis. Por outro lado se não transigisse e se mantivesse dentro da
esfera que o Estado lhe tinha traçado, o professor seria imediatamente olhado por
toda a população e “o menos que lhe [podiam] chamar [era] ateu, pedreiro livre, o
diabo a quatro. E se, em certos casos, [regressava] com as costelas íntegras ao seio
da família, [podia] gabar-se de [ter sido] um hábil diplomata” 5.
Uma das peculiaridades das resistências às Escolas Móveis e ao seu
professorado foi a de que os seus alvos parecem ter sido maioritariamente as
mulheres, professoras.
A razão mais pertinente para o referido prende-se sem dúvida com o facto
de terem constituído a maioria do corpo docente das escolas móveis. De acordo
com os relatórios e contas da Associação de Escolas Móveis e Jardins-Escolas João
de Deus, entre Outubro de 1910 e Novembro de 1917, 52 dos 73 professores
dessas escolas eram professoras.
Sabendo-se que, ao contrário dos homens, a mulher era muito assídua às
práticas religiosas, existem registos demonstrativos de que as professoras das
escolas móveis viveram um clima de maior tensão do que os seus colegas, tanto
mais que pelo facto de serem mulheres não eram menos convictamente
republicanas. A maioria dos nossos registos demonstra com evidência que a
militância das mulheres não foi apenas religiosa, pois muitas daquelas que
exerceram o cargo de professoras das escolas móveis comportaram-se com
intransigência na defesa dos valores republicanos e laicos.
Em Fevereiro de 1916, a Professora da Escola Móvel de Sanfins, Concelho
de Valença do Minho, Distrito de Viana do Castelo, queixou-se de que pelo facto de
não ir à missa todos os domingos e de não se ajoelhar para a confissão a
aniquilavam “por processos tais, indignos de se ouvirem, quanto mais de se
publicarem”. Tendo sido avisada de que a queriam “correr a pontapés”; que se dizia
4
DAVID, Abílio, Escolas Móveis, Lisboa, 1916, p.17
5
Idem
4

que não deviam falar com ela e constatado que uma mãe tinha ido retirar a filha da
escola, dizendo que as outras fariam o mesmo e que “preferia gastar o seu dinheiro
em caixões para fazer o enterro dos filhos que vê-los educados em tais escolas”,
esta professora acabou por apelar para a protecção do administrador do concelho
que lhe prometeu pôr o padre “na ordem”6.
No mesmo mês e ano, uma professora da Escola Móvel de Ponte do
Reigoso, Concelho de Oliveira de Frades, Distrito de Viseu, escreveu o seguinte:
“Por aqui ando, com a minha família, com a vida arriscadíssima. Ainda ontem meu
marido foi insultado e ameaçado por meia dúzia de arruaceiros assoldadados,
quando recolhia a casa. Fui avisada de que alguém quer deitar bombas na casa da
escola, unicamente porque combato os inimigos da República e da instrução. Aqui o
padre domina toda a gente que só cumpre o que ele diz e manda; daí o ódio e o
desprezo com que sou alvejada.
O padre diz às suas ovelhas submissas que quem olha para os professores
da Escolas Móveis comete um pecado mortal porque somos emissários de Satanás
e por isso que não mandem os filhos para tais escolas. Os pais dos alunos que
frequentam a minha escola são perseguidos na sua vida particular e ameaçados
constantemente pelos aulicos do abade. Já pedi providências, pessoal e
oficialmente, ao administrador do concelho, mas o sotaina continua a combater em
campo conquistado sem que haja quem o meta na ordem”7.
Em Março de 1917, a “humilde, mas republicana convicta” professora as
Escolas Móveis de Farrio, Freguesia de Freixianda, Concelho de Vila Nova de
Ourém, Distrito de Santarém, denunciando as perseguições clericalistas a que
estava sujeita, escrevia o seguinte: “E a perseguição é de tal ordem que recebi uma
carta [por alguma Maria] que era a assinatura que trazia, avisando-me que se me
queixasse à autoridade um grupo me assaltaria a casa para me matar. Nesta
povoação de Farrio, Freguesia de Freixianda, foi criada uma escola móvel a pedido
do benemérito e antigo republicano Sr. Joaquim Augusto Xavier Pessoa, tendo
oferecido gratuitamente casa e luz. Pelo Exmo. Ministro da Instrução fui nomeada
para reger esta escola e foi animada pelo ardente desejo de cumprir esta missão
com honra e brio que para ali me dirigi. Matricularam-se quarenta e oito alunos. Logo
que o prior de Freixianda soube que eu fazia propaganda republicana começou a
6
Ecos do Mondego, Tábua, n.º 22, 1916.04.30
7
A Escola Móvel, n.º 2, 1916.03
5

retirar os alunos da escola, ameaçando-lhes que lhes recusaria os sacramentos


caso eles quisessem frequentar a escola”8.

A RESISTÊNCIA NO ÂMBITO DAS FESTIVIDADES ESCOLARES


As acções de resistência no âmbito das festividades escolares incidiram
sobretudo sobre a festa da árvore.
A Festa da Árvore surgiu em Portugal em 1907 durante a Monarquia
Constitucional por iniciativa da Liga Nacional de Instrução, mas só depois da
implantação da 1.ª República recebeu um grande incremento, sendo organizada
pelas escolas primárias. Em 1913 teve o seu ponto mais alto, perdendo
gradualmente importância a partir daí9.
O significado da festa da árvore era inequivocamente cívico-pedagógico.
Era uma prática simbólica visando a interiorização de novos valores patrióticos. Era
das árvores, plantadas no solo pátrio que brotava o verde-esperança do amanhã!
Como Fernando Catroga salientou: “As festas criavam momentos entusiasmantes de
comunhão que convidavam à fruição quase mística da utopia nelas simbolicamente
antecipada”10
A Festa da Árvore comemorava-se durante o mês de Março e por este
facto pode encontrar-se uma explicação para as queixas dos católicos, dado que era
concorrente com as cerimónias quaresmais e, em última análise, com a festa central
do cristianismo, ou seja: a Páscoa.
Em Abril de 1911 em S. Pedro do Sul, Viseu, A Procissão da Paixão foi
autorizada, mas, voluntária ou involuntariamente, coincidiu com a Festa da Árvore.
A Festa da Árvore podia mesmo ter um teor panteísta, de culto à natureza. Um
publicista, referindo-se à árvore recém plantada e dirigindo-se aos jovens, escreveu:
“Tens diante de ti um quadro maravilhoso e duma frescura incomparável. Este
quadro representa a tua idade, a tua juventude e a primavera, uma promessa. É a
NATUREZA-MÃE, infinita, variada e rica. Adora-a”11.

8
Idem, n.º 47, 1917.05.02
9
PINTASSILGO, Joaquim, República e Formação de Cidadãos ...Já cit., p. 180.
10
CATROGA, Fernando, A Miliutância Laica..., Vol. I, pág. 51
11
NEVES, Azevedo, A Árvore, Lisboa, Tip. Anuário Comercial, 1909.
6

Para muitos católicos estas festas eram festas pagãs destinadas a


substituir a festas religiosas e por isso as resistências não tardaram12.
Duas das três acções de resistência aberta colectiva tiveram precisamente
como pretexto a Festa da Árvore.
O primeiro tumulto localizou-se em Benespera, Concelho e Distrito da
Guarda e ocorreu depois da Festa da Árvore realizada a 15 de Março de 1914.
Segundo uma fonte verificaram-se “grandes tumultos com apedrejamentos, tiros e
outros actos de selavajaria”13
Precisamente um ano depois, a 15 de Março de 1915, em Ervedeira,
Concelho e Distrito de Leiria, “mulheres desordeiras” não consentiram na plantação
das árvores da festa em terrenos públicos, tendo no entanto acabado por concordar
com a plantação de algumas delas14.
A maioria das acções de resistência contra a Festa da Árvore decorreu de
modo dissimulado, geralmente de noite e teve como objectivo o corte das árvores
plantadas. Em alguns destes casos os registos aludem a mais que a simples
destruição.
Remetendo-nos para uma simbólica com alguma semelhança com a do
caso de Benespera e para a estreita relação entre a festa e o professorado, em
Rates, Póvoa de Varzim, Porto, as árvores plantadas a 15 de Março foram
arrancadas e colocadas à porta do professor no dia 1 de Novembro, dia de Todos os
Santos15. Tal como na Benespera esta actuação sugeria uma ameaça de morte para
o professor responsável pela festa.
A relação da Festa da Árvore com republicanos independentemente da sua
condição de professores também foi corrente e decorria do facto de a festa ser
promovida por eles, sempre com a utilização de muita simbólica republicana.
Em 1915, durante o período da breve ditadura de Pimenta de Castro, a associação
entre a árvore e o republicanismo parece ter sido realizada de modo tão absoluto
que todas as árvores plantadas em terrenos de republicanos foram consideradas
como árvores simbólicas. Assim em Balazar, Póvoa de Varzim, Porto, verificou-se a

12
Sobre a perspectiva das festas da árvore como cultos pagãos pode ler-se: Correio da Beira, n.º 201, 1913.02.01 e n.º 309, 1914.04.01
13
Distrito da Guarda, n.º 1854, 1914.03.09
14
Leiria Ilustrada, n.º 482, 1915.03.27
15
O Comércio da Póvoa de Varzim, Ano X, n.º 46, 1913.11.14
7

destruição de todas as árvores que existiam em frente das casas de republicanos ou


em terrenos seus16.
Nos registos de resistências passivas à Festa da Árvore surgem-nos
assinalados com frequência os argumentos que desmobilizaram as pessoas de lhe
prestarem a sua participação e verifica-se que, pelo menos em alguns distritos, as
árvores da festa foram associadas à maçonaria como algo também inerente ao
próprio republicanismo.
No Distrito da Guarda a referida associação parece ter sido corrente. A 15
de Março de 1913 em Malhada Sorda, Almeida, houve pouca afluência à Festa da
Árvore porque esta foi considerada Maçónica e os seus festeiros “discípulos de
Satanás”17. Na mesma altura em Badamalos, Sabugal, a festa chegou mesmo ao
ponto de não se realizar “porque houve quem quisesse fazer crer ao povo que era
uma festa maçónica”18. Em Castelo Bom, também no Concelho de Almeida, a Festa
da Árvore nunca tinha tido grande participação “como consequência da ideia
propagada de que a Festa da Árvore “(...) era uma festa maçónica, cujo fim era
desviar os crentes do verdadeiro caminho da religião católica”19.
O estabelecimento de um vínculo entre a Festa da Árvore, as escolas e a
Maçonaria datava da sua própria introdução no país, uma vez que se tinha devido a
iniciativa de Maçons que a generalizaram nas escolas livres20. Além disso os boletins
paroquiais publicavam textos denunciando a ligação directa entre a Festa da Árvore
e a Maçonaria. Sob o título “A festa da Árvore e a Maçonaria” estes boletins e a “boa
imprensa” transcreviam textos de um alegado “Boletim Maçónico” comprovativos da
aludida associação que sintetizavam e sublinhavam da forma seguinte:
“1º- (...) A maçonaria promove «a propaganda, defesa e culto da árvore»;
2º- (...) A Festa da Árvore saiu dos templos ou lojas maçónicas;
3º- (...) A «Associação do Culto da Árvore», isto é, precisamente aquela associação
que organiza e dirige as Festas da Árvore em todo o país, tem a mesma origem
maçónica;

16
O Comércio da Póvoa de Varzim, ano XII, n.º 13, 1915.04.06
17
Distrito da Guarda, n.º 1816, 1913.04.20
18
O Combate, Guarda, n.º 446, 1914.04.25
19
O Combate, Guarda, n.º 443, 1914.03.28
20
PINTASSILGO, Joaquim, República e Formação de Cidadãos..., Já cit., p. 193
8

4º- (...) com estas obras a maçonaria espera fazer «progredir o país», isto é,
descristianizá-lo;
5º- (...) Segundo a própria confissão do Conselho da Maçonaria, promover o
desenvolvimento da Festa da Árvore e da respectiva Associação é realizar um
valioso trabalho maçónico.

Outra das actividades que decorria na escola era de carácter médico-sanitário: a


vacinação e revacinação.

Antes da República já existia uma lei, de 2 de Março de 1899, que tornava


obrigatória a vacinação e a revacinação, mas por falta de regulamentação nunca foi
implementada.

Com a República o Decreto de 26 de Maio de 1911 restabeleceu a


obrigatoriedade da vacinação e revacinação anti-varíoloca e a sua regulamentação
foi publicada no Diário do Governo de 29 de Agosto, entrando a lei em vigor a partir
de 1 de Novembro de 1911.
Em Abril de 1911 alguns concelhos do Distrito da Guarda, nomeadamente
o de Gouveia, e, especialmente, o de Celorico da Beira, tinham sido palco de grande
resistência à revacinação anti-variólica.
O correspondente de “A Democracia da Beira” de Celorico destacava que
na maioria, senão em todas as povoações do concelho, corria a “galga” “de (que) os
professores [tirariam] o sangue dos seus alunos –debaixo da cova do braço- para
com ele escreverem os seus nomes, deles alunos, no livro da Maçonaria!!!....”. As
próprias autoridades tiveram que recorrer à ajuda do clero, a 29 de Abril de 1911 o
Administrador do Concelho de Celorico enviou um ofício a um padre, provavelmente
o de Cadafaz. Referindo que se tinha propalado o “falso boato” de que alguém
pretendia vacinar as crianças com sangue maçónico e “incomodar as autoridades”, o
administrador pedia-lhe que fizesse uma prédica na missa conventual sobre a
impossibilidade de tal acto e explicasse que a vacinação contra a varíola seria
aplicada pelo sub-delegado de saúde ou pelo médico do partido municipal21.
A Freguesia de Cadafaz tinha sido o primeiro palco de conflito no dia
anterior ao do ofício administrativo, dia 28 de Abril de 1911. Tendo começando a

21
VASCONCELOS, José Leite, Opúsculos, Volume V, Etnologia (Parte I), Lisboa, Imprensa Nacional, 1938, p. 597
9

espalhar-se pela freguesia a “galga” de que a professora tirava sangue aos alunos,
para com ele escrever os nomes no célebre livro dos maçónicos, os sinos tocaram a
rebate aí pelas sete ou oito horas da noite. O regedor e parte da população da
freguesia, armados de espingardas, foices e diversos outros instrumentos agrícolas,
deslocaram-se a casa da professora da escola feminina e “num desrespeito brutal,
[puseram-na] no meio da rua, arrastando-a por um braço e parece que até pelos
cabelos (...) aos gritos subversivos de morra! mate-se! etc., etc., fazendo em
estilhaços vidros de janelas, louças e tudo quanto encontravam”.
Devido à difusão da “galga”, Vale de Azares22 foi o novo palco de um
conflito idêntico no dia seguinte. Segundo o “A Democracia da Beira” “centenas de
habitantes desta freguesia, homens e mulheres, [tinham ido] a caminho das duas
escolas, munidos de sachos, enxadas, machadas e até revolveres, intimando o
professor e professora, com carácter agressivo, a porem no olho da rua os seus
filhos que os não queriam vacinados com o sangue dos maçónicos. Exigiam também
que lhes apresentassem os dois homens-diabos que tinham em casa, para fazerem
as tais vacinas, para imediatamente os esquartejarem..23.
Temendo o rápido contágio dos motins e pedindo castigo para os seus
autores24, o articulista terminava por referir que os pais até tinham ido às escolas da
sede do concelho para obrigar os professores a deixar sair as crianças, “...por não
as quererem vacinadas com sangue maçónico”25 .
O último registo sobre resistências à revacinação data de 8 de Dezembro de 1914 e
refere que, embora os médicos se deslocassem constantemente às aldeias, as
populações continuavam a furtar-se à vacinação e revacinação no Distrito da
Guarda. A voz corrente continuava a ser a de que a vacina era “maçónica” e por isso

22
Embora o O Século, n.º 10534, 1911.05.01, refira Souto Marinho em lugar de Vale de Azares, todas as outras associam Vale de Azares a Cadafaz. Sem outra
confirmação optamos por assinalar aqui apenas a hipótese de Souto Marinho ter sido uma outra localidade com uma outra revolta.
23
Democracia da Beira, n.º 24, 1911.05.18
24
Relativamente a punições apenas sabemos que se deram prisões no conflito de Cadafaz. Segundo o Primeiro de Janeiro, ano 43, n.º 271, 1911.11.17, “No Tribunal
criminal do 1º Distrito foram ontem (1911.11.16) julgados em audiência geral João Ferreira Salvado, António Gomes Muchagata, José d’Almeida Coelho, José
Salvador do Amaral, António da Fonseca Dias, Francisco Diogo, José Fernandes, Manuel da Fonseca e Carlos Diogo, sendo arguidos, os dois primeiros, de em 27 de
Abril passado (1911), incitarem, promoverem e dirigirem um motim no lugar e freguesia de Cadafaz, Concelho de Celorico da Beira, em que tomaram parte os
restantes arguidos e muitos outros populares que se juntaram, armados de espingardas, foices e diversos outros instrumentos agrícolas, estabelecendo grande tumulto
em frente da escola paroquial do sexo feminino daquela freguesia, onde entraram para expulsar dali a professora oficial. O Júri deu o crime como não provado, sendo
os réus absolvidos.
25
Democracia da Beira, n.º 24, 1911.05.18
10

havia mães que chegavam a meter os filhos na cama, desculpando-se que estavam
doentes para não serem vacinados26.

CONCLUSÃO
Pelo que se viu na Primeira República, em algumas zonas do país existiu uma
diabolização literal da escola obrigatória e dos seus professores e professoras. À
semelhança da estranheza que lhes causava a obrigatoriedade de revacinação, as
aprendizagens dos alunos “na escola sem religião” também tinham passado a
basear-se em noções e valores –laicos- que não se identificavam com os de muitos.
O facto das aprendizagens de novos valores e das inoculações vacinais se
verificarem nas escolas tinha sido sincretizada através da diabolização dos
professores e dos delegados de saúde, estes como “homens-diabos”.
O árduo trabalho nas escolas precisava de um clima de pacificação estabelecido
pela própria constatação das populações de que a liberdade de crença ou de
pensamento não colidia com a sua religiosidade. No entanto tal só voltaria a
acontecer na Segunda República, após o 25 de Abril de 1974, depois de todas as
guerras.

26
Idem, n.º 480, 1915.01.02

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