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Priscilla Santos

Textos juntos

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i. Tangerinas de Mullholand Drive pode-se imaginar o que é nascer igual, mas não é sempre que se vê
parir diferente. Analice esperou na esquerda do Reinaldo o médico
chamar. a parede tinha uma prateleira pequena, um vaso pequeno e
1997, sábado: ressonante uma rosa sozinha dentro com água. artificial.
o cavalo desceu a rua com pressa e levantou pouca terra, corria no foi esse mesmo o exame que você trouxe? foi.
asfalto. você vai ter esse menino? não. o pai esqueceu os óculos em cima da
os dois sentaram um do lado do outro e não se puseram a conversar. estante então ficou difícil ler o nível dos leucócitos. eu tenho uma
não acreditava naquela época que se falasse em despedidas. ele filha, não sei se você sabe... mas não tenho foto dela aqui.
passou correndo, o cavalo. nascer é tudo igual, mas eu lembro que a minha filha foi embora e, eu
ela lembrou da noite e ajeitou o lenço na cabeça; fazia um dia forte sei, que se eu pudesse escolher eu ia ter minha filha toda novamente,
àquela tarde. ontem o pai virou pra ela e parecia escondido atrás porque não foi minha mulher que teve, fui eu. ela também disse que
d'uma cortina verde musgo porque falou enterrado na poltrona: pra não quis. e foi com tanta força que morreu.
mim você já é mulher; o pai falou como se tivesse entregue não sei eu não tenho como criar. Reinaldo mudo, ampliou o silêncio. na
quanto na mão dela - que você não vai perder - e ela apareceu de parede branca esqueceram a porta aberta. Analice ajeitou o lenço azul
repente na sala, antes nunca esteve. agora era gente ou uma coisa na cabeça e sentiu vergonha do dono e do médico, do sexo. ouviam
aparecida. música da rádio que toca nos ônibus, tocava a atendente ouvindo.
foi embora pra cidade no dia seguinte. o cavalo acompanhou a Reinaldo mudou de posição assoando a congestão. eu tô com a
bicicleta por mais uns 10 metros e daí não deu mais pra ver se a vista barriga grande, doutor... o pai não se afetou. tinha dito pra filha: pra
alc... mim você já é mulher. a informou, a viu os cabelos. ela o olhou no
se despediu dele batendo no sapato, nunca morou em sítio, morou assombro duma resignação embora entrevisse melhor esquecer tudo
em fazenda. era rica. beijou ele segurando ele pela cabeça e foi. e voltar pro quarto - repetir que ia fazer veterinária. mas ela foi pela
manhã bem cedo porque foi bem mesmo ele quem a levou pro trem
1989: orçamento que não ia fazer voltar de volta. estudou cansado Ana e Alice dentro
da barriga... Alice ia escolher, ia preferir morrer agora que ver a

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armadilha infeliz que não quis, preparada; estar e não poder prender CONLUIO DAS DELÍCIAS
uma pedra se jogar no rio porque Deus ia mandar pro inferno. Quando essas pessoas saíram de perto foi que deu pra ver, eu vi, as
lembrou da atendente e pensou na música do rádio "ouvi você dizer / pessoas iam saindo, andando pra longe e eu soube que era melhor
eu sou o teu amor?". ele passou a mão espessa camada de madeira na segurar no corrimão da escada que eles andavam como se fosse
mesa e ordenou-se que não ia pensar que não ia esperar a atendente carregar junto. Às vezes acontece demais isso: da pressa. Quando
entrar na casa e deitar nua dele, ele, do lado dele. Zuleica lia nua na Analice chegou na cidade, uns meses atrás que não foram muito
porta da rua com um cigarro na boca afeita, que grudava. tempo, anos, achou tudo difícil. O bonde contornou o teatro João
Caetano articulado, era isso: a poesia desceu pra barriga. Analice
1978, quarta-feira: esforço fugiu lá de Resende e andou toda aquela estrada de Resende até o Rio
Reinaldo replicou os designos do Senhor: o salário do pecado é a só porque, além de gostar de Emilinha Borba, não ia ficar lá e ver a
morte. Então soube que o carro que bateu em 1978 levava dentro a filha nascer no meio da terra.
mãe da filha do médico. Esqueceu dos quinze anos quando a mulher O médico olhou pra Ana e perguntou se ela ia ter o filho e ela disse
doida morreu dois dias depois que ele perdeu o cavalo égua correndo que não, daí Alice se olhou no espelho e perguntou pra que é que
na nossa terra azul e molhada. a mulher, mãe, esqueceu-se na casa adiantava todo o sacrifício de ser poesia, descer pra barriga e depois
dele, pediu água e perguntou o seu nome, Reinaldo. mostrou o seio ficar com a sensação de que comeu uma laranja muito rápido e tá
esquerdo na sala pequena longe de todos. ela beijou ele, segurou ele entalado, ou comeu pipoca e a casca fica presa perto da faringe. Ela
pela cabeça e ficou. esquecido sentindo que ela tinha uma boca e não entendia, eu também não, meu Deus linspectoriano, o mundo é
línguas d'ele enterrado no sofá vermelho de almofadas crochê, parede muito esquisito.
descascando. o ar passou pela boca e ele sentiu o peito, a língua e os
dedos dentes entre as coxas de exatos quinze anos. o teto sumiu, Analice não achou o amor no Centro do Rio, ao contrário, comia mal
voando misterioso como a sujeira entrando pela janela e o sol. ruído demais. Ela não tinha esperança que fosse achar o amor, só a
de disco de vinil. ele esqueceu o cavalo como se fosse o do forte Emilinha Borba de quem comprou o disco assim que deu. Trabalhava
Apache. viu pela TV. vil pela cidade. numa sapataria, às vezes errava o troco, conseguiu o trabalho rápido.
Tinha uma prima do namorado que gostava dela e que morava ali

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perto da Gomes Freire e ela arranjou o bico na sapataria. Era bom, passou por isso pra ver, só e só o ônibus aportando em Campo
calçava 36 e experimentava os sapatos quando tinha tempo. Às vezes Mourão e ela saindo com medo das escadas, corre-mão, e ficar tão
tinha muito tempo. As pessoas tinham medo, ou tinham pena, ou era quieta de ver a primeira vez o olho verde dele. Depois é que não se vê
mesmo gentis, porque ela estava grávida e só, e só. A barriga crescia mais nada nunca, amar é igual escorregar levemente e bater os
rápida, algo ao nível de dizer que crescia esplêndida. Alice vingou ombros num poste porque o carro tá em movimento ainda, essas
feito doença em velho, pensaram. Ana esperou as pessoas se coisas não sei bem. Alice abraçou-se com os dois olhos que eram
apressarem atravessar a rua, entrar no bonde, entrar no teatro, comer verdes dum modo que ele entrou nela e disse: agora você é minha.
pastel porque preferia ficar por último. Era tão mais resignada, devia Então ela esperou uns minutos até que ouviu o que devia ter sempre
tê-la conhecido só agora, nunca antes com aquele olho de que sabe sido o som de Emilinha Borba: os meus olhos razos d'água. Depois
antes, de anunciação. Agora ela brincava, mas antes não, lá... Nunca. não quis mais ir, passou os anos e não quis mais ir, nem ver a mãe,
Seduziu por acaso o rapaz que trabalhava com carros, consertando nem saber quem era afinal o pai mecânico, nem o médico que pôs no
carros, motores de carro. Ele às vezes bebia; viu Analice escorada nas mundo e ela nunca gostou dele. Pra que no mundo? Fazer o que
grades de ferro e pronto, e Analice arranjou um namorado. dentro dele? No Centro, no João Caetano, nos dias com frio que fazia
na Gamboa, tanto cheiro ruim na casa que ela corria lá fora vomitar e
Quando Alice pensou que ia se despir, nem tinha mais tempo. Não a depois voltava pra limpar tudo bem justo. O rapaz chegava pra não
exemplo da mãe, a mãe não tirava nunca a roupa. Alice tirava ou a dar pé, não enxergar, hoje eu sei. Vim até aqui com Alice e não deixei
roupa era tirada e ela não via como acontecia, ela que não via nada ela pular da ponte como quis, nem perguntar a mãe porque não pediu
direito andando na calçada porque era muito míope mas não tinha pro médico fazer ao contrário e matar, que lugar de poesia não era na
uma grana pra comprar óculos. Alice pelada no quarto claro, via o barriga. Vieram socorrer, eu disse que era bom rezar. O seu rapaz
rapaz entrando e achava a mecânica das entradas e saídas muito tinha uns suspiros e Alice ia neles até chorar muito quando tinha de ir
lubrificadas e redondas. Dessa vez, agora dessa vez eles me embora; back to the old house. Eu não queria chorar não, dar adeus
entendem, que eu levei Alice até aqui pra vê-la achando que as bem lento é pra quem espera que deitar de luz acesa não seja errado.
entradas e saídas eram redondas. Alice que queria pendurar uma
âncora e se jogar da ponte, era isso meu Deus linspectoriano, ela

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atenta de escutar a tua voz, de escutar com atenção porque (verbo no e Alice... toda cheia de mim, tão liqüefeita de qualquer pedido teu,
pretérito imperfeito) impossível falar, foi assim que ficou: um suspiro qualquer desejo teu, de diversas devoções pelas quais, hoje, vou
e um adivinhado desmaio em cada uma das palavras, das vírgulas da acender velas na Lampadosa. e ansiosa porque... você me bebia, me
sua língua. retorcia e ali, exatamente ali.
não é por fim que digo aqui o que não quero. é queda, mas sem disse baixo dos meus sentidos e os livros do quarto rodaram duas
fundo: atravessar umas milhas imaginativas porque, num vezes quando senti vergonha. te desejo pros indefesos afetos do
pensamento forte, o que encontro à volta é só pele e quanto isso dói. possuir. te desejo pelos meses em que nunca chegaram cartas. te
você acredita que dói? como sente em você? deixo me colocar do seu lado sonâmbulo e disfarçado por saber que
puxar o ar pelo nariz, soltar o ar pela boca, assim dizer de vez você mente bem, me escondo entre os vãos da poltrona pra que você
(recomendação sua, olha o preço do interurbano). demorou cerca de não veja que eu danço e que gozo e que seu nome sai repetido quase
cinqüenta e três horas a palavra sair e saiu torta porque, se não no rido, derretido; entraram em mim seus dedos. o amor.
corpo, pra onde? tropeçou sem nem beber. saiu letra por letra até
virar frase que no total tinha muito pouco, mais escondido en-
trepausas, fio de som mesmo. isso era necessidade confessada,
necessidade protestada pelos meus dedos, meus cabelos, meu
pescoço, minha boca, meus seios: com que castidade abria as
coxas... minha vulva. e derretia toda a cautela - se bem que o dito não
saía - então virou suspiro de beijo e só. me vejo no fundo duma
garrafa tantas vezes... uma imensa garrafa vazia onde estou
esperando um navio passar; pulando, dobrando os braços. o navio
não passou.

me vejo tantas vezes no fundo de uma garrafa transparente, agora ela


enche de algo que não sei o que é, que é fresco, fresco e quente, e sal,

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ii. RESGATES OBSESSIVOS NÃO-FOTOGRAFADOS
Conheci a cidade duas vezes e, primeiro, ela foi lugar. Hoje é tempo
suficiente para fazer uma lembrança indiferente. Ainda sim, não
se é isso, então vai. e realmente foi. nunca é segredo o que a esqueço, não consigo esquecer das anteriores, quando as árvores
gente quer guardar; a gente conta, a gente fica esperando a eram muito maiores. Vi primeiro, pela primeira e incrível já
vida inteira pra sentar do lado daquele ouvido e dizer, aquele esquecida vez, o Rio de Janeiro pela placenta da minha mãe, quando
ouvido que só tá ali pra ouvir mesmo, que acha até que gosta as barcas iam atracando e ela passava por cima das bóias feitas de
de ficar e ri, chora, acha bonito ou faz o bonequinho viu com a pneu, das cordas do atracadouro, alheia aos atos de parir; levantou a
história. ela daí foi mas sem dizer que não queria não o “então mão recusando ajuda e - isso me lembro bem - foi por esforço que
vá”, queria mesmo toda era ficar e fazer a coisa de sempre. não caí no chão da Zona Portuária.
então vá foi uma frase falada curta tão jogada... foi o estilingue
que me caiu pra longe sem nem uma benção. durmo de olho Nasci na Freguesia da Candelária na primeira e última manhã cedo

molhado em tudo que é medíocre e flores porque agora em que acordaria sem dar a mínima pra chuva que caía lá fora. Meu

também sou kitsch. sumo aos poucos, e multiplico tanto que pai trabalhava do lado da maternidade, na Marinha, e devo a isso o

delirei em dúzias de braços, transas e etílicos num barroco motivo dele ter saído naquele dia e entrado no primeiro botequim da

plástico. nessas horas eu realmente fui; todo segundo que Rua Visconde de Inhaúma, desses em que fica suspenso aquele

passa eu de verdade fui: a paralisia temporal. quase ser no audacioso fog de churrasquinho-de-espeto (dizem que é feito de

agrado dos olhos dos tantos todos que me rasgam, devoram e


gato). Estava tanto devidamente acompanhado pelos colegas do
sindicato quanto devidamente bêbado. Batucou um samba
limpam a boca. abcesso de bom momento.
acompanhado por caixas de fósforos, mesa de metal e o painel do
rádio onde gravaram uma K7. A preta que me tomava conta quando
eu era pequena ria demais quando ouvia fita. Ria de mim. Quero
dizer, ela cantava o sambinha de cor e acabei por me enfurecer e

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desgravei; pus por cima João e Maria dum vinil 12" [arranhado] que qualquer maneira. Perguntei a ela se lembrava disso, hoje ela anda
adorávamos dançar espalhando pão no piso. tão mais devagar (reticências). Lembra mãe? Esses dias passei por lá
e estava vazio, seco, com um monte de papel da Kibon, de latas, de
Foi nessa época que a vi por dezenas de vezes inéditas e a São
folhas, jornais e um monte de troço que não queremos saber. Ela
Sebastião veio vindo pelas mãos arrastadoras da mãe que prosseguia
continua indo em frente fazendo bater meu cotovelo na testa. Ela não
recusando quaisquer ajudas táctis. O que retive? Mais uma vez chovia
lembrava. Por que estou tão apegada à essa piscina verde metida na
pro chão quase preto refletir os lojas da Rua México onde tinham
calçada? Não sei. Depois daquela época da Rua México-
aquelas modelos dentro do vidro com lenços marrons no pescoço;
lojas/manequins veio outra, depois ainda outra e houve uma
peças incompreensíveis, paradas, inatingíveis e cheirosas, como hoje.
especialmente em que vendíamos comida congelada nos prédios
Acho que já naqueles meses eu pensava que olho servia bem pra
comerciais. Aí sim, somente olhos estroboscópicos capturariam a
objetiva, pra obturador porque piscava capturas de lembranças. Elas
pressa, os postes, as pedras portuguesas, os vendedores de Biscoito
foram se acumulando, misturando com contos, nelsons rodrigues,
Globo. O Rio de Janeiro parecia sempre tão absurdamente frio
urina no meio-fio, medos, músicas, hálito de café com cigarro e
(reticências), acho que porque era sempre nas férias de Julho que
cutias: penso que é por isso que tão poucas foram reveladas. Nesse
estava eu por lá de um lado pro outro sem nunca, nunca conseguir ir
tempo, pensava que nunca ia querer rever nada que não fosse novo,
na praia, meu maior desejo. Via as barcas jorrando água pelas laterais
daí não levei a nenhuma câmara escura, não fiz quase nenhuma
e, lá da varanda dela [ferry], o vento bate fortíssimo. Está logo lá à
revelação, hoje tento e percebo filmes queimados que...
frente muitos pequenos dez passos de faixa de areia, eu achava que
Me espanta que as cores, os formatos e os guardas municipais
aquilo era praia e queria pular lá de cima da amurada. A praia, mãe!
recordados com mais agudos apontem para o chafariz em frente ao
Não podia, ela não gostava e faltava tempo.
prédio do Banco do Estado, o que foi comprado. Esse aqui, o verde
coberto por grades. Verde, encimado por um gradeado verde e cavado
em plena calçada feito uma piscina muito, mas muito funda, parecia,
em que muita gente jogava moedas. As grades eram pra que os
mendigos não nadassem lá, mas eles enfiavam os pés entre os vãos de

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ASPECTOS CANSADOS DO SENTIDO Mas não é de Teresa que íamos dizendo, mas de Maria.
Passando pela calçada, disseram p'ra tomar cuidado. É sangue! Era Maria apaixonou-se, como já era de se esperar, e íamos todos
sangue dos tiros. Mas passamos pela calçada em cima do sangue passando pela calçada. Ele disse: reter a existência me empobrece a
mesmo porque não era um sangue nosso, o que achei muito natural; alma... Como Maria não tivesse mais nem um centavo e a alma já não
ia ter de haver muita água dentro dos corpos pra se chorar tanta lhe nunca pertencesse mais, chamou hipérbole e sacou o próprio
gente desconhecida. De qualquer forma, passamos na calçada e nem corpo, atirou-se em baixo do ônibus vindo, imagino que por pensar
havia mancha nenhuma lá; mas houve, eu achava; sangue dum muito forte que fosse Anna Karenina.
atropelamento. Os dias passam e a calçada desbota mesmo. É coisa Era assim de fazer tudo nos seus impulsos fracos, mas extremados,
do tempo, desbota e apaga que ali tinha tido muita tragédia, tragédia porque sentiu-se culpada por não saber fazer mais nada além de
de cruzamentos e que iam sumindo um mais ou um menos. querer segurar o tantinho que tinha, não só daquele amor histérico,
Pensei que partíamos, mas só andávamos na calçada quase sentidos mas daquela razão calma que lhe dava sentido e identificava para
da pouca certeza que assim entre nós se estabelecia então. Maria não além da inveja que sentia de Teresa, ficava feliz com ele assim de ser
poderia se chamar outro nome se não não seria Maria, seria uma Maria por ser bem querida e cantada de tiara branca: nunca antes
outra pessoa que não faço idéia de quem seja, Maria, se se chamasse havia sido notada. Ele disse: isso é coisa que demora, não é assim
Sandra, talvez fosse até parecida mas, por exemplo, se fosse Laura, ia mas, sabia lá ele que o tempo de Maria, ou o meu, de Sandra, Dita -
ser outra sem o menor sentido. Maria se chamava Maria porque não o de Tereza que não precisava de ninguém - demorava exactos
Maria é o nome de toda heroína de doçura resignada, retardada; já dois segundos pra fazer uma hora? Ele escorria (o tempo), vazava e
muito diferente de Teresa. Teresa descia o morro de Santa à pé correndo no meio fio não há água que fique potável! Ela não pôde e o
porque achava desaforo pagar 60 centavos de bonde. Teresa tem que fez, implorar, entristecia por gargalhadas a alma do seu rapaz
umas coxas tão duras que eu queria morar numa casa feita nas coxas que não a mais quis. My love grows more and more passionate and
de Teresa. Teresa sabe ser doce, mas geralmente nunca é porque são selfish, while his is dying, and thats why we are drifting apart.
passagens da rudeza da vida, igual a calçada, a doçura em fade in. Eu lembrava Maria, devia lembrar porque minha mãe
Teresa nas histórias é sempre toda combatida (ou combalida?) e constantemente me chamava assim, mas nunca realmente a conheci.
declara neste ato que gosta mesmo é de ser comida de quatro.

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Tinha sangue na calçada, mas algo muito insinuado já tão ido,
alguém tinha caído e batido com a cabeça.
Eu segurei a sua mão um pouco aflita e disse: me segura qu'eu tô
escorregando. Assíndeta nessas coisas imperiosas d'eu ter te
conhecido... Queria ser a mulher do padre.

A subjetivação do cotidiano, a exacerbação de seus sentidos, tem


por base a seguinte linha: nada é mais poeticamente instigante,
nem desperta maior apego, que o inútil. Ser amante nasce do
susto de ver sempre queu respiro.

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COINCIDÊNCIA NOTURNA ANTERIOR dedos em mim, pela vontade de me esconder, pelo meu excesso de
pudores. parece tanto estranho dizer mas, digo, é urgente que se saiba
parece difícil transformar em texto e realmente é. intimidades
que você circunscreveu meus seios e que você me ladeou e que houve
elementares só pedem silêncio pra paralisias convulsas e, desse jeito,
essa posse e que fui pelos cabelos puxada. violentamente estive devota.
não se sabe direito como me tornei diversa, como foi que quis te
simplesmente quis devassar, singelamente forçada, frondosamente
procurar com as mãos e vocalizar sentidos que nunca expressei. são
aberta. eu quis joelhos, quis ponta dos pés, quis beber e transformar em
todas imagens que, de tão aproximadas, são muito turvas: te procurar
texto parece fácil, se você soubesse das exigências que... podia mesmo
com as mãos, com os dedos e as unhas num movimento tão
ser toda sonolências e se eu dormir e se você me morde, se eu te chupo;
irreconhecível que é coisa de dar passos pra trás.
são percepções acetinadas do não comparecimento. apareço esmagada
entre os dentes. li teu cartão pela vigésima vez. li teu livro agora e foi
ineficiente. pela insistência da sua demora que me toquei gostoso.

se eu escrevesse a palavra, escreveria num espelho pra ter coragem de


olhar (pra ele) em dizeres, de dizer que foi um salto do desejo, suprimir
o que até hoje me pareceu proibitivo. saltando pelas sacadas,
prestando uma atenção suicida, aturdi mil beijos pelo seu pescoço e
desenhei quadris perfeitos pra encaixe, mas não menti: quis estar
infugível contra paredes.
a impressão que se tinha dali era que o querer estava vindo e agora era
seu. era eu que te acordava, que achava hora pra parar os seus sonhos,
que te procurava com as mãos, que te engolia dos seus sonos, que fazia
cercos de língua e de realidade como se fossem cafeína.
e o que mais havia de ser? eu bocejava e sentia os seus dedos em mim.
eu reclamava mais cinco minutos e só o que tinha era o preenchimento
de todos os vazios universais pelos teus dedos em mim, pelos meus

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Visão do paraíso planos engraçados, sonhos muito engraçados, lindos, que a gente é bem
feliz, muito, muito feliz só quando as juntas atrofiam e você está
a primeira vez que vi meu filho eu não vi meu filho, eu não vi nada. na primeira vez eu vi e era
obrigado a desistir de dançar, de beber e de trepar. Afinal ele me deu
ele com uma cabeça quase do tamanho do corpo e os tubos que drenavam a água. acho que
não gritei porque nunca grito. mas era lá eu, a primeira vez e era meu filho. que mãe animada!
um beijo porque o obriguei. Afinal ele iria embora e eu não o veria mais
ele não tava morto. eu nunca mais tinha acordado. e me encostaria a boca paternalmente, quase maritalmente, dum modo
que nunca mais esqueci. Digo do Bruno porque ele me pensa quem eu
não sou: alguém que lhe é diferente, e não sou. Digo, sim: danço com as
juntas atrofiadas porque juntos e atrofiados ficarão todos os meus
enredos.
Eu tinha tudo para ser infeliz e aí eu sou infeliz uma vez de cada vez,
mais só. Tão só que nem em terceira pessoa iria rir e não só por estar Minha casa é infinita de absolutos vazios, e de pobreza e de
vazio de gente: só pelo excesso dos mortos. Lembro que já fui pequena jornais pulp reality fluminenses. Esses de trem, flores cinza-pedaços-
um dia e que dançava, que queria dançar num balé, não dá pra saber de-outros-papéis-cinzas fluminenses. E a minha casa tem mais arte que
agora, mas dançava e dizia que mãe, eu quero mesmo é um dia dançar a privada do Duchamps e a minha casa tem privadas em muitos
todos os dias. Naqueles meses tínhamos um sofá vermelho que não cômodos e tem uma tampa de privada em baixo do armário da cozinha,
dava pra deitar no calor porque virava uma piscina de suor. Ela dizia e tem uma área de serviço e tem uma escova de dentes muito velha na
que, filha, dançar é bonito, mas você não vai dançar. Eu achava muito fruteira depois que alguém pintou os cabelos com ela. Penso que não é
engraçado esse desentendimento, eu achava muito engraçado que por falta de quem bem me queira, porque não é, porque tenho: eu tinha
ninguém entendesse que eu ia dançar e então os anos se passaram e as tudo para ser infeliz e sou infeliz por uma vez de cada vez, cada vez que
minhas juntas foram ganhando ângulos cada vez menores até que não aqui mais cercada da dor dos outros, da mais só. E a casa cada vez mais
dançassem mais. suja com um saco de lixo guardado não sei porque, e outros, e um fogão
Queria que o Bruno entendesse, quando come um pão barrado de nada novinho, e um microondas novinho, e uma churrasqueira novinha em
que, se eu como Qualy, isso não me deixa mais acesa, isso não me deixa que nunca faremos churrascos dum lixo novinho que produzimos
mais esperta, nem mais tranqüila. O Bruno achou que não devíamos tentando não comer as peles dos frangos.
nunca estar. O Bruno acha que não, nada deve dançar muito, que são Aqui é muito sujo, a vizinha neopentencostal tem uma voz muito bonita

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mas, se não se cuidar, vai perdê-la, mas Deus deu o dom e vai cuidar. TÍTULO TRAVESSIA PARA MOÇAS PERPLEXAS
Deus deu o dom e vai cuidar. Deus me deu o dom de escrever porque
queria me cuidar. Aqueles hinos evangélicos enchendo o saco e então cachecol molhado, bota molhada, não era das meninas mais impermeáveis;
eu atinei que iria escrever com o desespero de quem toma chá na sempre tudo molhava até as revistas e os livros nas ocasiões mais diversas, a
Colombo sem nem um real no bolso, com o desespero de quem tem principal delas era, sem problemas com a certeza, quando chovia demais e
uma privada usada na varanda, com o desespero dum cachorro entrava água no quarto (rachadura na parede). inundação. chorar fazia
atropelado correndo no asfalto preto e vazio de noite. Eu escrevo como
pouco; se proclamava a vontade e ficava sempre sendo só vontade porque não
quem achasse que dá pra ouvir música, como quem pudesse esquecer
passava jamais da portinha do olho. ela dizia que tinha cadeado praquilo, pra
as mortes que as dores dos outros causaram nos outros, como se o
represar, e represou sem querer de tanto não poder se fluviar.
guarda-chuvas do Dahmer pudesse me salvar, como se eu pudesse,
desse jeito, então, tinha-se feito aquele redor.
entrevada, dançar.
se não molha por dentro o trasbordamento vem de fora, por infiltrações, ou
Meu irmão retardado jogou fora aquela minha cadelinha, o meu irmão
cano estourado ou caos poético bíblico. sorte era que nadava bem, não que
retardado jogou fora a placenta da mamãe, o meu irmão retardado
tivesse treinado, nunca tinha tido asma, mas aprendera numa bacia de
jogou fora o meu contrato de trabalho, o meu irmão retardado jogou
alumínio cheia e fresca, entre a terra muito batida e a sombra das folhas de
fora uns beijos sem língua que me deu, o meu irmão retardado , esse,
bananeira - aliás, acreditava piamente que as folhas de bananeira, se secas e
jogou fora o fio que ligava o som.
trançadas, poderiam se transformar em jangada. perdia ou ganhava dias de
sol no tanque velho (hoje, ao redor desse tanque, colocaram cacos de azulejo,
um de cada cor no concreto) daí lavava as folhas com sabão e punha pra secar
feito fosse roupa, com pregador e tudo. se perguntada sobre as aprontações,
respondia pra preta dos cuidados que queria secar as folhas e fazer uma
jangada das tranças. preta não só dos cuidados que evitam de cair ou se
perder, mas das imaginações. ela ensinou que não se ia a escola, se fazia
percurso, e que se pode(ia) entrar nos matos pra tomar um mel que dava em
plantinhas, também tinha aquele melão-de-são francisco. eram épocas

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moderadamente úmidas, humildemente frescas, tinha também abacate
amassado com limão, mas ele ainda não era expresso, mas ela ainda não
tinha cadeado pra represar a água de dentro, se soubesse, se eu fosse falar
com ela agora, ela ia me dizer preu jogar fora, dar com pedaço de pau, pra
gente enfrentar os mosquitos e a perna ralada, pra gente dar nome pros
cachorros desconhecidos dos vizinhos desconhecidos e sonhar com que casa
morar (o sobrado branco tá lá ainda, igualzinho!), e ver a galinha Knorr
colocando ovo, biscoito de maisena enfeitado com garfo de 4 dentes e todo
etecétera. se ela me visse...se eu pudesse falar de ouvir com ela agora, ela ia
dizer preu desaguar e escrever de vez em sempre. eu ia dizer que todo segredo
deve ser mantido do olho pra dentro, que isso é falha que a gente aprende no
eito dos mal-amar... cachecol molhado, bota encharcada, jaqueta que não
cobre os braços, ponto de ônibus e daí é noite. que'me dera agora te'minha
jangada pra cantar.

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iii. O morto

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Se fosse estranho você podia até parar de rir! Quase rosa, inclinada na
mesa, ela balançava o queixo e o pescoço, mostrando a língua branca.
Eu ficava sufocada no Barão de Tefé, tinham aqueles vidros parecendo
Eu queria parar de andar feito gente o tempo todo, minha mãe dizia almofada, o sol batia e o hall ficava entre os mais decadentes, até em dias de
isso e eu nunca acreditei. Paremos, paremos, quantos anos ela tinha na chuva... Contava as moedas e separava umas quatro pra sinuca, tinham de
época? Quinze... quinze e debochada. Eu olhei pra sua cara de casado, ser quatro, se não desse, completava lá com quem fosse porque homem
não posso esquecer, logo vi que você era casado. E a sua? velhos 23 naquela época ainda não tava em falta. Depois da escola (isso foi bem antes)
anos numa curva embaixo dos olhos... de separada. Ela subiu eu passava o pé na rua, o calcanhar mesmo, fingia de ralado, ás vezes
novamente na poltrona mas riu menos, desfez os pontos do crochê por sentava o joelho inteiro no chão e ia pro Servidores chorar pros médicos
tédio. porque achava tudo muito limpo, mesmo a comida de sal dos doentes. Puxei
Eu queria tudo diferente... às vezes eu acho que esse cheiro não vai sair uma toalha de dois palmos de dentro da bolsa e tirei o suor da testa pra
de mim e do cabelo. Isso me espanta em você, e acendeu um cigarro, espantar o sufoco do Barão de Tefé, olhei pros vidros e pensei que não
foi pra junto da janela exatamente quando passou um Maverik serviam nem pra retocar batom. Passava a mão no quadril e não achava

vermelho escrito vendo raridade. Te espanta porque não precisou mais nem uma nota mas pra lá não ia voltar e ele era um moço pouco

comer os ovos empanados do boteco, o moço me dava até um refresco curvado, ia ajudar, tinha levado um pacote de sopa em pó e já jantava

de graça, junto com ovo... ovo cozido empanado, ovo à milanesa e um pensando nos quatro dias de antes. Pai.. vai tomar um banho e, numa
limitação hermética, coincidiu as casas do botão que tavam erradas e voltou
refresco bem ralo de maracujá. Só queria tirar o cheiro de peão de
pra dentro o pai, diferente da sopa que agora queria sair pra arejar, pra
obra. Não sinto, nunca senti, não gosto de você assim. Riu de novo.
saber se era verdade que o mundo todo era um cheiro só de suor guardado,
Ri... ri que eu te prefiro, ri até com os dentes, Clarisse. Ficou d'um
cimento e marreta de bater pedra.
sussurro que se estendeu fresquinho pela sala e puxou uma mecha de
Fiquei clamando o elevador uns dois minutos até ele aparecer e disse de
cabelo dela com outros dedos da mesma mão de cigarro; prefiro você
novo que não ia voltar hoje até que deu o sinal de térreo e ele apareceu atrás
Clarisse à Macabéa. Não sou nada não... Ele puxou outros pedaços de
da madeira e da grade também acendendo cigarro de dois de mais nervoso e
cabelo, ela se abriu ampla como um flamingo. Ele refez, ventou e se
mais calor que a quentura q'ueu sentia. Depois continuou lá mudo, eu
depuseram pro amor.
querendo entrar, você mudo e dois cigarros juntando cinza: não saía. eu vou
pro 3, você informou igual uma balconista e eu perguntei qual três, nem sei

15
de onde. Pra que quer saber, e ela até cuspiu mais do que o planejado. 306? 1
Pombas mas a vontade de fugir parecia vontade de sair correndo e fazer xixi, colocou o copo dentro dum pires de plástico que tinha e provou antes pra
ver se tava bem misturada, fresca. a água! tá boa? ótima... não precisava de
ia embora, decidiu que voltava e voltava porque precisava fazer xixi e
pratinho. e bebericou com os olhos arregalados olhando, não se sabia
porque não sabia ficar dum modo direito, tinha medo de homem, se
porque. pensou que era o teto. vai, anota. ela pegou a conta da light e
arrastava pra todo lugar por causa do gosto do suor velho que tinha ficado continuou escrevendo três claras. onde tá escrito anis, coloca essência de
na camisa. Mais a sopa. Ele teve apendicite mas vim avisar pra você que baunilha porque vai dar certo do mesmo jeito, deixa eu ver aqui... que letra é
podia precisar dumas notas pra Coca-cola. Não vem? Eu fiquei com os olhos essa? m? eu não entendo os garranchas da Aura. aqui... é m, é m. a chuva
entrou pela porta aberta e a água que escorria da calçada ficou em cima do
tão cheios de água que não sabia se era alegria, tristeza ou era o pensamento
chão com um palito de picolé da rua, junto com ela entrou o pai com sangue
já na Coca gelada. Pegou o embrulho pequeno e voltou pro armarinho,
na cara e os dentes que ficavam caindo no lábio.
vestiu o avental e foram os dois cotovelos pro balcão esperando dar as sete pai!
com a chuva caindo e enchendo. Credo, tua morta! A outra sacudiu os dedos tá pegando.. tá pegando... caí... caí da caixa d´água..
dos pés e continuou. Não voltava mais no Barão de Tefé, não ficava nunca e eu fiquei olhando pro rosto dele quase preto com sangue e molhado e a
num namoro e assim tava bom também. Acho que quase oito meses depois testa fugindo pra lá e pra cá perdida. achei tudo um pouco estranho e a
gente foi pro Souza Guiar até que o meu pai morreu querendo fechar um
meu pai foi pra gaveta de concreto (foram partilhar) e o corpo não me
registro verde.
largou nunca mais porque eu era eu e era ele que nem bucha vegetal tirava
aquele cheiro do gosto do morto, de água, de pedra nem de pó de parede. 2
ficou lá em frente da porta chupando o cigarro como se tivesse tomando
vitamina de abacate no canudo. pensou na história do apendicite e que
salvava um casamento porque não era amigo da onça. dava uns trocados
pra menina, ia pra casa assistir a novela e dormia o feriado todo. Gonçalo
tinha arranjado uma prostituta. Na Gamboa só nascia prostituta e
manicure naquela época, mas o Gonçalo preferiu uma prostituta da
Gamboa que não era bonita mas ia lá que ele dizia que era sem ninguém,
nem pai, nem mãe porque era um estúpido muito conhecido. Tinha levado
sopa em pó certa vez e não se achava canalha porque tinha roubado da
dispensa. ela não aparecia, passava das cinco e meia, Barão de Teffé, 306,
e tinham umas bandeiras de países na fachada, já ia quase embora e topou

16
no elevador. deu os trocados, contou do apendicite, foi pra casa e viu Eu queria tudo diferente... às vezes eu acho que esse cheiro não vai sair de
novela com a mulher. Elisa tinha uma mancha estranha no pescoço, uma mim e do cabelo. Isso me espanta em você, e acendeu um cigarro, foi pra
vez no bar chamaram ela de malhada e agora a sua mulher não era mais junto da janela exatamente quando passou um Maverik vermelho escrito
Elisa, mas malhada pros amigos, pelas costas dele; às vezes pelo lado e ele vendo raridade. Te espanta porque não precisou comer os ovos
fingia que não ouvia enquanto rodou a última folha no mimiógrafo. empanados do boteco, o moço me dava até um refresco de graça, junto
com ovo... ovo cozido empanado, ovo à milanesa e um refresco bem ralo
3 de maracujá. Só queria tirar o cheiro de peão de obra. Não sinto, nunca
mas ele tá bem? tá... tá bem. ela embrulhou o estojo de agulhas e puxou o senti, não gosto de você assim. Riu de novo. Ri... ri que eu te prefiro, ri até
peso de durex com o cotovelo, tentou cortar a fita, esticou demais até a com os dentes, Clarisse. Ficou d'um sussurro que se estendeu fresquinho
segunda vez, que deu certo. ele pagou, ela deu três balas de tamarindo de pela sala e puxou uma mecha de cabelo dela com outros dedos da mesma
brinde, ele agradeceu e ela mandou melhoras se chateando depois consigo mão de cigarro; prefiro você Clarisse à Macabéa.
porque ria sem querer, ria sem vontade.

4
turco filho da puta! uma menina minha e eu achando que você era como se
fosse meu irmão!

5
arrastou o peso de durex com o queixo e segurou o embrulho com uma
mão só, puxou a fita e cortou. pensou que a desventura era o acaso da
aventura mas que queria mesmo era rir agora, não rir amanhã ou ano que
vem lembrando do que de ruim tinha sido, rir no ato contínuo. ele pagou,
ela estendeu duas balas de manga ou laranja (os dois pacotes eram
amarelos), ele bateu a mão no botão da camisa, ela agradeceu, ele deu boa
tarde. quatorze dias depois ela atravessou duma rua pra outra e ele puxou
ela pelo braço e deu um beijo com a língua que parecia que a mão dele ia
entrar direto no sutiã, quase entrou dela chegar em casa com tanto
engasgo que teve febre pensando que a mão devia ter entrado.

6.

17
iv. Préstimos uterinos JANTAR, MICROFILMAGEM E TRAVESTIS

Arrastando a tarde, se pode até ver o que acontece: as duas pessoas se


encontram e começam a fazer traços como se pudessem permanecer
juntas por muito tempo. Eu permaneço. De janta fiz o que você gosta
de comer e coloquei pouco sal por conta de você ser hipertenso. Coisa
estranha, essa, ela vinha calada mesmo. Toda vez que ele dizia umas
palavras, parecia que a casa tinha ficado menor; eu queria tanto ouvir
as palavras que destruía todos os espaços, todos os móveis, esquecia as
cores e não perdia a atenção dos teus ditos. Mastiguei bem usando o
lado direito porque o esquerdo da arcada doía, andava doendo fazia
dias e daí mastiguei com gosto de alho, no lado direito incisivo. Não me
importo, depois que já ouvi eu não me importo. Penso que você trazia
dentro dos bolsos, do trabalho, trezentos fantasmas e por causa disso
eu nem dormia mais, só dormia quando Augusto Pedro aparecia e me
dizia que podia ser.
Nunca me habituei com esses seus modos de jantar como se
pudéssemos beber todas as garrafas da casa, como se fosse educado
bater o garfo na beirada do prato, mas o pior eram aquelas perguntas
que eu queria te fazer mas não fazia, iam me comendo de perto, mais
perto que o Augusto Pedro. Parece que não quis dizer a gente, é
difícil... Você concordou, aquele trabalho dela na TV, as entrevistas, o
que os jornais haviam escrito, as seringas e quem não ia morrer por
causa disso? Às seis horas da tarde eu preciso ir ao banheiro trocar as

18
calcinhas, lavo com aquele detergente próprio que deixa tudo com hipertenso. Quando eu te conheci frívola... E você senta e coloca o
cheiro de loja de departamento, é bom a beça. Eu penso que Augusto garfo na comida e a comida some nesse seu focinho queu já amei. Às
Pedro vai chegar e acho que vou levantar e trocar a calcinha vezes me esqueço. Terminamos, quis levar as coisas, fui lavar na pia,
novamente, você não sabe. Pergunto do extrato do quis ser perfeita nisso, quis Augusto pra chamar de Pedro, esqueci o
banco:microfilmaram o cheque, não te disse? Não disse, pano de prato, o exaustor, as cortinas, apaguei desatenções e o garfo
verdade? Verdade. Aquele rapaz, o de dois nomes augustos, me rolou pelo detergente até que caiu.
ajudou. Que rapaz! Avisei à gerência, lhe devo aqueles Cohibas que
prometi. Concordei esfregando as coxas. Apaguei novamente os
móveis, o sofá, apaguei a máquina de lavar da cabeça. Quando eu te
conheci frívola...

Eu prestava atenção, quando ele me conheceu frívola... Você tinha


esses teus segredos no bolso, essas pessoas, esses meninos do
escritório que você esbarrava a mão na bunda e as meninas do
escritório que você gostava de comer o cu, esses seus segredos... esses
meninos de boné e grandes peitos que você olhava quando o carro
contornava a praça. Esses seus segredos não me deixam mais dormir,
faz dias. Eu só durmo quando Augusto Pedro me diz que devo. Esse
gerente. Mastigou o suflé de legumes, desferiu golpes de língua pra
tirar o resto dos dentes, rasgou a garganta bebendo água com gelo. Eu
me sentia sufocada toda vez que ia à praça e via os garotos de boné,
com peitos. Pareciam meninas, mulheres com grandes e rosas
mamilos. Eu me sentia sufocada quando ia à praça das nove e meia às
dez pra te ver, te descobrir e voltar pra casa, fazer teu jantar de

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PENSAR EM QUE AMAR 3 MINUTOS: HESITAR
Pela meia noite, a gente entrou numa dessas de conversar a respeito do
e inda dá tempo de pensar em que é amar: jogar-se sobre dois pés e pedir preço do maço, coisa estúpida. Coloquei a mão entre o braço e o peito
pra ficar lá pra sempre igual quem pula do andar térreo e cai lá no chão com porque o frio era o pior desde que tinha chegado. Meu avô recostou a
a testa. almofada na cadeira lá do outro lado da rua e eu tentei entender o que
é que a gente tinha de dizer pra sair daquela e ir pra outra. O rapaz não
(queria que respondia e eu ficava pensando nas invenções de assunto, nas
ele tivesse mais invenções de pássaros. Pássaros passam pouco de noite, sempre pensei
metros
que estavam atrasados pra chegar em casa. São noturnos, ele comentou
longos - o térreo, os pés, o chão
e fiquei sem graça junto lá, e ainda abraçada com a minha imaginação.
Pássaros retardatários.
toda declaração de amor é uma entrega de mão única, nunca recíproca. o
A cidade era muito pouco parecida com a que eu tinha, com a que a
ser que a recebe nada pode fazer a respeito para defender-se da fraqueza
gente brincava. O meio fio continuou sendo meio e sendo fio. Genalva,
do outro: o pior, o poder dos humilhados
liga pro teu pai. Fiquei quieta e fiquei em silêncio olhando pro pé das
formigas, ele continuava e parecia que ia fazer discurso: Genalva, liga
(que o térreo fosse uma queda longa pra você não me ver cair,
lá, não deixa ficar tão tarde. Você entristece todo mundo com seu
não queria te incomodar com minhas necessidades Maria Madalena de
beijar teus pés. quero beijar teus pés hoje, domingo, dia santo. quero ser o sumiço valioso e eu não posso mais te esconder.
pecado da idolatria. quero beber a sua perna, o seu gozo, seu olho como se
nunca tivesse conhecido fortaleza, agora que não a tenho mais... seja pouco 3 minutos: hesitar
paciente na falta desse meu jeito pelo térreo
Genalva era uma garota de montar daquelas casas, aquelas de vareta
dos pés e um seu
que você encaixa um pano por cima; o pano fica no formato das
varetas. Ela vestida com um casaco roxo do material parecido plástico e
ela guarda ainda fichas de orelhões da Telerj. Ela é muito moça,
embora a cara. Agora está de noite e Genalva decidiu que ia embora

20
usando seu casaco tactel roxo com aplicação de gola feita de lã. A FALTA DA JANELA ABERTA
As pessoas é que não percebem (por ser Agosto) quando algumas ficou olhando no espelho no intervalo entre uma refeição e outra (sempre,
coisas acontecem e são escritas: essa moça tinha pai, tinha mãe e tinha sem vírgulas) realmente pensando que estava mais magra, que os dias que
um avô, mas Genalva parecia uma jibóia gorda andando pela casa onde passava infame dando goles e beijos cada um mais aleatório que o outro e
nada era dela, nem os lençóis que ela lavava às vezes. Ninguém dizia até pagando as contas de luz, procurando emprego de um lado pro outro,

nada, as pessoas deitavam no lençol e deixavam um cheiro que ela não cansada e magra. o olho fundo não tem a poesia dos olho de queda onde os

sabia como suportar, por isso lavava com Omo Multiação, por isso se homens se perdem; os olhos 'tavam tão fundos que tinha até aviso pra que
ninguém caísse lá dentro. calhou d'eu passar na hora e ficar olhando ela
sentia às vezes sem braço de tanto esfregar e sem olho que derretia
olhando pra ela e se achando magra. virou pra mim, riu e disse que saúde
saindo pelos buracos.
é de perder igual tarracha de brinco... um vestido só alinhavado pra
Você entristece todo mundo com seu sumiço valioso... Ela achou que
apertar mais depois e acompanhar os ossos que iam desmilingüindo no
bom do cigarro é que não se viam os aumentos do preço. Genalva é
papel de doente. quem mais ia aparecer pra visitar? eu abri as janelas e ela
igual a mim, gente sem lugar pra ir, pra ficar. Ela devia pegar o
sentou no sofá quieta como se fosse católica: quem mais sofre é a falta de
primeiro ônibus, dar adeus pro avô - corda dos afetos com a família -
janela aberta... o vestido e aquele tom de voz que parecia uma senhora de
depois mandar carta de tudo bem e Genalva não ia sem antes beijar
tão antiga. quase tive vontade de chorar porque ela era cortante como flor
uma boca curta. Beijar Tenório.
amarela e agora de vestido branco ou azul dependendo de como a luz
batia. passa essa boca pra lá que eu abro sempre as janelas, isso é pra
insistir! e o espelho ali em cima das coxas, pegava a mão e esticava a cara
em direção às orelhas. depois encostou o pé no cachorro e dormiu pedindo
um embalo, foi como se eu tivesse andado cansada e teimosa. guardei
nossos laços com o cuidado de sempre e cantei baixo até chover aqui
tratando de misturar tantas letras e tempos de nomes ou adjetivos dentro.
sinais que nunca combinaram bem, falando como se falasse aqui
baixo à meio ouvido de distancia sem que ninguém veja.

21
RELATIVO ÀS PALAVRAS

então... as minhas palavras precisam dumas suas pra soarem um pouco


mais que sempre disseram

(com tanto, já desentendem) e precisam reverberar no que você me


permite, no que me exige. e se não no corpo, aonde? sinto no corpo,
sinto e espero a dor, então preciso das palavras denotadas. você as diz.
queria completar essas frases que são bem simples (imaginei bem
simples) foi assim que me esqueci do...
umas tantas vezes fiz só silêncio e você perguntou: pensando em
que? perco a expressão em minutos-litros quando te amo e não
relembro. uns diálogos massivos com teu olho, e outro olho que ficam
olhando em cima de mim. já me vi lá: lugar verde, os cabelos
espalhando, uns modos de perdição brutal

sua metalíngua na minha boca.


emudeço

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v. Abelardo e Francine estupro! ruído de estupro. fui estuprada, abelardo!, sempre fui

francine, não diminuiu: diminui o tom, não o assunto

estupro eu e eles todos. UMA CURRA!!

(ri)
páre...

parar? mas você disse que eu diminuía!

até onde eu vi alguém morreu ou sumiu, francine. tínhamos concordado que você
morreu

você! você acordou! eu disse apenas que morria num ato contínuo praticamente
gerúndio e você já
Je suis Mephisto
Je suis Mephisto me vem com a pá de cal. você é a coisa mais vazia dos meus dias, abelardo.. queria
(Fausto, de Goethe) que você fosse o meu ouvido, mas você não é e é nisso que me sobra muda...

já disse que não somos dois. sou o monossílabo do monólogo.

(soluço ou ar suspenso)
ESTUPRO! estupro por todos os lados! em todas as minhas épocas!, dum dente na
cama até aqui, de tudo, sempre, meus primos, meus irmãos, tios, médicos,
professores, padres... os padres todos me corromperam!, me repartiram, me forçaram.
Devoções!

se eu estivesse lá, te salvaria?

salvaria? ... certa vez - uma das primeiras vezes foi numa festa dos amigos dos meus
pais - eu estava perto da piscina e um deles chegou e perguntou no meu ouvido se eu
ia usar biquíni. eu tinha um que não gostava, mas ia. eu não entendi, não devo ter
perguntado por quê dos seis aos nove, mas disse ia. porque estou louco pra ver as
suas pernas... você me salvaria?

23
2
não. e você, não fala?
depois ele me disse que queria me ver, que gostava de mim, me deu um beijo no
nariz... um beijo no nariz. um beijo molhado no nariz não é algo de se esquecer... infância! infântica! enfática sempre, e agora muda

eu prefiro que você morra novamente porque gosto de você, francine; mas de você abelardo, assusto até os mortos se falo...
longe! me deixa só ser as reticências porque que parte tomo nisso se nem te desejo
muito?, pouco, pouco, de dormirmos juntos sós, não me interessa você, nem a pessoa se falasse. falha, sempre fala. arredava o pé daqui se fosse surdo, mas não sou e,
você. na pessoa você, me assombra! o único dom que me cai é o assombro, é o meu impulsivo, fico pra querer te ouvir
movimento, minha ação principal. não você, mas a presença francine. ela é muito
sua! abelardo! chega! estranho você, sempre estranhei, não quero beijo nem que fique pra
me ouvir. me ouvir pra que? um franco!
ele me deu um beijo molhado...não equivale a um defloramento?
sim, sou um franco
por um segundo não fui reticência... quando? não, não vale
um fraco!
os meus irmãos sempre me beijaram, na boca, mas sem língua. um tio na cama dos
meus pais cravou o dente no meu pescoço e fui a lucy de bram stocker. ele me tocou Também
fogo até que o vento custou a bater pra levar o que ficou de cinza. noutra um tarado,
um judeu tarado. um médico judeu. um clínico com um carro prata, me deu um beijo abelardo... era esse o meu apelo; que você ficasse e que me ouvisse francamente mas
na coxa e pediu telefones. os professores chupei todos até descobrir que não existem é incapaz de ser franco... se fosse mas é à você, abelardo, que ainda apelo ouvidos
presentes. só há venda.
francine... seu nome sempre ficou doce quando eu pensei, até que não pudesse mais,
e os padres? até transbordar nos nossos diálogos esféricos

me puseram no púlpito pra sedução letárgica da miséria. não comece a frase com nomes próprios
você começou antes
quando você finalmente vai?
abelardo!! é como se eu pudesse morrer agora
agora.
e pode

é como se eu poudesse morrer mais agora

e qual a diferença?, todo mundo pode, e eu não sou budista, nem você

24
essa eu deixo em casa
vou morrer agora! de asma estomacal
aqui não é a sua casa ou você se mudou?
infância!!
nunca é nem foi aqui. era como se fosse, mas agora já não.
corrompida!!
você agora é o confuso abelardo da caixa de atum?
infância, francine...
não, agora eu sou o confuso abelardo dos diálogos que você preferir
infância corrompida, abelardo, morro de infância corrompida e de lirismo estocado
da laringe até o estômago! corrompida!!, abraçada por trás, beijada no pescoço, mentira!
abelardo e mordida no lóbulo
verdade!, você é quem vive só de mentira, mente, memento...
quando?
me deixa ir
Sempre
então vai
você revive?
então vai foi uma frase tão largada, foi o estilingue que me caiu pra longe. e agora
revivo você repetindo;quando pára?

infância de francine... não sei. se viver for só repetição, eu não saberia

eu queria um escape. me oferece escape? alitero, já...

minha farta janela, segundo andar. talvez você só quebre a perna. se for caso de não devia...
dinheiro, também não tenho
vai me recriminar mais quantas vezes?
você é frio
(mudo)
não, só não ouço porque é melhor, eu me esqueço, francine... egoístas nunca ouvem acabo, sempre acabei
e, se ouvem, esquecem
não é desculpa. quem mente agora?
mas e a franqueza?
você ainda! e em terceira pessoa.

25
exponho e expus, quer mais o que? me abcesso! você nunca quis nem que eu
ficasse... você finge é crime querer que você vá logo embora?

é... as vezes demora pr'eu me convencer.

é assim que a gente descobre que ama, quando fica descrente.


não somos dois

sei. quero só uns segundos pra me decidir pela sua expulsão

um, dois...

decidi

prazer.

igualmente
(sumisso)

26
vi. é que minha boca está nos dedos
e que meu corpo inteiro, nas mãos
a minha alma só sabe se escrever, não fala, não mexe
não conversa com as pessoas na rua, não dá bom dia
minha alma é tão gonzo que saiu fora de mim porque sou careta

e aí é que explico: por isso bebo


é quando meu corpo vai descansar e a minha alma pode enfim ir. um
saco esse negócio de morar em dedo. quem mora em dedo é unha.

URÂNIO ENRIQUECIDO
Quando os campos de concentração começaram a aparecer, a coisa das
mortes e das pessoas se enfiando ou morrendo afogadas nos dejetos,
ou morrendo afogadas no gás e nos fornos com cabelos esvoaçantes no
Ela deu uma lambida no sal do copo da beira do whiskey, e saiu de casa de alto dos prédios e pelas cidades, a coisa das mortes e das pessoas não
noite, e escreve antes: Cibelle, o amor só pode existir quando
incontornado.
existia. Quando os campos de concentração começaram, eram os
internatos e eram os oposicionistas e eram os alienados. Eram os
alienados em geral. E os estudiosos: os estudiosos matemáticos que
foram mandados para os campos de concentração com os físicos e os
biólogos e lhes disseram para fazer a bomba atômica e não podiam sair
dali enquanto não fizessem a bomba atômica, que ainda não se
imaginava que fosse ser uma bomba, ou atômica à época.

E os estudiosos jogavam seu futebol e o silêncio e faziam seus cálculos.

Quando os campos de concentração apareceram, eu queria me pôr

27
neles e só podem sair depois que fizerem a bomba atômica, mas eu não (esses povos fronteiriços pensam que devo apenas transitar
imaginava ainda que poderia ser uma bomba e nem afônica. O por eles e há você, meu amor, você que comigo formou
recolhimento, o advir que pode ser cruel com os outros. As cidades e a um dadosnós; você que agora vai comigo quando páro de
coisa da morte afogando nos dejetos meus e dos outros, meus
ser minha pra dar pra todo mundo, pra todas as gentes no
meio do gás, do petróleo, da religião, dos Porcas de Murça e
companheiros. Aqui todos se igualam, como na placa do cemitério em da merda. derretidinha, maníaca, exótica. e a minha mãe)
1984 quando enterraram as pessoas inebriadas pelo gás, inebriadas
pelo incêndio e me aproximei delas por interesse financeiro. Eu queria
me pôr no silêncio, na reclusão, e submetida, e ouvir as vozes múltiplas
que Hildegard von Bingen, na Renânia, ouvia. Só essas vozes e só saem
daí quando tiverem a bomba atômica.

1942, malditos soviéticos.

Quando os americanos, ingleses de zíper, formularem a fórmula do


enriquecimento do urânio, algumas pessoas irão gritar e ter os
cabelos esvoaçantes arrancados com uma rapidez impressionante,
pelo gás, pelo fogo, pelos estudos e pela branca colombiana. E eu
estando presa e eu lá estudando e ouvindo as vozes que Hildegard
von Bingen ouvia em meio a todo vinho, todas as plantas, todos os
escritos e as vozes que me diriam pra fazer logo a bomba atômica e
escrever e destruir meia dúzia de amores de vidas que me querem
bem.

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Espera. É que lembrei que larguei a análise... larguei lá a análise, que merda,
vou procurar quem?

(Fazendo um favor: me dão luz vertical). A coisa toda que preciso é da


papinha do Nelson, da cirrose do Nelson que nunca colocou um gole de
cachaça mineira na boca. Talvez dois, três, mas coisas de molhar a
língua, aliás, coisa que eu muito duvido porque todo mundo se lembra
bem como se fosse ontem do Mário Rodrigues entrando na casa de
Copacabana e caindo escorando num amigo d'A Crítica. Penso: devo
falar com o Nelson? Devo falar com o Ruy Castro? Minha fé já foi mais
alta, já fui professora de catecismo por quatro anos, juro por Deus e isso
O palavrão é o alicerce de sua produção vocês não acreditam. Precisava da papinha da úlcera do Nelson, o
literária, e é o que a define, justifica e celebra. Nelson com aquela vida santa e eu achando que ele era o John Wayne
André Sant’Anna é o Paulo César Pereio da das cintas ligas nacionais. Minha mãe me proibia, mas eu lia o Harold
literatura brasileira recente. Se hoje fossem
Robbins e todas aquelas traduções aqueles "Era uma pequena
abolidas as palavras “porra” e “caralho” o
sensacional" mas nunca saía da página dezesseis. Nelson Rodrigues
moço teria que vender laranja na praça.
nunca escrevera um tradução do Harold Robbins, não importa, tava o
(Garsachen, em 2007) nome dele lá e eu queria ler, embora não passando jamás (rrramás) da
linha 16. Tanto faz, eu queria conversar com o Nelson, convidá-lo pruma
papinha anti-úlcera e daí falaríamos (finalmente) do André Sant'anna
porque eu queria lamber o André Sant'anna sem saber direito porque.
Depois eu queria lamber o Paulo César Pereio e que ele me chamasse de
putinha ao pé do ouvido. A porra toda é que me lembrei que larguei a
análise.
(nove pontos no queixo)
Nada mais daquelas viagens longas e belas escolhendo se vou pela Orla
ou se vou pela Lagoa, nada mais de ouvindo Diana Krall no túnel, nem
da cerveja em frente à Novo Rio com o cara achando queu queria água
pelo julgamento da roupa Zona-Sul. Nada (N-A-D-A) mesmo, e isso é
sério, de Shopping Leblon cruzando com o Daniel Filho na esquina da

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livraria, nesses meus deslumbramentos. Não vejo problema nisso. Tem vai comer um pão francês com Qualy, a gente odeia a filha dando e
aquele filme do cara que queria conviver com as elites e fingiu-se de gozando gostoso.
atropelado. Eu queria as elites, eu queria ter as coisas das elites, eu Nelson, você é meu pai, me escuta. Eu nunca fui Glorinha, era mentira,
queria beber a cerveja Therezópolis das elites. Seis reais. eu estava brincando(luz vertical em mim, por favor) eu sou a Noêmia e
Tudo isso eu queria falar com o Nelson, meu em missivas, que inda vejo me entrego num bom dia. Vê, ela lá com o Sabino e ele dizendo prela
lá naquelas imaginações de pernas juvenis, com saias de normalistas não fazer barulho e daí a Noêmia não fazia barulho. Isso foi em outra
torneadíssimas, se abrindo em cima lá da mesa do chefe velho que agora vida, agora é sério: outra vida e eu quero que se foda a literatura porque
é o pai. Nelson me ouviria como Pablo Picasso ouviria Coco se ela eu venderia salgadinhos pra aniversário se ele estivesse ali comigo
tivesse uma miséria de Piaf. Não importa. Nelson, a papinha, a minha cheirando o meu cabelo com cheiro de gordura e tendo um problema de
cirrose futura e a úlcera como numa saída correta que não acontecia nas vesícula por causa do wisky barato que a gente ia ter dinheiro pra
sessões com o analista que eu, puta que pariu, larguei sem lamentar e já comprar e a úlcera porque as pessoas ficam paradas no meio do
super pensando nos sapatos lindos que eu ia comprar pra ficar igual a caminho e ele quer passar, e ele quase o Alvy Singer... lindo! Larguei do
elite, nos cafés, nas elites, nos livros, nas fotografias e no Pereio. Era analista e aí eu sinto aquele alívio que todo mundo sentiu quando
isso que eu ia falar pro Nelson que meu amor era como um amor que começou a chuva do dilúvio mas não sabiam ainda era a chuva do
Elza lhe tinha, mesma Elza que disse se você não sair desse apartamento dilúvio. Ê chuvinha boa.
agora eu jogo os nossos filhos pela janela, e você saiu, e o suspensório, e
as dentaduras do Nelson... meu deus. Nelson, olha, é que é igual. Você Nelson, agora cê é meu pai, como vai ser? Porque te quero por pai
vai morrer e vai ver que é igual, vai ser igual daqui há 40 anos, dois sempre sóbrio, sempre sentado no balde e aquele barulho de cigarro,
divórcios e duas voltas e toda aquela coisa da divisão da biblioteca, do aquele gostoso de Continental que a Tina fumava e que meu pai, que
esse livro é meu, e toda a mágoa que ele vai sentir, e todas aquelas veio antes de você, fumava e eu odiava, mas a Tina fumava e daí eu
mulheres que ele vai comer e eu vou comprender, Nelson, entende? mandei o Continental pro céu, embora sem largar a cerveja nem a
Igual a Elza e você. cirrose futura, nem a úlcera causada por honestidade, lerdeza e
salgadinhos fritos pra festa, vê isso...
O Nick Drake tinha aquela namorada favorita mas nunca encostou um Eu amando o Rafael. Eu me preocupando com a literatura. Eu amando a
dedo nela, morreu e tal e nunca nem beijou a mulher de língua; Nelson preocupação com a literatura. Eu ali toda amando a literatura e falando
eu larguei o analista então me ouve, cara: a coisa da literatura não um monte de merda pro Rafael. Vou vender salgadinhos e vão me dar
importa, você sabe. Nelson, é que eu sou muito a Elza e eu queira casar calote, e a gente vai ficar pobre à beça, e o Rafael vai vender os livros
mesmo à revelia da mamãe, mesmo ela odiando o Rafael, eu casaria. mas a gente vai ficar feliz ainda com uns quatro filhos crioulinhos e eu
Embora ela me odiando porque a vida é assim, a gente odeia tomar a com cinco centímetros de raiz pra fazer e aquele wisky que foi o que deu
papinha anti úlcera, a gente odeia tomar a insulina regular toda vez que pra comprar, e a gente lendo o Paul Vegan falando sacanagem e a gente

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lendo e fazendo as sacanagens do Paul Vegan, e ele me chamando de N R, a literatura e o culto aos sentidos me cobrando essas coisas que não
putinha e eu ali realizada sem pensar no Pereio. Se bem que ia ser são você... Meu Nelson Rodrigues, eu quase saindo de pijama pra
demais o Pereio... comprar cerveja pra ter cirrose hepática pra partilhar um câncer de
Mais demais que os textos longos e os adolescentes preocupados com a laringe do Dahmer junto às porcelanas de elite dele e as conchinhas da
LHC dizendo que os meus textos são longos porque as partículas vão praia de Icaraí e toda aquela coisa das papinhas e do meu pai
acelerar e elis ixtão apavorados e deuz naum vai deicha iso escondendo oito litros de pura cachaça mineira em baixo do tanque.
acontesseeeerr, disse o Gentileza. Essas coisas, e as putinhas. As calcinhas enfiadas na bunda e as meninas
Pereio ali querendo me chamar de putinha e a minha vulva depilada e a no banheiro da academia e o Pereio xingando todo mundo e eu lendo a
gente discutindo o conceito de conto e eu querendo você comendo a porra das teorias literárias da Gotlib, do Umberto Eco e nada lá me trás
minha vulva depilada, me chamando de putinha e eu parando de pensar a pessoa amada em 3 dias além da grana em continuar escrevendo
no Pereio, no Dahmer, no André e pensando no Rafael Santana fazendo textos curtos com figuras que os adolescentes, com medo do apocalipse
amor na minha vulva depilada em meia hora de depilação com aquela pela LHC, vão ler e vão ver e vão fazer um vídeo e vão usar kajal stick e
esteira massageadora em baixo e a depiladora falando da novela e eu vão ouvir a Kate Perry eternizando numa efemeridade e eu vou ficar em
querendo que se foda a novela que eu queria ter dinheiro pra pagar a TV casa procurando os livros do Robbins e vou telefonar pro Rafael
à cabo, pra ver o Pereio entrevistando os domingos. Tanto faz. Eu desejando o Rafael, amando o Rafael, a voz muda do Rafael mas ele
amando o Rafael, eu querendo o Rafael mas a crítica dos conteúdos e ficou com aquela dor misturada com o sono e ele foi dormir como eu
todo aquele Poe, e todo aquele Umberto Eco na porra do meu ouvido e não gosto porque sinto falta dele quando ele dorme e eu fico acordada
eu, meu amor, querendo agora conversar com o Nelson prele me tomando wisky caro, como já sinto falta, como deito e espero ele voltar
explicar porque sou uma zebra, porque os golfinhos se comunicam e eu do trabalho com uma úlcera peptídica linda, me amando...
não me comunico e porque é que infernos que eu te amo tanto que
queria ser atropelada pra ter esse desfecho deu falando ao telefone que
te amo pagando 16 centavos o minuto. Pra eternizar o momento tipo a
Noêmia sendo esfaqueada e admirada e eternizada nos jornais, linda...
Dona Noêmia se entregando num bom dia e nunca conhecendo a
Glorinha. Eternizando minha declaração de amor mão-única, meu senso
de queda, meus Umbertos Eco não lidos, meu Cortázares, meus
Dostoevskys meus Márquez advindos de resenhas. Pra eternizar a
rodoviária e a tua família no painel das fotos e eu pedindo um beijo e
você na cozinha mordendo os meus mamilos eternizados.

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