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Criados à imagem de Deus
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Criados à imagem de Deus

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Criados à Imagem de Deus forma com A Bíblia e o Futuro e Salvos pela Graça uma coleção de estudos bíblicos sobre três tópicos centrais da Teologia Reformada. Com cuidadosa análise bíblica e texto legível, esses livros de Anthony Hoekema ensinam com clareza os fundamentos teológicos de antropologia (Criados à Imagem de Deus), soteriologia (Salvos pela Graça) e escatologia (A Bíblia e o Futuro).

"Neste livro, tentarei apresentar o que a Bíblia ensina a respeito da natureza e do destino dos seres humanos. O ensino de que o homem e a mulher foram criados à imagem de Deus é central para a compreensão bíblica do homem. Apresentarei a imagem de Deus como tendo um aspecto estrutural e um funcional, à medida que envolve o homem em sua tríplice relação – com Deus, com os outros e com a natureza – e passando por quatro estágios – a imagem original, a imagem pervertida, a imagem renovada e a imagem aperfeiçoada. Baseei meus estudos em uma avaliação cuidadosa de material bíblico relevante. O ponto de vista assumido aqui é o do cristianismo evangélico, de uma perspectiva reformada ou calvinista." (Do Prefácio)
LanguagePortuguês
Release dateFeb 6, 2023
ISBN9786559891825
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    Criados à imagem de Deus - Anthony Hoekema

    Anthony A. Hoekema. Criados à imagem de Deus. Terceira edição. Qual é a relevância de uma antropologia cristã para a nossa vida diária? Como a concepção cristã do homem nos ajuda a melhor enfrentar os problemas urgentes do mundo de hoje? Cultura Cristã.Anthony A. Hoekema. Criados à imagem de Deus. Terceira edição. Qual é a relevância de uma antropologia cristã para a nossa vida diária? Como a concepção cristã do homem nos ajuda a melhor enfrentar os problemas urgentes do mundo de hoje? Cultura Cristã.

    Criados à imagem de Deus © 1999, Editora Cultura Cristã. Publicado originalmente em inglês com o título Created in God’s image, Anthony Hoekema © 1986 por Wm. B. Eerdmans Publishing Co. 2140 Oak Industrial Drive N.E., Grand Rapids, Michigan 49505. Todos os direitos são reservados.

    1ª edição 1999

    2ª edição 2010

    3ª edição 2018

    H6937c

    Hoekema, Anthony

    Criados à imagem de Deus / Anthony Hoekema; traduzido por Heber Carlos de Campos . _ São Paulo: Cultura Cristã, 3ª ed., 2018

    Recurso eletrônico (ePub)

    Tradução Created in God’s image

    ISBN 978-65-5989-182-5

    1. Antropologia 2. Doutrina 3. Redenção I. Título

    CDD 230

    A posição doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil é expressa em seus símbolos de fé, que apresentam o modo Reformado e Presbiteriano de compreender a Escritura. São esses símbolos a Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos, o Maior e o Breve. Como Editora oficial de uma denominação confessional, cuidamos para que as obras publicadas espelhem sempre essa posição. Existe a possibilidade, porém, de autores, às vezes, mencionarem ou mesmo defenderem aspectos que refletem a sua própria opinião, sem que o fato de sua publicação por esta Editora represente endosso integral, pela denominação e pela Editora, de todos os pontos de vista apresentados. A posição da denominação sobre pontos específicos porventura em debate poderá ser encontrada nos mencionados símbolos de fé.

    ABDR. Associação brasileira de Direitos Reprográficos. Respeite o direito autoral.Editora Cultura Cristã

    Rua Miguel Teles Júnior, 394 • CEP 01540-040 • São Paulo, SP

    Fones 0800-0141963 / (11) 3207-7099

    www.editoraculturacrista.com.br – cep@cep.org.br

    Superintendente: Clodoaldo Waldemar Furlan

    Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

    Aos nossos queridos filhos:

    Dorothy

    James

    David

    Helen

    Sumário

    Prefácio

    Abreviaturas

    Capítulo 1

    A importância da doutrina do homem

    Capítulo 2

    O homem como uma pessoa criada

    Capítulo 3

    A imagem de Deus: o ensino bíblico

    Capítulo 4

    A imagem de Deus: um panorama histórico

    Capítulo 5

    A imagem de Deus: um resumo teológico

    Capítulo 6

    A questão da autoimagem

    Capítulo 7

    A origem do pecado

    Capítulo 8

    A disseminação do pecado

    Capítulo 9

    A natureza do pecado

    Capítulo 10

    O refreamento do pecado

    Capítulo 11

    A pessoa na sua totalidade

    Capítulo 12

    A questão da liberdade

    Bibliografia

    Prefácio

    Este é o segundo livro de uma série de estudos doutrinários. O volume anterior, A Bíblia e o Futuro, tratou da Escatologia Cristã, ou a doutrina das últimas coisas. Este estudo vai se ocupar da Antropologia Teológica, ou a doutrina bíblica do homem.*

    Neste livro, tentarei apresentar o que a Bíblia ensina a respeito da natureza e do destino dos seres humanos. O ensino de que o homem e a mulher foram criados à imagem de Deus é central para a compreensão bíblica do homem. Apresentarei a imagem de Deus como tendo um aspecto estrutural e um funcional, à medida que envolve o homem em sua tríplice relação – com Deus, com os outros e com a natureza – e passando por quatro estágios – a imagem original, a imagem pervertida, a imagem renovada e a imagem aperfeiçoada. Baseei meus estudos em uma avaliação cuidadosa de material bíblico relevante. O ponto de vista assumido aqui é o do cristianismo evangélico, de uma perspectiva reformada ou calvinista.

    Quero expressar minha gratidão aos meus alunos nos anos de ensino no Calvin Theological Seminary, a quem este material foi primeiro apresentado; seus comentários e reações ajudaram a aguçar meu pensamento a respeito deste assunto. Agradeço em particular aos professores John Cooper, Cornelius Plantinga Jr. e Louis Vos, que leram parte do manuscrito e deram sugestões úteis. Agradeço especialmente ao bibliotecário teológico, Peter De Klerk, por sua excepcional ajuda.

    Devo agradecimento ao corpo editorial da Eerdmans Publishing Company, particularmente a Jon Pott e Sandra Nowlin, por suas sugestões úteis em várias etapas da redação.

    Devo também gratidão à minha esposa, Ruth, por seu constante estímulo, por seus comentários sensíveis a respeito do texto original e por ter organizado a bibliografia.

    Acima de tudo, quero agradecer a Deus, que nos criou à sua imagem e que continua a fazer-nos mais parecidos com ele. Vivemos na expectativa do dia em que seremos totalmente como ele, já que o veremos como ele é.

    Grand Rapids, Michigan

    Anthony A. Hoekema

    Nota

    * A Editora Cultura Cristã já publicou A Bíblia e o Futuro e Salvos Pela Graça, completando, com a publicação deste título, a excelente trilogia doutrinária de Anthony Hoekema. Se você ainda não adquiriu os dois outros volumes, peça-os hoje mesmo – Tel. (11) 3270-7099; Fax (11) 3279-1255; e-mail: cep@cep.org.br – [N. do E.]

    Abreviaturas

    Capítulo 1

    A importância da doutrina do homem

    É difícil exagerar a importância da doutrina do homem.1 De fato, uma das perguntas mais importantes que o filósofo faz a si mesmo é esta: o que é o homem? Em um de seus diálogos, Platão descreve seu mestre, Sócrates, como um homem inteiramente devotado a um só objetivo em sua busca por sabedoria: a saber, conhecer-se a si mesmo. Vários pensadores têm dado muitas respostas à pergunta O que é o homem?, cada uma delas com vastíssimas implicações para o pensamento e para a vida.

    Hoje, contudo, esta pergunta está sendo feita com uma nova urgência. Alguns têm observado que as pessoas hoje não estão muito mais interessadas em questões sobre a realidade última, ou Ontologia, mas estão vitalmente interessadas em questões a respeito do homem. Há muitas razões para isso. Uma delas é que, desde Immanuel Kant, o problema da Epistemologia (como conhecemos?) tem-se tornado primário, ao passo que o problema da Ontologia (o que é o ser [supremo]) tem-se tornado secundário. O surgimento do Existencialismo como um modo de pensar filosófico, teológico e literário tem provocado uma nova ênfase, a saber, que a existência do homem é mais importante que a sua essência – aquilo que é singular e incapaz de ser repetido a respeito de uma pessoa é mais importante para entendê-la do que o que ela tem em comum com todas as outras pessoas. O Existencialismo, portanto, é um novo modo de se fazer a pergunta: O que é o homem?. À medida que a crença em Deus se torna mais rara, a crença no homem está tomando o seu lugar; assim, estamos testemunhando o surgimento de um novo Humanismo.

    Mas mesmo o Humanismo está em dificuldades. Duas guerras mundiais e as atrocidades indizíveis do regime nazista abalaram a fé de muitas pessoas na bondade intrínseca do homem e na importância dos valores humanos. Consequentemente, surgiu uma nova onda de Niilismo, que nega todos os valores humanos e fala da ausência de significado da vida. Entre os fatores que ameaçam os valores humanos hoje, estão os seguintes: a crescente supremacia da tecnologia; o crescimento da burocracia; o aumento dos métodos de produção em massa e o crescente impacto da mídia de massa. Tais forças tendem a despersonalizar a humanidade. Novos desenvolvimentos em Biologia, Psicologia e Sociologia aumentam a possibilidade de manipulação das massas por uns poucos. Práticas como a inseminação artificial, bebês de proveta, aborto, controle químico da conduta, eutanásia, engenharia genética e coisas como essas, levantam dúvidas a respeito da dignidade da vida humana. Acrescente-se a isso temas acalorados como o problema da alienação (idosos versus jovens, conservadores versus progressistas, grupos majoritários versus grupos minoritários), o problema da igualdade entre homens e mulheres e o problema da progressiva perda de respeito pelas autoridades e, então, pode-se perceber por que a pergunta O que é o homem? tem adquirido uma nova urgência hoje.

    O problema do homem tornou-se, portanto, um dos problemas mais cruciais de nossos dias. Os filósofos estão trabalhando nele; os sociólogos estão tentando respondê-lo; os psicólogos e psiquiatras o estão enfrentando; os estudiosos da moral e os ativistas sociais estão tentando resolvê-lo. Os romancistas e os dramaturgos também se preocupam com essa questão. Os romances penetrativos de Dostoyevski são tentativas de respondê-la juntamente com a pergunta relacionada Por que o homem está aqui?. Jean-Paul Sartre e Albert Camus procuraram nos oferecer suas respostas não cristãs, ao passo que escritores como Graham Greene e Morris West querem nos oferecer suas respostas cristãs. Praticamente, cada peça teatral ou romance contemporâneo trata desta questão: O que é o homem?.

    O que uma pessoa pensa a respeito dos seres humanos é de importância determinante para o seu programa de ação. O alvo do marxista está enraizado em sua concepção do homem. O mesmo pode ser dito do programa de um revolucionário político, que pode não ser um marxista. O recente movimento feminista também está enraizado num determinado entendimento da pessoa humana, particularmente da relação entre homem e mulher.

    Pode-se distinguir diferentes tipos de antropologias não cristãs. As antropologias idealistas consideram o ser humano fundamentalmente como espírito, sendo o seu corpo físico estranho à sua real natureza. Encontramos essa concepção na filosofia grega antiga. Segundo Platão, por exemplo, o que é real a respeito do homem é seu intelecto ou razão, que é, na realidade, uma centelha da divindade na pessoa e que continua a existir após a morte do corpo. O corpo humano, contudo, participa da matéria, que é de uma ordem ou realidade inferior; é um impedimento para o espírito e é melhor partir sem ele. Os que sustentam essa ideia ensinam a imortalidade da alma, mas negam a ressurreição do corpo.

    Mais comum hoje é o tipo oposto de antropologia não cristã, o tipo materialista. Segundo essa ideia, o homem é um ser composto de elementos materiais, sendo sua vida mental, emocional e espiritual simplesmente subprodutos de sua estrutura material. Por exemplo, a visão marxista da determinação econômica da História repousa sobre uma concepção materialista ou naturalista da natureza humana. Para o marxista, o homem é, simplesmente, um produto da natureza. Os seres humanos não foram criados à imagem de Deus – na verdade, a existência real do Criador é negada. São estranhos ao marxismo conceitos tais como um imperativo ético ou responsabilidade moral que uma pessoa tem perante Deus. Os humanos são parte de uma estrutura social; os males surgem daquela estrutura e podem ser eliminados somente por mudanças nela. O indivíduo não é primariamente responsável pelo mal que ele possa fazer; a sociedade é. No marxismo, portanto, o ser humano não é importante como um indivíduo. Ele é importante somente como um membro da sociedade. Assim, a meta do marxismo não é a salvação pessoal, mas a obtenção futura da sociedade perfeita, na qual as lutas de classe entre os que têm e os que não têm terão sido eliminadas. As ações revolucionárias violentas podem ser necessárias para a realização dessa sociedade futura.

    Um outro tipo de antropologia materialista influente em nossos dias é a ideia do homem subjacente nos escritos de B. F. Skinner. Em sua obra Beyond Freedom and Dignity2 [Além da Liberdade e da Dignidade], Skinner sustenta que a ideia de que o ser humano é responsável por sua conduta está enraizada numa tradição que não é mais cientificamente aceitável. O fator determinante da conduta deve ser transferido do que Skinner chama de homem autônomo para o ambiente.3 A ideia de que a pessoa humana tem liberdade para agir como quiser é um mito; a conduta de uma pessoa é totalmente determinada por seu ambiente. Não há no homem nenhuma mente tomadora de decisões; nem liberdade nem dignidade existem no homem. A atividade humana é totalmente determinada pelo ambiente; se esse ambiente fosse perfeitamente conhecido, a conduta humana seria completamente predizível.

    Um modo de avaliar essas ideias seria dizer que elas são unilaterais, isto é, elas enfatizam um aspecto do ser humano em detrimento de outros. As antropologias idealistas colocam toda ênfase sobre a alma ou a razão de uma pessoa, ao mesmo tempo que negam a realidade plena de sua estrutura material. As antropologias materialistas, como as de Marx e Skinner, absolutizam o aspecto físico do homem e negam a realidade do que podemos chamar de seu lado mental ou espiritual.

    Devemos, no entanto, ir além dessa forma de julgamento e entrar no coração do assunto. Visto que cada uma das ideias sobre o ser humano acima mencionadas considera um aspecto do ser humano como definitivo, isento de qualquer dependência ou responsabilidade perante Deus, o Criador, cada uma dessas antropologias é culpada de idolatria, ou seja, de adorar um aspecto da criação em lugar de Deus. Se, como ensina a Bíblia, o mais importante sobre o homem é que ele está inexoravelmente ligado a Deus, devemos julgar como deficiente qualquer antropologia que negue esta relação.

    Portanto, devemos fazer uma distinção fundamental entre as antropologias idealistas e materialistas, de um lado, e a antropologia cristã, de outro. Neste livro, nosso propósito será estudar a concepção cristã do homem – o que ela é, como ela difere de outras concepções e quais são as suas implicações para a nossa forma de pensar e de viver. Tentaremos identificar a singularidade da concepção cristã do homem, aquilo que torna a antropologia cristã diferente de todas as outras antropologias.

    Devemos nos lembrar, porém, de que muitas vezes as noções não cristãs infiltraram-se nas, assim chamadas, antropologias cristãs. Por exemplo, a concepção escolástica do homem, proeminente na Idade Média, ainda que aceita como cristã, tratava-se mais propriamente de uma antropologia híbrida. Ela tentou sintetizar a concepção idealista do homem encontrada na filosofia aristotélica com a concepção cristã. Os resultados dessa má combinação de duas antropologias diversas estão, infelizmente, conosco até hoje. Por exemplo, a noção comum entre os cristãos de que os pecados da carne (como o adultério) são muitíssimo mais sérios do que os pecados do espírito (tais como orgulho, ciúme, egocentrismo, racismo e coisas do gênero) provém da concepção, implícita na antropologia escolástica, de que o mal tem as suas raízes principalmente no corpo.

    É importante, pois, termos o entendimento correto acerca do homem. Enquanto procuramos chegar a uma compreensão cristã, precisamos ter em mente algumas perguntas como as que se seguem: ainda existem remanescentes de uma antropologia não cristã em nosso pensamento a respeito do homem? Como a nossa concepção da pessoa humana pode nos ajudar a entender Deus de uma forma melhor – por exemplo, a verdade de que o homem foi feito à imagem de Deus nos ensina algo a respeito de Deus como ensina a respeito do homem? Que luz nossa antropologia lança sobre a obra de Cristo? Que luz a nossa concepção do homem lança sobre a Soteriologia (o modo pelo qual os benefícios de Cristo são aplicados a nós pelo Espírito Santo)? Que luz nossa concepção da natureza humana lança sobre a doutrina da igreja e a doutrina das últimas coisas? Que relevância uma antropologia cristã tem para a nossa vida diária? Como a concepção cristã do homem nos ajuda a enfrentar melhor os problemas urgentes do mundo de hoje?

    Notas

    1 Eu uso a palavra homem, aqui e em outros lugares, no sentido de ser humano, seja homem ou mulher. Quando a palavra homem é usada neste sentido genérico, os pronomes que se referem ao homem (ele, seu, o) devem também ser entendidos como tendo esse sentido genérico; a mesma coisa deve ser dita do uso de pronomes femininos com a palavra pessoa. É uma pena que em nosso idioma não haja uma palavra correspondente à palavra alemã Mensch, que significa ser humano como tal, independente de gênero. Homem, em português, pode ter este significado, embora também possa significar um ser humano do sexo masculino. De modo geral, o próprio contexto deixará claro em que sentido a palavra homem está sendo usada.

    2 Nova York: Alfred A. Knopf, 1972.

    3 Ibid., p.195 e 214.

    Capítulo 2

    O homem como uma pessoa criada

    Uma das pressuposições básicas da concepção cristã do homem é a fé em Deus como criador, que conduz à compreensão de que a pessoa humana não existe autônoma ou independentemente, mas como uma criatura de Deus. No princípio, criou Deus os céus e a terra... Criou Deus, pois, o homem (Gn 1.1,27).

    Uma implicação óbvia do fato da criação é que toda a realidade criada é completamente dependente de Deus. Werner Foerster expressa isso do seguinte modo: Portanto, em vir a ser, existir e perecer, toda a criação é inteiramente dependente da vontade do Criador.1

    As Escrituras dizem claramente que todas as coisas criadas e todos os seres criados são totalmente dependentes de Deus. Só tu és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora (Ne 9.6). Na afirmação de que Deus preserva todas as suas criaturas, incluindo os seres humanos, está implícito que eles são dependentes dele para a continuação da sua existência. Em seu discurso aos atenienses, Paulo afirma que Deus é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais e que nele vivemos, nos movemos, e existimos (At 17.25,28). Paulo está dizendo que devemos nossa respiração a Deus; que existimos somente nele; em cada movimento que fazemos estamos na dependência dele. Não podemos levantar um dedo à parte da vontade de Deus.

    O homem, contudo, não é somente uma criatura; é também uma pessoa. Ser uma pessoa significa ter alguma forma de independência – não absoluta, mas relativa. Ser uma pessoa significa ser capaz de tomar decisões, de estabelecer objetivos e ser capaz de perseguir esses objetivos. Significa possuir liberdade2 – ao menos no sentido de ser capaz de fazer as suas próprias escolhas. O ser humano não é um robô cuja conduta é totalmente determinada por forças exteriores a ele; ele tem o poder de autodeterminação e de autodireção. Ser uma pessoa significa, para usar a expressão pitoresca de Leonard Verduin, ser uma criatura de opção.3

    Em resumo, o ser humano é igualmente uma criatura e uma pessoa; é uma pessoa criada. Este é, pois, o mistério fundamental do homem: como pode o ser humano ser igualmente uma criatura e uma pessoa? Ser uma criatura, como já vimos, significa dependência absoluta de Deus; ser uma pessoa significa independência relativa. Ser uma criatura significa que não posso mover um dedo ou pronunciar uma palavra à parte de Deus; ser uma pessoa significa que, quando meus dedos são movidos, eu os movo e que, quando as palavras são pronunciadas por meus lábios, eu as pronuncio. Sermos criaturas significa que Deus é o oleiro e nós, o barro (Rm 9.21); sermos pessoas significa que nós mesmos é que moldamos nossa vida pelas nossas próprias decisões (Gl 6.7,8).

    Este é, como eu o chamei, o mistério fundamental do homem porque, para nós, é insondavelmente misterioso que o homem possa ser igualmente uma criatura e uma pessoa. Dependência e liberdade são conceitos aparentemente incompatíveis para nós. Não duvidamos de que uma criança seja completamente dependente de seus pais na infância, mas observamos que, à medida que essa criança cresce, ela vai adquirindo maior liberdade e maturidade e se torna menos dependente de seus pais. Compreendemos esse processo. Mas como havemos de conceber um relacionamento em que coexistam dependência completa de Deus e liberdade pessoal para tomar nossas próprias decisões?

    Embora não possamos compreender racionalmente como é possível que o ser humano seja igualmente uma criatura e uma pessoa, não podemos pensar de outro modo. Negar qualquer lado desse paradoxo significa não fazer justiça à descrição bíblica. A Bíblia ensina a condição de criatura bem como a individualidade pessoal do homem. Algumas vezes, ela se dirige ao ser humano como uma criatura: por exemplo, quando ela fala de Deus como o oleiro e do homem como o barro (Rm 9.21). Mais frequentemente, contudo, ela se dirige ao homem como uma pessoa: Escolhei, hoje, a quem sirvais (Js 24.15); Em nome de Cristo, pois, vos rogamos que vos reconcilieis com Deus (2Co 5.20).

    Nossa compreensão teológica do homem deve, portanto, manter em foco essas duas verdades de maneira muito clara. Todas as antropologias seculares falham em não considerar o ser humano como criatura, apresentando, em função disso, uma visão distorcida do homem. Qualquer concepção do ser humano incapaz de vê-lo como fundamentalmente relacionado com Deus, totalmente dependente dele e primariamente responsável perante ele, carece da verdade. Por outro lado, todas as antropologias deterministas, que descrevem os seres humanos como se fossem marionetes ou robôs, mostrando Deus puxando as cordinhas ou apertando os botões, deixam de fazer justiça à individualidade pessoal do homem, apresentando, também, uma visão distorcida do homem. Robert D. Brinsmead expôs este ponto muito bem:

    Ser criatura e ser pessoa são aspectos do ser humano que devem ser mantidos juntos e em tensão. Quando a Teologia acentua o aspecto criatura e subordina o aspecto da pessoalidade, vem à tona um determinismo inflexível e o homem é desumanizado... Quando o ser pessoa é enfatizado à exclusão do ser criatura, o homem é deificado e a soberania de Deus é comprometida. O Senhor é abandonado nos bastidores, como se o homem tivesse o poder de vetar os planos e os propósitos de Deus.4

    O fato de que o homem é uma pessoa criada tem implicações para outros aspectos de nossa teologia. Primeira, que luz este conceito lança sobre a questão da origem do pecado? Embora reconhecendo que a razão pela qual o homem pecou permanecerá sempre um mistério insondável, será preciso dizer que o homem pôde cair em pecado exatamente porque ele era uma pessoa, capaz de fazer escolhas – até mesmo escolhas que fossem contrárias à vontade de Deus. Todavia, será preciso acrescentar que, mesmo ao pecar, o ser humano permanece uma criatura, dependente de Deus. Deus, por assim dizer, teve de proporcionar ao homem a força com a qual ele pecou; a magnitude do pecado do homem consiste no fato de ele ter usado os poderes dados por Deus para o serviço de Satanás. Porque nossos primeiros pais caíram em pecado como pessoas criadas, falamos da vontade permissiva de Deus com respeito ao primeiro pecado do homem; além disso, afirmamos que esse primeiro pecado não veio como uma surpresa para Deus, apesar de ele ter considerado aqueles que cometeram esse pecado como totalmente responsáveis pelo mesmo.

    Segunda, que luz o conceito do ser humano como pessoa criada lança sobre a maneira como Deus redime o homem? Após ter caído em pecado (por sua própria falta), o homem, pelo fato de ser uma criatura, só pode ser redimido do pecado e resgatado de seu estado caído mediante a intervenção soberana de Deus em seu favor. Visto que é uma criatura, o homem pode ser salvo somente pela graça – isto é, em absoluta dependência da misericórdia de Deus. Mas o fato de que o homem é também uma pessoa faz com que ele tenha uma parte importante a cumprir no processo de sua redenção. O homem não é salvo como um robô, cujas atividades foram programadas por algum computador celestial, mas como uma pessoa. Portanto, os seres humanos têm uma responsabilidade no processo de sua salvação. Eles precisam decidir-se livremente, na força do Espírito Santo, se arrependerem de seus pecados e crerem em Jesus Cristo. Eles não podem ser salvos à parte de tais escolhas pessoais (embora devam ser feitas exceções para casos nos quais os indivíduos envolvidos não sejam capazes de tomar decisões pessoais). Depois que uma pessoa faz tal escolha, ela deve continuar a viver em comunhão com Deus e na obediência da fé. O fato de que nós só podemos viver desse modo mediante a força que Deus nos dá não exclui nossa responsabilidade de viver dessa forma.

    Como uma ilustração deste tópico, consideremos como a regeneração está relacionada à fé. A regeneração pode ser definida como aquele ato do Espírito Santo, que não deve ser separado da pregação da Palavra, por meio do qual ele primeiramente coloca uma pessoa em união viva com Cristo e muda seu coração de tal forma que quem estava espiritualmente morto torna-se espiritualmente vivo. Uma mudança tão radical assim não pode ser obra do homem, mas deve necessariamente ser obra de Deus. Os que são regenerados são descritos como aqueles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus (Jo 1.13). Além disso, à parte da regeneração, o homem está espiritualmente morto (Ef 2.5), e uma pessoa morta não pode vivificar-se a si mesma. Visto que o homem por si mesmo caiu no estado de mortalidade espiritual e que, além disso, é uma criatura, só pode receber nova vida por meio de um ato miraculoso de Deus – tão miraculoso que Paulo chama uma pessoa regenerada pelo Espírito Santo de uma nova criatura (2Co 5.17).

    Visto que o homem é uma criatura, Deus tem de regenerá-lo – dar-lhe uma nova vida espiritual. Visto, porém, que o homem é também uma pessoa, ele também precisa crer – isto é, em resposta ao evangelho, ele deve fazer uma escolha consciente e pessoal de aceitar Cristo e de o seguir. Regeneração e fé devem sempre ser vistas juntas. É significativo que João as mantenha juntas em seu evangelho. Após Jesus ter dito a Nicodemos que ninguém poderia ver o reino de Deus a não ser que nascesse de novo (Jo 3.3), também lhe disse que Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (v.16). A regeneração, que é a obra do Espírito Santo, é absolutamente necessária para que alguém possa ver o reino de Deus – mas quando o chamamento do evangelho faz seu apelo ao ouvinte, ele requer fé, a qual envolve uma decisão pessoal. É preciso que Deus regenere e é preciso que o homem creia: as duas coisas devem ser igualmente afirmadas.

    A fim de ilustrar esse tema, verifiquemos também o processo de santificação. A santificação pode ser definida como aquela operação do Espírito Santo, a qual envolve a participação responsável do homem, pela qual o Espírito Santo renova a natureza do homem e o capacita a viver para o louvor de Deus. A santificação, portanto, é obra de Deus bem como tarefa do homem. Visto que os seres humanos são criaturas, é preciso que Deus, na pessoa do Espírito Santo, os santifique; visto que eles são também pessoas, precisam estar responsavelmente envolvidos em sua santificação, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus (2Co 7.1).

    Neste contexto, as surpreendentes palavras de Paulo em Filipenses 2.12,13 merecem destaque: Desenvolvei a vossa salvação com tremor e temor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. A palavra traduzida como desenvolvei, katergazesthe, é usada nos papiros dos primeiros séculos do cristianismo geralmente para descrever as atividades de um fazendeiro ao cultivar a sua terra.5 Desenvolvam a sua salvação significa, portanto, cultivem a salvação que Deus lhes deu; desenvolvam o que Deus tem realizado em vocês; apliquem a salvação que vocês receberam a cada área de suas vidas – trabalho, recreação, família, vida, cultura, arte, ciência, etc. Em outras palavras, Paulo está dizendo a seus leitores que participem ativamente no progresso de sua santificação. Porque, continua ele, Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar. Querer e realizar designam tudo o que pensamos ou fazemos. É Deus, portanto, quem está efetuando continuadamente em nós todo o processo de santificação: tanto o querer como o realizar. Quanto mais esforçadamente trabalhamos, mais certos podemos estar de que Deus está operando em nós. Em nossa santificação, Deus age conosco tanto como pessoas quanto como criaturas.

    O mesmo princípio vale para a doutrina da perseverança dos santos. Visto que somos criaturas, é preciso que Deus nos preserve e nos guarde leais a ele. A Bíblia ensina claramente isso (ver, por exemplo, Jo 10.27,28; Rm 8.38,39; Hb 7.25; 1Pe 1.3-5; Jd 24). Mas não devemos perder de vista o outro lado do paradoxo: os crentes devem perseverar na fé (Mt 10.22; 1Co 16.13; Hb 3.14; Ap 3.11). Não é uma questão de preservação ou perseverança. Porque somos criaturas, é preciso que Deus nos preserve ou certamente pereceremos. Mas porque somos também pessoas, Deus nos preserva capacitando-nos a perseverar.

    Há, todavia, ainda outras implicações do conceito criatura-pessoa para nossa teologia. A Escritura ensina que Deus salva o homem colocando-o em um relacionamento de pacto com ele. Visto que Deus é o criador e o homem é criatura, é óbvio que Deus deve tomar a iniciativa de colocar seu povo nessa relação pactual – razão pela qual dizemos que o pacto da graça é unilateral em sua origem. Mas visto que o homem é uma pessoa, ele tem responsabilidades neste pacto, devendo cumprir suas obrigações pactuais – daí dizermos que o pacto da graça é bilateral em seu cumprimento.

    Além disso, a compreensão do ser humano como uma pessoa criada ajuda-nos a responder a questão muito debatida quanto ao pacto da graça ser condicional ou incondicional. Porque o ser humano é uma criatura, o pacto é incondicional em sua origem; Deus estabelece graciosamente seu pacto com seu povo à parte de quaisquer condições que eles devam cumprir. Mas visto que o homem é também uma pessoa, Deus requer que seu povo cumpra certas condições para que desfrutem as bênçãos do pacto. Mas as pessoas podem cumprir essas condições apenas mediante o poder capacitador de Deus. No pacto da graça, portanto, estão igualmente em foco a graça soberana de Deus e a grande responsabilidade do homem. Por essa razão, a Bíblia contém tanto promessas pactuais como ameaças pactuais, devendo nós fazer plena justiça a ambas.

    Outro importante conceito teológico é o da imagem de Deus. Nos próximos capítulos, tratarei deste conceito mais detalhadamente. Assim, posso ser breve agora. Por causa de sua queda em pecado, o homem, em um sentido específico, perdeu a imagem de Deus (alguns teólogos chamam este sentido de o estrito ou funcional). Em vez de servir e obedecer a Deus, o homem está agora separado de Deus; ele é homem em revolta. Na obra da redenção, Deus restaura graciosamente sua imagem no homem, tornando-o uma vez mais igual a Deus em seu amor, fidelidade e disposição para servir aos outros. Porque os seres humanos são criaturas, Deus deve restaurá-los à sua imagem – esta é uma obra da graça soberana. Mas porque são também pessoas, eles têm uma responsabilidade nesta restauração – por isso Paulo pôde dizer aos efésios: Sede, pois, imitadores de Deus (5.1).

    Já foi dito o suficiente para mostrar que o entendimento do homem como uma pessoa criada é tão importante quanto relevante. Teólogos como eu, que se encontram na tradição reformada ou calvinista, têm geralmente enfatizado, no homem, o aspecto relacionado ao ser criatura (sua total dependência de Deus) e, portanto, a total soberania de Deus em cada área da vida, particularmente na obra de salvar o seu povo dos pecados deles. Teólogos arminianos, por outro lado, geralmente colocam toda a ênfase na individualidade pessoal do homem. Por isso, quando falam do processo de salvação, eles enfatizam a importância da decisão voluntária do homem e da contínua fidelidade a Deus. Manter em mente este paradoxo – o fato de que o homem é igualmente uma criatura e uma pessoa –, ajuda-nos a fazer plena justiça tanto à soberania de Deus como à responsabilidade do homem. Aqueles de nós que se encontram na tradição reformada não devem negligenciar ou negar a responsabilidade do homem; aqueles que se encontram na tradição arminiana não deveriam esquecer ou negar a total soberania de Deus.

    Notas

    1 "Kitzō", TDNT, 3:1011.

    2 No Capítulo 12 será dito mais sobre o significado do conceito de liberdade quando aplicado aos seres humanos.

    3 Verduin desenvolve extensivamente esse pensamento no Capítulo 5 de seu livro Somewhat less than God (Grand Rapids: Eerdmans, 1970).

    4 Man as Creature and Person, Verdict (Agosto, 1978): p.21,22.

    5 J. H. Moulton e G. Milligan, The Vocabulary of the Greek Testament Illustrated from the Papyri (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), p.335,336.

    Capítulo 3

    A imagem de Deus: o ensino bíblico

    O aspecto mais característico da concepção bíblica do homem é o ensino de que o homem foi criado à imagem de Deus. Analisaremos este conceito neste e nos dois próximos capítulos. Nossa primeira tarefa consistirá no exame do ensino bíblico sobre a imagem de Deus, primeiro conforme aparece no Antigo Testamento e, em seguida, no Novo Testamento.

    O ensino do Antigo Testamento

    O Antigo Testamento não diz muita coisa a respeito da imagem de Deus. Na verdade, o conceito é tratado especificamente em somente três passagens, todas no livro de Gênesis: 1.26-28; 5.1-3 e 9.6. O salmo 8 também poderia ser visto como uma descrição do significado da criação do homem à imagem de Deus, mas a frase imagem de Deus não aparece neste salmo. A seguir, examinaremos cada uma dessas passagens separadamente:

    Lemos em Gênesis 1.26-28:

    Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.

    O primeiro capítulo de Gênesis ensina a singularidade da criação do homem. Nesse capítulo, lemos que, enquanto Deus criou cada animal segundo a sua espécie (v.21,24,25), somente o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (v.26,27). Herman Bavinck expressa isso da seguinte forma:

    O mundo inteiro é uma revelação de Deus, um espelho das suas virtudes e perfeições; cada criatura é, ao seu próprio modo e em sua própria medida, uma personificação de um pensamento divino. Mas, dentre todas as criaturas, somente o

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