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Bruno P. W. Reis
“For where Rousseau seemed to hold that because factions and leadership must be
avoided in the perfect state, it was therefore unnecessary to provide institutions for
dealing with them, Madison evidently believed that precisely because it could not
be avoided in an optimal state, it was necessary to provide institutions for dealing
with them.”
(Robert A. Dahl, After the Revolution? Authority in a Good Society,
New Haven, Yale University Press, 1970, p. 83.)
*
A primeira versão do presente trabalho – intitulada “Inflação, Conflito Distributivo e Corporativismo:
Elementos para uma Reforma Institucional das Relações entre Capital e Trabalho no Brasil” – foi
elaborada nos primeiros meses de 1993, quando eu ainda não era membro da UFMG, graças a uma bolsa
fornecida pelo “Programa de Extensão e Pesquisa sobre a Reforma Institucional Brasileira”, iniciativa da
Universidade financiada pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – Fundep/UFMG. Quero
agradecer aos responsáveis pelo programa, profs. Olavo Brasil de Lima Jr., Celson José da Silva e
William Ricardo de Sá, tanto pelo apoio recebido quanto pela autorização para publicar o trabalho
independentemente. Elaborado em circunstâncias um tanto desfavoráveis, que me impediam de dedicar ao
trabalho o tempo devido, o texto encontra-se consideravelmente modificado na presente versão, embora as
conclusões e as linhas gerais da argumentação tenham sido mantidas. Devo ainda agradecer ao prof. Luiz
Werneck Vianna, do Iuperj, pela generosidade e o incentivo de sempre, bem como ao prof. Fábio
Wanderley Reis, do DCP/UFMG, e a dois pareceristas anônimos de Dados, pelas críticas que ajudaram a
melhorar sensivelmente o texto. A responsabilidade, porém, pelo conteúdo do trabalho é, naturalmente,
exclusivamente minha.
2
Antes, porém, de prosseguir nesse inventário semântico, talvez caiba uma rápida menção à
forma como tem sido posta usualmente a distinção entre pluralismo e corporativismo.
Pois, em razão das ambigüidades acima referidas associadas à própria significação do
termo, há diferenças relevantes entre os diversos autores que lidam com o corporativismo,
que vão desde a afirmação de que pluralismo e corporativismo constituem “paradigmas”
analíticos alternativos, até a afirmação de que são apenas os extremos ideais de um
continuum dentro do qual se movem e se enquadram os diversos tipos empiricamente
observáveis de relações entre o estado e o mercado. Para os que consideram existir uma
ruptura teórica entre o pluralismo e o corporativismo, o papel teórico desempenhado pelo
3
estado em cada esquema conceitual costuma ser o ponto crucial que distingue o
arcabouço pluralista do corporativista: afirma-se uma passagem do estado passivo
pluralista ao estado ativo dos teóricos do corporativismo (entre estes o estado passaria a
ser o núcleo da análise).1
Um outro ponto, talvez mais importante do que tentar precisar o “lugar” do estado nesta
ou naquela abordagem, era levantado já em 1964 – ou seja, uma década antes de Philippe
Schmitter (1974) ressuscitar o tema do corporativismo –, quando Theodore Lowi
afirmava que os autores comumente identificados com o “paradigma” pluralista não
costumavam levar devidamente em conta a estratificação social. Para Lowi, a fragilidade
básica da abordagem pluralista estava em não reconhecer que nem todas as coalizões eram
equivalentes (Lowi, 1964, pp. 679-80). Mais recentemente, também Suzanne Berger fez
um breve histórico da evolução do enfoque pluralista na Ciência Política da segunda
metade do século. Segundo o seu relato, na visão pluralista dos anos 50 os grupos de
interesse se formavam como emanações espontâneas da sociedade, através de uma natural
aglutinação de interesses convergentes (Berger, 1981, p. 5). Não se problematizava a
questão da produção de uma convergência entre os propósitos dos membros e propósitos
organizacionais, presente na literatura moderna pelo menos desde 1911, quando Robert
Michels (1966, esp. parte 6, pp. 333-71) enunciou a sua famosa “lei de ferro da
oligarquia”, mas que só viria a retomar impulso a partir da segunda metade da década de
60, quando Mancur Olson (1965) deu expressão formal àquele problema ao trazer para a
Ciência Política o individualismo metodológico típico da economia, num trabalho pioneiro
cujos reflexos hoje ocupam um dos ramos mais frutuosos da produção teórica da ciência
social contemporânea. Mas, além do problema da formação de um grupo e da
racionalidade da adesão a ele – cerne das preocupações de Olson –, Berger (1981, p. 7)
insiste também na relevância do problema da autenticidade da representação, pelo grupo,
do interesse de seus membros – formulado por Michels com toda a clareza no início do
século, mas infelizmente ignorado por boa parte da literatura “pluralista”.
Todas essas críticas, dirigidas sobretudo a partir de meados da década de 70, contra as
formulações teóricas típicas dos autores chamados “pluralistas” por outros autores que
lidavam de alguma forma com o tema do corporativismo fizeram com que a disputa fosse
muitas vezes referida como um debate entre “pluralistas” e “corporativistas”. Some-se a
isto a carga ideológica ponderável que ambas as expressões carregam, e a confusão está
1
Para um detalhamento das diversas abordagens do tema, um levantamento recente encontra-se em
Araújo e Tapia (1991).
4
Algumas das razões das grandes dificuldades envolvidas na tentativa de se estabelecer uma
polarização tout court entre pluralismo e corporativismo ficam evidentes se nos damos ao
trabalho de uma consulta ao Dicionário de Política, editado por Bobbio, Matteucci e
Pasquino (1986). Pois ali os verbetes sobre pluralismo (Bobbio, 1986a) e corporativismo
(Incisa, 1986) são surpreendentemente convergentes.2 Em sua origem, ambos os conceitos
estão apoiados na defesa dos “corpos intermédios” na política, e opõem-se à redução da
política à relação direta entre o estado e o indivíduo.
De maneira próxima àquela que comumente se encontra nos textos sobre o tema, assim
Ludovico Incisa, autor do verbete sobre o corporativismo, define o seu objeto:
Incisa indica-nos também aquela que pode ser a raiz da avaliação negativa que hoje se faz
da idéia de corporativismo. Nos primórdios da Revolução Industrial, com o
desmantelamento do aparelho corporativo remanescente da Idade Média, “tem-se em vista
remover todo o interesse intermediário entre o interesse particular do indivíduo e o
interesse geral do estado e considera-se o espírito de corporação incompatível com o
processo de modernização do sistema político” e com a industrialização. No plano
político, o modelo corporativo passa a se apresentar, portanto, “como alternativa do
modelo representativo democrático” (idem, 1986, p. 287).
Podemos, sem dúvida, detectar nessas rápidas amostras do verbete sobre corporativismo
muito dos traços “organicistas” comumente apontados como típicos do “princípio”
corporativista e, apressadamente, opostos ao pluralismo, freqüentemente identificado com
2
David Nicholls (1974, pp. 54-5) também mostra como a doutrina pluralista levou, muitas vezes, à defesa
de variadas formas de corporativismo e mesmo de formas corporativas de gestão da indústria, tendo
alguns desses “pluralistas” inclusive vindo a se tornarem simpatizantes do fascismo.
5
princípios individualistas e/ou liberais. Norberto Bobbio, porém, autor do verbete sobre o
pluralismo, não se esquece de apontar na doutrina dos corpos intermédios, de
Montesquieu, “uma das fontes históricas do pluralismo moderno”, que é, segundo Bobbio,
ao mesmo tempo antiestatal e antiindividualista. Rejeita, simultaneamente, a
centralização de todo o poder nas mãos do estado e a atomização individual da sociedade.
Busca uma sociedade articulada em torno de núcleos de poder que se situem abaixo do
estado e acima dos indivíduos (Bobbio, 1986a, pp. 928-9). (Nunca podemos esquecer que
mesmo o pluralismo democrático americano é usualmente referido como “teoria dos
grupos”.) Atacando ainda os críticos da doutrina dos corpos intermédios – os ardorosos
modernizadores vitorianos que ajudaram a opor o corporativismo ao modelo
representativo democrático –, Bobbio prossegue:
“A supressão dos corpos intermédios como proteção do interesse geral contra o predomínio
dos interesses particulares baseava-se em duas hipóteses destinadas a não se
concretizarem: a fusão de todos os indivíduos que constituíam o corpo da nação na vontade
geral e da vontade geral na expressão genuína do interesse comum, e a lenta mas
inexorável limitação dos poderes do estado, à medida que fosse ocorrendo a transição
(segundo as falazes previsões do evolucionismo positivista) das sociedades militares do
passado à irreprimível sociedade industrial.” (Idem, p. 929.)
Creio ser quase dispensável chamar a atenção do leitor para a gritante afinidade entre o
princípio corporativista e o pluralismo tal como compreendido por Bobbio. Ambos têm
em comum a preocupação básica de fugir à contraposição exclusiva entre o indivíduo, de
um lado, e o estado, do outro, evitando, simultaneamente, tanto o estatismo quanto o
individualismo. Um caso particularmente notável é o da doutrina social católica, que, ao
mesmo tempo, tem destaque como propagadora do corporativismo e é apresentada como
uma das principais variantes do pluralismo (Incisa, 1986, p. 288; Bobbio, 1986a, p. 932).
À parte as pretensões de neutralização total de conflitos embutidas em alguns enunciados
do princípio corporativista, é de fato uma tarefa árdua traçar uma linha que distinga
claramente a prática dos sistemas corporativistas tal como existem nas democracias
européias contemporâneas, de um lado, do ideal pluralista tal como definido por Bobbio,
do outro. Um exemplo eloqüente dessas afinidades encontra-se em Alan Cawson, quando
este, dedicando-se a tentar mostrar o que o corporativismo não é – excluindo assim,
curiosamente, algumas das principais mazelas comumente associadas ao “corporativismo”
brasileiro –, termina por apresentar uma caracterização do corporativismo de óbvio e
profundo parentesco com a noção de pluralismo aqui exposta por Bobbio:
6
“Clearly the argument that policy is determined and implemented in negotiation between
the state and interest organisations presupposes that state agencies exercise power in their
own right, which means that the state system must be to a greater or lesser extent
autonomous. If it lacks autonomy and is ‘colonised’ by private interests, then there is no
corporatism. Conversely, if the state is completely autonomous and independent, and
interest organisations in society are subordinate to state agencies in each sphere of
public policy-making, then there is no corporatism.” (Cawson, 1986, p. 19, grifos meus.)
Uma pista importante para se detectar precisamente o que, afinal, está em jogo nesta
discussão pode ser encontrada na distinção que Incisa traça entre um corporativismo
tradicionalista (católico) e um outro corporativismo dirigista (fascista). Para Incisa,
Transportando esta discussão para a análise do caso brasileiro, talvez possamos constatar
que temos em nosso sistema político mais resquícios de traços fascistas – ou, mais
genericamente, autocráticos – do que propriamente corporativistas, e aqui as palavras são
importantes, pois a condenação unânime do “corporativismo”, a persistir, certamente
poderá criar sérios obstáculos à construção de um adequado mecanismo institucional de
intermediação de interesses no País. Em certa medida, como lembra Fábio W. Reis em
diversos trabalhos (cf., por exemplo, F. Reis, 1991b, pp. 147-50), a tarefa mesma de
construir a democracia parece envolver necessariamente o problema de se construir o
“corporativismo adequado”, isto é, formas de aglutinação de interesses privados e sua
legítima representação junto ao estado, como condição mesma da adesão desses atores
privados às regras que dão vida ao estado democrático.
Impõe-se reconhecer, portanto, que há, sim, uma ruptura radical e uma enorme diferença
de princípios entre os regimes democráticos contemporâneos e regimes autocráticos de
corte fascista. Mas é extremamente problemática a sua transposição tout court para uma
polaridade pluralismo-corporativismo. Para enfrentarmos de maneira rigorosa esta questão
é preciso reconhecer que o pluralismo e o corporativismo têm origem comum, e pelo
menos em uma de suas versões – a católica – são rigorosamente idênticos; são,
simplesmente, a mesma coisa, combatendo os mesmos inimigos: o arbítrio estatal, de um
lado, e o temor de uma eventual pulverização social decorrente de uma leitura extremada
do princípio individualista, de outro. Talvez a polarização se tenha instalado no debate
contemporâneo, afinal, em virtude do reconhecimento tácito, unânime, da universalidade e
da inevitabilidade da presença de “corpos intermédios” entre os indivíduos e o estado em
qualquer sistema político moderno, à exceção (possível) dos sistemas totalitários, o que
afasta o debate do problema da justificação da presença desses corpos e o leva para o
tema do papel a ser por eles desempenhado. Constatada, para o bem ou para o mal, sua
irremediável existência em um regime democrático, ao estudioso realista somente restaria
discutir a natureza jurídica dessa existência, se entidade de direito público ou privado, se
órgão do estado ou associação livremente constituída. Daí que eventualmente se acabe
reduzindo a dicotomia a duas palavras que já significaram a mesma coisa (a defesa da
presença dos corpos intermédios na política), atribuindo-lhes conteúdo positivo ou
8
Mas convém ainda ressaltar que mesmo aí as distinções não são fáceis, e inúmeras
ambigüidades permeiam toda a história da constituição dos sistemas de intermediação de
interesses atualmente existentes mesmo em muitas das melhores democracias
contemporâneas. Por exemplo, os sistemas de intermediação de interesses existentes hoje
na Europa Ocidental são pluralistas ou corporativistas? Creio que muitos de nós
estaríamos prontos a afirmar que são pluralistas, tendo em vista seu caráter evidentemente
democrático, para qualquer parâmetro de comparação histórica. Mas Schmitter fez
questão de negá-lo expressamente, e o nome que se vem consagrando na literatura para
designar o sistema de intermediação de interesses vigente nas democracias européias é
“neocorporativismo”.3 Mais: o papel inevitavelmente central do estado na constituição de
todos os sistemas de intermediação de interesses hoje vigentes na Europa foi
enfaticamente destacado por Claus Offe em artigo sugestivamente intitulado “A
Atribuição de Status Público aos Grupos de Interesse” – atribuição esta inevitável para a
eficácia e, acima de tudo, para a legitimação da participação desses grupos na formulação
de políticas. Ao fim e ao cabo, todas as distinções entre corporativismo e
neocorporativismo, corporativismo estatal e corporativismo social etc. referem-se, como
veremos, não aos sistemas em si mesmos, mas sim ao contexto em que operam, se
democrático ou fascista, se sob regimes de maior liberdade de organização ou sob regimes
ditatoriais ou autoritários.4 Em uma palavra, resta como variável crucial o grau de
adscrição social presente no sistema, isto é, a medida da liberdade de escolha de sua
3
Se levamos em consideração as raízes da expressão “pluralismo” tal como explicitadas por Bobbio, a
negativa de Schmitter parece assentar-se em bases um tanto problemáticas. É possível, todavia, que ele
estivesse reservando o termo “pluralismo” apenas para processos de barganha de interesses “à
americana”, nos quais inexistem sistemas estruturados que atribuam status público a grupos promotores
de interesses privados (como se dá tipicamente na Europa) e a barganha concentra-se sobretudo em
lobbies informais que se dão nos gabinetes da administração pública, longe dos olhos do público. Se for
esse o caso, porém, não me parece justificável, em princípio, a presunção desfavorável a priori em
relação ao corporativismo, quando contrastado com esse “pluralismo”.
4
A formulação original deste argumento encontra-se na crítica da distinção schmitteriana entre
corporativismo social (societal) e corporativismo estatal, levada a cabo por Fábio W. Reis (1988, p. 39).
A crítica de F.W. Reis encontra-se detalhada um pouco mais abaixo (nota 5), quando me refiro
rapidamente à contribuição de Schmitter. Uma ilustração exemplar desse argumento pode ser
encontrada em Domenico Settembrini (1986, p. 1191), que afirma que a práxis reformista da social-
democracia supõe uma política de “colaboração institucionalizada e permanente entre o estado, as
empresas e os trabalhadores”, de inevitável teor corporativista. E prossegue: “a Sozialpartnerschaft [...]
possui na Áustria um precedente no modelo do fascismo de Dollfuss (1933-1934), a que se assemelha
externamente, dele se distinguindo claramente apenas pela democraticidade.” (Grifo meu.)
9
Alguns, como Howard Wiarda (1974), chegam ao ponto de considerá-lo uma “terceira
via” de desenvolvimento, alternativa tanto ao capitalismo quanto ao socialismo. Tomando
o estado como a variável independente em sua análise, Wiarda define o corporativismo
ibero-americano como um fenômeno principalmente “cultural”. Ângela Araújo e Jorge
Tapia (1991, pp. 6-7) destacam algumas das limitações mais imediatamente evidentes
desse enfoque: em primeiro lugar, ele não explica a existência de estruturas corporativistas
em outros contextos culturais; em segundo lugar, não explica a inexistência delas em
países latino-americanos como Colômbia e Equador.
Aqui procuro tratar do fenômeno que Araújo e Tapia designam como “corporativismo
estrutural”, concebido como uma série de instituições políticas destinadas a processar,
dentro do aparelho estatal, os conflitos de interesses que têm lugar no âmbito da
sociedade civil – ou melhor, do mercado – e que termina por atribuir status público a
grupos representantes de interesses privados específicos. O ponto de partida da literatura
recente ligada a esse assunto é o já mencionado artigo de Philippe Schmitter (1974), que
assim define corporativismo:
5
De fato, e a despeito de sua generalizada utilização na literatura contemporânea, a distinção entre
corporativismo “social” e “estatal” parece assentada em bases um tanto precárias, e uma sólida crítica à
construção de Schmitter pode ser encontrada em Fábio W. Reis:
“Dada a ressonância alcançada pela distinção de Schmitter, é curioso observar que ele não
estabelece uma diferença real entre os dois casos de corporativismo enquanto tal, isto é, enquanto
casos de corporativismo. Se se toma a passagem em que a distinção é diretamente confrontada e
elaborada [Pike e Strich, eds., 1974, pp. 102-6], vê-se que Schmitter se refere insistentemente
seja: 1) ao processo pelo qual se atinge um ou outro tipo, chegando à formulação sintética de que
‘as origens do corporativismo social (societal) se encontram na decadência lenta e quase
imperceptível do pluralismo avançado [países de maior tradição liberal-democrática], enquanto as
origens do corporativismo estatal se encontram na morte rápida e altamente visível do pluralismo
nascente [casos como Portugal, Brasil, Grécia, Itália fascista]’ (idem, p. 106); seja 2) às
características mais ou menos autoritárias do sistema político como um todo em que cada tipo
estaria ‘embebido’ ou ao qual estaria ‘associado’ (idem, p. 105) – apesar de que o próprio
Schmitter denuncie na literatura a tendência de fazer ‘submergir’ o corporativismo em ‘alguma
configuração política mais ampla tal como o «estado orgânico» ou o «regime autoritário»’ (idem,
p. 91). Estruturalmente, ou seja, enquanto sistema de representação de interesses em que o estado
se articula com unidades de representação que são limitadas em número, compulsórias, não-
competitivas, hierarquicamente ordenadas, funcionalmente diferenciadas e monopolizadoras (de
acordo com a definição geral de corporativismo, idem, p. 93), não se indicam diferenças entre os
dois tipos, de sorte que os rótulos correspondentes se mostram, ao cabo, apenas designações
alternativas para algo como um corporativismo que anda em boas companhias e outro que anda
em más companhias, o que afeta a respeitabilidade de cada um.” (F. Reis, 1988, p. 39.)
Outra crítica à tipologia de Schmitter pode ser encontrada em Cohen e Pavoncello (1987), que mostram
como a noção de “corporativismo social” contradiz a própria definição geral de corporativismo
apresentada por Schmitter, pois, se o corporativismo é definido como um “sistema em que o estado
controla os grupos de interesse [...], como pode o corporativismo social ser um subtipo do
corporativismo?” (idem, p. 119, tradução minha). Para Cohen e Pavoncello, o fator crucial que
determinará o controle ou não dos grupos pelo estado será o controle, por este último, dos recursos
necessários à manutenção daqueles - o que ajuda a explicar o maior controle comumente exercido sobre
organizações de trabalhadores quando comparado àquele exercido sobre associações patronais. Sendo
assim, eles procuram manter “descrições institucionais de sistemas de intermediação de interesses
analiticamente separadas de questões de poder” (idem, p. 118, tradução minha).
12
público ou privado dos grupos de interesse, demonstrando ser esta uma questão muito
mais árdua do que nos faz crer a absorção apressada da tipologia de Schmitter. Não
obstante, ele salienta a pobreza da análise que concebe o corporativismo basicamente
como forma de controle, uma vez que não apenas classes sociais (tal como concebidas em
grandes clivagens fundamentais, como burguesia e proletariado, por exemplo), mas
também os múltiplos “receptores de políticas” (“policy takers”) potenciais, tais como
contribuintes, aposentados, estudantes etc., são clientes potenciais de estruturas
corporativas. Offe não chega, porém, a aceitar inteiramente as premissas da escola
pluralista norte-americana e a atribuir idêntico peso analítico à atuação de todo e qualquer
grupo de interesse, já que ele não deixa de reconhecer que o corporativismo,
inegavelmente, produz fortes impactos sobre a dinâmica do conflito de classes (Offe,
1989b, p. 247), que permanece como o conflito central na obra de Claus Offe – apesar de
algumas “hesitações” recentes (Offe, 1989a). Além disso, Alan Cawson (1986, p. 45) nos
lembra que é necessário distinguir o relacionamento “lobbístico” entre grupos de pressão e
governos – a que basicamente se reportava a teoria pluralista americana – do
relacionamento institucional entre estado e grupos corporativos.
As diferenças de enfoque, porém, não vão muito além disso. Não se deve exagerar a
dimensão da “ruptura” teórica eventualmente existente entre os estudiosos que hoje se
dedicam ao fenômeno do corporativismo e o núcleo das reflexões dos autores chamados
“pluralistas” dos anos 50 e 60, pois mediante uma análise um pouco mais detida das
contribuições de alguns autores ao tema específico do corporativismo podemos ilustrar
facilmente os vínculos e a continuidade existentes no aparato teórico utilizado. Alfred
Stepan (1980, p. 74, apud Araújo e Tapia, 1991, p. 12), por exemplo, que utiliza a
distinção de Schmitter entre corporativismo estatal e social, introduz dois subtipos na
categoria do corporativismo estatal: o inclusivo e o excludente. É interessante observar
que Stepan faz questão de se referir a políticas inclusivas ou excludentes, e não mais a
regimes. Isto porque ambas as características podem se aplicar a um mesmo sistema em
diferentes momentos históricos, o que nos faz perceber que já não se trata mais de
características de um determinado “modelo” institucional de corporativismo, mas sim de
implicações distintas que um mesmo sistema pode produzir conforme mudem as
circunstâncias políticas em que opera. Kenneth Paul Erickson, em seu capítulo dedicado à
gestão de Almino Afonso à frente do Ministério do Trabalho em 1963, traça uma
excelente ilustração da possibilidade de se utilizarem instituições corporativas
13
Mas é outro o aspecto decisivo sob o qual a contribuição de Stepan pode se mostrar
interessante aqui. Trata-se do fato de que a descrição por ele feita da lógica de
funcionamento do corporativismo estatal (inclusivo/excludente) pode claramente apoiar-se
na clássica descrição do processo político elaborada por E.E. Schattschneider em seu The
Semi-Sovereign People. Com um esquema interpretativo bastante semelhante ao dos
estudos identificados como “pluralistas”, Schattschneider concebe a política como um
jogo de pressões e contrapressões exercidas por representantes de interesses em conflito,
jogo este que tem os seus parâmetros – e mesmo o resultado – fundamentalmente
determinados por dois fatores: a “clivagem” e a “abrangência” (“scope”) do conflito. A
clivagem diz respeito, basicamente, à definição da “agenda” política, que irá determinar os
termos da polarização política básica (quem está “de um lado” e quem está “do outro
lado”). Para Schattschneider, o desenvolvimento de um conflito inibe o desenvolvimento
de outros, o que faz com que a definição de alternativas, ao delimitar o leque das escolhas
possíveis, seja freqüentemente mais importante que a própria escolha entre elas
(Schattschneider, 1975, pp. 63-6). Já a abrangência do conflito é relevante porque, dada a
clivagem prevalecente, o resultado do conflito poderá pender para um lado ou para o
outro, dependendo da medida em que o sistema político trouxer para dentro da arena uma
maior ou menor parcela da população, ou seja, dependendo do âmbito ou da abrangência
social do conflito político.
6
Fábio Wanderley Reis (1977) também constrói um argumento semelhante, em crítica dirigida à
antinomia entre “representação” e “cooptação” tal como elaborada por Simon Schwartzman (1975).
14
Registre-se ainda que Stepan não parece ser um caso isolado. Para ficar em apenas um
trabalho, mencione-se a contribuição de Ruth e David Collier ao tema, em que os autores
concebem essas tensões (inclusão/exclusão) do corporativismo como resultado da
preponderância de “incentivos” ou de “constrangimentos” à participação política em
diferentes momentos do processo político de cada país, diluindo, como Stepan, a distinção
a priori entre corporativismos inclusivos e excludentes, e interpretando a dinâmica do
corporativismo em termos muito próximos aos da análise de autores chamados
“pluralistas” (Collier e Collier, 1979, apud Araújo e Tapia, 1991, pp. 12-3).
Nas democracias políticas dos países centrais, segundo O’Donnell, o corporativismo seria
quase exclusivamente “privatista”, e desapareceria o seu caráter “bifronte”, anulando-se,
com isto, o efeito basicamente controlador exibido nos estados burocrático-autoritários.
Um dos principais méritos da formulação de O’Donnell reside em que ela, ao afirmar o
caráter “bifronte” do corporativismo nos estados burocrático-autoritários, chama a
atenção do leitor para a existência de uma dimensão “privatista” nesse processo também
entre nós, não se restringindo a detectar exclusivamente a dimensão “controladora” das
estruturas corporativistas de intermediação de interesses, mesmo sob a vigência dos
regimes “burocrático-autoritários” latino-americanos.
7
Antes dele, Fernando Henrique Cardoso (1972, esp. pp. 98-100) também já assinalava a existência dos
“anéis burocráticos” que uniam o estado à burguesia no Brasil.
16
Não pode ser esta característica “bifronte”, portanto, a responsável decisiva por um
eventual caráter especialmente autoritário e controlador de que se revistam as estruturas
de intermediação de interesses existentes entre nós, no Brasil. Na realidade, se despida de
algumas idealizações, a forma de abordagem do problema proposta por O’Donnell termina
por associar fortemente os efeitos de uma estrutura corporativa à natureza do regime
político sob o qual ela opera. E isto, uma vez aceito, produzirá efeitos cruciais sobre o
diagnóstico da situação brasileira atual, com implicações relevantes para os propósitos do
presente trabalho.
“Qualquer atribuição de status significa que, por um lado, os grupos auferem vantagens e
privilégios, mas, por outro, têm de aceitar certas limitações e obrigações restritivas. Em
um caso típico, o acesso a posições decisórias no governo é facilitado por meio do
reconhecimento político de um grupo de interesse, mas a organização em questão torna-se
sujeita a obrigações mais ou menos formalizadas, como por exemplo o comportamento
responsável e previsível e a abstenção de demandas não-negociáveis ou táticas
inaceitáveis.” (Offe, 1989b, pp. 240-1.)
segundo Suzanne Berger, não se pode sustentar completamente. Pelo contrário, Berger
(1981, pp. 8-11) afirma que a politização dos grupos exerce um poder estabilizador no
sistema político, em face das crescentes tarefas governamentais de regulação social.8
Corroborando esta tese, os autores que lidam com o neocorporativismo europeu do pós-
guerra parecem ser unânimes em afirmar que a estabilidade do sistema político nos “trinta
anos gloriosos” que se seguiram à guerra na Europa Ocidental se deveu, sobretudo, à
intermediação de interesses pelo estado e a seu papel de regulador do mercado. Um deles,
Manfred Schmidt (1982), testa estatisticamente diversas hipóteses explicativas das taxas
de desemprego relativamente elevadas observadas na década de 1970, e somente para
duas variáveis ele encontra correlação significativa com as taxas médias de desemprego
observadas entre 1974 e 1978:
(1) uma correlação positiva de 0,63 com a taxa média de desemprego observada
no período imediatamente anterior (1960-1973); e
(2) uma correlação negativa de 0,67 com a presença de estruturas corporativas.
O que redunda em associar o desemprego, basicamente, a dois componentes: um
“estrutural” relativamente constante (que explicaria a correlação positiva elevada com o
desemprego passado) e outro que é a ausência de estruturas corporativas de
intermediação de interesses. A conclusão de Schmidt é que o corporativismo,
efetivamente, resulta em uma suavização do impacto dos ciclos econômicos – o que,
naturalmente, não significa afirmar que ele possa evitar sistematicamente os efeitos de
crises econômicas e as conseqüências não-intencionais de intervenções governamentais em
uma economia de mercado.9
8
A propósito da questão da divisão de papéis entre partidos e grupos de interesse, Pizzorno (1981, pp.
249-63) mostra como o problema da identificação dos interesses, que se coloca a partir da diluição dos
estamentos, inicialmente se afirma mediante a divisão geográfica da representação de interesses (típica
da arena parlamentar), para logo em seguida ter de se desdobrar com base em novos critérios, por meio
das organizações de interesse – muito embora considere que os partidos políticos continuem sendo
sempre a solução para o problema da identidade política em sociedades pós-estamentais.
9
As outras variáveis testadas por Schmidt são renda per capita, índice de aumentos salariais, taxa de
crescimento econômico, taxa de inflação, participação percentual da PEA na população total, presença
ou não de mão-de-obra estrangeira, integração ou não com o mercado internacional, presença ou não de
um forte welfare state, grau de participação da esquerda nos governos (ministérios) ao longo do período
(1974-1978), tempo de governo da esquerda no período, existência ou não de um partido relativamente
dominante no período, coesão ou não da direita e, finalmente, votação da esquerda entre 1970 e 1978.
Nenhuma dessas variáveis apresentou correlação significativa com o desemprego observado entre 1974
e 1978 nos 21 países pesquisados (Alemanha Ocidental, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá,
Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão,
Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, Suécia e Suíça).
18
10
Também em Fritz W. Scharpf (1988), a configuração do aparato institucional é o elemento decisivo
para a solução do problema de coordenação entre governo e sindicatos.
19
Para que um “corporativismo estável” seja alcançado, porém, Offe vê uma série de
obstáculos que podem nos ajudar a avaliar as dificuldades que se apresentariam à tarefa de
edificação de um sistema corporativo adequado no Brasil:
“No mínimo, para ser estável, o corporativismo não [apenas] deve gerar consenso
continuamente; antes de mais nada, precisa pressupor o consenso, ou seja, uma sólida e
incontestada aceitação de determinado modo de representação e acomodação de interesses.
“Isso requer, primeiramente, uma certa tradição e organização dos sindicatos que resulte
em sua disposição de aceitar as regras da ‘parceria social’ (Sozialpartnerschaft); [assim]
‘países com um movimento trabalhista voltado para o conflito não são tão adequados para
o corporativismo liberal’ [Lehmbruch, 1977, p. 115]. Além das tradições políticas da
classe trabalhadora do país, a atitude de ‘parceria social’ parece ser reforçada pela
doutrina organizacional do sindicato ‘unitário’ (Einheitsgewerkschaft), em contraste com a
organização segundo filiação partidária ou segundo o ramo de atividade [...]. Em segundo
lugar, essa condição de aceitação inconteste pode ser mantida se as forças opositoras que
não estão dispostas a seguir as regras das estruturas políticas corporativistas forem
11
“Macro”, “meso”, e “microcorporativismo” são conceitos que nos últimos anos vêm obtendo aceitação
crescente entre os estudiosos do corporativismo, principalmente depois da publicação de Alan Cawson,
ed. (1985). Em linhas gerais, esta conceituação se origina da preocupação em dar vazão teórica à
constatação de que o corporativismo é mais disseminado do que permitiria supor a atenção exclusiva à
existência de padrões de intermediação de interesses em escala nacional, abrangendo a economia como
um todo (arranjos “macrocorporativos”). Há situações em que essa intermediação não existe em escala
nacional, mas sim em escala regional ou, principalmente, setorial (“mesocorporativismo”). Na
formulação e implementação de uma política industrial, por exemplo, é bastante provável o recurso a
arranjos mesocorporativos, nos quais se fariam representar os diversos setores envolvidos. Já
“microcorporativismo” se reportaria à interação de agências governamentais e grandes empresas
monopolistas, com capacidade para determinarem sozinhas o destino de um setor. Distinguir-se-ia do
clientelismo tout court pelo fato de que aqui o estado manteria sua autonomia na relação, não havendo
“aprisionamento” da agência pela empresa. Uma rápida distinção entre os três conceitos pode ser
encontrada em Araújo e Tapia (1991, pp. 19-21).
20
Com o objetivo de fazer uma exposição bastante breve desse tema tão complexo e
multifacetado, pode-se começar por dizer que o processo de modernização, tal como
costuma compreendê-lo a teoria sociológica, é deflagrado basicamente por um processo
de racionalização de diversas esferas da vida social que encontra um de seus sintomas mais
visíveis na disseminação quase que total do uso da moeda como um meio universal de
troca, e pela conseqüente introdução do princípio mercantil de regulação das relações
sociais, que deflagra uma progressiva erosão de ordenamentos sociais tradicionais de
natureza estamental. Descrito de maneiras bastante variadas, esse processo tem lugar de
destaque em todas as principais matrizes do pensamento sociológico do último século,
quer recorramos a Weber ou a Durkheim, a Parsons ou a Marx ou a Comte. Esse
fenômeno histórico de limites desconhecidos – que moldou drasticamente o destino do
Ocidente e que hoje alcança praticamente todo o globo –, ao incorporar um princípio de
igualdade fundamental entre os homens, liberou uma força ideológica de caráter
emancipador capaz de subverter padrões milenares de submissão hierárquica ao cabo de
apenas umas poucas gerações. Naturalmente, o preço dessa efervescência social no que
diz respeito às possibilidades de manutenção da ordem e da paz social é extremamente
elevado. O impulso de incorporação política inerente à modernização invariavelmente se
21
choca com os interesses daqueles habituados a exercer a dominação – e isso sem contar o
sempre delicado problema da construção de canais adequados para a expressão dessa
participação popular, descartado o exercício direto e cotidiano do poder pela massa
reunida em praça pública (ou em redes de computadores). E se esse processo é deflagrado
exogenamente, como foi o caso dos países coloniais do Terceiro Mundo, então ele será
certamente ainda mais traumático. Apenas para ilustrar com extremos, basta lembrar que o
mesmo processo de modernização sociopolítica que a Inglaterra vinha atravessando ao
longo de quase mil anos (e não sem muito sofrimento), os jovens países africanos nascidos
após 1945 foram chamados a consumar a golpes de caneta – ou melhor, de baionetas – da
noite para o dia.
Ora, num cenário como este, a radicalização da disputa política – e agora com seu alcance
exponenciado pela ampliação da arena política – é uma decorrência natural e inevitável. E
a aparentemente infindável alternância, ou mesmo a mescla, entre regimes autocráticos e
populismo demagógico é apenas um sintoma da incapacidade dos governos de atender
simultaneamente aos dois imperativos cruciais do sistema político democrático: o de
“produção” de poder e o de “distribuição” de poder. Assim, ou o governo concentra todo
o poder (como durante a vigência de regimes autoritários), resolvendo o problema de
produção de poder a expensas do objetivo de distribuição do mesmo, ou então,
alternativamente (durante os interlúdios populistas), ele se vê paralisado por múltiplas e
contraditórias demandas no varejo da barganha política, tornando-se incapaz de
“produzir” poder (F. Reis, 1989c, pp. 161-7).
Nem por isso, todavia, se deve concluir que o formato específico assumido pelas
instituições corporativas no Brasil não tenha incorporado traços autoritários próprios.
Instalada como foi a maior parte de nossa legislação trabalhista na década de 1930, sob
22
uma atmosfera intelectual antiliberal de alcance mundial, e ainda sob um governo com
notórias afinidades com o fascismo, as instituições sindicais brasileiras foram criadas
embebidas em uma concepção fortemente organicista da sociedade, que deslegitimava
interesses privados e individuais em prol de um suposto bem coletivo, salvaguardado,
evidentemente, pelo Estado. Isto, naturalmente, não deixou de produzir efeitos sobre a
legislação então produzida, que impôs uma disciplina particularmente rígida sobre o
comportamento dos grupos de interesse, com enormes prerrogativas reservadas ao
Estado.
Porém, em vez de me deter sobre a discussão das instituições específicas que porventura
tenham sido criadas no Brasil dos anos 30 e 40 (ou sobre o que efetivamente resta delas
nos dias de hoje), gostaria de abordar uma ramificação frutífera do tema aqui abordado –
o processo de institucionalização política da representação de interesses privados
conflitantes – que se encontra no estudo da dinâmica política do conflito distributivo no
Brasil e suas implicações sobre o desempenho econômico do País, particularmente no que
toca à análise da inflação crônica com que recorrentemente nos defrontamos, cujo
combate ganhou especial relevo na agenda de política econômica do governo brasileiro
nos últimos 15 anos (e cujo espectro está longe de ter sido exorcizado no transcorrer
deste primeiro ano do Real). Em outro trabalho (B. Reis, 1994), abordo esse problema a
partir do diagnóstico da existência de uma afinidade lógica entre, de um lado, um processo
inflacionário crônico como o vivido no Brasil de hoje e, de outro, o problema da
consolidação institucional de uma ordem racional-legal em sociedades de instituições
frágeis (as sociedades em processo de modernização, “pretorianas”, segundo Huntington,
tal como foi sucintamente descrito acima).12
Em seu nível mais abstrato, o argumento daquele trabalho – para dizê-lo em poucas
palavras – se baseia em duas premissas fundamentais:
(1) a estrutura de preferências dos atores envolvidos no conflito distributivo pode
ser adequadamente descrita pela configuração que na teoria dos jogos recebe o nome de
“dilema do prisioneiro”;
(2) na ausência de instituições sólidas (ou seja, nas “sociedades pretorianas” de
Huntington, com baixo “grau” de governo), o poder público fracassa na tarefa primária
12
Segundo a caracterização de Huntington (1975, p. 208), sociedades pretorianas são, grosso modo,
aquelas em que não existem “instituições políticas efetivas, capazes de mediar, refinar e moderar a ação
política dos grupos”; nas quais o processo de modernização incorporou à arena política estamentos
anteriormente excluídos, mas sem que se consolidassem instituições aptas a processar consensualmente
as disputas decorrentes dessa incorporação.
23
que lhe foi atribuída por Hobbes, isto é, torna-se incapaz de constranger eficazmente os
diversos atores envolvidos a adotarem estratégias cooperativas.13
Resumindo bastante o argumento, pode-se afirmar que, se forem verdadeiras estas
premissas, será alta a probabilidade da generalização de uma estratégia egoísta,
maximizadora no curto prazo, pelos agentes envolvidos no conflito distributivo em
sociedades pretorianas, criando condições propícias à produção de um resultado
subótimo, embora racional, a inflação. Naturalmente, deve-se admitir que pretorianismo
por si só não implica inflação, isto é, não é condição suficiente para a instalação de um
processo inflacionário crônico. Mas, excetuado o caso muito particular do surto
inflacionário observado em Israel nos anos 80 (que certamente mereceria uma análise mais
cuidadosa do que seria possível nestas páginas), a fragilidade político-institucional parece
ser, praticamente, condição necessária à emergência de um processo inflacionário crônico
e relativamente acelerado – digamos, uma inflação de taxas mensais persistentemente
acima dos 10% ao mês. Nesses casos, a estabilização monetária torna-se uma tarefa
particularmente difícil, pois trata-se de convencer os agentes a abrir mão de ganhos
imediatos em favor de ganhos (talvez até maiores) no futuro – só que, por definição, se há
instabilidade política ou fragilidade institucional não há horizonte seguro no médio e longo
prazos, e todos os agentes optam por estratégias que privilegiem ao máximo os ganhos
imediatos. Por isso é necessário tratar com extremo cuidado as expectativas dos agentes
econômicos cruciais, que em contextos como esses se comportam de maneira
excepcionalmente “nervosa”.14
13
Talvez valha a pena observar que Robert Dahl (1971, pp. 5-9) também contempla a situação de
incorporação precipitada de novos atores sem a prévia institucionalização das “regras do jogo” como um
possível caminho hipotético rumo à “poliarquia”, porém o pior caminho, provavelmente malfadado. Se
se puder justapor a teoria de Huntington sobre o diagrama de Dahl, pode-se dizer que este “caminho”
fracassa porque, ao incorporar novos atores e não lograr estabelecer regras estáveis, o processo de
modernização reinstaura o “dilema do prisioneiro” típico do estado de natureza hobbesiano, que
provavelmente já havia sido contornado anteriormente com a ordenação estamental da sociedade que
ora entra em crise.
14
Esse é um aspecto relevante do Plano Real que talvez não tenha sido suficientemente destacado: o
governo foi extremamente cauteloso com as expectativas dos agentes. Renegou abertamente os
“choques” (congelamentos, confiscos ou quaisquer outras medidas desta natureza, que tivessem de ser
tomadas “na calada da noite”) e anunciou previamente todos os seus passos na fase de transição do
cruzeiro para o real – incluindo o período em que a URV foi usada como indexador oficial. De fato, fez
o que pôde para oferecer um horizonte claro para os agentes no mercado. Todavia, se, por um lado, a
estratégia da “moeda indexada” parece ter se mostrado um instrumento bastante mais eficaz que o
congelamento de preços para uma redução duradoura do patamar inflacionário (que, no Brasil, em
virtude da indexação generalizada, é extremamente rígido para baixo), por outro lado nada impede que
a inflação volte a subir lentamente a partir de diversos choques externos, uma vez que as “reformas
estruturais” no setor público, que poderiam imprimir um caráter mais duradouro à estabilização,
24
Minha aposta é que uma das variáveis cruciais que impediram o governo não só de
derrotar a inflação, mas praticamente de governar nesse período foi o vácuo institucional
que se abriu a partir da aceleração da abertura no governo do general Figueiredo. De lá
para cá, nenhuma força política conseguiu construir uma hegemonia que possibilitasse a
formação de um consenso mínimo em torno de um novo formato institucional
internamente consistente para o País. A Constituição de 1988, elaborada no interior dessa
fragmentação política, é uma colcha de retalhos excessivamente detalhista e carente de
articulação interna, fruto dos inúmeros lobbies, em torno de pequenos problemas, que se
formaram durante o trabalho constituinte, ocupando o vazio deixado pela ausência de uma
condução política hegemônica.16 E, finalmente, as intervenções crescentemente violentas
do governo na economia com vistas a controlar a inflação – principalmente os sucessivos
congelamentos de preços efetuados a partir de 1986 –, ao aumentarem enormemente a
incerteza na economia, colaboraram decisivamente para a explosão inflacionária que se
parecem – por motivos estreitamente relacionados aos problemas políticos nacionais expostos no
presente trabalho – cada vez mais incertas; e a desindexação geral de preços e salários na economia,
crucial para o fim da rigidez para baixo do patamar inflacionário, não se pôde ainda completar.
15
No trecho que segue, utilizo algumas passagens do meu trabalho anteriormente referido (B. Reis, 1994).
16
Naturalmente, nada disso quer dizer que durante o regime militar o problema institucional estivesse
“resolvido”; apenas chamo atenção para o vácuo político que se foi instalando no Brasil a partir do
fenecimento da ditadura, e do aumento do grau de incerteza – inclusive institucional – da economia a
partir desse fenômeno. Se a teoria aqui esboçada estiver correta, isto terá trazido efeitos danosos sobre a
dinâmica do conflito distributivo, com conseqüente crescimento da inflação. Acerca deste ponto, a
propósito, Albert Hirschman (1985, p. 73) lembra que, além do conflito, também o grau de
permeabilidade do governo a demandas colabora diretamente com a inflação, e nada assegura que
regimes militares sejam mais intransigentes nesse ponto. Pelo contrário, a experiência mostra que nos
regimes militares os favores se multiplicam e a inflação se mantém a despeito da repressão ao
movimento sindical. Talvez por servir também para a acomodação de interesses, a inflação brasileira,
mesmo durante o regime militar, nunca esteve abaixo de 15% anuais. Como vimos acima, esta análise
de Hirschman encontra clara corroboração nos bastante conhecidos trabalhos que Fernando Henrique
Cardoso produziu nos anos 70 sobre os “anéis burocráticos” já referidos (ver, por exemplo, Cardoso,
1972).
25
observou desde então.17 (O paradoxo fatal aos choques heterodoxos consiste em que eles
intervêm brutalmente no mercado e esperam que as pessoas ignorem esta possibilidade ao
formarem suas expectativas.)
17
Uma exposição mais fundamentada e formal deste argumento acerca da influência dos sucessivos
choques econômicos sobre as expectativas dos empresários e seus efeitos nefastos sobre a inflação pode
ser encontrada em José Márcio Camargo (1990, esp. pp. 19-21).
18
Talvez seja oportuno esclarecer que quando me refiro a “conflito distributivo” não penso
exclusivamente no conflito entre capital e trabalho em torno da determinação de lucros e salários.
“Conflito distributivo”, aqui, é qualquer disputa entre grupos ou setores da economia em torno da
apropriação da maior parcela possível da renda nacional. Entre estes setores deve-se incluir também o
governo, de forma que, quando relaciono a inflação ao conflito distributivo, não excluo de saída as
teorias mais ortodoxas da inflação, baseadas no déficit público e nas diversas formas de seu
financiamento.
19
O programa de investigação “sociológica” da inflação que John Goldthorpe (1978) propõe serve como
uma descrição surpreendentemente boa do argumento acima. Segundo Goldthorpe, a Sociologia
compreende a inflação como “a expressão monetária do conflito distributivo”. Ele aponta a ignorância
da tradição weberiana por parte dos economistas que invectivam contra explicações “sociológicas” e
afirma que o argumento sociológico acerca da inflação acaba sendo mais “econômico” que muitas teses
monetaristas (que imputam ao governo um comportamento irracional, não otimizador), pois atribui o
fenômeno ao acirramento do conflito distributivo decorrente de atitudes perfeitamente racionais dos
agentes em um mundo, de certo modo, “pós-estamental”, no qual se afirmam e se universalizam os
direitos da cidadania.
26
violentamente no processo político. Afinal, temos em vigor uma Constituição que mal
completou meia década, e absolutamente não temos clareza sobre o que restará dela em
um futuro próximo. Praticamente não existem no Brasil instituições decisórias ou
administrativas cujos procedimentos ou atribuições não sejam objeto de disputa. Assim,
pode-se afirmar com segurança que nossa famosa “crise de governabilidade” – tão
freqüentemente propalada na imprensa e lamentada pelos sucessivos governos federais –
reside muito menos no teor da legislação em vigor do que em sua instabilidade intrínseca,
que faz com que o sistema legal seja, em boa medida, inócuo, incapaz de afetar, para o
bem ou para o mal, a dinâmica viciosa da vida política brasileira. E este é o traço
fundamental do pretorianismo tal como definido por Huntington. É este o principal
sintoma daquilo que ele chama de baixo “grau de governo” (que, diga-se de passagem,
nada tem a ver com o “tamanho do estado”).
Uma objeção mais forte, contudo, pode ser formulada: a caracterização do Brasil como
pretoriano tem de se aplicar a épocas em que a inflação, embora existisse, esteve sempre
abaixo dos índices apresentados na década de 1980. Por que teria ela escapado ao
controle naquele momento e não antes?
Isto posto, torna-se perfeitamente possível reconhecer – sem ter de abandonar em nenhum
momento a caracterização da sociedade brasileira como pretoriana – que o Brasil já viveu
momentos de maior institucionalização de sua vida política, o que, conseqüentemente,
propiciava ao País um maior “grau de governo”, nos termos de Huntington. Mas isto ao
preço da exclusão (ou da repressão) política de amplos setores da sociedade, que a mera
continuidade dos processos de incorporação e mobilização política trazidos no bojo da
paulatina modernização das relações sociais vem desafiar. Para mencionar apenas um
traço que diz respeito mais diretamente ao conflito distributivo, o sistema de
intermediação de interesses implantado nas décadas de 1930 e 1940 seguramente permitia
aos governos do período que vai de 1946 a 1964 maior controle sobre querelas
27
distributivas do que ele dispõe hoje, ao mesmo tempo em que era, inicialmente, objeto de
razoável consenso na população em torno de sua legitimidade.20 Embora continuasse
legalmente em vigor, a partir de 1964 ele foi virtualmente substituído pela repressão aos
sindicatos e a arbitragem dos salários pelo governo federal. Com a abertura, a contestação
aberta ao sistema vigente ganhou força a partir dos últimos 15 anos – especialmente nas
plataformas do “novo sindicalismo”, que engendrou o Partido dos Trabalhadores – PT e a
Central Única dos Trabalhadores – CUT. O resultado é que, de dez anos para cá, temos
vivido um estado de perfeita anomia no que diz respeito ao conflito distributivo, com uma
legislação trabalhista e uma lei de greve anacrônicas e que caíram em desuso, sem que se
tenha obtido consenso algum em torno de um novo arranjo institucional para a
administração das relações entre capital e trabalho no Brasil.
Partindo da análise da experiência histórica dos Estados Unidos, Lowi elabora uma
tipologia que divide as políticas públicas em três grandes tipos básicos (políticas
“distributivas”, “regulatórias” e “redistributivas”). Estas três grandes áreas de políticas,
segundo Lowi, configuram diferentes arenas de poder, cada uma com sua própria
estrutura política característica, seus processos e sua elite peculiar (idem, p. 689).
Wanderley Guilherme dos Santos (1982, p. 168) nos oferece, de cada uma dessas arenas,
uma definição bastante sintética e precisa, suficiente para os propósitos do presente
trabalho:
20
A respeito da concordância dos trabalhadores brasileiros com o espírito “organicista” da legislação
trabalhista em vigor durante o período que vai de 1946 a 1964, ver Kenneth Paul Erickson (1979, pp.
57-8).
28
21
Para as definições originais, ver Lowi (1964, pp. 690-1).
22
A polêmica que então se travou em torno do estatuto legal do Comando Geral dos Trabalhadores – CGT
é bastante ilustrativa a esse respeito: “ilegal” para o marechal Castelo Branco, o CGT era apenas
“extralegal” para o ministro Almino Afonso.
29
Portanto, embora seja verdade que se podem encontrar algumas das raízes mais visíveis da
inflação brasileira em determinadas políticas distributivas e regulatórias tradicionais entre
nós (respectivamente o empreguismo e o protecionismo, por exemplo), parece-me que
uma solução do problema da inflação está a requerer a implementação de políticas de
caráter efetivamente redistributivo, uma vez que o governo, com ou sem negociação, terá
necessariamente de arbitrar perdas a largos setores da economia em favor de outros, e de
maneira duradoura. Assim, o resultado daquele vácuo de poder que se observou no Brasil
após o fim do regime autoritário é a expressão mais crua do dilema do prisioneiro que
descreve as preferências e as estratégias racionais de atores imersos em um conflito
distributivo não regulado (pois não há mais qualquer legislação trabalhista que tenha sua
23
A dinâmica concentradora do conflito distributivo no Brasil nos últimos anos é descrita em Amadeo e
Camargo (1990, pp. 86-9). As seções 4 e 5 desse trabalho (pp. 77-108) – onde se descreve o mecanismo
que os autores chamam de “filosofia do repasse”, que permite uma espécie de “pacto inflacionista” entre
trabalhadores e empresários dos setores oligopolizados da economia, capazes de repassar via preços seus
aumentos de salários para os demais setores – foram posteriormente transformadas em um artigo
publicado duas vezes (Amadeo e Camargo, 1991a e 1991b). A base empírica dos resultados obtidos
pelos autores, bem como sua tese do “pacto inflacionista”, foram posteriormente contestadas por
Macedo e Piva (1992), mas ambos os trabalhos confirmam o processo de concentração de renda em
curso no País, ainda que por meio de mecanismos diversos.
30
O problema mais grave, porém, é que a adoção de políticas redistributivas não se reduz a
uma mera questão de “vontade política” – para usar o consagrado chavão de todo
discurso oposicionista. Pois, segundo Lowi, cada tipo de política tem sua própria arena e
requer uma estrutura decisória característica. E a estrutura política da arena redistributiva
é, como sabemos, extremamente rígida, refletindo e cristalizando os impasses entre classes
sociais que derivam diretamente dos conflitos observados na sociedade como um todo.
Acerca desse tema – das condições de possibilidade da adoção dos diferentes tipos de
políticas tal como definidos por Lowi –, uma contribuição importante é o trabalho de
Robert Salisbury (1968, pp. 166-8), que afirma que o tipo de política que tende a ser
adotado varia em função do grau de integração ou de fragmentação tanto do padrão de
demandas quanto do sistema decisório. Introduzindo, além dos três delineados por Lowi,
um quarto tipo de política – a arena “auto-regulatória”24 – Salisbury (idem, p. 171) monta
um diagrama 2x2 no qual cada um dos seus quatro tipos de políticas é relacionado a um
cruzamento específico entre o grau de integração do sistema decisório e o do padrão de
demandas. Assim, uma política redistributiva requer que ambos exibam elevado grau de
integração, enquanto políticas distributivas, ao contrário, são típicas de situações em que
tanto o sistema decisório quanto o padrão de demandas são bastante fragmentados. Nas
situações híbridas, encontraríamos políticas regulatórias (sistema decisório integrado e
padrão de demanda fragmentado) e auto-regulatórias (sistema decisório fragmentado e
padrão de demanda integrado).
Figura 1
24
Novamente segundo Santos (1982, p. 169), política auto-regulatória “significa que o grupo que
demanda terá direito de ‘legislar’ sobre seus próprios assuntos – o direito de certos grupos profissionais
de conceder licença para o exercício daquela profissão, por exemplo.”
31
Apenas dois anos depois de publicado esse trabalho, todavia, Salisbury publicou, em co-
autoria com John Heinz, um novo artigo em que ele reformula de maneira importante sua
contribuição inicial. Uma tese básica desse segundo artigo é que
“[...] há uma distinção fundamental a ser feita entre decisões que alocam benefícios
tangíveis diretamente a pessoas ou grupos, como as políticas de gastos geralmente fazem
[caso das políticas distributivas ou redistributivas], e decisões que estabelecem regras ou
estruturas de autoridade que guiarão futuras alocações [caso das políticas regulatórias ou
auto-regulatórias].” (Salisbury e Heinz, 1970, p. 40, tradução minha.)
25
Segundo conhecido trabalho de Sérgio Abranches (1988), o caso brasileiro constitui precisamente um
exemplo sui generis da possibilidade de regimes presidenciais apoiarem-se habitualmente em governos
de coalizão, o que faz com que a hipótese apresentada por Salisbury e Heinz (1970) adquira para nós
especial interesse.
32
Figura 2
De qualquer maneira, dadas as enormes dificuldades com que se irá deparar qualquer
tentativa de se elaborar uma tipologia generalizável de políticas públicas, as contribuições
de Salisbury, a despeito de suas inevitáveis limitações, constituem o núcleo do que há de
melhor na literatura sobre o tema. E, transposta a discussão novamente para a análise do
caso brasileiro, o que se pode constatar é que as enormes dificuldades enfrentadas pelo
governo na busca da estabilização da economia não deixam de constituir uma parcial
corroboração do esquema teórico de Salisbury e Heinz. Desde o fim do regime militar o
quadro político-partidário nacional tem se mostrado cada vez mais fragmentado, elevando
para níveis estratosféricos o custo da formação das maiorias necessárias à tomada de
qualquer decisão. Se Salisbury e Heinz estiverem certos, este simples fato já ajudaria a
explicar a referida tendência da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88 por decisões
regulatórias e sua dificuldade de tomar decisões com implicações redistributivas. No que
diz respeito à estabilização econômica duradoura, então, que necessariamente traria
conseqüências fortemente redistributivas pela simples queda da inflação, o nível de
dificuldade de formação de maiorias hegemônicas coesas tem se transformado em um
sério entrave. (Vide as dificuldades enfrentadas pelo governo de Fernando Henrique
Cardoso logo nos primeiros meses de seu mandato, quando jogou todas as suas fichas nas
reformas constitucionais, presumivelmente indispensáveis para a manutenção, a longo
prazo, da estabilização monetária.) Tende-se, ao contrário, para decisões que Salisbury e
26
Sou grato à Prof.ª Maria Regina Soares de Lima por ter-me sugerido o trabalho de Salisbury e Heinz.
33
De saída, pode-se afirmar que a ressurreição das centrais sindicais na última década não
pode senão ser saudada como uma bem-vinda novidade nas relações trabalhistas no País,
pela evidente integração que promovem no padrão das demandas dirigidas ao sistema
político. Invariavelmente acusada por seus adversários de “xiita” e causadora de
problemas, a CUT na verdade pode se constituir em um passo decisivo para o
estabelecimento de um sistema corporativista saudável de processamento das demandas
operárias no País. Principalmente por ter nascido intimamente ligada a um partido político,
o PT, a CUT já nasceu desempenhando um papel institucional poderoso no cenário
nacional. E o estilo freqüentemente intempestivo, natural nos primeiros tempos, tende a
ser progressivamente substituído por uma visão mais estratégica, dando à Central
possibilidades de atuar de maneira bastante eficaz em barganhas políticas.27 Michael
Wallerstein (1989, pp. 44-5) lembra que a centralização sindical, ao mesmo tempo em que
é requisito para a eficácia das greves (ou das reivindicações trabalhistas em geral), também
implica a “domesticação” do movimento trabalhista: diminui o número de greves, contêm-
se demandas salariais. Acaba sendo, portanto, condição importante para o sucesso de uma
27
Certamente o grande perigo que paira sobre a CUT hoje é o risco de se tornar uma “central dos
funcionários públicos”, uma vez que ela já controla todos os sindicatos dessa área. O sindicalismo de
classe média, apesar do discurso mais radical, é intrinsecamente conservador, pois, sendo de extração
social mais elitizada, tem, naturalmente, mais a perder com mudanças. É fundamental que a CUT não
se deixe aprisionar por seus interesses, e que mantenha a hegemonia operária em seu interior, se quiser
ser uma força realmente mudancista.
34
política de rendas que busque coordenar a evolução dos preços relativos ao longo de um
processo de estabilização monetária.28
Resta a conclusão, portanto, de que as origens, por assim dizer, “pouco recomendáveis”
das nossas instituições corporativas não devem ser tomadas como uma maldição, um
pecado original que condena todo o arcabouço jurídico existente sobre o assunto à
execração eterna. Primeiramente porque, como vimos, o caráter “bifronte” do
corporativismo destacado por O’Donnell demonstra que ao mesmo tempo que o estado
28
Algumas considerações recentes em torno da importância, bem como de algumas limitações básicas, do
papel a ser desempenhado por uma política de rendas num processo de estabilização monetária como o
vivido pelo Brasil hoje podem ser encontradas em Carvalho (1995, esp. pp. 148-9).
35
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RESUMO
Corporativismo, Pluralismo e Conflito Distributivo no Brasil