(Alberto Silva Franco, Rogério Greco, Cezar Roberto
Bitencourt, Julio Fabbrini Mirabete)
1) INTRODUÇÃO
O direito de punir titulado pelo Estado Democrático (e Social) de Direito não
é um direito estatal de caráter arbitrário, sem freios nem limites. Muito pelo contrário, sofre limitações expressas consagradas na Constituição da República e também limitações não consagradas expressamente, mas extraídas do sistema jurídico consagrado na Constituição da República. Passaremos, então, a estudar cada um desses relevantes princípios do Direito Penal, consagrados, explícita ou implicitamente, na Constituição da República.
2) PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Estado de Direito e princípio da legalidade são dois conceitos intimamente
relacionados, pois em um Estado de Direito, criado com a função de retirar do soberano o poder absoluto, exige-se a subordinação de todos à lei. A Constituição da República e o Código Penal preveem que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5.º, XXXIX da CRFB/88 e art. 1.º do CP). Estes dispositivos constitucional e legal consagram o princípio da legalidade. Sendo a lei a única fonte de conhecimento imediata do Direito Penal, somente por intermédio dela o Estado pode proibir ou impor condutas, sob a ameaça de sanção penal. Portanto, infração penal e sanção penal somente podem existir se houver lei que as consagre, tendo em vista a ótica formal do princípio da legalidade. Por intermédio da lei, existe a segurança jurídica do cidadão de não ser punido se não houver uma previsão legal definindo as condutas proibidas ou impostas, sob a ameaça de sanção. O princípio da legalidade possui quatro funções fundamentais: Proíbe a retroatividade da lei penal; proíbe a criação de crimes e penas pelos costumes; proíbe o emprego da analogia para criar infrações penais e proíbe incriminações vagas e indeterminadas. A lei que consagra a infração penal deve ser anterior à conduta praticada pelo cidadão. Nesse sentido, se a lei que prevê determinada conduta como infração penal é posterior a conduta em questão praticada por determinado cidadão, este cidadão não terá praticado uma infração penal. Ex.: Recentemente, foi criado novo dispositivo legal consagrando como crime a conduta de introduzir no interior de estabelecimento prisional aparelho de telefonia celular. Entretanto, todos aqueles que inseriram tais aparelhos no interior de presídio antes da entrada em vigor da lei não cometeram crime. A necessidade de a lei ser anterior à conduta faz com que Julio Fabbrini Mirabete fale em princípio da anterioridade. Destaque-se que as regras que dizem respeito às medidas de segurança, aplicáveis aqueles que não tem condições para compreender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento, devem também obedecer ao princípio da anterioridade. Portanto, se o inimputável praticou conduta que ainda não era considerada infração penal pelo ordenamento jurídico, não lhe poderá ser imposta medida de segurança, ainda que lei posterior venha a considerar tal conduta como sendo crime. Além disso, ainda que exista uma regra de conduta conhecida por toda a sociedade e respeitada de forma constante e uniforme, no sentido de que não se pode namorar duas pessoas ao mesmo tempo, não estando previsto pela lei que a conduta de namorar mais de uma pessoa ao mesmo tempo configura uma infração penal, não se pode considerar tal conduta como sendo um crime ou uma contravenção penal. Não bastasse, se a conduta não foi prevista expressamente pelo ordenamento jurídico como sendo infração penal, não pode o intérprete socorrer-se da analogia a fim de tentar considerar tal conduta como sendo infração penal, com base em lei que consagra conduta semelhante como sendo crime. Por força da ótica formal do princípio de legalidade, é preciso que a lei defina a infração penal e também a pena. Definir significa prever com clareza a conduta considerada infração penal, de modo que tal conduta possa ser compreendida com facilidade. Não bastasse, também é necessário evitar a cominação de margens de pena extremamente dilatadas, que acabam por transformar o juiz em legislador, permitindo a arbitrariedade judicial. Exemplos de tais previsões vagas e imprecisas seriam encontrados em dispositivos legais que tivessem a seguinte redação: São proibidas quaisquer condutas que atentem contra os interesses da pátria. A redação legal não nos permite saber qual é a conduta que configura a infração penal, pois não responde quais são essas condutas que atentam contra os interesses da pátria. O agente tem que saber exatamente qual a conduta que está proibido de praticar, não devendo ficar, assim, nas mãos do intérprete. Rogério Greco fornece um exemplo bem nítido de previsão vaga e imprecisa realizada no artigo 9.º da Lei de Segurança Nacional (Lei n.º 7.170/83), que prevê ser crime tentar submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país. Qual conduta configuraria esta tentativa prevista em lei? Por fim, extrai-se do princípio da legalidade o princípio do ne bis in idem, que obsta a aplicação de mais de uma pena, que tenha o mesmo fundamento, a um mesmo fato, além de vedar o agravamento da pena por força de circunstância já considerada para a configuração da infração penal. Ex.: Agente pratica crime de roubo, subtraindo da vítima R$ 465,00, mediante o emprego de violência, consistente em agarrá-la pelo pescoço, enforcando-a. A violência é elemento essencial à caracterização do crime de roubo, eis que se o agente tivesse realizado a subtração sem empregar violência, estaríamos diante de um crime de furto. Após considerar configurado o crime de roubo, o juiz decide majorar a pena, tendo em vista o fato do agente ter enforcado a vítima. Todavia, o princípio do ne bis in idem impede que a pena seja agravada por conta de circunstância (o emprego de violência, consistente no enforcamento) já considerada para que se afirme configurada a infração penal. Entretanto, nada impede que um mesmo fato enseje a aplicação de duas sanções com fundamentos diversos. Ex.: Policial militar solicita R$ 5.000,00 para deixar de prender em flagrante um cidadão que dirigia embriagado, com mais de seis decigramas de álcool por litro de sangue. O fato configura crime de corrupção passiva, razão pela qual poderá ser aplicada ao miliciano a sanção penal prevista em lei. Mesmo que tal sanção penal seja imposta ao policial, nada impede que ele também seja punido com uma sanção administrativa disciplinar, eis que o fato também configura infração administrativa. Portanto, a um mesmo fato poderá ser aplicada mais de uma sanção, desde que tais sanções tenham natureza diversa.
3) LEGALIDADE FORMAL E LEGALIDADE MATERIAL
Por legalidade formal entende-se a obediência ao procedimento previsto na
Constituição para que determinado diploma legal possa vir a fazer parte do ordenamento jurídico. No que diz respeito à lei ordinária, para que se constate sua legalidade formal, deverá ter ocorrido a iniciativa, a discussão e a aprovação do projeto de lei pela maioria simples dos membros das duas casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), em sessões nas quais estiveram presentes a maioria absoluta dos membros de cada uma das casas em questão, conforme determina o artigo 47 da Constituição da República. Após, o Presidente da República deverá sancionar o projeto de lei, promulgando-o, momento em que é atestada a inovação da ordem jurídica, transformando-se o projeto de lei em lei. Por fim, a lei deve ser publicada para que todos dela tomem conhecimento. A publicação pode fazer com que a lei entre imediatamente em vigor ou não. Se a própria lei prevê que a data de início da vigência não será o dia da publicação, estaremos diante da vacatio legis, que é o período entre a data da publicação e o início da vigência da lei. Destaque-se que além da necessidade da existência de uma lei proibindo ou impondo determinada conduta, sob a ameaça de sanção penal, é preciso que o agente tenha praticado tal conduta durante a vigência da lei para que estejamos diante de uma infração penal. Ex.: Suponhamos que o Congresso Nacional aprove um projeto de lei, sancionado pelo Presidente da República, proibindo a ingestão de bebidas alcoólicas em locais públicos ou abertos ao público, depois das 22 horas. Para que a população pudesse tomar conhecimento da proibição, ficou previsto que a lei entraria em vigor seis meses após a sua publicação. Um dia antes do início da vigência, alguns rapazes resolveram fazer uma comemoração e são surpreendidos às 23 horas, já consumindo as últimas garrafas de uísque que haviam comprado. Tais rapazes não teriam cometido qualquer infração penal, tendo em vista que a lei em questão ainda não estava em vigor, embora já publicada há quase seis meses. Contudo, a legalidade formal não basta. Devem ser obedecidas não somente as formas e procedimentos impostos pela Constituição, mas também o seu conteúdo, respeitando-se as proibições e as imposições constitucionais, que asseguram a eficácia dos direitos fundamentais nela consagrados. Somente assim haverá legalidade material.
4) PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
Somente a lei em sentido estrito pode criar infrações penais, proibindo ou
impondo condutas sob a ameaça de pena. Quando falamos em lei em sentido estrito, estamos nos referindo às chamadas leis ordinárias e às leis complementares. Tais diplomas legais surgem da conjugação da vontade do povo, representado por deputados federais, com a vontade dos estados-membros, representados por seus senadores, contando, ainda, com a sanção do Presidente da República, chefe do Poder Executivo. Medidas provisórias, por exemplo, não podem consagrar infrações penais e cominar penas, tendo em vista que esta espécie de instrumento introdutório de normas não pode tratar de Direito Penal (art. 62, parágrafo 1.º, I, b). Alguns autores, como é o caso de Julio Fabbrini Mirabete, procuram realizar uma distinção entre o princípio da legalidade e o princípio da reserva legal. Segundo parte da doutrina, a diferencia residiria no fato de que, falando-se tão-somente em princípio da legalidade, estaríamos permitindo a adoção de quaisquer diplomas elencados pelo artigo 59 da Constituição da República (lei complementar, lei ordinária, lei delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução) para consagrar infrações penais e cominar penas. Ao fazermos menção ao princípio da reserva legal, estaríamos limitando a criação de infrações penais, que somente poderiam ser consagras por leis ordinárias e leis complementares. Contudo, muitos autores não realizam esta distinção, inserindo o princípio da reserva legal no interior do princípio da legalidade, como é o caso de Rogério Greco e Cezar Roberto Bitencourt.
5) PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
O princípio da legalidade, em sua acepção formal, não permite identificar
quais as qualidades que deve possuir a conduta para que o ordenamento jurídico, por intermédio da lei, possa considerá-la uma infração penal, cominando-lhe uma sanção penal. Sabemos que o conceito material de crime é essencialmente constituído pela noção de bem jurídico dotado de dignidade penal. Portanto, para que haja infração penal é necessário que a conduta lesione ou exponha a risco um bem jurídico dotado de dignidade penal. O Direito Penal só deve preocupar-se com os bens mais importantes e necessários à vida em sociedade. O ordenamento jurídico, por meio de um critério político, sempre que entender que os outros ramos do Direito se revelam incapazes de proteger devidamente aqueles bens mais importantes para a sociedade, selecionará condutas violadoras de tais bens, que merecerão a atenção do Direito Penal. O Direito Penal constitui um soldado de reserva da política social e sua incidência deve ter natureza subsidiária. Isto é, a intervenção do Direito Penal tem limites materiais, não podendo ocorrer nas hipóteses em que o bem jurídico que se busca tutelar pode ser protegido por outras formas de controle social menos gravosas. Caso o Direito Penal incida sobre tais hipóteses estaria sendo violado o princípio constitucional implícito da proporcionalidade, posto que haveria clara violação da proibição do excesso estabelecida por tal princípio. Discute-se hoje em dia, por exemplo, a respeito da necessidade de se punir penalmente aquele que emite cheque sem suficiente provisão de fundos. Será que medidas civis e administrativas, tais como a execução da quantia não paga e o impedimento para que o emitente do cheque possa voltar a ser correntista de algum banco, não são suficientes para inibir a conduta dos maus pagadores? Esse raciocínio, feito com base no princípio da intervenção mínima, leva à sociedade a refletir sobre a eficiência de outras medidas para inibir a mencionada conduta e, caso entenda que são suficientes, não mais será necessária a intervenção do Direito Penal. Recentemente, foram abolidas algumas infrações penais, eis que os bens por elas protegidos podem ser tutelados por outros ramos do Direito. Ex.: O adultério deixou de ser considerado crime. O cônjuge traído poderá propor ação perante o juízo cível, a fim de ver compensado o dano moral suportado, não havendo necessidade da intervenção do Direito Penal. O princípio da intervenção mínima é o responsável não só pela indicação dos bens mais importantes que merecem a atenção do Direito Penal, mas se presta, também, a fazer com que ocorra a chamada descriminalização. Se é com base no citado princípio que os bens são selecionados para receberem a tutela do Direito Penal, eis que considerados os mais relevantes, também será com fundamento nele que o ordenamento jurídico, atento às mudanças da sociedade, que deixa de dar importância a bens que antes eram considerados relevantes, fará com que deixem de existir determinadas infrações penais, violadoras dos bens que perderam importância. Segundo Claus Roxin, a razão da existência do princípio da intervenção mínima é o perigo gerado pela imposição da sanção penal para a existência social do apenado. A pena situa o apenado à margem da sociedade, produzindo com isso um dano social. Apesar de o princípio da intervenção mínima, a verdade é que, a partir da segunda década do século XIX, as normas penais que consagram infrações cresceram desmedidamente. O Poder Legislativo, atualmente, tem abusado da criminalização e da penalização, contrariando o princípio em exame e levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas também a sanção penal.
6) PRINCÍPIO DA LESIVIDADE OU DA EXCLUSIVA PROTEÇÃO DE
BENS JURÍDICOS
Os princípios da intervenção mínima e da lesividade são como duas faces de
uma mesma moeda. Enquanto o princípio da intervenção mínima somente permite a incidência do Direito Penal sobre condutas que ataquem bens jurídicos relevantes, o princípio da lesividade esclarece algumas espécies de conduta que não poderão sofrer a incidência do Direito Penal. Nilo Batista leciona que o princípio de lesividade proíbe que sentimentos sejam punidos por meio de uma sanção penal, desde que não resultem em uma conduta capaz de lesar bem jurídico de terceiro. Ex.: Não se pode punir a ira do agente ou sua piedade, pois jamais o homem pode ser punido por aquilo que traz em seu íntimo. Ademais, não se pode impor uma pena ao agente que praticou conduta que não excedeu seu próprio âmbito. Ex.: Impossível impor uma pena ao agente que se autolesionou. O princípio da lesividade também impede que o Direito Penal sancione condições existenciais, pois o agente não pode ser punido pelo que ele é, mas somente pelo que ele fez. Ex.: Ninguém pode ser apenado por seu gótico, por seu emo ou por ser punk. Por fim, o princípio da lesividade veda a punição de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico de terceiro. Condutas desviadas são aquelas que a sociedade trata com repulsa, mas embora moralmente reprováveis não repercutem sobre qualquer bem jurídico de terceiro. Ex.: Não se pode punir o agente por não tomar banho regularmente ou por entregar-se, sendo maior e capaz, a práticas sexuais anormais. Verifica-se que o princípio em questão, somado ao princípio da intervenção mínima, constitui uma clara limitação ao direito de punir do Estado, na medida em que limita a incidência do Direito Penal às condutas que atacam bens jurídicos relevantes de terceiros, não tutelados satisfatoriamente por outras formas de controle social.
7) PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL
O princípio da adequação social possui uma dupla função. Uma delas é a de
restringir a incidência das normas penais que consagram infrações penais, limitando a interpretação dessas normas, de modo que não atinjam as condutas consideradas socialmente adequadas e aceitas pela sociedade. A sua segunda função é dirigida ao Poder Legislativo. Se a conduta imaginada pelo Poder Legislativo ao cogitar da elaboração de lei penal for socialmente adequada, não poderá ser criada norma penal buscando punir tal conduta. Além disso, deve o Poder Legislativo repensar sobre a existência de normas penais que consagram infrações penais que consistem em condutas já aceitas pela sociedade em constante evolução. Rogério Greco destaca que, embora o princípio da adequação social sirva de norte para o Poder Legislativo, não é capaz de revogar normas penais que consagram infrações penais, tendo em vista que uma lei somente pode ser revogada por outra (art. 2.º da LICC). Todavia, verificamos em algumas hipóteses, que o princípio da adequação social, apesar de não revogar a norma penal, faz com que esta deixe de incidir sobre determinada conduta socialmente adequada, mesmo quando esta conduta enquadra-se na definição legal de norma penal incriminadora. Ex.: O artigo 129 do Código Penal consagra o crime de lesão corporal. Entretanto, a norma penal extraída deste dispositivo não incide sobre a conduta da mãe que fura a orelha da filha recém-nascida para colocar-lhe um brinco, pois tal conduta é socialmente adequada. A norma penal continua em vigor, eis que se um cidadão der um soco no olho de terceiro, lesionando-o, será punido por força da norma penal extraída do artigo 129 do Código Penal. Portanto, o princípio fez apenas com que a norma não incidisse sobre aquela conduta socialmente adequada.
8) O CARÁTER FRAGMENTÁRIO DO DIREITO PENAL
A fragmentariedade é uma consequência da existência dos princípios da
intervenção mínima, da lesividade e da adequação social. O caráter fragmentário do Direito Penal significa que uma vez escolhidos os bens jurídicos fundamentais para a sociedade, demonstrada a lesividade e a inadequação da conduta que ofende um desses bens jurídicos, tais condutas passarão a fazer parte de uma parcela pequena de condutas que são objeto Direito Penal. O Direito Penal tem uma natureza fragmentária, pois não tudo lhe interessa, mas tão-somente uma pequena parte das condutas praticadas na vida em sociedade.