Sei sulla pagina 1di 20
A geografia esta em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas’ Denis Cosgrove" Significados e paisagens ‘Aos sébados pela manh4, néo sou, conscientemente, um gedgrafo. Como tantas outras pessoas de minha idade e estilo de vida, devo ser encontrado fazendo compras com minha familia no meu centro habitual de compras. Nao é um lugar muito espe- cial, iluminado artificialmente sob um edificio-garagem, com um conjunto inteira- mente previsivel de cadeias de lojas — W. H. Smith, Top Shop, Baxters, Boots, Safeway ¢ outras — razoavelmente cheias de familias de consumidores bem-vestidos. A mesma cena pode ser vista em quase toda parte na Inglaterra. Se trocarmos os nomes das lojas, acena poderia ser tipica de qualquer parte da Europa Ocidental ou da América do Nor- te. Os gedgrafos podiam interessar-se pelo lugar porque ele ocupa 0 espago imobilidrio mais valorizado na cidade; podiam estudar a largura das fachadas ou as mercadorias em oferta como parte de um estudo de geografia do varejo ou podiam avaliar seu impacto sobre a morfologia urbana preexistente. Mas eu estou fazendo compras. * Publicado originalmente como “Geography is everywhere: culture and simbolism in the human Land- scapes”, em Horizons in hueman geography, organizado por D. Gregory ¢ R. Walford. Londres: Macmillan, 1989. Reproduzido em portugues em Paisagem, tempo e cultuna, organizado por Roberto Lobato Corréa ¢ Zeny Rosendahl. Rio de Janeiro: EAUERJ, 1998, Tradugio de Olivia Barros Lima e Silva. ~ Professor do Departamento de Geografia da Universidade de Loughbothood, Inglaterra. 220 Geografia cultural - uma antologia Entao, compreendo que outras coisas também estéo ocorrendo: pedem-me para contribuir para uma causa que eu no aprovo: viro a esquina e vejo um cristo evangélico idoso distribuindo folhetos. O principal espaco aberto est4 ocupado por uma vitrine de painéis para melhorar a insolagao das casas ~ ou, em minha opiniao, destruir a harmonia visual de minha rua. Ao redor da base de concreto da érvore decorativa, um grupo de adolescentes com cortes de cabelo moicano vividamente coloridos e faixas de tachas no brago olha com desdém os consumidores de meia- ~idade. Compreendo que devem estar desempregados e que a idade deles torna o lar um ambiente menos confortavel; eles ficardo por aqui até que, 2 noite, o espago seja fechado, ea pet (O local & entao, altamente complexo, com miltiplos patamares de significados. Certamente planejado para 0 consumidor e, assim, facilmente acessivel para meu es- tudo geogrdfico sobre o varejo; nao obstante, sua geogratia se estende bem além dessa perspectiva estreita c restritiva.{O local é unr lugar simbdlico, onde muitas culturas && encontram e, talvez, enitem em conflito. Mesmo na manhé de sébado, ainda sou um’ gedgrafo. A geografia esté em toda parte. ass, Galtura simbolisma séo palavras que hoje néo escapam ficil ou frequentemente das bocas da-maioria dos gedgrafos humanos da Gra-Bretanha. De modo geral, nos orgulhamos de nossa praticabilidade e relevancia realista. Preferimos lidar com ob- jetos tangiveis, empiticos, interpretar 0 mundo em termos precisos e mensurdveis de necessidades praticas. Desde os anos 1960, os gedgrafos humanos britanicos tenderam a trabalhar com certas suposigdes ndo explicitas sobre como deveriam agir acerca da explicagéo de padres de ocupacio ¢ atividades humanas, suposigGes que tendem a excluir da consideragao a cultura ¢ 0 simbolo. Estas suposig6es sio: * O mundo fisico, 0 meio ambiente natural, é 0 dominio da geografia fisica cientifica. Pode estabelecer limites & conduta humana, mas tais limites so tao amplos que podem tornar perigoso qualquer apelo a eles na explicacéo geogréfica humana, Os ecologistas, em vez dos gedgrafos, apropriaram-se de questoes sobre as relagGes ambientais. Contudo, espago e populacio servem como pontos de partida legitimos para a explicacdo em geografia humana. * Osseres humanos se comportam de maneira racional, razoavelmente previ- sivel, quando vistos em conjunto, para alcancar metas pessoais ¢ sociais que Sao esmagadoramente priticas. Concorda-se tacitamente que racionalidade significa maximizagao ou satisfagao econdmica. Outras motivacées sao trata- ‘das como “irracionais” e geograficamente interessantes apenas como desvios do modelo. Paisagem cultural 291 * Os gedgrafos deveriam buscar um resultado pritico ou utilitatio de seus es- tudos. A geografia humana deveria ser “relevante”, seus resultados aplica- dos a uma “situagdo do mundo real”. Os gedgrafos humanos mostram forte compromisso moral para melhorar seu mundo, razo pela qual a geografia humana continua a ser popular em escolas e faculdades. Aparentemente, essa relevincia deve set imediata e direta. Portanto, os gedgrafos humanos, cer- tamente na ultima década, adotaram entusiasticamente como questées de estudo causas socialmente louvaveis. Como o redesenvolvimento de dreas centrais urbanas, a conservacao de paisagens do passado, a igualdade regional € 0 desenvolvimento do Terceiro Mundo. * A geografia humana, apesar de seu propésito moral elevado (ou talvex por causa dele), deveria, tanto quanto possivel, evitar questdes politicas e ideold- gicas ¢ até filoséficas abertas e litigiosas. Deveria lutar pela objetividade, ana- lisando fatos assegurando que suas afitmagées sejam baseadas firmemente em garantias empiticas. Essas suposigdes nao sao, de modo algum, desonrosas. Mas ¢las realmente aca- bam excluindo de nossa agenda muito do que a geografia humana poderia estudar potencialmente nos dominios da atividade humana em termos espaciais € suas expres- ses ambientais. Além do mais, elas produzem uma profunda contradicdo. Se nossas inteng6es so moralmente fundadas e 0 resultado de nosso trabalho é supostamente de valor para a humanidade, enquanto nossos objetos de pesquisa continuarem ex- clusivamente empiricos e nossas interpretacdes da motivagao humana, resolutamente utilitdrias, negaremos a nés mesmos uma linguagem para moldar as préprias metas que procuramos: a formagao de um mundo humano melhor. Algumas das variadas conseqiiéncias deste dilema sdo tratadas em outros ensaios do presente livro.! Minha intengio aqui ¢ realgar duas delas. Em primeiro lugar, perdida na maré de intensa praticabilidade e entre os seixos de fatos demonstraveis estd a magica real da geografia — o sentido de maravilhar-se com © mundo humano, a alegria de ver ¢ refletir sobre 0 mosaico ricamente variado da vida humana e de compreender a elegancia de suas expresses na paisagem humana. Essa é a experiéncia que ainda faz. do National Geographic uma das mais populates revistas do mundo. A geografia, afinal de contas, esté em toda parte. John Eyles mostra como ela * Trata-se da coletinea Horizons in human geography, da qual o presente artigo foi retirado (nota dos organi- zadores) 222 Geografia cultural - uma antologia estd ali na vida didria.” Uma das tarefas dos gedgrafos ¢ mostrar que a geografia existe para ser apreciada, Muito frequentemente, temos sido mais bem-sucedidos em obscu- recer, em ver de aumentar esse prazer. Em segundo lugar, 0 que perdemos também no funcionalismo utilitério de tanta explicacdo geogréfica € 0 reconhecimento de outtas motivagées humanas, além daquelas estritamente praticas. Banidas da geografia esto as paixdes inconvenientes, as vezes assustadoramente poderosas, motivadoras da ago humana, entre elas as morais, patridticas, religiosas, sexuais e politicas. Todos sabemos quéo fundamen- talmente essas motivagées influenciam nosso préprio comportamento didrio, quan- to elas informam. nossas respostas a lugares ¢ cenas, incluindo o shopping center. Contudo, na geografia humana, parecemos intencionalmente ignorélas ou negé-las, recusando-nos a explorar como tais paix6es encontram expresses nos mundos que criamos e transformamos. Consequentemente, nossa geografia deixa escapar muito do significado contido na paisagem humana, tendendo a reduzi-la a uma impressio impessoal de forcas demogréficas ¢ econdmicas. A ideia de aplicar & paisagem hu- mana algumas das habilidades interpretativas que dispomos ao estudar um romance, um poema, um filme ou um quadro, de traté-la como uma expresso humana in- tencional composta de muitas camadas de significados, é claramente estranha para nés. Entretanto, isso ¢ 0 que me proponho a explorar, sugerindo maneiras de tratar a geografia como uma humanidade ¢ uma ciéncia social. Tal abordagem comegou a emergir entre um pequeno mimero de gedgrafos hu- manos no inicio dos anos 1970 (Cosgrove, 1982). Breves referéncias ao trabalho deles aparecem no fim deste texto. Como todas as mudancas na pesquisa geogréfica, essa esta relacionada a movimentos sociais mais amplos: protestos contra a exploracéo ambiental 2 poluigéo, inquietagao com o planejamento em megaescala e as paisagens andnimas do redesenvolvimento urbano, a voz crescente das mulheres organizadas desafiando a dominacao da cultura masculina ¢ o fracasso do consenso social e politico pés-guerra — todos tiveram sua parte em encaminhar a geografia humana para a geografia hu- manistica. Mas a ideia da geografia humana como uma humanidade dificilmente é madura ou plenamente desenvolvida. Assim, o que seré analisado deve ser visto como uma avaliagao pessoal de possibilidades. Abordarei isso por meio de uma discussio de rrés termos — paisagem, cultura e simbolismo — ¢ continuarei com alguns exemplos de interpretacio do simbolismo das paisagens culturais. Trata-se de referéncia a outro artigo contido na colevinea Horizons in human geography (nota dos organi- “tores). Paisagem cultural 228 Paisagem A paisagem sempre esteve intimamente ligada, na geografia humana, com a cul- tura, com a ideia de formas visiveis sobre a superficie da Terra e com sua composicao. A paisagem, de fato, é uma “maneira de ver”, uma maneira de compor e harmonizar 0 mundo externo em uma “cena”, uma unidade visual. A palavra surgiu no Renascimen- to para indicar uma nova relagao entre os seres humanos € seu ambiente (Cosgrove, 1985). Ao mesmo tempo, a cartografia, a astronomia, a arquitetura, os levantamentos terrestres, a pintura e muitas outras artes ¢ ciéncias estavam sendo revolucionadas pela aplicagao de regras formais matemdticas ¢ geométricas derivadas de Euclides. Acredi- tava-se que tais regras devolveriam &s artes ¢ as ciéncias sua perfeigao cldssica. Talvez a mais notavel de todas essas “artes mecinicas”, do ponto de vista das relagGes espaciais, tenha sido a invengao da perspectiva linear. A perspectiva nos permite reproduzir em duas dimensées a ilusio realista de um espaso composto racionalmente de trés dimen- s6es. Ordem e forma consistentes podem ser impostas intelectual e praticamente a0 mundo externo, Nao ¢ de espantar que, no mesmo periodo, a pintura das paisagens te- nha aparecido pela primeira vez na Europa como uma expresséo popular, acompanha- da por uma arte florescente de incluir a paisagem na poesia, na representacio teatral, nos jardins ¢ na concepgao de parques. Esta também foi a época em que o espaco ter- restre estava sendo mapeado racionalmente nas quadriculas de sofisticadas projecies de mapas, enquanto paisagens humanas racionais estavam sendo construidas nas capitais, como Roma, Sao Petesburgo e Paris, e impressas nas terras recentemente recuperadas no norte da Itdlia, Holanda e East Anglia ou nas grandes propriedades rurais inglesas (enclosed estates) e sobre a vastidao de territérios coloniais além-mar. Assim, a paisagem est intimamente ligada a uma nova maneira de ver o mundo como uma criagao racionalmente ordenada, designada ¢ hatmoniosa, cuja estrutura e cujo mecanismo sao acessiveis 8 mente humana, assim como ao olho, ¢ agem como guias para os seres humanos em suas agées de alterar ¢ aperfeicoar 0 meio ambiente. Nesse sentido, paisagem é um conceito complexo de cujas implicagoes desejo especi- ficar trés: 1) um foco nas formas vis{veis de nosso mundo, sua composicao e estrutura espacial; 2) unidade, coeréncia e ordem ou concepgao racional do meio ambiente; 3) a ideia de intervengéo humana e controle das forgas que modelam e remodelam nosso mundo. Tal intervencao, deve-se ressaltar, nao ¢ indiferente, exploradora ou destrutiva, mas uma relacao que harmonizaria a vida humana com a ordem ou o modelo inerente da prépria nacureza. Este ponto é crucial, pois, como podemos ver, até com a mera relagao com a representacdo da paisagem na pintura, na poesia ou no teatro, os temas mais poderosos sao os que abordam os laos entre vida humana, amor e sentimento e os ritmos invaridveis do mundo natural: a passagem das estacbes, 0 ciclo de nascimento, 0 224 Geografia cultural - uma antologia crescimento, a reproducéo, o envelhecimento, a morte, a deterioracéo € o renascimen- to, € 0 reflexo imaginado dos sentimentos ¢ emogées humanas no aspecto das formas naturais. Assim, paisagem é um conceito unicamente valioso para uma geografia efetiva- mente humana. Ao contrétio do conceito de lugar, lembra-nos sobre a nossa posicéo tno esquema da natureza. Ao contrétio de meio ambiente ou espaco, lembra-nos que apenas por meio da consciéncia e da razio humanas esse esquema é conhecido por nés, e somente através da técnica podemos participar dela como seres humanos. Ao mes- mo tempo, paisagem lembra-nos que a geografia esté em toda parte, que é uma fonte constante de beleza e feiura, de acertos erros, de alegria e sofrimento, tanto quanto é de ganho e perda. Cultura Eu disse que paisagem, na geografia humana, hé muito vem sendo associada & cultura. E particularmente assim na geografia humana americana, na qual a obra de Carl Sauer originou uma escola de geografia da paisagem, focalizando o papel do ho- mem transformando a face da Terra (Sauer, 1952). A énfase se dava principalmente em relagio as tecnologias — por exemplo: 0 uso do fogo, 2 domesticagio de plantas e animais, a hidrdulica —, mas também, até certo ponto, em relacao a cultura nao material (isto é, ctenga religiosa, sistemas legais e politicos etc.). A atencdo estava focalizada nas sociedades pré-modernas ou em suas evidéncias na paisagem contemporanea, como a evidéncia, na paisagem americana, das varias culturas indigenas, afticanas ¢ europeias que a formaram. ‘A geografia cultural, nessa tradi¢ao, concentrou-se nas formas visiveis da pai- sagem — casas de fazenda, celeitos, padrdes de campos ¢ pragas nas cidades -, apesar de, na Inglaterra, uma tradicao similar ter analisado fenémenos nao visiveis, como 0 nome de lugares, visando evidenciar influéncias culturais passadas. A propria cultura foi considerada um conceito relativamente nao problemdtico: um conjunto de préticas compartilhadas comuns a um grupo humano em particular, praticas que foram apren- didas ¢ transmitidas através de geragSes. A cultura parecia fincionar através das pessoas para alcangar fins dos quais clas estavam vagamente cientes. Os criticos chamaram isso de “determinismo cultural” e enfatizaram a necessidade na geografia de uma teoria cul- tural com mais nuances, particularmente se vamos tratar da paisagem contemporanea e da sofisticada cultura moderna (Jackson, 1980; Cosgrove, 1983). Uma geografia cultural renovada procura vencer algumas dessas fraquezas com uma teoria cultural mais forte. Ela ainda consideraria a paisagem um texto cultural, mas reconhece que os textos t8m muitas dimensdes, oferecendo a possibilidade de lei- Paisagem cultural 285 turas diferentes simulténeas e igualmente validas. Segue-se um esbogo das trés princi- pais maneiras pelas quais a geografia cultural moderna move-se teoricamente além das abordagens anteriores. Cultura e consciéncia A cultura nao é algo que funciona através dos seres humanos; pelo contrétio, tem de ser constantemente reproduzida por eles em suas aces, muitas das quais so ages nao reflexivas, rotineiras da vida cotidiana, examinadas no capftulo de Eyles. Uma religiao, por exemplo, ou um credo politico s6 podem sobreviver se as pessoas os praticarem. A maioria de nés falaré em voz baixa, respeitosa, ao entrar numa igreja, sem pensar conscientemente por que estd assim fazendo. Fazemos o mesmo numa galeria de arte, e € dificil dizer 0 motivo. Um morador suburbano pode também nio estar ciente disso ao cortar a grama ~ esté mantendo um sinal de propriedade numa paisagem pro- prietéria, tao rotineira se tornou a prética. Se nos pedem para examinar o que estamos fazendo, a maioria de nds acha dificil articular o significado de nossas atividades. Mas sem tais praticas expresses culturais como igreja, galeria e grama desapareceriam de nossas paisagens. Transformagées na cultura vem de mudaneas, répidas ou lentas, em sua pritica, no ato da reprodugo cultural. Mas a cultura é sempre potencialmente capaz de ser trazida ao nivel da reflexdo consciente e da comunicagao. Isso é de fato 0 que fazemos quando examinamos a expresso cultural ao estudar as humanidades. Assim, a cultura é, ao mesmo tempo, determinada pela consciéncia e pelas praticas humanas e determinante delas. Cultura ¢ natureza Qualquer intervengao humana na natureza envolve sua transformacao em cul- tura, apesar de essa transformacéo poder no estar sempre visivel, especialmente para um estranho. Diferentes técnicas e materiais de construgio de casas de fazendas po- dem ser indicadores dbvios da paisagem. Tais coisas foram muito estudadas pelos ge- 6grafos. Mas muitas vezes os eventos culturais mais significativos so menos ébvios. tomate, um objeto natural, é tirado do pé, é cortado e apresentado como alimento humano. O objeto natural tornou-se objeto cultural, foi-lhe atribuido um significado. O significado cultural é introduzido no objeto ¢ também pode ligé-lo a outros objetos aparentemente nfo relacionados a ele na natureza. Dizer que o tomate é um produto cultural nao significa que suas propriedades naturais estejam perdidas. Sua cor e peso esto inalterados, uma andlise clinica produziria os mesmos resultados antes ou depois 226 Geografia cultural ~ uma antologia do evento cultural. Mas foram acrescentados a essas propriedades atributos culturais que podemos identificar ¢ discutir. Fazer isso exige que entremos na consciéncia cultural dos outros. Na paisagem, © bosque sagrado ou a fonte sagrada, o local da batalha que fundou ou salvou uma nacio, sfo lugares de intenso significado cultural pelos quais os nao iniciados passam. Revelar os significados na paisagem cultural exige a habilidade imaginativa de entrar no mundo dos outros de maneira autoconsciente e, entio, re-presentar essa paisagem em um nivel no qual seus significados possam ser expostos e refletidos. Uma vantagem que temos ao tratar a paisagem dessa maneira € que muitos de seus significados sao “naturalmente” encontrados no sentido de que seu ponto de partida é algo comum & nossa experiéncia, na medida em que somos parte da natureza, por exemplo, quando associamos o prado na primavera com 0 aparecimento de vida nova, ou o pomar do outono com melancolia. Cultura e poder ‘A maiotia das pessoas vive em sociedades que so divididas em classe, casta, sexo, idade ou etnicidade. Tais divisdes, em geral, correspondem a divisio do trabalho. Obviamente, uma posigio diferente na sociedade significa experiencia e consciéncia di- ferentes; até certo ponto, uma cultura diferente. O grau de tal diferenca varia enorme mente. Uma sociedade pode incluir culturas to radicalmente diferentes que parecem incompativeis, como as culturas catélica e protestante na Irlanda do Norte. Aqui, 0 po- der é contestado entre grupos de forca relativamente iguais, reproduzindo suas culturas num alto nivel de consciéncia, Em tais casos, a evidencia visivel na paisagem de cada um € considerdvel, apesar de até aqui os grafites, igrejas, vestibulos de casas e bandeiras serem apenas as exptessGes mais superficiais de um mundo de significados diferentes na vida cotidiana. A aparéncia de unidade social sé é mantida por meio da ameaca e do exercicio de forga militar externa. Mas frequentemente estamos lidando com subcultu- ras dentro de uma cultura dominante. Os jogos, a linguagem e os simbolos de um patio de recreio escolar numa aldeia mineira da regio de Durham sao diferentes em termos de classe e origem regional daqueles de um recreio similar em Esher, assim como so diferentes a idade e a conduta daqueles do clube local de trabalhadores daqueles que frequentam a catedral da cidade de Durham. O Estado, entretanto, como representan- te de um “interesse nacional”, procura introduzir pelo menos os rudimentos de uma cultura comum em cada sala de aula. Assim, 0 estudo da cultura esta intimamente ligado ao estudo do poder. Um grupo dominante procurard impor sua prépria experiéncia de mundo, suas préprias suposigGes tomadas como verdadeiras, como a objetiva e valida cultura para todas as —————————————_—=o““& Paisagem cultural 227 pessoas. O poder ¢ expresso e mantido na reprodugio da cultura. [sso € mais bem con- cretizado quando é menos visivel, quando as suposig6es culturais do grupo dominante aparecem simplesmente como senso comum. Isso as vezes é chamado de hegemonia cultural. HA, portanto, culturas dominantes e subdominantes ou alternativas, ndo ape- ‘nas no sentido politico (apesar de eu me concentrar nisso), mas também em termos de sexo, idade e etnicidade. ‘A cultura britinica é dominantemente inglesa em termos de drea, burguesa em termos de classe, masculina em termos de sexo, branca em termos de cor e de meia-ida- de ¢ anglicana em ermos de religido. Tem uma paisagem caracteristica, observvel em todas as escalas, desde o interior das casas até o arranjo de regides inteiras. F tipificada diariamente nos anuincios da televisdo. As culturas subdominantes podem ser divididas no apenas nos termos j4 indicados, mas também, historicamente, como residuais (que sobraram do pasado), emergentes (que antecipam o futuro) ¢ excluidas (que sao ativa ou passivamente suprimidas), como as culturas do crime, drogas ou grupos religiosos marginais. Cada uma dessas subculturas encontra alguma expresso na paisagem, mes- mo se apenas numa paisagem de fantasia. Simbolo Para compreender as expresses impressas por uma cultura em sua paisagem, necessitamos de um conhecimento da “linguagem” empregada: os simbolos e seu sig- nificado nessa cultura. Todas as paisagens séo simbélicas (Rapoport, 1982), apesar de a ligacio entre o simbolo ¢ o que ele representa (seu referente) poder parecer muito ténue. Uma pega importante de mérmore branco com nomes escritos, com uma cruz em cima e decorado com coroas ¢ bandeiras no centro de uma cidade é um simbolo poderoso de luto nacional pelos soldados mortos, apesar de néo haver ligagio entre os dois fendmenos fora do cédigo particular da lembranga militar. O lugar de nascimento de uma grande figura nacional pode ser uma casa comum, mas tem significado simbé- lico enorme para os iniciados. Muito do simbolismo da paisagem é menos aparente do que qualquer um desses exemplos. Mas ainda serve ao propésito de reproduzir normas culturais ¢ estabelecer os valores de grupos dominantes por toda uma sociedade, Tomemios por exemplo 0 par- ue municipal de uma cidade inglesa provincial. Normalmente, ocupa de 10a 15 acres jos subiirbios vitorianos préximos, acessivel a pé a partir do centro da cidade. Cercado por grades pintadas de verde ou preto, ainda mantém sua concepgéo do século XIX de gramados aparados, caminhos cuidadosamente orlados com herbdceas, canteizos cromdticos de verdo ¢ arbustos, talvez um pequeno lago e arvores de folhas deciduas espalhadas. Em um canto, um playground para criangas, cuidadosamente cercado. 228 Geografia cultural - uma antologia Quem quer que entre no parque, sabe instintivamente os limites de compor- tamento, os cédigos apropriados de conduta. Em geral, deve-se caminhar ou passear pelos caminhos. Correr é para criangas ¢ a grama é para sentar ou para piquenique. Os patos podem ser alimentados, mas nfo se pode remar nem pescar no lago. Nao se deve subir nas 4rvores, nem tocar musica, exceto pela banda uniformizada, no coreto. Resu- mindo, o comportamento deve ser decoroso e contido. Quando esses cédigos so trans- gtedidos — ¢ 0 so, por mtisicos, pessoas com bicicletas, casais amorosos mais exaltados ou bébados -, 0 fato ¢ observado e a censura ¢ claramente registrada pelos que, embora em minoria, tém do seu lado o simbolismo moral de toda a paisagem planejada. Nao ha necessidade de sinais, apesar de os ilegiveis regulamentos impressos na entrada con- firmarem a interpretacio dos zeladores autorizados da propriedade. A despeito das grandes mudangas sociais que ocorreram desde suas origens vi- totianas, os cédigos de comportamento ainda tém legitimidade no parque porque a propria paisagem, a organizacao do espaco, a selecio das plantas, 0 uso das cores € a maneira de manutengio permanecem largamente imutéveis. Eles transmitem um espe- cifico conjunto de valores. Se descrevermos a hist6ria desses parques, verificaremos que 0 objetivo explicito de seus criadores era 0 controle social e moral. Visando melhorar © bem-estar fisico e moral da classe trabalhadora (cuja dissolugio interromperia os lu- cros), a classe média vitoriana ativamente desencorajava os passatempos tradicionais: beber em tavernas, brigas de galo, festivais locais ou feiras. Substituiu essas formas de diverséo pelos parques puiblicos, elaborando as regras de conduta de modo mais preciso. Apesar do passar do tempo, essas dreas caracteristicas da paisagem urbana inglesa ainda simbolizam os ideais de decéncia e da propriedade pertencente & burguesia vitoriana, Todas as paisagens possuem significados simbélicos porque so 0 produto da apropriagio e da transformacao do meio ambiente pelo homem. O simbolismo é mais facilmente apreendido nas paisagens mais elaboradas — a cidade, 0 parque e o jardim —e por meio da representagao da paisagem na pintura, na poesia e em outras artes. Mas pode ser lido nas paisagens rurais ¢ até nas mais aparentemente nao humanizadas paisagens do meio ambiente natural. Estas tiltimas so, frequentemente, simbolos po- derosos em si mesmas. Considerem, por exemplo, a paisagem polar, cujo significado cultural deriva precisamente de sua aparente inconquistabilidade pelo homem, Duran- te 0 periodo das grandes expedigaes polares, na virada dos séculos XIX e XX, a paisa- gem de gelo, fendas, tempestades de neve, ursos-polares ¢ mares verdes tornou-se um paradigma, o quadro para uma fantasia cultural masculina da classe superior britanica. A motte de Scott, em 1912, transformou um pedago da Antértica em area “inglesa para sempre”. Temas imperiais de heroismo militar retirando forgas de um quadro ambien- tal hostil ¢ improdutivo que foi revivido em 1982 quando tropas britanicas ocuparam as ilhas do Atlantico Sul durante a Guerra das Falklands (Malvinas). Paisagem cultural 229 Lendo as paisagens simbélicas Os miiltiplos significados das paisagens simbélicas aguardam decodificacio geo- grdfica. Os métodos dispontveis para essa tarefa so rigorosos e exigentes, mas nao fun- damentalmente esotéricos ou dificeis de apreender. Essencialmente, so os empregados em todas as humanidades. Um requisito é a leitura detalhada do texto, para nés, 2 prépria paisagem em todas as suas expressbes. Os gedgrafos sempre reconheceram, pelo menos oralmente, a centralidade de um profundo {ntimo conhecimento da drea em estudo. Os dois principais caminhos para isso so 0 trabalho de campo ¢ a elaboracao € interpretagdo de mapas. Ao desenvolver tal conhecimento pessoal, inevitavelmente, € gerada uma resposta altamente individual. E uma resposta, ou respostas, das quais precisamos estar cientes ndo para antecipé-las na busca de “objetividade”, mas, em vez disso, de modo que possam ser refletidas e honestamente reconhecidas nos textos de nossa geografia. Ao mesmo tempo, buscamos “distancia critica”, uma busca desinteressada de evidéncia e uma apresentacio dessa evidéncia livre de distor¢ao consciente. Chamo de evidéncia qualquer fonte que nos possa informar os significados contidos na paisagem para os que a fizeram, a alteraram, a mantiveram, a visitaram, e assim por diante, outras que possam desafiar nossas previsdes e teorias, exatamente como seu préprio conjunto ser informado por essas previs6es ¢ teorias. E importante compreender que ‘0 que € proposto aqui nao pressupde conhecimento profundo ou especializado, apenas vontade de olhar, de fazer a pergunta inesperada e de estar aberto a desafios a suposi- Ses tomadas como certas. Muitas vezes, so as criangas, menos aculturadas em signifi- cados convencionais, que podem ser o melhor estimulo para recuperar os significados codificados na paisagem. tipo de evidéncia que os gedgrafos usam agora para interpretar 0 simbolismo das paisagens culturais ¢ muito mais amplo do que no pasado. Evidéncia material no campo e outras fontes documentais e cartogréficas, orais, de arquivo e outras continu- am valiosas. Mas frequentemente encontramos a evidéncia nos préprios produtos cul- turais: pinturas, poemas, romances, contos populares, mtisicas, filmes e cangdes podem fornecer uma firme base a respeito dos significados que lugares ¢ paisagens possuem, expressam ¢ evocam, como fazem fontes convencionais “factuais” (Meinig, 1979; Prin- ce, 1984), Todas essas fontes apresentam suas préprias vantagens e limitagies, cada uma exige técnicas a serem aprendidas para que sejam tratadas competentemente. Ac ma de tudo, é essencial uma sensibilidade histérica e contextual por parte do geégrafn. Devemos resistir 2 tentaco de deslocar a paisagem de seu contexto de tempo e espaca, enquanto estivermos cultivando nossa capacidade imaginativa de incorporé-la para ve -la, por assim dizer, por dentro. Finalmente, em tal geografia, a linguagem € cructal. 230 Geografia cultural - uma antologia Os resultados de nosso estudo so comunicados primeiro por meio dos textos que nés mesmos produzimos. O texto de uma interpretagao geogrifica da paisagem ¢ 0 meio pelo qual transmitimos seu significado simbélico, através do qual re-presentamos es- ses significados. Inevitavelmente, nossa compreensio € informada por nossos préprios valores, crengas ¢ teorias, mas est4 apoiada na busca de evidéncia de acordo com as reconhecidas regras desinteressadas do mundo académico. No ato de representar uma paisagem, palavras escritas e mapas, que so cédigos simbélicos, séo as principais ferra- mentas de nosso oficio. Decodificando paisagens simbélicas: alguns exemplas Sugeri antetiotmente que, da perspectiva da cultura como poder, poderfamos falar de culturas dominantes, residuais, emergentes e excluidas, cada uma das quais tera um impacto diferente sobre a paisagem humana, Usarei essa tipologia triplice como es- trutura para exemplificar a abordagem da paisagem que uma geografia “humana” deve considerar. Nao farei nenhuma reivindicagao a favor da abrangéncia ou da validade objetiva da classificac4o. Ela serve apenas como um artificio organizador ttl. Paisagens da cultura dominante Por definicdo, cultura dominante ¢ a de um grupo com poder sobre outros. Quando falo em poder, no quero me referir apenas ao sentido limitado de um grupo executivo ou de governo em particular, mas precisamente ao grupo ou classe cuja do- minagdo sobre outros est baseada objetivamente no controle dos meios de vida: terra, capital, matérias-primas ¢ forga de trabalho. No final, sao eles que determinam, de acordo com seus préprios valores, a alocagao do excedente social produzido por toda a comunidade. Seu poder é mantido ¢ reproduzido, até um ponto consideravelmente importante, por sua capacidade de projetar ¢ comunicar, por quaisquer meios dispont- veis ¢ por todos os outtos niveis e divisdes sociais, uma imagem do mundo consoante com sua propria experiéncia e ter essa imagem aceita como reflexo verdadeiro da rea- lidade de cada um. Esse é 0 significado da ideologia. Um exemplo especifico: durante 08 anos que se seguiram imediatamente a Revolucao Francesa, houve um receio consi- deravel entre a classe inglesa dominante, ainda influenciada por interesses fundidrios, de que os trabalhadores agricolas ingleses, 0 maior grupo de trabalhadores, pudessem ser “contaminados” pelo espirito revoluciondrio de liberdade, igualdade ¢ fraternida- de. Da perspectiva de um proprietério rural ingles, tal resultado seria desastroso para toda 2 ordem social, porque o equilibrio harmonioso que lhe convinha acreditar que existia entre todas as classes em seu dominio, governado com justica, seria destrufdo, Paisagem cultural 23) © a anarquia tomaria seu lugar. Apareceram todos os tipos de apelo ao patriotismo ¢ as liberdades antigas de pequenos proprietérios rurais nascidos livres, bem-alimentados, junto com caricaturas de camponeses franceses macilentos, famintos em sua liberdade. Outra resposta, provavelmente apenas levemente consciente, era a popularida- de, entre conhecedores da pintura — eles mesmos proprietérios de terra e membros da classe governante -, de paisagens pintadas mostrando tranquilas cenas rurais com trabalhadores colhendo em abundancia ou descansando com suas familias na porta de casa. Tais cenas, apesar de distantes da realidade rural, eram reconhecidamente inglesas na topografia ¢ socialmente trangiiilas ¢ pacificas. Apenas examinando tais imagens de paisagens em seu contexto, podemas comegar a descobrir um de seus significados culturais: para a oligarquia fundidria inglesa, Deus estava no céu, e tudo estava bem no mundo, Elas também nos indicam uma das imagens mais duradouras da paisagem inglesa, ainda reproduzida hoje nas paisagens que procuramos conservar nas aldeias pitorescas e campos bem-organizados de feno e trigo, assim como em nossos postais € pésteres para turistas. Em termos de paisagens existentes, naturalmente somos inclinados a ver a ex- pressao mais clara da cultura dominante no centro geogréfico do poder. Em sociedades de classe, exatamente como o excedente é concentrado socialmente, assim o & espacial- mente, em casas de campo e seus parques, por exemplo (Daniels, 1982), mas, acima de tudo, na cidade. E instrutive observar quio historicamente consistente tem sido 0 uso de formas racionais, geométricas, no plano das cidades: sistemas de vias em circulo, quadrado ou em tabuleiro de xadrez sao recorrentes. Tal geometria ¢ radicalmente dife- rente das curvas e ondulagées da paisagem natural. Representa a razio humana, o poder do intelecto. A geometria euclidiana como base da forma urbana deve ser encontrada nos planos de cidades gregas, romanas, da Renascenca, barrocas ¢ vitorianas, mesmo na paisagem aparentemente benevolente do plano da cidade-jardim de Ebenezer Howard, assim como na forma urbana chinesa, indiana e maia, Paisagens de cidades modernas sao igualmente exercicios em geometria aplicada, quer estejamos considerando a Ci- dade Radiante de Le Corbusier ou os cubos de Manhattan ou a silhueta de edificios contra o céu de Dallas. Tomando um exemplo especifico desse tema sobre poder e paisagem geométrica, consideremos a capital dos Estados Unidos. Construfda em “terra virgem”, doada ao governo federal pelos estados da Virginia e Maryland e com 0 nome do primeiro presi- dente, Washington D. C. seria a sede do poder para a primeira nova nacéo dos tempos modernos ¢ 0 centro de um territério maior que toda a Europa. Em sua Declaragio de Independencia e na Coristituigdo, os fundadores nobres, brancos e europeizados dos Estados Unidos afirmaram sua crenca em uma nova e perfeita sociedade e na demo- cracia, Seus ideais culturais foram os celebrados na paisagem planejada de Washington 232 Geografia cultural - uma antologia D. C. O arquiteto francés L’Enfant compés o plano de dois desenhos geométricos simples: 0 padréo radial ortogonal tradicionalmente adotado pelos monarcas europeus que exerciam poder absoluto que se itradiava de suas pessoas ¢ de suas cortes; e 0 padrao em tabuleiro de xadrez, infinitamente repetivel, que se tornou a base para toda cidade colonial, uma forma democrética ¢ igualivétia que nfo dé a qualquer localizagéo um status privilegiado. ‘Aqui, inscrita no préprio padréo das ruas da capital da nagio, esté a resolugéo americana para 0 centralismo europeu e 0 localismo colonial, do federalismo ¢ dos direitos do Estado. Observemos 0 plano mais atentamente ¢ veremos como ele re- produz 15 nés, um para cada estado da Unido (13 antigas colénias, mais Kentucky e Tennessee), ¢ como estéo localizadas as construgoes simbdlicas centrais. A Casa Branca € 0 Capitdlio, os dois poderes equilibrados do Executivo ¢ do Legislativo sob a Cons- tituiggo americana, ficam no fim de um grande L, em cujo canto surge 0 monumento a Washington, comemorando o heréi fundador da Revolugao, localizado as margens do Rio Potomac, onde se encontram a natureza ¢ a cultura. A Casa Branca ¢ 0 Capi- tdlio sao unidos diretamente pela Avenida Pennsylvania, assim chamada por causa do “estado-chave”. A paisagem urbana de Washington pode, assim, ser lida como uma declaracao da cultura politica americana escrita no espaco. Tais paisagens simbélicas ndo s4o apenas afirmag6es estdticas, formais. Os valo- res culturais que elas celebram precisam ser ativamente reproduzidos para continuar a ter significado. Em grande parte, isso € realizado na vida diéria pelo simples reconhe- cimento dos edificios, nomes dos lugares etc. Mas frequentemente os valores inscritos na paisagem sio reforcados por ritual ptiblico durante ceriménias maiores ou menores. A cada ano, 0 monarca briténico “abre” o Parlamento, ocasiao de ritual elaborado no Paldcio de Westminster. Grande parte do ritual éaltamente ptiblica ¢ utiliza a paisagem de Londres. © monarca, num coche, acompanhado por um cortejo da elite militar ¢ civil, sai do Palacio de Buckingham, desce 0 Mall ¢, através do Arco do Almirantado — por um portéo aberto apenas para a passagem da Coroa -, passa pela Trafalgar Square, com seus monumentos ds vitStias militares britanicas, seguindo pelo Whitehall para o Parlamento. Assim, a Coroa eo Parlamento so unidos por meio de rota cerimonial, sendo a passagem marcada por um elaborado e impressionante ritual puiblico. Aqui e em outros desses rituais — como o Desfile das Insignias (Trooping the Colour), visitas de Estado, casamentos reais ¢ paradas comemorando vitéria -, 0 espaco urbano se combi- na com a tradi¢do (muitas vezes inventada) e referencias patristicas para celebrar valo- res “nacionais” ¢ apresenté-los como heranca comum de todos os cidadaos. E instrutivo comparar as rotas seguidas por tais eventos culturais oficiais com as seguidas por outros usudrios cerimoniais da paisagem urbana: passeatas de sindicatos de classes, protestos antinucleares ou carnaval das Indias Ocidentais, por exemplo. Uma andlise similar po- Paisagem cultural 283 deria ser aplicada em escalas diferentes ao plano e ao uso do espaco em qualquer comu- nidade, da maior cidade & menor aldeia, com suas localizagées simbélicas de memorial de guerra, igreja, praca, saguao da Legiao Britanica do clube dos trabalhadores. Cada uma dessas paisagens tem seus usos rituais, assim como seu plano simbélico. Examind- -las e decodificé-las nos permite refletir sobre nossos préprios papéis para reproduzir a cultura e a geografia humana de nosso mundo dirio. Paisagens alternativas Por sua natureza, as culturas alternativas so menos visiveis na paisagem do que as dominantes, apesar de, com uma mudanga na escala de observacao, uma cultura su- bordinada ou alternativa poder parecer dominante. Assim, muitas cidades inglesas de hoje tém éreas que s4o dominadas por grupos étnicos cuja cultura difere marcantemen- te da cultura branca predominante. Isso pode produzir uma disjungao entre o ambiente formal constituido de areas residenciais centrais da cidade, construido antes da onda de imigragio pés-guerra dos antigos territérios imperiais ¢ ainda tendo os simbolos apropriados daquela época, ¢ os usos informais e novos significados e articulagSes agora introduzidos numa sociedade plural. O antigo depésito de bondes pode ser uma mes- quita, pintura brilhante, ritmos reggae e pésteres evangélicos podem estar presentes em uma rua de residéncias vitorianas. Porém, por mais dominante localmente que possa ser uma cultura alternativa, ela continua subdominante & cultura nacional oficial. Nes- sa titima escala, divido as culturas alternativas em residuais, emergentes ¢ exchuidas. Residuais Muitos elementos da paisagem pouco tém de seu significado original. Alguns podem ser desprovidos de qualquer significado, como, por exemplo, as pirimides de conereto que ainda podem ser encontradas préximo ao litoral britanico, espalhadas so- bre terreno plano e parcialmente encobertas, reliquias da protegio simbélica da guerra contra tanques alemées invasores. Os gedgrafos hé muito tém interesse por paisagens- -rel{quias, usando-as geralmente como pistas para a reconstrugio de antigas geografias. Todavia, como ocorre com todos os documentos histéricos, ¢ dificil recuperar o sig- nificado de tais formas para os que as produziram e, na verdade, a interpretagio que fazemos deles nos diz tanto sobre nés mesmos ¢ nossas suposigées culturais quanto sobre seu significado original. Um desses casos ¢ Stonehenge. Inteiramente situado nas tetras calcérias do Wiltshire, é um simbolo dominante, nao apenas em virtude de seu tamanho ¢ idade, mas porque seu significado cultural original esta longe da expectativa razodvel de recu- 234 Geografia cultural — uma antologia peragdo. Inigo Jones, um arquiteto do século XVII, acreditava que era a ruina de um teatro romano, desprezando teorias existentes de que teria sido um templo druida ou o ambiente magico para os feitos do rei Arthur, criado pela vara de condio de Merlin. Teéricos posteriores sustentaram que era um observatério gigante, um calendério © foco central de um sistema sagrado cuja influéncia ainda existe. Cada uma dessas interpretagoes indica 0 papel dos simbolos da paisagem residual para revelar culturas alternativas contemporaneas. O elemento residual mais presente na paisagem da Gra-Bretanha ¢ 0 edificio da igteja medieval. Desde a grande caredral gética até a torre da igreja da aldeia, quase todo o nticleo de povoamento tem sua igreja antiga, mesmo alterada por actéscimos € renovacdes posteriores. Em localizacdo, arquitetura e escala, as igtejas ainda s4o pode- rosas inscrigdes simbélicas em nossa paisagem, ¢ os cemitérios que as cercam descrevem a histéria cultural de suas comunidades em seu tracado, desenho de pedras de sepultu- ras, letras e inscrig6es funerdrias. Um arco gético pontudo ainda é reconhecido pelas pessoas menos religiosas como um simbolo sagrado. Entretanto, 0 papel da igreja na vida inglesa contemporanca néo pode, em sentido algum, ser visto como dominante. Na verdade, uma indicagao de seu status residual é a dificuldade que tém os arquitetos de encontrar um estilo apropriado para o papel cultural da igreja na vida moderna. Igrejas antigas cornaram-se discotecas ¢ supermercados baratos, enquanto os prédios das novas igtejas parecem discotecas e supermercados baratos! Hé muito trabalho inte- ressante a ser realizado sobre paisagens do passado e seus significados contemporineos, ¢ €um bom ponto de partida sua aparente recriagdo em museus ¢ parques tematicos, Emergentes As culturas emergentes so de muitos tipos, e algumas se revelam muito transité- rias ¢ com impacto permanente relativamente pequeno sobre a paisagem, como a cul- tura hippie dos anos 1960, com suas comunidades associadas, lojas de alimentos alter- nativos e pequenas propriedades orginicas. Contudo, todas tém sua prépria geografia € seus préprios sistemas simbélicos. Esta na natureza de uma cultura emergente oferecer um desafio & cultura dominante existente, uma visao de futuros alternativos possiveis. Assim, suas paisagens tém, muitas vezes, um aspecto futurista e utépico, como as ct- pulas geodésicas to apreciadas pelos moradores de comunidades na América dos anos 1970 (Vance, 1972, pp. 185-210). Mas precisamente em virtude desse esforco utépico as culturas emergentes frequentemente esto expressas em planos — paisagens de papel. Nio sio, por isso, menos interessantes ou relevantes par o estudo geogréfico, porque toda utopia é tanto uma visio ambiental quanto social. Hé uma geografia nos livros 1984, Brave new world e Things to come, assim como em cada livro, quadrinho ou filme Paisagem cultural 285 de ficgao cientifica (Porter e Lukermann, 1976, pp. 197-223). Estudar essa geografia nos revela as ligagdes entre sociedades humanas ¢ ambientes. Nao deverfamos zombar do estudo de geografias imaginativas, nem do uso de paisagens reais para antecipar culturas futuras e relagGes sociais. A linha do horizonte de Nova York, por exemplo, tem sido usada desde os dias de King Kong e do Super Homem para apresentar uma imagem da sociedade urbana futura e de sua cultura sofisticada, mas precdria, vacilando sempre a beira da destruicao por poderosas forcas do mal. Hé também a paisagem do esporte, particularmente do esporte internacional ¢ olimpico, que continua a ser uma visao utépica da harmonia humana, mesmo que sua expresso de paisagem tenha sido subvertida, consistentemente pela cultura na- cionalista, de Nuremberg, em 1936, a Los Angeles, em 1984. Simbolos contrastantes de paisagem do futuro raramente sio tio pungentemente justapostos como 0 s4o nas poucas centenas de jardas que separam os cinzentos e bem implantados silos nucleares e a anarquia doméstica espalhada no Campo da Paz, em Greenham Common. Exclutdas Quando este ensaio aparecer impresso, uma dessas duas paisagens emergentes pode ter desaparecido. A cultura promovida no Campo da Paz das mulheres pode ter sido oficialmente excluida, Em geral, as mulheres representam a maior cultura singular exclufda, pelo menos no que tange 20 impacto sobre a paisagem publica. A cultura feminina est4 evidentemente no lar, talvez no jardim doméstico. Mas o gedégrafo tem evitado estudar significativamente a paisagem doméstica. A organizagio ¢ 0 uso do espaco pelas mulheres pressupdem um conjunto muito diferente de significados sim- bélicos que aquele dos homens, ¢ na tiltima década foram feitos estudos iniciais para revelar o significado das diferencas de sexo na atribuigao e na reprodugao do simbolis- mo na paisagem (Ardener, 1981, 1984). Esse trabalho tem sido feito, sobretudo, pelos antropdlogos. A masculinidade ¢ a feminilidade da paisagem ptiblica continuam a ser, € muito, um assunto excluido da investigacdo geogréfica, simplesmente porque as ques- tes nunca foram apresentadas. O mesmo € verdade para outras culturas exclufdas, a nado ser um estudo oca- sional, geralmente tratado como de interesse marginal ou levemente suspeito. Mas a paisagem humana estd repleta de simbolos de grupos excluidos e de seu significado simbélico. © espago simbélico dos jogos das criangas (Sibley, 1981) e seu uso imagi- nativo de lugares-comuns para criar paisagens de fantasia, o local da caravana cigana, as marcas deixadas por mendigos para indicar o caréter de uma vizinha como fonte de caridade, o grafite das gangues de rua, as noticias discretas ¢ os indicadores de paisagens de grupos variados como gays, magénicos ou prostitutas, todos esto codificados na 236 Geografia cultural - uma antologia paisagem da vida cotidiana e aguardam estudos geogréficos. E fascinante comparar os significados oficiais de paisagens do parque publico discutidos anteriormente com sua geografia simbdlica de varias culturas excluidas. As paisagens tomadas como verdadeiras de nossa vida cotidiana esto cheias de significados. Grande parte da geografia mais interessante est em decodificé-las. E tare- fa que pode ser realizada por qualquer pessoa no nivel de sofisticacao apropriado para elas. Porque a geografia est4 em toda parte, reproduzida diariamente por cada um de nés. A recuperacao do significado em nossas paisagens comuns nos diz muito sobre nés mesmos. Uma geografia efetivamente humana € uma geografia humana critica e relevante, que pode contribuir para 0 prdprio nticleo de uma educagio humanista: melhor conhecimento ¢ compreenséo de nés mesmos, dos outros e do mundo que compartilhamos. Agradecimentos Gostaria de agradecer as seguintes pessoas pelos comentérios feitos durante a redacao deste artigo: Isobel Cosgrove, Stephen Daniels, Joanne Magee, Jane Bateman, Janet Atkin, Michael O'Leary, Penny Smith, Carolyne Specht e David Trotter. Leituras complementares Duas importantes coletaneas de ensaios sé0 Valued environments, otganizado por John R. Gold e Jaqueline Burgess, Londres e Boston, George Allen & Unwin, 1982; e The interpretation of ordinary landscapes, organizado por D. Meinig, Oxford University Press, 1979. Apresentei uma discussao tedrica e uma série de estudos detalhados com al- guma base humanistica em Denis Cosgrove, Social formation and symbolic landscape, Londres, Croom Helm, 1984. Uma crftica corajosa do humanismo a partir de uma perspectiva um pouco diferente encontra-se em Edward Relph, Relational landscapes and humanistic geography, Londtes, Croom Helm, 1981; e em S. Daniels, “Arguments for a humanist geography”, em The fiture of geography, Londres, Methuen, 1985. Tanta. 11 crn Paisagem cultural 287 Referéncias ARDENER, Shirley (ed.). Women arid space: ground rules and social maps. Londres: Croom Helm, 1981, —, “Women and geography study group of the I.B.G.”. Geography, and gender: an introduction to feminist geography. Londres: Hutchinson, 1984. COSGROVE, Denis (org.). “Geography and the humanities”. Occasional Paper, Longhorough University of Technology/Department of Geography, 1982, n. 5, pp. 38-53. + “Towards a radical cultural geography: problems for theory”. Antipode, 1983, 15 (1), pp. 1-11. —, “Prospect, perspective and the evolution of the landscape idea”. Trans. lust. Br. Geogr., 1985, n. 10, pp. 45-62. DANIELS, S. “Humphrey repron and the morality of landscape”. In GOLD, J. R. e BURGESS, J. (orgs). Valued environments. Londres: George Allen & Unwin, 1982, pp. 122-44. JACKSON, P. “A plea for cultural geography”. Area, 1980, n. 12, pp. 110-3. MEINIG, D. (org,). The interpretation of ordinary landscape. Oxford University Press, 1979. PORTER, PW. e LUKERMANN, E E. “The geography of utopia’. In LOWENTHAL, D. e BOWDEN, M. (eds.). Geographies of the mind. Oxford University Press, 1976, pp. 197-223. PRINCE, Hugh. “Landscape through painting”. Geography, 1984, n. 69, pp. 3-18 RAPOPORT, A. The meaning of the built environment. Londres: Sage, 1982. SAUER, C. O. Agricultural origins and dispensals, Nova York: American Geographical Society, 1952. SIBLEY, David. Outsiders in an urban society. Oxford: Basil Blackwell, 1981. VANCE J. E, "California and the search for the ideal”. Annal ofthe Association of American Geographers, 1972, n. 62, pp. 185-210. Copyright © 2012, EAUERI. “Todos 0s direitos desta edigdo reservados & Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E proibida a duplicasio ou reprodusio deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer meios, sem autorizagao expressa da editora EAUERJ Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua So Francisco Xavier, 324 — Maracan CEP 20550-013 ~ Rio de Janeiro ~ RJ ~ Brasil Tel/Fax.: 55 (21) 2334-0720 / 2334-0721 www.eduerj.ner) br eduerj@uer).br Editor Executivo Italo Morieoni Assistente Editorial Fabiana Farias Coordenadora Administrativa Rosane Lima Coordenador de Publicacdes Renato Casimiro Coordenadora de Produga0 Rosania Rolins Revisao Fabio Flora Andréa Ribeiro Shirley Lima Copa Carlota Rios Projeto e Diagramagao Emilio Biseardi CATALOGACAO NA FONTE UERJREDE SIRIUS/NPROTEC C345. Geografia cultural: uma antologia (I) / organizagéo, Roberto Lobato Cortéa, Zeny Rosendahl. — Rio de Janeiro: EAUERY, 2012. 344 p. ISBN 978-85-7511-252-6 1. Geografia humana. I. Corséa, Roberto Lobato, 1939- II. Rosendahl, Zeny. CDU 911.3

Potrebbero piacerti anche