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NIETZSCHE: Do mito de Dioniso à visão dionisíaca de mundo

Clademir Luís Araldi*

(UFPel, 1998)

‘Dioniso’ ocupa um lugar central nos escritos de juventude de Nietzsche,


principalmente na obra publicada O Nascimento da Tragédia (NT) e no escrito não
publicado A Visão Dionisíaca de Mundo1 (VD). O filósofo alemão, além de
ressaltar a importância de Dioniso em sua obra, afirma ser o primeiro a ter
compreendido o “fenômeno dionisíaco” entre os gregos. Ele não foi o primeiro a
ter abordado com profundidade o mito de Dioniso. Entretanto, até então Dioniso
nunca ocupou uma posição filosófica de destaque.

O que motivou Nietzsche a aproximar-se do fenômeno dionisíaco não foi


somente a busca de um novo sentido da existência, para além dos valores da moral
cristã, mas também a busca de um sentido para o sofrimento constitutivo da vida.
Por isso, sua relação com o fenômeno dionisíaco e com a divindade mitológica
Dioniso não é a de um crente que se relaciona com um deus através de rituais, nem
a de um erudito que investiga um fenômeno mitológico antigo por pura motivação
intelectual, mas a de um pensador que quer compreender e mergulhar na
profundidade da visão de mundo grega para apreender o valor do mito e do
fenômeno dionisíaco e transpô-lo ao horizonte de sua filosofia e de sua vida. É
nesse sentido que analisaremos a compreensão de Dioniso nos seus escritos de
juventude.

A primeira dificuldade que surge é quanto à delimitação do mito de Dioniso.


Não há um mito único, que mostre univocamente a personalidade, a gênese, as

*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. Doutor em Filosofia pela
Universidade de São Paulo.
1
O escrito A Visão Dionisíaca de Mundo (die dionysiche Weltanschauung) consta nas obras completas de
Nietzsche (ver bibliografia ) organizadas por G. Colli e M. Montinari, no volume I desta edição.
2

paixões, o sofrimento e a trajetória dessa figura singular. Inicialmente,


apresentaremos distintas versões do mito, bem como algumas ponderações a que
chegou a pesquisa erudita nos últimos séculos.

Dioniso, deus antigo. A pesquisa das origens revela que Dioniso é um deus
muito antigo. Já na Grécia arcaica é afirmada sua epifania: é nesse sentido que
Tirésias fala de “tradições que vêm de nossos pais, mais antigas que o próprio
tempo” (Eurípides. As Bacantes, 201-202). Confirmando isso, as festas atenienses
mais antigas (Antestérias, Apartúrias e Oscofórias) são de algum modo dedicadas a
ele2.

A epifania de Dioniso não se dá somente em terras gregas. Dioniso aparece


ligado a divindades vegetais, como Cibele, Réia, Ariadne (deusa cretense da
vegetação, sua esposa) e Deméter, deusa da fecundidade, que também seria sua
esposa, segundo Píndaro. Ao deus são ligadas duas plantas: a hera, com a qual ele é
coroado e a videira, que ele introduz o cultivo, para a produção do vinho. Enquanto
Baco, o deus proporciona vigor às plantas; o vinho produzido a partir da videira
serve tanto para alegrar a vida e acalmar as inquietações, como também para
precipitar os homens na manía3.

O modo pelo qual Dioniso se revela faz dele uma divindade única e
incomparável. O deus se revela no ocultamento de uma máscara. Quase sempre
assume a máscara do estranho e do estrangeiro, oscilando entre a presença e a
ausência. Esse aspecto de estrangeiro é mostrado por Eurípides, na tragédia As
Bacantes, em que Dioniso é visto como divindade recente (filho de Zeus e
Sêmele), ou como filho da mortal Sêmele, ocultando assim a essência de sua
divindade4. Heródoto afirma que Dioniso foi o último deus reconhecido pelos
gregos (Histórias, II, 52). Alguns relatos afirmam que Dioniso teria vindo da Ásia
Menor, da Trácia, em meio a uma experiência religiosa marcada pela selvageria.

2
Cf. Brunel 1, p. 239.
3
Cf. Brunel 1, p. 234. Cf. também Detienne, p. 84ss.
4
Cf. Detienne, p. 27 ss.; cf. também Vernant e Naquet 19, p. 51 ss.
3

Os antigos afirmam ainda que Dioniso teve origem numa terra distante, seja ela a
Etiópia, o Cáucaso, a Índia. (Brunel 1, 235-237).

Dioniso não ocupa no panteão olímpico uma posição privilegiada. Por ser
filho de um deus e de uma mortal, ele é visto como herói ou semideus que passa
por sofrimentos, morrendo e renascendo deles. Os sofrimentos de sua infância são
relatados de diversos modos: Hera, a esposa ciumenta de Zeus, faz com que
Sêmele morra, pelos raios de Zeus, antes de seu nascimento; Hermes entrega a
criança a Ino, irmã de Sêmele. Após ser perseguido, Zeus transporta a criança às
ninfas de Nisa, onde novamente é perseguido, desta vez por Licurgo. Dioniso é
visto também como Zagreus (termo que significa, em trácio ou frígio, desfeito em
pedaços). Perseguido, despedaçado e devorado pelos Titãs, somente seu coração é
salvo por Atena, que o entrega a Zeus, ocasionando, assim, seu segundo
nascimento5.

No que concerne ao mito, à tradição e às festas dionisíacas, a pesquisa dos


últimos séculos permite que cheguemos a alguns esclarecimentos, sem esgotar,
contudo, a ambivalência e a complexidade dessa figura mítica única. A descoberta
de documentos micenianos em linear B esclarece que Dioniso é um deus muito
antigo na religiosidade grega. Pesquisadores como E. Rohde procuraram provar
que há uma diferença entre o Dioniso trácio (o autêntico, segundo ele) e o Dioniso
grego, que seria “aculturado”. Autores como Vernant e Naquet enfocam aspectos
fundamentais, como a relação de Dioniso com a máscara e a possível ligação entre
o universo religioso do dionisismo e a representação trágica. M. Detienne procura,
de modo original, ressaltar que há um modelo de ação comum em todas as
manifestações de Dioniso, qual seja, a potência capaz de retirar de si mesmo a sua
liberação violenta de energia.

O que interessava e interessa aos pesquisadores de Dioniso é apreender


traços comuns entre as várias aflorações do mito. A este trabalho Nietzsche

5
Brunel 1, p. 240 ss. Cf. também Detienne 4, p. 27 ss.
4

também se dedica, com a peculiaridade de que ele não se atém a uma pesquisa
erudita ou filológica acerca dessa figura mitológica, mas coloca-a no centro de suas
preocupações filosóficas. Cabe, então, analisar as versões do mito de Dioniso por
ele abordadas e quais os modos preponderantes de sua manifestação.

Investigaremos cinco aspectos determinantes de Dioniso nas obras de


juventude: 1) Dioniso, como divindade artística dos gregos, ao lado de Apolo; 2)A
proveniência asiática de Dioniso; 3) Dioniso enquanto divindade que encerra o
caráter mais próprio e profundo dos gregos; 4) a tragédia como tentativa vitoriosa
de emparelhamento entre essas duas divindades ou pulsões artísticas e 5) As
aflorações de Dioniso na História.

1. Dioniso como divindade artística dos gregos

O início do escrito A visão dionisíaca de mundo aponta com clareza a


compreensão de Dioniso em suas obras de juventude: “Os gregos expressaram e ao
mesmo tempo calaram através dos mistérios a profundidade de sua visão de
mundo, através de duas divindades artísticas: Apolo e Dioniso” (VD, 1, p. 553).

Essa tese também é apresentada, de um modo similar, no início da obra O


Nascimento da Tragédia: “Teremos ganho muito em favor da ciência estética se
chegarmos à intuição de que o desenvolvimento da arte grega está ligado à
duplicidade de dionisíaco e de apolíneo, assim como a vida está ligada à dualidade
de sexos”. (NT, 1, p. 27). O que leva Nietzsche, ao invés de remontar à origem do
mito de Dioniso e às suas conotações históricas, a inserir uma tese metafísica6, que
ele procurará provar no desenrolar da obra? O filósofo estava convencido de que a
filologia, a história e a arqueologia, por si sós, não poderiam recompor numa
totalidade viva o mito de Dioniso. Por isso, ele recorre à intuição (Anschauung), a
partir de seu estudo e de sua aproximação dos gregos.

6
Empregamos aqui o termo ‘metafísico’ no sentido de que Nietzsche visa nessa obra, através de sua
metafísica de artista, a uma abordagem plena e totalizante do mundo.
5

Nos gregos Dioniso é expresso como estando ligado à arte, ou melhor, como
deus-artista. A pergunta sobre a origem de Dioniso é também a pergunta sobre a
origem da arte. “O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir:
para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a
vida, a resplendente criação onírica dos deuses olímpicos”. (NT 3, p. 36). A arte
surge como força da natureza, de uma natureza que aspira à transfiguração e à
exaltação de si. Admitida essa necessidade artística de transfiguração, ainda resta
uma questão: por que há a duplicidade entre arte dionisíaca e apolínea?

Num primeiro momento, o filósofo alemão coloca os deuses ou potências


artísticas em pé de igualdade. Enquanto representantes de dois âmbitos artísticos,
elas configuram estilos opostos; mas, enquanto potências artísticas que brotam da
natureza, as duas divindades configuram dois “estados” através dos quais o homem
atinge a glória da existência: o sonho e a embriaguez. Apolo expressa a bela
aparência do mundo onírico; como artista figurador, ele glorifica o principium
individuationis, a medida, a moderação e os limites. (Todo homem, pelo fato de ser
sonhador, é um artista consumado). Desse modo, no sonho, a bela aparência, a
ilusão, a claridade e o brilho permitem transfigurar o pavor e o tremor originários.

Os gregos antigos não sentiam prazer apenas nas aparências e ilusões do


sonho, ou na moderação e limites expressos em Apolo; também o horror, o feio, o
triste, o sombrio despertavam um prazer e eram expressos artisticamente. Dioniso
configura esse prazer em romper o véu da aparência, guiando o indivíduo que se
abandona a si mesmo ao êxtase. A condição da arte dionisíaca é a embriaguez, o
êxtase. No início, essa arte se manifestou de um modo rude nos ingênuos homens
da natureza (naiven Naturmenschen), através de bebidas narcóticas ou nos
impulsos primaveris (VD 1, p. 554). As festas dionisíacas rompiam as barreiras que
separavam os homens entre si, bem como aquelas que separavam os homens da
natureza. Por meio do jogo com a embriaguez, os homens buscavam atingir no seio
da própria vida uma liberação, uma experiência de êxtase, uma fusão com a
natureza originária. Dioniso é compreendido, assim, como proto-artista, que molda
6

os homens. A felicidade para os homens mortais (fragmentos de Dioniso) está na


unificação com o deus-artista, através de um completo alheamento (VD, p. 555).

2. A proveniência asiática de Dioniso.

O culto de Dioniso, os mitos a ele referido e as festas a ele dedicadas não


ocorrem somente na Grécia. Desde o oriente (especialmente da Babilônia, onde
ocorriam as sáceas) chegam à Grécia as festas e celebrações em honra de Dioniso.
Nietzsche define essas manifestações como constituintes do “dionisíaco bárbaro”,
visto que nelas o homem retroagia ao animal, ao bestial, numa fusão com a
natureza destituída de uma arte e jogo de caráter superior.

A barbárie dessas festas é apontada através do passado remoto de povos da


Ásia Menor, como os babilônios, os lídios e os frígios. As sáceas babilônicas
representam para o filósofo as mais célebres dessas festas: nos cinco dias de
duração das sáceas7, desfaziam-se os laços sociais e familiares; reinava ali uma
licença sexual desenfreada, onde irrompia a descomunal força figuradora e rítmica
da natureza (VD 1, p. 558). O coro de sátiros barbudos, com atributos de bode,
ilustra bem a ‘barbárie’ dessas festas.

As festas dionisíacas gregas, em contrapartida, constituem uma “embriaguez


musical transfiguradora” (eine musikalische Verklärungsrauch). A Nietzsche
interessa perscrutar a dupla natureza (die Doppelnatur) de Dioniso, em todas as
suas manifestações, seja nas orgias de embriaguez extasiante ou na celebração dos
mistérios. a sua dupla natureza se manifesta no fato de que ele é tanto o deus artista
que cria, destrói e volta a criar o mundo em harmonia como aquele que castiga os
indivíduos que se separam do Uno-Primordial (singular imbricação entre o
pessimismo schopenhaueriano e o mito de dioniso). Dioniso artista primordial, ou
criança despedaçada pelos titãs, mostra que toda dor provém da separação da
7

unidade, do despedaçamento do uno em indivíduos. O despedaçamento de Dioniso


é simultaneamente uma transformação em água, ar, terra, astros, plantas e animais.
Esse movimento faz brilhar a terrível verdade: a individuação é causa de todo
sofrimento. A sua fragmentação é, ao mesmo tempo, a fragmentação do mundo
numa infinidade de seres em luta entre si;

3. O dionisíaco grego

Após afirmar que as festas dionisíacas asiáticas eram marcadas por uma
excitação e por um arrebatamento selvático, Nietzsche afirma que o impulso
dionisíaco não surge na Grécia apenas como algo estrangeiro, que invade pouco a
pouco as fronteiras gregas. Contra esse dionisíaco grotesco, os gregos estavam
desde seus primórdios resguardados graças a Apolo. Apolo, enquanto deus da
medida e da moderação possibilitou que a barbárie dessas festas fosse refreada e,
faz uma aliança com o deus estrangeiro (o Dioniso trácio ou frígio); a arte dórica é
a expressão dessa aliança (NT 2, p. 33). Entretanto, os impulsos dionisíacos
surgiam também no cerne mais íntimo do helenismo. Apolo propõe uma
reconciliação, um pacto de paz com Dioniso, para evitar a violência desse culto
selvagem. Apesar disso, o abismo não foi encoberto e os limites impostos por
Apolo foram transpostos. À diferença das sáceas babilônicas, as orgias dionisíacas
dos gregos adquirem o sentido de festas de redenção universal e de dias de
transfiguração (NT 2, p. 34). Essas festas gregas são marcadas pelo excitamento,
pela violência comovedora e pela harmonia da música dionisíaca. A intensificação
das forças simbólicas na música, tal como ocorria no ditirambo dionisíaco, acarreta
também todo um simbolismo corporal, com movimentos rítmicos e bailantes de
todos os membros.

7
Nietzsche não explica em pormenor o que eram as sáceas. Sabe-se que além de designar uma dança e festa
babilônica, para Heródoto e para outras fontes gregas “sáceas” referia a um povo cita. Cf. Guinsburg 13,
nota 24, p. 146 da obra Nascimento da Tragédia.
8

Dioniso é mais originário que Apolo, por constituir o núcleo mais íntimo do
helenismo. Cabe agora explicitar o que traz Apolo e as demais divindades
olímpicas à vida. Analisando o passado recôndito dos gregos, a época pré-
homérica, Nietzsche constata que é na sabedoria popular que a “profunda e
pessimista consideração de mundo” está configurada. Nas raízes do mundo grego
está a percepção dos horrores e terrores da existência. Uma lenda ilustra essa
situação: o ‘sábio’ Sileno, ao ser indagado insistentemente pelo rei Midas acerca
do que é mais desejável ao homem, responde: “- Estirpe miserável e efêmera,
filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti
mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter
nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”
(NT 3, p. 36).

A sabedoria de Dioniso consiste na percepção de que a individuação é


condenável, é a fonte de todos os males. Vários mitos ilustram essa sabedoria: o da
“Moira” que reina inexoravelmente sobre o mundo, os homens e os deuses, as
titanomaquias, com a irrupção de poderes descomunais da natureza, os mitos que
relatam os sofrimentos dos heróis, como Prometeu e Édipo, e ainda o mito que
relata a maldição imposta à famíla dos átridas. (NT 3, p. 37)

A vida mesma é compreendida como algo terrível e doloroso, na medida em


que está fragilmente assentada sobre o abismo dionisíaco e destinada a sucumbir
eternamente a ele, e renascer eternamente dele. Para triunfar do sofrimento e
terribilidade próprios à vida, os gregos “criaram” os deuses olímpicos. A arte é
trazida à luz como um recurso para tornar a vida desejável e justificável.

Nietzsche entende que a essência do dionisíaco grego está na afirmação de


que o Uno-Primordial (Dioniso) sendo plenitude originária, encerra também uma
dor e sofrimento primordiais; ou seja, o entrelaçamento entre prazer e dor constitui
a essência do mundo, sendo que essa plenitude originária engloba e justifica
inclusive as maiores dores. Nesse êxtase, os homens se sentem como se fossem o
9

próprio Dioniso, na medida em que se deixam moldar pelo artista dionisíaco dos
mundos. (NT 1, p. 32).

(Até mesmo a morte dos indivíduos é condição para a satisfação do Uno-


Primordial, o qual engendrará infinitamente novos indivíduos com disposição para
a vida; do mesmo modo, ao destruir e criar mundos, Dioniso perpetua sua
potência.)

4. Dioniso na tragédia

A tese nietzschiana acerca da origem da tragédia é, sem dúvida, inovadora e


desconcertante, pelas implicações e expectativas que introduz:

“É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais


vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dioniso,
e que por longo tempo o único herói cênico aí existente foi exatamente
Dioniso. Mas com a mesma certeza cumpre afirmar que jamais, até
Eurípides, deixou Dioniso de ser o herói trágico, mas que, ao contrário,
todas as figuras afamadas do palco grego, Prometeu, Édipo e assim por
diante, são tão somente máscaras daquele proto-herói, Dioniso”. (NT 10,
p. 69)
Esta tese não foi bem recebida pelos estudiosos da antiguidade grega da
época de Nietzsche. As críticas do filólogo Wilamowitz Moellendorff a esta
atribuição da origem da tragédia foram contundentes, questionando a sua
historicidade e rigor filológico, bem como a inserção indevida de preocupações
metafísicas. Apesar de admitirmos a importância de um estudo comparativo entre
os vários pesquisadores da origem da tragédia, a nossa preocupação está em
ressaltar a ‘inovação’ da tese nietzschiana e seu distanciamento de outras
concepções vigentes em sua época. Para o filósofo alemão, na tragédia grega até
Eurípides8, Dioniso é o único sujeito verdadeiro existente, o Uno vivente que

8
Com Eurípides inicia, contudo, o processo que levou à morte a tragédia grega. Eurípides, aliado a
Sócrates, coloca no palco da tragédia as aspirações do público e a mediocridade burguesa. Entretanto, na
sua velhice, o último dos grandes trágicos gregos, apresenta num mito trágico o deus Dioniso domo todo o
seu poder; apesar de querer extirpar do solo grego as antigas tradições populares de raiz dionisíaca, o velho
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aparece numa pluralidade de configurações, atrás da máscara de um herói apolíneo.


No herói lutador, apegado à sua existência, é expressada a afirmação dos gregos da
existência individual, a ligação à aparência e às belas formas. O herói não é,
contudo, aquele que triunfa sobre as dores da natureza originária; ele é o sofredor,
o que morre, incapaz de afrontar o destino inelutável. Nesse embate do herói, os
gregos pressentiram que a arte apolínea era apenas um véu que encobria o mundo
dionisíaco. (NT 2, p. 35) Os mitos do mundo homérico serviram de veículo para a
“sabedoria dionisíaca nua e selvagem”. Na tragédia grega, os mitos chegam à mais
alta significação: a compreensão de que o aniquilamento do herói gera um prazer
superior. A música dionisíaca está no coração do mundo, expressando sua essência
mais íntima; do espírito (Geist) dessa música é que se origina a tragédia. Desse
modo, a sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente é expressa na música. A
música dionisíaca não brota das aparências e das imagens do mundo apolíneo.
Emergindo da noite, Dioniso expressa em sua música o triunfo e a preponderância
sobre o mundo das belas formas. Quando ele se expressa através de imagens
apolíneas, é a sua sabedoria inconsciente que triunfa nelas.

Ao passo que Apolo é uma divindade solar (NT 1, p. 29) que envolve a
existência no brilho e esplendor de sua luz e sabedoria, Dioniso é um deus noturno,
que nunca se revela inteiramente à luz (NT 3, p. 35), mas obriga Apolo a expressar
sua sabedoria através de imagens luminosas. Apolo é, nessa perspectiva, um clarão
de sol que irrompe da noite do mundo, da profunda e sombria consideração
dionisíaca. O fenômeno apolíneo pode ser visto como o surgir de “manchas
luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha” (NT 9, p. 63). Também os
heróis apolíneos da tragédia são máscaras e “aparições” do proto-artista Dioniso,
“apenas uma luminosa imagem de nuvem e de céu que se espelha sobre um lago
negro de tristeza”. (NT 9, p. 67)

5. As aflorações do mito de Dioniso após a morte da tragédia

poeta rende-se e glorifica seu adversário. Infelizmente, Dioniso já havia se retirado do palco trágico. (Cf.
NT 11-14).
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Ao investigar como a tragédia grega nasceu e pereceu, Nietzsche não tinha


em vista a construção de um trabalho erudito, que afirmasse uma época gloriosa do
passado (mas perdida para sempre para o homem moderno), para apreender
somente seu significado teórico profundo. Quando afirma ter sido o primeiro a
descobrir o “maravilhoso fenômeno dionisíaco”, ele procurava, sem dúvida, captar
o sentido profundo que Dioniso assumiu na tragédia grega. Entretanto, o filósofo
procurou captar, após a morte da tragédia, as novas aflorações desse impulso
dionisíaco desde a antiguidade até a modernidade.

O ocaso da tragédia se deve ao abandono por parte dos gregos das


divindades ou pulsões artísticas Apolo e Dioniso em detrimento do apego à cultura
alexandrina, à serenojovialidade do homem teórico, que tem em Sócrates seu
fundador. Isso não significa, contudo, a aniquilação definitiva do fenômeno
dionisíaco:

“Não quero dizer que a consideração trágica do mundo tenha sido


destruída, em toda a parte e por completo, pelo acossante espírito não-
dionisíaco: sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se,
por assim dizer, no mundo ínfero, numa degeneração em culto secreto”.
(NT 17, p. 107).
Nietzsche compreende Eurípides como “o poeta do socratismo estético”. O
último poeta trágico, ao introduzir uma nova forma de criação artística, não estava
inspirado nem por Dioniso, nem por Apolo, mas por Sócrates, entendido como
“demônio” de recentíssimo nascimento (NT 12, p. 79). Dioniso é expulso por
Sócrates do solo helênico, do mesmo modo como o mito narra que Dioniso, após
ser perseguido por Licurgo, mergulha no mar, para depois retornar “na maré
mística de um culto secreto que deveria recobrir pouco a pouco o mundo inteiro”
(NT 12, p. 83).

É ainda o ‘mesmo’ impulso dionisíaco que irrompeu na Babilônia e na


Grécia, que despontou no Medievo alemão:

“Também no Medievo alemão contorciam-se sob o poder da


mesma (o itálico é nosso) violência dionisíaca multidões sempre
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crescentes, cantando e dançando, de lugar em lugar: nesses dançarinos de


São João e São Guido reconhecemos de novo os coros báquicos dos
gregos, com sua pré-história na Ásia Menor, até a Babilônia e as sáceas
orgiásticas”. (NT 2, p. 30)
Impossível de ser contido pela tendência socrática, o impulso dionisíaco
desponta de tempos em tempos, mostrando o seu vigor e sua capacidade de
renascer mesmo num terreno hostil. Na Idade Média, apesar da negação da
natureza e dos instintos, a pulsão dionisíaca se manifestou no espírito alemão, no
qual Nietzsche pressente que há uma profundidade dionisíaca encoberta, prestes a
transbordar.

O impulso dionisíaco entre os alemães não aflorou, segundo o filósofo, de


um modo natural e ingênuo, como ocorrera outrora na Babilônia. No pessimismo
alemão, a busca da verdade dionisíaca se manifesta de um modo solitário e
terrificante. Dürer ilustra essa busca em sua pintura O Cavaleiro, a Morte e o
Diabo. O cavaleiro arnesado, mesmo sem qualquer esperança, segue incólume na
paisagem sombria, acompanhado apenas de terríveis companheiros (a morte e o
diabo). Para Nietzsche, esse cavaleiro foi Schopenhauer, com sua dureza e firmeza
na busca da verdade. Enquanto filósofo pessimista, com sua disciplina para o sério
e para o terrível, Schopenhauer abriria caminho para o renascimento do fenômeno
dionisíaco entre os alemães. (NT 20, p. 122)

Na filosofia de Schopenhauer, a sabedoria dionisíaca é expressa em


conceitos. Unida a essa filosofia, a música alemã, da qual Wagner seria o principal
representante, expressa essa sabedoria musicalmente, fazendo renascer os heróis e
mitos da tradição germânica e grega, como seus veículos:

“Para o nosso consolo, contudo, havia indícios de que, não


obstante, o espírito alemão intato na sua esplêndida saúde, profundidade
e força dionisíaca, qual um cavaleiro prostrado em sono, repousava e
sonhava em um abismo inacessível: abismo de onde se eleva até nós a
canção dionisíaca, para nos dar a entender que também agora esse
cavaleiro alemão ainda sonha o seu antiqüíssimo mito dionisíaco em
visões austeras e beatíficas. Que ninguém creia que o espírito alemão
13

haja perdido para sempre a sua pátria mítica, posto que continua
compreendendo com tanta clareza as vozes dos pássaros que falam
daquela pátria. Um dia ele se encontrará desperto, com todo o frescor
matinal de um sonho imenso: então matará o dragão, aniquilará os
pérfidos anões e acordará Brunhilde - e nem mesmo a lança de Wotan
poderá barrar o seu caminho!” (NT 24, p. 142)
* * *

A partir da abordagem desses dois escritos, podemos concluir que


Nietzsche, inicialmente, compreende Dioniso como divindade preponderante,
imanente ao mundo, divindade essa que se manifestou desde o Oriente antigo até a
Modernidade ocidental. Entretanto, foi na Grécia antiga que Dioniso teve a sua
aparição privilegiada. A sabedoria popular, as titanomaquias e os mitos do mundo
homérico foram os primeiros veículos da sabedoria dionisíaca. Mas, foi na tragédia
que Dioniso atingiu seu momento supremo de glória, aliando-se a Apolo e
servindo-se dele para fazer passar a sua verdade, qual seja, que o prazer e a dor
estão na essência do mundo. Dioniso, para o filósofo, não é um mito ou divindade
entre outros, é o “fundamento do mundo” (die dionysiche Untergrund der Welt)
(NT 25, p. 143), o elemento do qual toda a vida surge e para o qual tudo tende.
Assim, quando ele trata do “fenômeno dionisíaco grego”, da pulsão artística
dionisíaca, ele tem em vista o estabelecimento da “visão dionisíaca de mundo” (die
dionysiche Weltanschauung), entendida como a suprema sabedoria e verdade,
condição para uma afirmação absoluta do mundo e da existência. Quando
Nietzsche deposita suas esperanças no renascimento do dionisíaco no ser alemão,
ele tem em vista o estabelecimento dessa visão de mundo, a qual seria o ato
filosófico e artístico superior, que iria além dos desertos da modernidade. A sua
frustração com esse renascimento não põe fim à abordagem de Dioniso em sua
obra. O que ocorre é Nietzsche radicaliza filosoficamente o fenômeno dionisíaco
através de novas perspectivas, experiências e motivações, imprimindo-lhe uma
trajetória singular.
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BIBLIOGRAFIA

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13. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e
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Herausgegeben von Colli und Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter,
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15. _________ . Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma Filosofia do Futuro; trad.
de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
16. _________ . Obras Incompletas. In Coleção os Pensadores; trad. de Rubens
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15

17. _________ . Crepúsculo dos Ídolos (ou como se Filosofa às Marteladas); trad.
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18. _________ . Ditirambos de Dionysos. Trad. de Manuela Sousa Marques.
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19. VERNANT, J.P. e NAQUET, P.V. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Vol. II.
São Paulo, Brasiliense, 1991.

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