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Manuel de Castro Nunes

Diálogos com um querubim

Abrantes, 2004
Quem és tu?

- Garanto-lhe, Senhor Padre, que pode ficar descansado. Depois de tudo


vistoriado com todo o pormenor, garanto-lhe que o telhado está em perfeitas
condições, limpo, sem telhas partidas e com as juntas bem calafetadas. Não pode
entrar água alguma, mesmo que desabe por aí o dilúvio. Mas há sempre humidades
que se concentram no interior destes edifícios, por mais arejados e amplos que sejam,
mas aonde se junta muita gente a exalar vapores. Em dias como o de hoje, em que a
atmosfera se encontra saturada de água, em contacto com as superfícies mais frias,
precipitam-se e escorrem. Sabia que pode chover dentro de um edifício, em dias
muito húmidos?

- Espero que tenha razão, Alfredo. Quando chove dentro de uma igreja com
cerca de quatrocentos anos, ficamos sempre alarmados, sobretudo se trata de uma
assim, com tantas riquezas e tesouros. Bem, para lhe dizer a verdade, isto já nos
aconteceu duas ou três vezes, em pleno estio.

- Ai sim?...

O padre e o mestre de obras conversavam, de pé, por debaixo do arco do vão


da capela de Nossa Senhora da Piedade na Igreja de São Roque, em Lisboa. O
clérigo, mau grado a fala apaziguadora do pedreiro, passeava ainda o olhar, com
desconfiança, do pequeno charco de água que escorria pela soleira de pedra, para o
alto, traçando uma linha ascendente que no zénite batia na exuberância dos
pormenores da talha barroca que revestem o arco. Mais uma pinga se precipitou,
como um fio de prumo, provocando uma breve ondulação em círculos concêntricos
no estático lago.

- Pois..., é assim mesmo, o ambiente está saturado de humidade. Mande abrir


as janelas durante uma manhã, Senhor Padre, e não se preocupe.

Sentado no banco corrido fronteiro à capela, com o espírito absorto e distraído


nas suas orações, ou nos seus íntimos pensamentos, vai dar no mesmo, um homem
olhou casualmente para o arco. Os seus olhos escancararam-se brevemente, por um
instante, e toda a sua atenção ficou subitamente cativa de um pequeno querubim de ar
matreiro e ladino, que entre voltas e entrelaços de acantos, parras e cachos evoluía
numa pirueta de andorinha. Para cúmulo do desaforo ainda lhe piscou o olho,
sorrindo com ar de desafio.
A vida de Francisco andara durante quase cinquenta anos consequentemente
perturbada por episódios cíclicos e imprevisíveis de vicissitudes e contrariedades, mas
era um sujeito imperturbável, tranquilo, sereno, conformado com as suas desgraças.
Sempre que levantava a cabeça desabava-lhe subitamente em cima uma calhoada,
nunca se saberia de onde viria ou viera, até parecia que Deus andava à espreita, à
espera que deitasse a carantonha para fora para receber a luz inebriante do Sol, que
fora criado para todos menos para ele, e então zás, atirava-lhe de cima com um
pedregulho que o mergulhava de novo nas trevas.
Mesmo na vida profissional, que suspendia consequentemente com o pretexto
de iniciar um novo ciclo, não lhe ocorria um sucesso que não fosse compensado com
um falhanço. Era meticuloso e esmerado, por isso os falhanços naturais na vida de
todos os outros apresentavam-se, do seu ponto de vista, como hecatombes.
Era como o actor num palco a quem um espectador bate palmas e grita
ovações, mas, ao seu lado, logo outro bate com os pés no sobrado, a vaiar. De resto
nunca sabe ao certo se há espectador algum e não é ele próprio o que ovaciona e o
que vaia.
Mas Francisco era um sujeito pertinaz, sempre que mergulhava logo começava
a congeminar por onde se haveria de escapulir para engolir mais uma golfada de ar. E
o lugar onde Francisco congeminava tudo e carpia as suas agruras era a igreja. Pela
tardinha, ou logo pela manhã, passava sempre pelo menos uma hora sentado defronte
de um altar, alternando pelo circuito da nave segundo um calendário rigoroso que
atribuía ao hábito o sentido de um ritual, para o tornar mais eficaz.
Francisco nem sabia se monologava consigo próprio ou dialogava com alguém
que não conhecia, pois nunca se revelara. Por vezes pensava:

- Se existes, hás de sentir-te perturbado com a minha presença todos os dias,


para te recordar que um dia me terás que explicar porque me persegues.

No momento seguinte afastava, com algum ressentimento consigo próprio, o


pensamento. Se ele não sabia viver, que culpa haveria de ter quem quer que fosse,
Deus porventura se existia?
A verdade era que ali sentado ausentava-se provisoriamente da vida, que ali
não conseguia atingi-lo. Tudo o que ali o rodeava era inanimado e quedo, excepto o
padre ou o sacristão, algumas beatas que vinham sorrateiramente manifestar-se, ou
alguns crentes, ou mitigados como ele, que se percebia logo que vinham por
necessidade. Mas todos gente desconhecida, cujas vidas nenhuma contiguidade
tinham com a sua, por isso era como se fossem mais uns monos dos altares, embora
fizessem algum ruído.
Bem, mas também os monos dos altares, os floreados e entrelaços da talha, as
parras e os cachos de uva estalavam, uivavam e guinchavam por vezes, quando as
fibras da madeira, agredidas pelo frio, pela aragem ou pela canícula, se contorciam e
rompiam o abraço que as mantivera coesas e solidárias durante séculos.
E agora aparecia aquele ladino, a esvoaçar em lanços rápidos e concisos, daqui
para acolá, de um altar para o outro, de um cacho para um galho, a esbracejar por
vezes para fazer lugar e se esconder entre um magote de outros querubins, que nem
buliam, impávidos, como se o ignorassem.
Francisco sabia que não era homem dado a alucinações. Aquele querubim
andava mesmo por ali a esvoaçar. E a fazer chi-chi aonde calhasse só para arreliar,
pois nunca o vira a beberricar numa pia de água benta, não se percebia de que
misteriosa substância laborava a urina. Ficava-lhe debaixo de olho, logo se veria no
que dava.
E no que daria viu-se logo no dia seguinte, pela tardinha, que foi quando
Francisco veio, com a nave já a mergulhar na penumbra, pois os dias eram ainda
curtos naquele Abril de aguaceiros e trovoadas.

- Tu viste-me, ontem…

Francisco estremeceu de susto, não esperava ser interpelado assim de súbito


pelo querubim, que se sentara no espaldar do banco corrido, mesmo ao seu lado.

- Oh… Raios!
O querubim riu-se. Depois franziu o sobrolho.

- Não vais contar?...

- Se me aborreceres muito, conto.

- Quem te fez?

- Quem me fez?... Sei lá. A minha mãe e o meu pai. A minha mãe pelo menos,
que saí da barriga dela.

- Ah… A mim foi só o meu pai, mais quatro ajudantes. Um pintava e doirava,
outro cortava madeiras à medida para o meu pai entalhar esta gente toda, mais os
cachos, as parras, os galhos, as volutas, as voltas, os torcidos, este mundo todo, enfim.
Outro ajuntava e pregava tudo e outro punha tudo no lugar. Quando me fez a mim, o
resto já estava feito, fui um dos últimos. Ouvi o meu pai falar sobre isso com o pintor.
Tinham ajustado com a confraria um número de querubins, já não me lembro
quantos, basta que os contes. E faltava um. Na verdade eu já estava feito, mais uns
tantos, todos escondidos por debaixo de um monte tábuas e barrotes, pois o mestre
fazia sempre mais uma dúzia com a madeira que ajustava, que metia depois em outras
obras.
Passaram uma manhã inteira a disputar aonde me haveriam de meter. Por isso
fiquei apertado e sufocado ali no meio daqueles, que já pouco espaço tinham para se
acomodar, sempre a sacudir-me, para verem se me desenfiavam. Então resolvi que
andaria por aí, por onde bem me apetecesse e sobejasse lugar.
Ando por aí, falo com todos, mas ninguém fala comigo. Sou um vadio.
De vez em quando rezo.

- Rezas?... A quem?

- Ora… sei dizer todas as orações, em português e em latim, de cor e


salteadas. Até era capaz de rezar uma missa inteira. Rezo a todos estes monos que
aqui estão, que fazem de contas que não me ouvem. Sei as orações que competem
para cada um, pois ouço-as todos os dias.

- Pois claro que não ouvem. São monos de madeira.

- Ora, isso pensas tu. E tu és um mono de quê?

- Eu não sou mono algum, sou um homem de carne e osso, que vê, que ouve e
que fala.

O querubim deu uma gargalhada, esvoaçou durante uns minutos pelas alturas
da abóbada, balançou-se durante uns momentos num lanternim e voltou ao lugar.

- Amanhã eu digo-te que espécie de mono és.

E sumiu-se.
E no dia seguinte foi Francisco logo pela manhã e do querubim nem rasto, não
apareceu. Procurou-o em todos os cantos, espreitou por todo o lado, nada. Ficou
mesmo um tanto inquieto e desiludido, pois passara a noite na expectativa de saber
que espécie de mono haveria um querubim de pensar que ele era. E assim se passaram
três dias.
E no quarto, que era Domingo, em que Francisco só ia pela tardinha para
escapar aos ajuntamentos das missas, já nem pensava no querubim, aquilo era o peso
dos anos a causar-lhe distúrbios nos miolos. Começou a ouvir uma cantoria celestial
em surdina, que foi subindo de intensidade até encher a nave toda de encanto e de
magia. E lá estava o querubim, de perna cruzada, sentado na balaustrada de pau-santo
do altar, diluído na penumbra.

- Então?... Não tinhas resposta para me dares…

- Ora.. estive só a observar-te, para saber se te interessava a minha resposta.

- E então?

- Então… parece que não interessa.

- Que sabes tu dos homens, para poderes julgar o que lhes interessa?

- Sei mais do que tu. Estou aqui há quase trezentos anos, no lugar onde todos
revelam as suas intimidades. Quem, mais do que eu, saberá de ti? Mas tu és muito
sisudo e circunspecto. Mesmo a ti próprio, escondes mais do que revelas.

- És um querubim muito presunçoso.

- Ora aí está. Não te interessa a minha resposta.

- Não interessa muito. Mas, já agora… diz lá.

- Já agora… como não tenho nada para fazer, conto-te uma história. Se não te
interessar a história, atiro-te com mais um cântico.

- Eu preferia o cântico, tens uma voz celestial. Mas sei que estás ansioso para
contar a tua história.

- Vamos então à história.


Um dia, já quase ao fim da manhã, estava um dos ajudantes do meu pai a
montar as imagens justamente daquele altar, no início da nave, do lado aonde me
viste pela primeira vez. E quando estava a subir a Virgem, que pesava muito, para a
sua mísula, deixou-a escorregar para cima de um pé. Lançou uma imprecação muito
feia.
O meu pai aproximou-se e admoestou-o, que parecia impossível, como
poderia lançar uma imprecação daquelas à Senhora da Assunção, a mais sagrada das
mulheres, Mãe de Nosso Senhor, como se fora um gentio, um cafre em melhor dizer.
O homem, com uma mão ainda a agarrar a cabeça da Virgem para evitar que
desabasse e a outra agarrada ao pé contuso, muito irritado e perturbado pela dor,
respondeu:

- Se é a Senhora da Assunção, bem podia subir com o auxílio da sua corte de


querubins para o seu lugar. Esta não é a Senhora da Assunção, é um mono que tu
fizeste de um cavaco, bem feio por sinal. Há monos que até parece que vivem. Mas
este tu já o concebeste morto, sem expressão alguma. É um mono com cara de pau.
O meu pai ficou muito zangado, mais ainda com a resposta do que com a
imprecação. Passou o resto do dia, mais os dois a seguir, a zurzir os ouvidos do
desgraçado, que andou umas semanas manco, com o pé entrapado.
E o tema e assunto era sempre o mesmo. Tanto quanto sabia, pelo que se lia
no Antigo Testamento, mais propriamente no livro do Génesis, o criador concebera
toda a espécie humana de uma mão cheia de pó da terra, ou de barro, que é o mesmo
com uma pinga de água. E do resultado da sua criação saíram duas espécies distintas.
Uns foram animados, ou animaram-se a si próprios, pela virtude da sua crença e fé de
que eram distintos da matéria bruta de onde brotaram. Os outros ficaram para monos,
os gentios, como ele, o seu ajudante. E esses podiam insultar e ofender a toda a gente,
porque são uns monos, ninguém os ouve.
E ajuntava ainda que, ao contrário dos monos que o Criador concebera, os
seus eram talhados em matéria animada, porque eram de madeira. E não queria com
isso dizer que disputava com o Criador no primor da sua obra, que era só a cópia ou o
arremedo da primeira. Mas, pelo menos, ele podia escolher copiar só os primores da
criação, os santos, os profetas, a Virgem e o próprio Filho de Deus, as amoras, as
rosas, as romãs, porque da sua obra ficavam excluídos os gentios, os mafarricos, os
espinhos e as coisas informes e grotescas, senão num ou outro pormenor, para
metaforicamente, por antítese, exaltar as virtudes das excelências.
Parecia um padre a pregar um sermão.
Afinal, com esta história, fico dispensado de te dizer que espécie de mono és
tu. Bem sabes.

- E tu aprendeste com o teu pai, fora do tempo em que andas por aí a arreliar
toda a gente, pareces também um padre a pregar um sermão. Usas ainda, para ti de
um privilégio, para ou outros de um incómodo, ouves sermões dos padres há trezentos
anos, deves ter os miolos cheios deles para despejares quando vem em jeito.

- Bem, eu não tenho miolos. O meu pai fez-me só por fora, por dentro já
estava feito. Que espécie de mono és tu, que pensas que é nos miolos que se guardam
os sermões? Miolos tem também o burro.
Mas tens alguma razão. Há por aí muito sermão que nem disputar pode com o
zurrar de um burro. O problema não reside na espécie dos miolos, senão na espécie
dos monos.

- E, afinal, que espécie de mono és tu.

- Agora vou cantar. Amanhã digo-te que espécie de mono sou. Não… dir-me-
ás tu que espécie de mono pensas que sou.

Só lhe faltava mais essa, passou Francisco toda a noite a pensar, que raio de
mono haveria de dizer ao querubim que era? Queriam lá ver que ainda teria que
admitir face a face com o querubim que não lhe parecia que fosse um mono, de
espécie alguma…
Tinha que arranjar uma história perspicaz para arremessar ao querubim e o
deixar sem resposta, tal como o matreiro fizera. Para já tinha três dias para a inventar,
sujeitá-lo-ia à ausência a que ele o sujeitara. Bastava que fosse durante três dias à hora
de maior movimento e afluência, em que o querubim não se atrevesse a revelar-se em
conversa amena com um crente sem criar uma balbúrdia.
E assim foi. E ao quarto dia tinha já uma história para arreliar o querubim.
Entrou depois do almoço, à hora da sesta, nem uma mosca bulia na penumbra do
templo. O querubim demorou uns bons dez minutos a revelar-se, ficou porventura a
espreitar emboscado entre os seus semelhantes, só para criar a suspeita de que não se
revelaria. Depois foi-se aproximando, em três ou quatro voos, e por fim poisou no
degrau da soleira do altar.

- Hoje é mau dia para conversarmos, estou muito perturbado.

- Ai sim?... Porquê? Parece-me que não queres é saber que espécie de mono
és?

- Não é nada disso. Ouvi uma confissão que me perturbou muito.

- Uma confissão?... Então andas por aí, pelos confessionários, a ouvir as


confissões alheias? Parece-me muito feio.

- Não. Hoje em dia já poucos se confessam aos padres nos confessionários,


confiam pouco neles. Sentam-se em frente a um mono e confessam-se. Não percebi
ainda se o fazem por pensarem que os monos nãos os ouvem, o que seria o mesmo
que confessarem-se a si próprios. Mas os monos ouvem. Parece que não, mas ouvem.
Eu, pelo menos, sou um mono que ouço. E como sou querubim, sei que, mesmo que
os monos não ouçam, há sempre por aqui alguém que nos ouve a todos. E não
precisara de ouvir, nem tivéramos necessidade alguma de lhe confessar o que quer
que fosse, porque porventura já o sabia antes de nós. Bem, mas esta conversa é um
tédio para um gentio como tu, que também só aqui vens para falares contigo próprio.
Agora falas comigo, porque pensas que foste tu quem me inventou, para poderes falar
com alguém sobre tudo o que não revelarias a outrem.

- Estás enganado. Tenho mais certezas do que tu sobre esse assunto, o de saber
que não fui eu quem te inventou. E devo dizer-te que, se tivesse que inventar um
querubim para cavaquear, nunca inventaria um tão presunçoso e tão loquaz, preferiria
um que fosse mais sisudo e menos palrador, para ter eu mais direito à palavra. E
vamos lá a ver se não acabamos por concluir que foste tu quem me inventou a mim,
que és quem não tem por aqui ninguém que te possa sequer dar os bons dias ou as
boas noites. É isso, se calhar foste tu quem me inventou.

- Não vamos ficar a tarde toda a disputar quem inventou quem, porventura
fomos os dois inventados por um qualquer que não tinha mais ninguém com quem se
lamentar.
Vamos ao que interessa, que raio de mono pensas tu que sou, ou que
inventaste para eu ser? Na verdade, estou hoje tão perturbado, que nem me apetece
perder muito tempo com conversas, senão arrumar este assunto. Se não tens nada para
me dizer, vou cantar um bocado.

- Ao menos começa lá tu por despejar o saco, que confissão foi essa que assim
te perturbou?

- Ora… só me faltava essa hoje para me rir um bocado. Ainda há meio


instante me acusaste de espiar as confissões dos outros. E já me pedes que te revele a
confissão que tive o infortúnio de ouvir, como se fora uma velha alcoviteira. A
confissão é um segredo. Não sabias?
- Mas, pelo que me contas, tu ouves as confissões de todos, que nem te são
dirigidas…

- Como, de facto, não são dirigidas a ninguém, faço eu de contas que sou o
confessor. Se assim não fosse, ninguém tinha confessor. Nem os que se confessam
aos padres, pois eu bem os vejo, se não forem temas e assuntos que lhes despertem a
concupiscência, se se tratar apenas dos infortúnios de gente azarada que só necessitara
de um pouco de ânimo, até ressonam.

- Pois então eu vou contar uma história e dela deduzirás, ou não, conforme te
convier, que espécie de mono penso que és. Se não te interessar a história, posso
também atirar-te com um cântico, que sei ainda alguns, dos tempos em que
acompanhava a minha mãe às missas.

- Não, não! Conta lá a história. Tens cara de animar subitamente estes monos
todos se desatas a cantar e provocas uma debandada.

- A história, então.
Nunca conheci o meu pai, senão pelas histórias que a minha mãe contava dele.
Ausentou-se, ou teve que se ausentar para parte incerta ainda eu mal abrira os olhos,
mas isso é uma história muito comprida, que fica para outra altura, porque nada
adianta ao nosso assunto de saber que espécie de mono é cada um de nós. Só
interessaria para saber que espécie de mono era ele.

- Pois, mas há por aí muitos que dizem que a espécie de mono que cada um de
nós é decorre, em certa medida, ninguém sabe bem qual nem quanta, da espécie de
mono que foi o nosso pai.

- É como digo. És um querubim muito presunçoso, nunca poderia ter sido eu


quem te inventou. Não sabes ouvir uma história. Começo a contá-la e queres logo tu
transformá-la numa disputa. Agora calas-te e ouves a minha história.
Pois como não conheci o meu pai, a única certeza que sempre tive foi a de que
fui feito pela minha mãe.
Mas quando digo isto assim, é como se tu dissesses que foste feito por um
carvalho qualquer perdido numa floresta. E tu não chamas pai a um carvalho, chamas
pai a um mestre de talha matreiro, que aproveitava uns restos de uns cavacos para
fazer uns tantos querubins que sobejavam, para ficarem por aí perdidos sem lugar, de
um lado para o outro, a espiarem lamúrias e infortúnios alheios e a fazerem
malandrices.
Bem, então um dia perguntei à minha mãe:

- Mãe, quem é que me fez, assim tão excluído da sorte e da fortuna,


mergulhado na corrente deste rio, que nem sei aonde me vai lançar?

- E que idade tinhas, quando lhe perguntaste isso?

- Para aí uns doze…

- Mas eras já um menino muito perspicaz, inclinado para as paráfrases e


alegorias.
- Bem, esta é a forma como eu formulo agora a questão. Nessa altura deve ter
sido noutra qualquer.

- Ah…

- E agora vais deixar-me contar a história até ao fim, os comentários vai-os


assentando no rol para depois.
E então a minha mãe respondeu:

- Fui eu, meu filho, mais o teu pai. Mais eu do que o teu pai, ele foi mais o
autor da ideia, mas quem te fez medrar dentro da minha barriga fui eu.

- Como?

- Como? Sei lá eu como, meu filho. Só sei que te sentia medrar dentro da
minha barriga, cada dia pesavas mais, depois saíste para fora, continuaste a medrar, já
não pesavas cá dentro, mas pesavas fora, que era um peso mais penoso ainda de
suportar, sobretudo quando abrias boca a pedir paparoca. Como, meu filho, essas
coisas são assim e não mudam, as mães fazem os filhos, sem saberem nunca bem
como. Talvez saiba o teu pai, que foi quem teve a ideia, ou alguém que trabalha sem
que ninguém o veja.

Ora, meu querubinzinho, hás-de ir chamar pai, ou mãe, ao carvalho que te


pariu e perguntar-lhe como é que te fez. E qual foi a intervenção do mestre de talha
no assunto. E com esta história ficas a saber, se te convier, que espécie de mono
penso que és. E ainda me virás a chamar pai, como chamas ao mestre de talha, se o
carvalho te responder que fui eu o autor da ideia.

- És um mono muito presunçoso, tu. Não sei se volto a falar contigo nos
próximos dias. Vieste hoje aqui para me humilhares. Para um dia só, já foi demais.
Vou chorar um bocadinho, para trás de umas parras.
Raios, não tenho culpa de que não tenhas pai.

Francisco passou a mão com ternura na cabeça do querubim, beliscou-lhe as


bochechas e duas lágrimas brotaram-lhe, brevemente, nos cantos dos olhos.

- Perdoa-me, meu querubinzinho. Tens razão, por vezes sou um mono muito
mesquinho. Raios!... já reparaste que nunca tive, até agora, ninguém a quem me
confessar, senão estes monos que me ouvem tanto como a ti. Se vais chorar, eu
também vou. Não queria magoar-te, estávamos apenas a arreliarmo-nos um ao outro.
E o que queria dizer-te, com a minha história, é que não és mono algum. E é isso que
terás que me explicar, como é que um velho e ressequido cavaco de carvalho pode
gerar algo que não seja um mono. Tens que me falar mais desse mestre de talha, ou
de quem quer que tenha realizado essa magia.

- Ora. Devolves-me a questão que me atormenta desde que conheço os


homens, como é que a barriga de uma mulher pode gerar algo que não seja um mono.
E sem a intervenção de qualquer mestre de talha. O carvalho, por si só, não gera
senão monos, ou a matéria bruta com que os fazem.
- Por hoje chega, vejo que estás triste. Amanhã voltamos à matéria, para me
contares como era esse tal mestre de talha, como fez cada um destes monos e o que
fazem eles todos por aqui desde há quase trezentos anos.
Eu vou-te contando o que fazem os outros nonos todos lá fora, há bem menos
tempo, porque os monos que aqui vês entrar duram muito menos, são feitos de
matéria mais precária, alguns deles ainda os deves ter visto sepultar por debaixo
destas lajes frias.
Mas podes ter a certeza de que, tal como os vês aqui, mesmo quando parece
que se confessam a si próprios e nada escondem, são muito mais diferentes do que
pensas daquilo que são lá fora.
A primeira pessoa que qualquer mono quer iludir é ele próprio.
Tu, por exemplo, queres fazer-me crer que és diferente de todos os outros
monos que aqui jazem. E eu fico a pensar se não serão eles quem insiste em não ser
como tu.

Francisco não chegou a saber se o querubim ouviu as últimas palavras da sua


última alocução, porque, perdido e surpreendido já com o rebuscado e as artimanhas
do discorrer, nem reparou quando o rapazola se escapuliu. Quando tentou encará-lo
para avaliar o impacto da sua derradeira estocada, já não o viu.
Não tinha necessidade alguma de continuar a implicar com o pobre querubim,
Não tinha mais do que apaziguar-se com o seu ressentimento contra quem quer que
fosse que apanhasse a jeito para tomar como bode expiatório. Da próxima vez fariam
as pazes.
Que coisa complicada poderia ser um mono de carne e osso como ele poder
fazer as pazes com um querubim de carvalho? Os seu mundos só confluíam durante
uns breves momentos cada dia e, não fora a casualidade de escutar uma conversa
trivial entre um padre e um mestre de obras, nunca houvera distinguido aquele ladino
dos restantes querubins que se atravancavam pelos arcos e retábulos. O querubim
poderia alegar também que, não fora a casualidade de ser surpreendido e observado a
escapulir-se em voo picado entre dois cachos de uvas, jamais lhe ocorrera chegar à
fala com um mono de carne e osso já meio carcomido, com um aspecto tão
mesquinho.
Ora… é exactamente no ponto e no instante, ainda que ínfimo, em que o nosso
mundo conflui com o de qualquer outro que a paz se desvanece.
Que acontece ao manso cordeiro se o seu caminho o cruzar, por mero acaso e
durante um breve instante, com o do lobo? Ou à impávida e imóvel erva se o acaso
lhe levar às proximidades o caminho do manso cordeiro? Então pensará a erva que só
o lobo lhe poderá acudir.
A miséria alheia não tem qualquer finalidade, senão a de mitigar a
própria.

E ausentou-se de novo Francisco durante dois pares de dias, para cogitar, sem
a presença implicativa do querubim, no que faria com a matéria.
Não teria sido o seu ressentimento contra a sorte e o destino que fizera
despontar o querubim no seu mundo? Não seria essa a mera finalidade do querubim e
do seu destino, a de estar ali trezentos anos à espera que lhe aparecesse a talhe de
foice um desgraçado desapontado com o mundo, com todos e consigo próprio, para se
desagravar também da sorte que lhe coubera, de ficar vadio e sem lugar naquele
cárcere silencioso em que cada mono tinha o seu?
E se assim fora, que paz pudera haver entre um mono de carne e osso e um
querubim de carvalho, cujos destinos se cruzavam meramente por ressentimento?
Nem havia lobo pelas redondezas em que residisse a esperança de que saltasse de
súbito das sombras do matagal para acudir a quem quer que fosse, devorando o outro.
Tinha então que enfrentar o querubim, ou arranjar entendimento com ele. Para
já, o que havia para fazer era pôr o querubim a falar, destravar-lhe a língua.
E entre todas estas cogitações, só por acaso, ou por espontânea iluminação,
Francisco despertou para as suas obrigações inadiáveis e incontornáveis, mais uns
problemas sérios que não tinha meios para resolver e teriam que aguardar por melhor
conjunção dos astros. As contas da electricidade, da água, do gás, da mercearia e a
sua velha mãe que definhava imobilizada no leito e já nem tinha fôlego, nem ânimo,
para se queixar.
Aquele querubim poderia bem vir a ser a sua derradeira desgraça.
E como padecia de arrebates poéticos, Francisco abriu o seu velho caderno,
quase completamente preenchido com odes, sonetos, décimas e quadras soltas, tudo
alinhadinho em caligrafia de guarda livros, e escreveu:

Meu querubim, querubim…


vais ser o meu fim.
Porque vens assim,
junto de mim,
com o teu encanto,
verter o teu pranto?

Meu querubim… vil arqueiro!


o tiro, agora, foi certeiro,
de tal jeito
que me varou o peito.

Meu querubim, querubim..


vais ser o meu fim.
E para teu espanto,
o meu desencanto
desabará sobre ti primeiro,
do que sobre mim
o teu despeito.

E no momento seguinte já pensava que, eventualmente, o único e derradeiro


vestígio daquele episódio que passaria para a posteridade seria este desajeitado
arremedo poético, que ninguém conseguiria associar a coisa alguma na vida precária
de um homem que sobrevivera, ou se concluíra, em segredo, à custa de um querubim.
Ninguém entenderia.
Mas, voltando ao que interessava, que era o que relampejara na mente de
Francisco antes do poetar, passava-se então ao cálculo, às aritméticas e acrobacias
algébricas, porventura para distrair a mente em retóricos exercícios, porque, dos
parcos tostões que Francisco conseguira extorquir aos bolsos, era absolutamente
impossível deduzir os débitos que reunira sobre a mesa da cozinha, onde arrefecia já o
jantar da mãe. Como se dizia antigamente, era meter o Rossio na Betesga.
O que era necessário era paciência e dessa não havia quem mais padecesse,
fora-lhe de resto transmitia por sua mãe, de quem herdara também aquele hábito de
amontoar os tostões no tampo da mesa da cozinha, ao lado do rol das necessidades
incontornáveis, um cruzado para o pão, uma mão cheia deles para a manteiga, o resto
ficava para amanhã ou depois, que também eram dias, porventura melhores e mais
risonhos.
E à paciência acrescia agora o querubim. E pena era que não pudesse
escapulir-se do cárcere do seu templo, para levar o jantar à velha. A surpresa e o
encanto que seria, se o querubim lhe aparecesse com o tabuleiro, a canja de galinha a
fumegar, acompanhada por uns trinados de canto chão. Da enxovia que a tolhia havia
quase cinco anos, passaria num ápice ao céu, sem que o rito e o estertor da morte lhe
ensombrassem sequer o rosto impávido e sereno de quem se resignou e já não espera
mais.
E lá entrou então Francisco no quarto da mãe, silencioso como um gato. Havia
muito que entrava já na expectativa de ter que se confrontar com o inevitável. Não
fora ainda. Respirou profundamente, o suor frio que lhe encharcava a testa estancou.
Tudo o que haviam de dizer um ao outro ficara arrumado havia muito. Eram já só os
olhos que comunicavam. Sentou-a na cama, ajeitou as almofadas e, com gestos
concisos, serviu-lhe a canja à colherada. Sabia que para a mãe tanto fazia que fosse
canja ou arroz, papa de farinha ou simplesmente água, já perdera o paladar, se alguma
vez o tivera.
Nenhum deles era dado a manifestações exteriores de afecto. Os afectos
residem e contêm-se na alma, ao lado e vizinhos das agruras.
Sentou-se na borda da cama e leu em voz alta, durante pouco mais de meia
hora, até que a velha soçobrou ao sono. Só então percebeu que lera mecanicamente, já
não se recordava sequer de um palavra, aquele não era o livro que devia estar a ler
para a mãe, era o que estava a ler para si. Só lhe ocorreu dizer:

- Desculpa-me, mãe, ando muito distraído. Por causa de um querubim.

E disse-o porque a mãe já ronronava de mansinho e não ouviria. Mas das


profundezas do sono ainda o interpelou:

- Um querubim, rapaz? Onde foste desencantar uma coisa dessas?

- Não sei ainda se o desencantei, ou se me desencantou ele a mim.

E esta ficou já sem resposta, Francisco compôs a roupa da cama, desligou o


interruptor do candeeiro e saiu.
Recolheu-se no seu quarto, sentado à secretária. Hesitou ainda em reflectir um
pouco na vida, deixar correr as memórias em galopada, mas decidiu não pensar em
nada, ficar meramente ali sentado, a tamborilar com os dedos no tampo.
Se pensasse muito na vida, ainda era bem capaz de, no dia seguinte, pregar
com um pontapé no rabo do querubim.
Pensava apenas que se alguém perdesse, por tédio, o tempo a escrever a
história deste episódio da sua vida, neste pé ficaria o leitor ansioso por saber o que
ficara para trás.
Pois tenham paciência. Sabia lá ele o que ficara para trás na vida de um
querubim com trezentos anos, desterrado e encarcerado com quase uma centena de
monos mudos e surdos, até encontrar um desgraçado com cara de parvo e disposição
nata para escutar disparates.
O travo amargo da vida encarcerada de Francisco ficava por agora circunscrito
ao episódio de uma noite trivial. E a um desabafo poético sem jeito nem cânone.
E três dias depois, mal entrou na igreja e se sentou num banco no extremo da
nave, junto à porta da entrada, ou de saída, o sacristão no altar-mor a bulir nas suas
tarefas de alinhar os candelabros, ou desalinhá-los para ter pretexto para ocupar mais
uma meia hora, desceu logo em voo súbito o querubim, das alturas do coro, para lhe
dizer num sussurro:

- Não fales muito alto. Aquele anda de olho em mim. Cá para mim até já sabe
que ando por aqui, mas faz de contas que não vê nada, para me apanhar com a boca
na botija.
- Ora.. deixa-te de peças. Sabes bem que não existes senão na minha cabeça,
como haveria o sacristão de desconfiar do que quer que fosse? Eu não o conheço
senão daqui e nunca lhe dirigi a palavra.

- Então, hoje vens com essa… Passaste dois dias a magicar na maneira de te
conciliares com um querubim que sabes bem que existe, tanto dentro, como fora da
tua cabeça. Como existe fora da tua cabeça, não te consegues livrar dele. Vens então
agora com essa, como toda a gente, tudo o que existe fora da tua cabeça e te
importuna é porque reside exclusivamente dentro dela, é criação tua, que podes
extinguir num ápice, como o mesmo desempeno com que o criaste. Ou podes atribuir-
lhe o destino que te for mais oportuno.
Pode bem ser até que assim seja, mas vais ter que te confrontar com o
infortúnio de, cada vez que aqui entrares, eu te surpreender com uma novidade que a
tua laboriosa cabeça não previu, na direcção que atribuiu ao meu destino, ou ao teu na
tua relação comigo.

- Diz-me então, rapazola presunçoso, se existes fora da minha cabeça, quem te


enviou para me atormentares?

- E quem te enviou, a ti? Já te interrogaste sobre a hipótese de toda esta


assembleia de monos estáticos e silenciosas de madeira que nos rodeiam conceberem
a ideia de que os monos de carne e osso, buliçosos e quezilentos, que todos os dias
irrompem por aqui a perturbarem a santificada serenidade deste retiro, não são senão
produtos das suas cabeças?
Vais aprender qualquer coisa, hoje, com este rapazola presunçoso. Tu vives lá
fora, num universo desconexo e paradoxal porventura, que desconheço porque fiquei
aqui encarcerado, mas que adivinho no rito azedo que se acentua no teu rosto, cada
dia mais azedo do que no anterior. E que deduzo de algumas confissões que vou por
aqui ouvindo, embora faça pouca fé na sua sinceridade.
E eu vivo aqui, diferente e despojado de lugar, entre estes monos todos.
Porque pensas que fazem de contas que eu nem existo, não me ouvem, não me
dirigem a palavra, nem se desviam sequer um pouco quando tento aconchegar-me
entre eles nas noites gélidas de Inverno.

- Porquê? Diz lá.

- É mesmo necessário que te diga tudo, com todo o detalhe?


Porque para cada um deles eu não existo, senão nas suas cabeças. Eles levam
sobre nós uma vantagem. São muito mais convictos. Podes dar-lhes pontapés, beliscá-
los, escarrar-lhes na cara. Podes mesmo confidenciar-lhes as maiores
monstruosidades. Nem por isso verás neles sequer uma palpitação, para eles tudo se
passou na sua cabeça.
Se te conseguisses transformar num mono de madeira, sacudirias das costas,
pelo menos, a maior carga dos teus infortúnios.

- Pois.. talvez… Mas entretanto tenho que te aturar.

- Não tens que me aturar. Tens por aqui em redor um ror de igrejas como esta
onde podes realizar o que tenhas imaginado quando resolveste começar a vir todos os
dias a esta. Mas continuas a vir a esta e não a outra porque sabes que cá estou, para te
aturar a ti.
- E tu, porque não te escondes no meio desta barafunda de arremedos dos
defeitos da obra do criador e me procuras sempre que aqui entro, para me aturares?

- Já podias ter percebido. Porque uma desatenção aritmética do meu pai me


deixou desterrado sem lugar dentro deste sepulcro.

- E porque me escolheste a mim, entre tantos que aqui entram.

- Bem… A ideia que tenho do sepulcro que se estende para lá destas paredes,
é a de um cárcere onde todos vivem desterrados e sem lugar. Mas tu pareceste-me o
mais desterrado de todos os que aqui se refugiam. E nota que é bem possível que cada
mono de madeira que aqui ficou encarcerado tenha escolhido um mono de carne e
osso com o mesmo fim e pelas mesmas razões. Se um dia vires outro querubim em
cavaqueira com outro parvo como tu, fecha os olhos e faz de contas que tudo não se
passou senão na tua cabeça.
Não faças como o sacristão, que não consegue chegar à fala com ninguém
aqui dentro, seja de madeira ou de carne e osso, e ocupa o seu tempo a fingir que
alinha os castiçais e as sacras nos altares, só para me espiar, a ver se me apanha para
descarregar o seu despeito. Porventura, ainda o descarregará sobre ti também. É
muito traiçoeiro.

- E, ao fazeres esse juízo, não estarás tu a descarregar o teu despeito sobre o


pobre do sacristão? Não será este mundo uma roda de monos, uns de madeira, outros
de carne e osso, outros das mais variadas substâncias e matérias, cada um a
descarregar o seu despeito no vizinho, que se vai logo com uma paulada ou um
pontapé ao seguinte, por aí fora, até que a coisa volta ao ponto onde começou para
recomeçar o giro?

- Essa filosofice está muito bem congeminada. Só lhe falta o essencial. E


porque não te interrogas sobre a hipótese de o giro se ter iniciado no teu despeito, no
teu pontapé ou na tua paulada? E, se assim fora, cada giro voltava ao ponto onde
começara e tu reiniciá-lo-ias. Para acabar com a coisa, bastaria que saísses da roda,
deixando vazio o teu lugar nela.

- Está bem, vai então brincar um bocado por aí, ou atira para o ar uma
cantoria, enquanto eu fico a chorar um quarto de hora. Hoje é a minha vez.

- Choramos os dois, então. Ensino-te uma cantoria para chorar. Mas tu cantas
baixinho, só para ti, tens cara de nem para chorar saberes cantar.

- Canta então tu e chora por mim. Se desatasse a chorar haverias de ver que
sou tão desafinado a chorar, quanto a cantar. A minha mãe nunca me ensinou a
chorar. Quando adivinhava que ia começar, dizia: - Canta, filho, canta. Quem canta,
seus males espanta.
Ficava logo sem vontade, nem para chorar, nem para cantar.

- Devia, pelo menos, ensinar-te a cantar…

- Ela quis, eu é que não gosto de cantar. Se desatasse a cantar, arranjaria mais
um problema.

- Um problema?...
- Nem mais, um problema. Não seria senão mais uma forma de me convencer
que os males da minha vida se espantariam e se afastariam em debandada, só por eu
cantar. Acabava a cantoria, olhava à volta e eles lá continuariam a apertar o cerco.
Para problemas, a acrescer àqueles com que a vida me atormenta, já me basta
um querubim presunçoso.

- Lá te sais outra vez com essa! Não sou nenhum querubim presunçoso. Sou o
teu querubim, quero dizer, o querubim que te calhou em sorte, na justa medida do que
tu precisas e desejas, ou mereces, para poderes desabafar as tuas agruras. Se sou
presunçoso, ou se tal te pareço, é só o modo de tu dizeres a ti próprio que te saiu um
querubim que te devolve os coices que, por despeito, tu vens para aqui atirar-me.
Pensas tu que alguém me ensinou a chorar? Ou a cantar? A um querubim
ninguém ensina nada. Todos os que aqui aparecem andam à espera que um querubim,
ou outro mono qualquer, lhes ensine alguma coisa. Mas, na verdade, o que eles
esperam é poder ensinar qualquer coisa a um querubim.
Que pretendes tu ensinar-me, por despeito de nunca teres aprendido nem a
chorar, nem a cantar?
Porventura, o que me pretenderias ensinar era a ser um parvo como tu,
desencantado com a vida e incapaz de a virar do avesso. Ora, isso eu já sei, não
preciso de ninguém para me ensinar.
Tanto eu como tu só teríamos uma solução para virarmos as nossas vidas do
avesso. Era tornarmo-nos nuns monos de madeira quedos como estes que nos
rodeiam, pregados nos seus lugares, que ninguém disputa.
E, afinal, parece-me que sou eu quem te continua a ensinar alguma coisa.

- Pois… mas o que me ensinas não tem utilidade alguma. De entre nós, não
serás tu quem poderia pregar-se aí num lugar qualquer, nem que fosse a ornamentar o
remate de uma sanefa, quedo e calado, sem importunar alguém? Não o fazes porque
não queres. Eu não o faço porque não posso, tenho a minha mãe à espera do jantar.

- Eu não o faço porque tenho frio.

- Tens frio?...

- Pois… frio. Todos estes monos têm frio. Como o aguentam? Não sei… esse
é o mistério que não decifrei. Se o tivera decifrado, nunca chegarias a conhecer um
querubim de verdade. Nem eu um parvo como tu.

- Nunca pensara que o frio pudera condicionar assim, tão dramaticamente, a


vida de alguém, quanto mais de um mono de madeira. Li uma vez um conto de um
russo sobre a matéria, mas quando o li era só um conto muito bem congeminado. O
frio que devem sofrer os russos… E o frio que eu tenho sofrido, noites de Inverno a
frio, gelado até ao tutano dos ossos… Mas quando pensava nisso parecia-me que o
frio dimanava da alma, o mal estava na solidão.
E agora vem-me à ideia o drama que deve ser para quem quer que seja, de
carne e osso, de madeira ou de pedra, as noites gélidas de trezentos invernos.
Perdoa-me meu querubim, tenho sido muito velhaco contigo. Queres fazer as
pazes?

- Ora… Como é que um homem como tu poderá alguma vez fazer as pazes
com um querubim como eu? Para tal fora preciso que as fizeras contigo próprio.
E se assim fosse?... E depois?... Depois tínhamos feito as pazes, nada nos
restava para fazer.
Só continuamos a comparecer um perante o outro, porque pensamos que um
dia viremos a fazer as pazes. Não tu comigo, ou eu contigo, porque nem temos
matéria para guerras, mas cada um consigo próprio.
Não faças as pazes comigo agora. Se as fizeres, nunca mais deixarás de viver
em guerra contigo.

- Pois… não há hipótese. Tens mesmo pendor para os sermões. Imagino a


irritação destes monos todos, contigo a pregar por aí, porque assim e porque assado,
cosido e estofado, ninguém deve ter paciência. Só lhes deve acrescer o fio e agravar
as cãibras.
E de mim que sabes tu? Nunca foste sequer a minha casa. Eu conheço a tua e
toda a gente que cá mora.

- Ora. Não conheces ninguém que aqui mora. Conheces de ouvir falar, como
eu conheço a tua mãe. Nunca te vi falar com ninguém, nem sequer com o padre ou o
sacristão. De resto, ninguém te liga, senão eu. Tudo o que sabes sobre a minha casa
fui eu quem te contou.
Sabes lá tu se é verdade. Eu nem acredito que tu tenhas mãe. Inventaste-a,
como me inventaste a mim, para teres um pretexto para regressares a casa todos os
dias. Se não tivesses esse pretexto, ficavas por aqui o dia todo, a olhar para o tecto,
até morrias de fome. Se não me tivesses inventado a mim, ficavas por casa a olhar
para a tua mãe.
O que tu sabes é que eu não me posso deslocar a tua casa. Imagina um
querubim a esvoaçar pelas ruas, com a passarada toda atrás em cortejo e os gatos à
carreira para ver qual seria o primeiro a chegar ao lugar onde pousasse. Os monos da
tua laia não falariam noutra coisa durante um par de semanas.
Está assim estabelecido. Vós podeis invadir a nossa casa, como se alguém vos
convidara. Os santos e os querubins, serafins e outros anjos dos céus não podem
irromper pela vossa.
Portanto vós sois meramente aquilo que nos vindes aqui contar. Perante isto, o
mais simples, para nós, é fingir que vós nem contastes nada, nós inventámos e
contámos tudo.
Aí tens. É o que pensa de vós cada um dos monos que aqui mora. É por isso
que não falam, só ouvem, como se monologaram consigo próprios.

- Portanto, não fazemos as pazes…

- Não. Só farás as pazes comigo, quando as fizeres contigo. Se assim não fora,
ficaria eu em vantagem, porque continuarei a fazer-te a guerra.
O que subsiste e o que se devanece na história da vida de um homem
E lá regressou Francisco a casa, cogitando que não havia remédio, tinha que
manter aquele corrosivo jogo de canelada e bofetão com um querubim. E era para
isso que um querubim irrompia de súbito na vida de um homem, já tão macerado pela
vida…
Mas quando entrou em casa teve uma sensação imediata de alívio, aquele era
um raro dia em que folgava da rotina entediante da sua vida solitária com a mãe. O
aroma do estufado exalava da cozinha invadindo toda a casa. Joana viera.
Como sempre preparara o jantar, já tinha a avó lavada e inundada em água de
colónia, a mesa estava posta, a louça lavada. Era assim a Joana, mas só raramente,
quando vinha.

- Porque nunca falei da Joana ao querubim? – pensou Francisco.

Não falaria sobre a matéria, por ora. Ficava de reserva para surpreender o
presunçoso, quando viesse ao caso. Até então, ele tinha mãe, o querubim tivera pai. A
coisa estava equilibrada. Mas como iria reagir o querubim quando soubesse que ele
tinha uma coisa que um mono de madeira, mesmo irrequieto e buliçoso como aquele,
nunca pudera ter, uma filha. Mesmo uma filha assim, que entrava na sua vida em
breves e inesperados episódios, quando calhava. Nunca partia de Francisco a
iniciativa de um encontro, estava assim ajustado. Quando a filha queria, ou lhe
calhasse, aparecia. Era um consolo aquela harmonia.
Era o único lenitivo na vida de Francisco. Da mãe de Joana perdera o rasto.
Erradicara todos os tons tenebrosos da memória e aferrolhara apenas os raros
episódios de luminoso alento. A mãe de Joana era uma fotografia a sépia amarelecida
pelo tempo, como aquelas dos bisavós que conhecemos dos episódios de bonomia que
os nossos pais escolheram para nos contar. Com Joana nunca se falava sobre a mãe,
ficara também assim ajustado.
Joana era então quase um querubim, menos implicativo. Bastava-lhe não ir à
igreja, ou ir pela hora de maior buliço, para não ter que aturar o querubim. A Joana
bastava-lhe não aparecer durante dois meses, ou três, para não ter que aturar o pai.

- Que vai fazer com a avó, pai? – interrogou de súbito Joana, enquanto lhe
servia a sopa e lhe passava as mãos pelos cabelos revoltos.

- Sei lá, filha... sei lá... Que farás tu com o teu pai, quando chegar à idade e ao
estado da tua avó?

- Está a desconversar, pai. Sabe bem que deixarei tudo para ficar a seu lado.
- E que faço eu, senão isso? Que hei-de fazer, senão isso?

- Ora... sabe bem ao que me refiro. Podia arranjar um lar para a avó. Um bom
lar. Sentir-se-ia mais acompanhada.

- Então será isso que farás comigo. Para me arranjares companhia, claro. Não.
A tua avó morrerá em sua casa, tem esse direito, na companhia do seu filho, que é um
sujeito maçador, mas é a que prefere, para além da tua, de que só esporadicamente
usufrui.
Não faço isto para que um dia te sintas obrigada a velares pelo teu pai até
sucumbir. Faço-o porque é a minha mãe e, para além de ti, mais ausente, não tenho
mais ninguém.
Podes até dizer que só mantenho a tua avó aqui porque sou eu quem precisa
dela.

- Ora, pai. Esqueça o que eu disse. Tem todo o direito à companhia da avó, se
é assim que quer. E ela à sua. Só penso que por vezes deve ser para si uma carga
pesada.

- Não é carga alguma. Tremo é de pensar que um dia, em breve, entrarei no


seu quarto e a morte a levou sem me avisar.

- A morte nunca avisa. Pode levar-me a mim sem avisar ninguém.


Vamos falar de outras coisas.

- Pois. Como, por exemplo…


Quando acaba essa tua solidão, também?

- Não padeço de solidão alguma. Vivo no meio de muita gente.

- É por vezes nessas circunstâncias que se vive mais solitário. Bem… sabes
muito bem do que falo.

- Claro que sei. Não quer que eu comece agora, que tudo estava acordado
entre nós, a falar da minha mãe… Ou de outra companhia qualquer. Quando eu quiser
companhia, arranjo-a. De resto, sei que terei sempre a sua.

- Está bem… arruma-se também essa matéria. Passamos a outra. Os resultados


das análises, que fizeste a semana passada.

- Arruma-se também essa matéria. Quando e se tiver novidades, logo lhe digo.
Porque me interroga tanto sobre a minha vida e não fala um pouco sobre si?

- A conversa começou por tua iniciativa, a falares tu sobre mim e sobre a tua
avó. Quando um burro fala, os outros abaixam as orelhas. Que queres tu que te diga
sobre mim? Continua tudo na mesma, excepto que arranjei um querubim, para falar
sobre mim. E sobre ele.

- Um querubim?...

- Nem mais, um querubim.


- Um querubim. E onde posso arranjar eu uma coisa dessas? Resolvia o
problema da solidão que inventou para a minha vida.

- Não se arranjam. Aparecem.

- Um querubim. Então apareceu-lhe um querubim. É costume aparecerem


coisas assim às pessoas solitárias, que não arranjam ninguém para desabafar.

- Pois é. Há um mês atrás, dar-te-ia essa resposta.

- Um mês antes de lhe aparecer um querubim, um mafarrico, ou outra ilusão


qualquer, qualquer louco solitário daria, em todos os casos, a mesma resposta. É uma
verdade de Monsieur de La Palisse.

- Uma vez que és enfermeira num hospital de malucos, num manicómio, ou


como lhe queiras chamar, já vês doidos por todo o lado. Até no teu pai.

- Não vejo doidos em lado algum, muito menos no manicómio onde trabalho.
Penso até, por vezes, que, com o seu génio e a sua astúcia, o pai faz por lá muita falta.
Aqueles que vão parar ao manicómio são os que resolveram dar solução à sua solidão
e ao seu sofrimento. Vivem em paz, embora pareça por vezes que foram lá metidos
pela força.
Mas tem que me apresentar esse querubim. Aonde mora?

- Eu encontro-o numa igreja, mas é bem possível que more aqui, na minha
cabeça. Ainda não sei. É de madeira. Mas fala, canta e voa. Talvez… talvez um dia te
leve até ele. Se ele quiser. É muito arredio. E muito dissimulado.

- Depois da minha avó, de mim talvez, de vez em quando, é a única


companhia que concebo para si, um querubim. Um de madeira, mas que fala, canta e
voa. Que pretenderá um sujeito como vossemecê, meu pai, de quem quer que seja,
senão de um querubim? Que pretenderia da minha mãe?

- Lá vens tu com a tua mãe… Já nos entendemos sobre essa matéria. Nada
pretendi da tua mãe, mais do que ela pretendeu de mim. Eu beneficiei, porque fiquei
contigo. Ela ficou sem nada, com a ilusão, porventura, de que ficou com tudo. Esta
matéria já estava arrumada. Vai-me custar mais adormecer, hoje. Por isso e por
castigo, se a tua avó já está a dormir, vamos jogar qualquer coisa, para entrarmos na
madrugada sem pesadelos. Dormes hoje por cá.

- Está bem, pai. Fico a fazer penitência. O que vai ser hoje?

- Xadrez, para dar para muito tempo.

Os jogos de xadrez entre Francisco e Joana eram intermináveis, alguns


ficavam suspensos no tabuleiro, dentro do armário da sala, por vezes dois ou três
meses, durante os intervalos entre as vindas de Joana. Quando Francisco retirou
naquela noite o tabuleiro de dentro do armário e o colocou sobre a mesa, Joana, sem
se sentar sequer, moveu a rainha e rematou com ar matreiro, como se anunciasse que
o jantar estava servido:

- Xeque-mate.
- Ora essa... xeque-mate?

- Nem mais. Xeque-mate. Há quanto tempo lhe dura esse delírio do querubim?

- Não é delírio algum. Há cerca de duas semanas que nos conhecemos.

- Ora aí está. Não é delírio nenhum... Há quase três meses que o pai não me
ganha um jogo, perde-os todos sem chegar a perceber como. Parece, de resto, que já
tanto se lhe faz ganhar ou perder.

- Os nossos jogos foram sempre mais um pretexto para cavaquear. Só um


pretexto.

- Pois, mas quem esgotava os argumentos esforçava-se para, pelo menos,


ganhar um jogo.

- Eu não esgotei os meus argumentos. Ainda hás de comer muita broa, para
me conseguires esgotar.

- Talvez não. Só que desde há três meses que os aplica em disputas com um
querubim. Por acaso, o seu querubim não saberá jogar xadrez?

- Deixa em paz o meu querubim.

- Se eu tivesse a felicidade de conhecer um querubim, o seu, se calhasse, a


última coisa que faria era disputar com ele. Mas parece-me que vossemecê, meu pai,
não consegue fazer outra coisa. Vossemecê é quem não o deixa em paz, quer-me
parecer.

- E aonde foste buscar essa ideia, de que os meus colóquios com o querubim
não são senão disputas?

- Bem, pai, para além da avó, ninguém o conhece melhor do que eu. Vamos
então a outro jogo, mas deixe lá o querubim em paz por umas horas e concentre-se, a
ver se desfaz o enguiço e ganha um.

- Está bem. Então vou mostrar-te como se disputa com uma rapariga
presunçosa num tabuleiro de xadrez. Jogas com as brancas.

Assim é que estavam bem, Francisco e Joana, numa santificada harmonia,


calados, cada um concentrado no seu jogo. A intimidade adensava-se e os
pensamentos e cogitações transmitiam-se, de mente para mente, sem necessidade do
auxílio do transporte das palavras. Fora assim também com a sua mãe, pensou
Francisco.
E passadas duas horas e três ginjinhas, já Francisco levava três jogos ganhos e
Joana acumulava alguma irritação, que nem conseguia dissimular. E talvez por causa
da irritação, emocionalmente enfraquecida, duas lágrimas romperam-lhe pelo canto
dos olhos.

- Então...? Agora choras quando perdes um jogo?


- Não perdi um jogo, já perdi três... E não é por essa razão que choro. É
solidão. Estou muito doente. Preciso tanto de alguém, pai... Nem que seja de um
sujeito implicativo como vossemecê.

- O melhor aço também verga minha filha. Conta lá.

- Mas vossemecê anda agora ocupado com um querubim...

- Consigo ocupar-me com vinte querubins, de uma assentada. Digamos que,


por agora, fico ocupado só com dois. Vais ficar por aqui uns dias. Depois de amanhã,
levo-te comigo para conheceres o meu querubim. Tenho que o preparar amanhã, é
muito desconfiado e arredio. Diz-me então, o que tens?

- Por enquanto gostava de deixar o assunto assim. Estou muito doente, é só


isso.

- Fica assim, então. Vamos dormir, se conseguirmos.

Joana mantivera sempre o seu quarto em casa do pai, embora pouco o


frequentasse desde que tinha a sua própria casa. Francisco nunca conseguira
compreender por que razão Joana e a mãe nunca houveram conseguido edificar uma
relação de intimidade. Parecia-lhe por vezes que a mãe repelira a filha quando o
repelira a ele, mas pensava também que Joana fizera a sua própria escolha, mau grado
não deixasse de o arreliar consecutivamente, atribuindo-lhe a responsabilidade pelo
afastamento da mãe.
Na verdade era um dilema que Francisco arrumara havia muitos anos, Joana
medrara a seu lado e na ausência da mãe, que era já um episódio mais relevante para a
filha do que para ele. A mãe de Joana era como o pai de Francisco. A Francisco não
fizera falta, fizera-a a sua mãe. Era como o carvalho de que brotara o cavaco em que
um mestre de talha lavrara o querubim. Que afinidade tinha o querubim com um
carvalho? Tinha-a com um mestre de talha.
O que se desvanecera na vida de Francisco...
O que subsistira? Joana e a sua avó entrevada. Pouco mais.

Vou mostrar-te algo que nunca poderás ter

E ficou assim estabelecido, Joana ficaria provisoriamente recolhida em casa


do pai, ou seja, da avó. Regressaria. E ia conhecer um querubim.
Mais um dilema para Francisco. Que expectativa poderia ter um querubim
confrontado com a perspectiva de conhecer Joana?
Que expectativa poderia ter Joana confrontada com a perspectiva de conhecer
um querubim?
A situação impunha muita ponderação e muito tacto. Alguma astúcia,
também.
E se entrasse na Igreja acompanhado pela filha, com o querubim sentado no
espaldar do banco em frente daquele em que se sentariam, a cantar, a chorar, ou
lançar dixotes, e Joana dissesse surpreendida?

- Pai, vossemecê não está bem. Não vejo nem há aqui querubim algum.

E se partisse do querubim a iniciativa?

- Meu caro amigo, que vais mais inventar? Não está aqui ninguém senão tu e
eu, não tens sequer uma filha, porventura nem uma mãe. O que me andas a esconder é
que a única pessoa que permaneceu na tua vida foi o teu pai.

Qualquer destes desfechos tinha que estar previsto e ponderado E Francisco


tinha que delinear a jogada que se seguiria. Era um jogo de xadrez, jogado contra dois
adversários, que poderiam mesmo nem se apresentar em consonância.
E quando entrou, na manhã seguinte, no templo deserto, em que nem sequer o
sacristão deambulava nas suas mesquinhas tarefas, irrompeu logo o querubim a
voltear em vôo planado em espiral, circuncêntrica e convergente para a cabeça de
Francisco. Quando atingiu a proximidade que permitia que Francisco ouvisse um
sussurro, disse:

- Esta noite não dormiste.

- Como sabes?

- Vê-se na tua cara.

- Não, não dormi. Fui atormentado por muitos fantasmas.

- Fantasmas? Não te basta, para fantasias, um querubim, agora ainda


desenterras uns fantasmas.

- Fantasmas, nem mais. Por aqui, neste mundo de monos de madeira e de


pedra, nem há, nem aparecem fantasmas?

- Claro que aparecem. Tu és um deles.

- Pois amanhã vou trazer-te e apresentar-te outro, para me ajudar a moer-te os


miolos.

- Já te disse que não tenho miolos, nem preciso deles para deduzir que os teus
de pouco te servem. Mas não me digas que andas já por aí a falar de mim a toda a
gente. Um dia destes irrompe pela igreja o povo todo da cidade em romaria, para
conhecer um querubim irrequieto.
Tinhas prometido não contar a ninguém.
- Não, fica descansado. Vou trazer-te só uma rapariga que está muito doente e
anda muito solitária.

- Uma rapariga… Mas eu não curo ninguém e, quanto a solidões, não há


maior do que a minha.

- Ora, é isso mesmo. Mitigam mutuamente a solidão um do outro.

- Mas esse era já o teu papel nesta história. Porque hás-de agora arranjar uma
rapariga para complicar tudo?

- É a minha filha, chama-se Joana.

- Uma filha. Tens então uma filha, para além de uma mãe. Não a terás
inventado, também? Joana… Havia uma, foi santa, espanhola, que tinha uns arrebates
de colóquio com Jesus, para mitigar a sua solidão. Ouvi contar a história muitas
vezes, quando ainda havia catequese a sério.
Não, estou já a confundir as histórias todas. Essa era Teresa, tinha um
companheiro nos delírios que era João. Joana era uma princesa, que ficou
enclausurada num convento, como eu aqui.
Bem, e essa tua filha foste tu só quem a fez, de um cavaco velho, ou tiveste só
a ideia como o teu pai? Como foi? Um dia destes ainda me apareces com duas mães, a
tua e a dela.

- O resto da história fica para amanhã. Ela conta-te. Agora canta um


bocadinho, pode ser até que eu adormeça. Dormi muito pouco esta noite.

- Vê-se. Pareces-me hoje mais um fantasma do que em qualquer outro dia.


Vou cantar então. Mas escondo-me ali, por detrás daquele arco, não apareça por aí
alguém. Se aparecer, finges tu que és quem canta.
Uma filha… Como posso eu ter uma filha?

- Não podes. Os querubins não podem ter filhos.

- Não faz mal. Roubo-te a tua.

O querubim volteou pelos cumes da nave à gargalhada, sumiu-se e toda a


igreja se encheu de trinados celestiais.
Francisco adormeceu em dó maior, não percebeu se durante um instante, se
durante umas horas. Acordou a desabar do banco para as lajes do chão, com o
sacristão à sua frente com ar de surpresa e desconfiança.

- O senhor estava a cantar?

- Não… estava a sonhar…

- Pois traz o sonho muito afinado. Porque não se inscreve no coro da


irmandade? Temos falta de cantores, hoje em dia ninguém liga a essas coisas.
Ou será que anda por aí algum ladino a cantar às escondidas?...

- Não vejo por aqui mais ninguém.


- Pois claro que não viu, nem ouviu. Estava a dormir…

- Pois estava. E o caro amigo não estaria, por acaso, também a sonhar
acordado?... Continuo a não ouvir cantoria alguma.

- Calou-se quando entrei. Se o apanho um dia destes, racho-o pelo meio.

- Ena, homem! Porque é que há de rachar quem quer que seja? E, afinal, está a
falar de quem?

- De um anjolas que anda por aí, a mangar comigo. Desses de madeira, como
aqueles daquele magote. Eu alinho os castiçais, as jarras, as sacras dos altares e ele
vem por detrás e troca tudo. Até me esconde as chaves, por vezes. Passa a vida nisso.

- Ah… Então tem por aí um anjolas de madeira, que lhe desalinha a tralha.
Não será desculpa sua, para ter pretexto para ocupar o tempo a voltar a arrumá-la. Se
assim não fosse, o que faria por aqui?

- Quando o apanhar, eu digo-lhe o pretexto…

- E porque não fala com ele? Poderia até deixar-lhe por aí uma malga com
sopas de leite, podia ser que ele viesse de mansinho a ronronar. É assim que se
apanham os gatos… Sei lá?...
O que vossemecê precisa é de companhia. Se assim não fosse, porque viria
acordar-me, para me expor essa trapalhada?

- Eu não o acordei. O senhor caiu do banco abaixo. Até se podia ter aleijado.
O senhor pensa que eu ando maluco. Mas faça-me o obséquio de se entreter a
contar os bonecos todos que estão por aí espalhados, para ir passando o tempo, em
vez de dormir, que não foi para isso que foram feitas as igrejas.
Depois, quando um dia eu lhe mostrar um anjolas de madeira quebrado em
quatro ou cinco bocados, haverá de me dizer de onde saiu, se não couber no rol.

- Se calhar, já tirou daí algum e o tem guardado, para fazer essa parte.
Vossemecê tem raiva a querubins.

- Não. Tenho raiva a isto tudo.

- Então porque é sacristão?

- Foi o que me calhou na vida. Viver os dias aqui sepultado, entre gente morta
há milhares ou centenas de anos. E ainda por cima anda por aí um mais vivo do que
eu, a cantar e a gargalhar às escondidas e a mangar comigo. Se o apanho, racho-o.
Ao senhor calhou-lhe o quê na vida?

- Nada. Nada… Uma mãe entrevada, uma filha doente, um sacristão com
maus fígados, capaz de descarregar o fel sobre um querubim indefeso.
Nada mais. Uma vez por outra, um raio de sol a romper as nuvens.

- Vá para o diabo que o carregue. As igrejas não são albergues aonde venha
dormitar quem não tem cama. Agora, reze ou desande.
- Vou rezar, homem. Pela sua salvação… e pela minha. E pela de um
querubim que, se não se acautela, acaba esmigalhado pela fúria de um sacristão.

O sacristão afastou-se a resmorder umas pragas, a olhar de soslaio com a


expressão de quem pensa: - Tens a mania que és esperto, tu, também. Espera para
veres…
E Francisco ficou a pensar no paradoxo daquela conjuntura. A única pessoa,
para além dele, que podia atestar que por ali andava um querubim sem poiso certo era
o sacristão, que não ansiava por outra coisa senão acabar com ele. Provavelmente até
Joana viria alegar que não via querubim algum, tudo não passava de invenção sua e
mesquinhez de um sacristão.
Amanhã se veria.
Nem durante todo esse dia, nem durante a noite, Francisco viu Joana, que um
dia por semana trabalhava até tarde. Voltou à rotina, preparou a mãe, serviu-lhe o
jantar, sobras que Joana deixara da véspera, já preparadas com todo o esmero, e
puxava a cadeira para a beira da cama, para iniciar o ritual da leitura que lançava a
pobre mulher no sono, quando ela o interpelou.

- Porque veio a Joana?

- Sei lá… Vem sempre que lhe apetece.

- Mas agora vai ficar, já percebi.

- Vai, mãe. Vai ficar. Está muito doente. E muito só…

- Nunca devia ter daqui saído, filho. Sempre o disse. Já somos tão poucos e
tão sós, os três. O que tem ela?

- Não sei, mãe. Não me disse. Tem o génio da mãe dela, instável, irrequieta,
casmurra, ninguém sabe, em cada momento, o que fará no seguinte. E é também
muito orgulhosa, ou soberba, se quiser.

- Tinha-te prometido não falar mais sobre esse assunto. Afinal, és tu quem o
traz aqui agora.

- Não falava da mãe da Joana, falava da Joana. Bem, mas eu prometi-lhe


desde menino que não falaria sobre o meu pai, mas, sempre que se falou dele, foi a
mãe quem trouxe o assunto ao borralho.
Mas já que enveredámos por assuntos proibidos, que doença tinha o meu pai?

- Nunca me disse. Pouco falávamos desde que saiu. Mandava dinheiro e


deixou-te o que lhe sobrou. Mas morreu mal, muito mal.
Nunca te pedi que esquecesses o teu pai. Só te pedi que não falasses sobre ele
comigo. Pela razão de que nada te poderia dizer sobre ele, mais do que disse. Mal o
conhecia, era um sujeito muito metido com os seus botões. Eu era muito faladora e
brincalhona e isso incomodava-o.
Era muito parecido contigo. Saiu ele e ficaste tu. Então fiquei assim, só e
azeda. Cada um é como é. Lê então, meu filho. É para o que servem as leituras, para
podermos evitar falar.
Francisco passou com ternura a mão pelos cabelos da mãe, compondo-lhe o
aspecto. Também este conciso gesto, cheio de significado ritual, quase tão ríspido
quanto litúrgico, o arremedara de sua mãe, de outros tempos.

- Vossemecê não é azeda, mãe, é uma mulher triste. Por vezes penso que
nunca foi, fez essa parte para me fazer sentir a falta do meu pai, sem todavia falar
dele. Talvez a mãe fosse uma mulher cheia de alegria, a voltear em bailaricos e
romarias, que teve que se tornar numa mulher triste. Sei lá…

- Lê, meu filho, lê.

E Francisco então leu, leu interminavelmente até adormecer no cadeirão, não


chegou a saber se antes ou depois de a própria mãe soçobrar ao sono. E também não
soube quando deixou de ler e já treslia, ou seja, já pronunciava não o que jazia escrito
mas o que lhe faltava a ele escrever. E quando acordou tinha o livro aberto na mesma
página em que começara. Tinha escrito um livro, mas já nem se lembrava do tema,
nem de qualquer episódio ou personagem. E do cadeirão à beira do leito da mãe
passou tropegamente para o seu, no seu quarto, e só acordou quando Joana lhe abriu
as portadas da janela, por onde irrompeu um Sol radioso.

- Pai. Tem o café quente. Levante-se, que temos um querubim à nossa espera.

- Pois… Mas tu só esperas poder confirmar que eu inventei um querubim.

- Temo que assim seja. Não imagina, porém, como espero estar enganada.

Francisco ficou durante alguns instantes perscrutando o rosto da filha. Estava


profundamente transtornado. Uma orla macilenta envolvia-lhe as órbitas e os olhos
negros haviam perdido o brilho que irradiavam. Tinha agora um ar sereno, quase
conformado, que contrastava com a energia buliçosa com que irrompera pela vida
fora.

- Não vais mesmo contar-me o que tens…

- Não, pai. O que adiantaria isso? O que tiver que ser será, quer o pai saiba ou
não. Não tem o poder para mudar nada. A não ser que exista mesmo um querubim.
Bem… mesmo que não exista, basta-me que exista o meu pai, capaz de inventar um.

Francisco levantou-se, vestiu-se com minúcia, repetindo gestos mecânicos


quotidianos, foi à sala beber o café matinal, fumou calmamente um cigarro e disse.

- Vamos então. Tens que ter cuidado. Se houver por lá mais gente e ele
aparecer, finges que não o vês. Sobretudo se por lá estiver o sacristão. É um sujeito
muito traiçoeiro, ansioso por fazer mal a quem quer que seja. Nunca o viu, mas
também sabe do querubim.

E entraram os dois na igreja, quase furtivamente, não sabiam bem porquê,


subiram pelo corredor central da nave e sentaram-se num banco, lado a lado e
silenciosos, junto da capela do Santíssimo, onde jazia a imagem da Virgem da
Assunção, que quase esmagara o pé do ensamblador do mestre que esculpira o
querubim. O templo estava vazio, como uma tumba gelada.
Do querubim, nem rasto. Não se manifestava. E assim ficaram um quarto de
hora.

- Bem, pai, há por aqui uns centos de querubins, todos quedos e impávidos, só
cá falta aquele que vossemecê inventou para entabular as conversas que não quis ter
com mais alguém. Deve ser um qualquer. O que interessa é que este sítio é muito
bonito, não lhe perdoo só agora me trazer cá. Quanto ao resto, se o pai escolheu um
querubim para entabular conversa, eu posso escolher o meu.

Mas subitamente os dois sentiram um breve e quase imperceptível agitar do ar


por detrás das suas costas, viraram-se com ansiedade e estava um querubim, de perna
traçada, sentado entre os dois no espaldar do banco.

- Ah!… - exclamou Joana.

- E, I, O, U. Joaninha avoa, avoa, que o teu pai está em Lisboa. Quero dizer,
na igreja de São Roque, sentado mesmo ao teu lado.
E hás de estar a pensar que o teu pai não inventou afinal querubim algum,
como eu estou surpreendido, porque não inventou uma filha.
Se calhar, o teu pai inventou-nos aos dois, não está aqui senão ele, a falar ora
pelo querubim, ora pela filha.

- E porque não inventámos nós, eu e tu, o meu pai? Se assim fora, podíamos
agora dispensá-lo e edificar a nossa própria intimidade.

- Eu bem te dizia que não precisava de uma filha, roubava-te a tua…

- Está bem. O querubim rouba-me a filha e ela rouba-me o querubim. Saíram-


me dois belos trastes, os dois. Vou para um banco lá do fundo, ficam os dois à
vontade nas vossas intimidades. Mas tem cuidado com o sacristão. Não me tens senão
a mim para te proteger da sua raiva e despeito.

- Pois é. Mas, por isso mesmo, tens que prometer-me que não me trazes mais
ninguém. Não quero conhecer mais monos como vós. Fazemos os três uma sociedade,
secreta e confidencial, não entra mais ninguém.

Francisco recolheu-se no fundo da nave, à entrada, como se ficasse de atalaia.


Ficou a observar a mímica dos outros dois, o querubim irrequieto e perturbado com a
nova interlocutora, a esvoaçar de um lado para o outro, em piruetas e quedas picadas,
a cabeça de Joana a rodopiar para acompanhar o constante movimento. Uma vez por
outras ouviram-se breves e abafadas gargalhadas, por vezes ficava o ambiente tenso,
por um momento o querubim pareceu amuar, sentado de braços cruzados de costas
para a rapariga.
Passado um quarto de hora Francisco foi subindo, devagar, para dar aos dois
tempo para rematarem os seus assuntos.

- E pronto. Ficaram então a conhecer-se, a Joana virá quando lhe apetecer. Eu


também. Cada um por sua vez.

- Só continuo a falar contigo porque me trouxeste a tua filha. Tu és um


incómodo, sempre a guerreares comigo. De tal modo que eu também não consigo
deixar de guerrear contigo.
Para compensar, tenho agora a Joana para gargalhar e passar uns momentos de
bonomia a cavaquear.
Vou cantar um bocado, enquanto saís.

O querubim foi esconder-se entre as ramagens de um arco qualquer, num voo


fulminante que nenhum dos outros conseguiu acompanhar. Então os seus trinados
foram subindo de tom, até ecoarem por todo o templo. Entrou então, não se soube de
onde, o sacristão. Veio direito a eles.

- Hoje era a menina quem cantava…

- Era sim. Gosto muito de cantar.

- Pois. E também tem a voz muito idêntica à deste cavalheiro. Presumo que
seja seu pai.

- Presume muito bem. Quando é necessário, fazemos os dois sós um coro de


um cento de vozes. Eu presumo que o senhor seja o sacristão. Meu pai fala muito de
si, das cantorias que só vossemecê ouve e de algumas coisas que só vossemecê vê.

- Mas se a menina pensa passar a vir aqui todos os dias, rezar ou dormitar,
como o seu pai, fico de ouvido atento para não perder uma só nota emanada pela sua
divina garganta. E de olho à espreita, para ver se reza ou se dormita.

- Assim seja. Mas o senhor, por acaso, já reparou que os castiçais do altar-mor
estão todos tombados? Não seria melhor começar a pôr a tralha em ordem?

O sacristão deu meia volta para olhar para o altar, enquanto os dois se
escapuliam pelo corredor lateral da nave. Quando olharam para trás, o sacristão, rubro
de raiva, perscrutava as alturas da abóbada.

- Grande tonto, pai, que é este homem. Como poderá alguém encontrar aqui,
entre tanto arrebique, um querubim que se queira esconder?

- O que fizeram os dois, tu e o querubim, foi apenas uma temeridade leviana.


E fico eu cheio de temor, porque o querubim há de acabar às mãos daquele.

- Deixe lá isso, pai, que aquele querubim sobrevive aqui há quase três séculos,
porventura à raiva de muitos sacristães.

Saíram os dois para a rua. O Sol golpeou-lhes o rosto e ficaram


momentaneamente estáticos, até que os olhos se afeiçoassem à luz.

- Vale mais nem falarmos sobre a matéria, pai. Sobre o que se passou hoje.
Nem tentarmos decifrar quem inventou quem, se eu um pai e um querubim, se o pai
uma filha e um querubim, se o querubim dois tontos que mitiguem a sua solidão de
três séculos.
O que me interessa, pai, é que agora que vou morrer me apaixonei por um
querubim. Pode rir-se, rebolar pelo chão a gargalhar, mas não preciso de mais nada,
porque me apaixonei por um querubim. Bem, preciso de si, porque foi vossemecê
quem o inventou, ou descobriu. Talvez nem lá estivesse, mas vossemecê fez-me
descobri-lo, ou inventá-lo, vai dar no mesmo.
- Vais morrer?...

- Talvez, pai. Mas não importa. Tenho agora um querubim. Para onde eu for,
ele vai comigo.

- E eu? Eu fico com quem?

- O pai inventa outro. Ou descobre, vai dar no mesmo.

- E uma filha? Não posso inventar uma filha.

- Pode inventar a mãe dela. Foi o que fez a sua mãe, pai. Inventou o seu pai.

- Já tinha saudades de passar uns dias com a tua impertinência. Então a tua avó
inventou o meu pai. Eu nunca tive pai, a tua avó concebeu do Espírito Santo, ou de
um querubim qualquer.

- Pois olhe que é uma pena, que as mulheres não possam conceber de um
querubim, ou coisa assim. Os pais inventavam-se depois para os filhos, que é a quem
fazem falta.

- Às vezes. O meu só me fez falta porque a tua avó o inventou, como dizes. Se
assim não fosse pensaria até que nem tinha. E a tua mãe? Há quanto tempo a não vês?
Nem podes dizer que fui eu quem a inventou, foste tu. Eu tratei de esquecer aquela,
esbater a memória e aplicar-lhe um filtro, para que pudéssemos inventar uma só com
as cores que te conviessem. A tua mãe é uma fotografia, que eu realizei em estúdio há
vinte e tantos anos.

- Fiquemos com essa, então. Fiquemos com a fotografia. E, a propósito de


fotografia, não pensa voltar a trabalhar? Porque não tira uma fotografia ao querubim,
encavalitado no meu ombro, sussurrando-me arrebates de paixão ao ouvido?

- Não penso por ora voltar a trabalhar, o que juntei vai-me chegando para me
manter na companhia da tua avó e da tua agora, também. E o meu pai deixou-me
algum, em que nunca toquei, por precaução. É o único vestígio material e concreto
que me ficou do meu pai.
E quanto à fotografia do querubim está fora de questão. Imagina só que eu
disparava a máquina, o diafragma abria-se, o querubim entrava pela objectiva dentro
e impressionava a película, encavalitado no teu ombro, ainda por cima, para certificar
o momento e o lugar. Não deixaria então de ser um querubim?
A única coisa em que poderíamos acreditar, depois, era nos sussuurros, que a
película é inapta para captivar.

- Se continuamos com esta conversa, vou ficar derradeiramente convencida de


que inventei o meu pai, para ele me inventar um querubim, para não morrer só.

E Joana riu-se então despreocupadamente, enquanto volteava pelo passeio, de


braços abertos, imitando o voo do querubim. Subitamente parou, dobrou-se pelo
abdómen com as mãos agarrando o peito, crispadas como se foram garras, que o
quisessem rasgar para deixar o ar entrar. Tossia convulsivamente. Depois perdeu o
equilíbrio, ainda se conseguiu encostar a uma parede, deixou-se escorregar com as
espáduas amparadas, até ficar sentada na calçada. Do arroxeado da convulsão, as suas
faces evoluíam para um tom pálido como o de uma parede caiada. Algumas gotas de
suor irrompiam da fronte e das têmporas.
Ninguém parou ou suspendeu a sua azáfama. Francisco ficou acocorado em
frente da filha, agarrando-lhe e esfregando-lhe as mãos geladas.

- Vou levar-te ao hospital.

Francisco levantava-se já para chamar um táxi.

- Não, pai, leve-me para casa. Isto já passa. Ajude-me só a levantar-me. Eu já


estou habituada. Daqui a uma hora temos o almoço pronto. Não foi nada.

- Chega, filha, tens que me dizer o que tens. Não podemos continuar assim.
Tem que se fazer qualquer coisa.

- Já lhe disse que é assim que fica. Que pode o pai fazer? O milagre que podia
fazer, já o fez.

Francisco começava a perder o alento face à situação, sabia que com a filha
não valia a pena medir forças, o que decidira e porquê ficaria no segredo da sua
intimidade, sempre assim fora.
Francisco interrogava-se sobre se não teria sido ele quem suscitara aquele
espírito e temperamento na filha. Sempre lhe dera todo o afecto, entregara-se
integralmente à sua mãe e à sua filha. Mas dera-lhe também toda a liberdade e
autonomia. Por vezes martirizava-o a ideia de que a dádiva da liberdade poderia velar
simplesmente o desdém, ou a indiferença.
Mas não havia já nada a fazer.

- Como diz a tua avó, nunca devias ter saído lá de casa.

- Se continua com essa conversa, obriga-me a sair outra vez.

- Pronto. Não se fala mais nisso. Vamos, ampara-te no meu braço e vamos
devagarinho, que o dia ainda vai menino e a tua avó ficou tratada.

Mas Joana recompôs-se num instante. Quando entrou em casa estava já


esfuziante de alegria, com as faces rubras, como se nada acontecera. Como uma
formiga diligente, deitou-se ao trabalho, embrulhada com os tachos e as panelas.
Durante três quartos de hora Francisco ficou serenamente sentado na sala a
cogitar. À sua frente, tinha, numa exuberante moldura em cabedal repuxado, uma
fotografia em pose de seu pai, apoiado numa balaustrada de mármore, no patamar da
escadaria de uma mansão rural. Sempre considerara aquela fotografia uma aberração,
pois a figura mesquinha de homem enfezado, aperreado por abotoaduras, contrastava
de forma dilacerante com a rústica e sólida monumentalidade do ambiente.
Muitas vezes pensara que a sua mãe desenterrara o traste num bazar qualquer,
para dar suporte à imagem que construíra do seu pai.
Francisco guardara dele uma breve e diluída memória. A memória não
abarcava a figura, a fisionomia ou o aspecto. Apenas se recordava de alguém lhe
pegar ao colo com intenso afecto mas maior inibição, uns olhos tímidos e
perscrutadores interrogando os de sua mãe, como se lhe pedisse consentimento para ir
mais além. Depois o desalento.
A ideia que guardara de seu pai não era a de um homem mesquinho, mas
profundamente infeliz.
Mas tudo se lhe apresentava tão estilhaçado, que não conseguia já reunir os
fragmentos. Como num museu, a peça recomposta e envernizada estava ali, bem
encaixada, para não se escapulir, numa moldura ornamentada com parras e eras,
escudetes e volutas.
Em toda a casa, polvilhada de fotografias, de pais, avós, tias, sós, em efígie,
ou à molhada em grupos de alinhamentos sobrepostos, não existia uma única
fotografia que reunisse a sua mãe ao seu pai, ou que reunisse os três. Do pai subsistira
apenas aquele registo singular.
Até havia, em destaque, duas ou três fotografias com Francisco, Joana e a sua
mãe, uma delas com a avó. Esta última estava no quarto de Joana, outra no quarto da
avó, a outra Francisco nunca se recordava em que parede ou móvel jazia.
Joana... A expectativa em relação ao estado de Joana começava a atormenta-lo
de forma inesperada. Joana fora sempre para Francisco um galeão poderoso,
aprestado para enfrentar todas as tormentas. Mas sabia que, no interior do casco
sólido como uma fortaleza, residiam fraquezas inesperadas. Continuaria contudo a
vogar garbosamente, com a quilha rasgando as ondas, até que a tempestade e as
lâminas dos baixios o desmantelassem.
Francisco não conseguia deixar de associar o súbito claudicar de Joana à
enfermidade que fizera soçobrar precocemente seu pai. Mas eram matérias
inacessíveis, pois sabia tanto de Joana como soubera, concretamente, das causas da
morte de seu pai.
O querubim... Talvez que a intimidade de Joana com o querubim fosse a única
via de acesso que lhe restava para sondar a real gravidade do estado da filha. Teria
que ser cauteloso, roubar uma uva aqui outra acolá, de modo a que só no fim alguém
pudesse concluir que a vindima estava concluída. Tinha que ir sondando,
cautelosamente, e esperar que os afectos entre a rapariga e o querubim se fossem
estreitando.
E estava nestas cogitações, quando, subitamente, despertou para a paradoxal e
imprevisível conclusão de tudo. Tal como matreiramente anunciara, o querubim
roubara-lhe a filha.
E entrou Joana nesse passo, como para anunciar que o tempo de reflexão de
Francisco se concluíra.

- Vamos à sopa. Tem vossa excelência, senhor marquês, o almoço na mesa.


Isso é que é vida...

- Pois. Mas agora basta. Se voltas para casa porque estás doente, é para
repousares. E o teu trabalho?

- Vou trabalhar hoje à tarde, volto a meio da noite. Mas vou pedir dispensa
por uns dias, pelo menos.

- Vamos então. Espero que chegues, logo. A nossa conversa sobre ti não ficou
ainda arrumada.

- Apetece-me muito que espere por mim, logo, para me dar as boas noites. Há
quanto tempo não tenho ninguém à minha espera?... Mas a nossa conversa sobre mim
ficou arrumada.
Há quanto tempo não tem o pai ninguém para esperar?...
- Estou sempre à espera de alguém, não sei bem de quem. A maioria das
vezes, dos dias e das noites, não vem ninguém. Mas eu continuo à espera.
Valeu a pena esperar. Primeiro apareceu um querubim, agora apareceste tu.
Infelizmente. Pelas razões que apareceste, preferia eu ficar à espera.

- Já sei que pensa que apareci, simplesmente, porque estou doente. Não é
verdade. Apareceria, estivesse ou não doente.
O que eu estava era farta de esperar. Não aparecia ninguém.
Agora apareceu-me o meu pai, juntamente com um querubim.

- Bem, mas durante todo este tempo tiveste pelo menos um namorado... um
amigo... enfim...

- Tive vários. Um hoje, outro amanhã, outro para o mês que vem... Sabe como
é. Coisas circunstanciais, sem consistência alguma. O mesmo, ou pior do que estar só.
E só agora me aparece um querubim...

- É como um príncipe encantado, nunca se sabe quando aparecerá, ou se


aparecerá, para despertar a princesa.

- Não, pai. Desde menina que sempre me horrorizaram as histórias dos


príncipes encantados.
Pois estava a princesa no seu encanto, a dormir no seu esquife de cristal, a
sonhar porventura, na expectativa da eternidade, nem o tempo, nem a vida a
corromperiam. E veio o príncipe, beijou-a e quebrou o encanto. Quer dizer,
desencantou-a.
Ela acordou para a vida, deixou os seus sonhos em suspenso, mais dez, ou
menos dez anos morrerá, como todos os mortais, após parir muitos filhos.
Os príncipes encantados são os desencantos das princesas.
O querubim não é príncipe encantado algum, não vai desencantar ninguém,
oxalá não o desencante eu, ou Vossemecê.

- Ah... Vens cheia de prosápia literária e de filosofices...

- Em querubins e encantos o meu mestre foi Vossemecê, pai. Em desencantos


também. Mas não vamos começar agora uma disputa ou altercação. Vossemecê vai
comer e eu para o trabalho. Espere por mim. Talvez arranjemos matéria para uma
cigarrada antes das boas noites.
Como e a quem se revela um querubim

Após engolir o almoço, com fastio, pois perdera subitamente o apetite,


Francisco foi atolar-se no quarto, que lhe servira durante toda a vida de escritório e
gabinete, abriu um monumental armário em mogno que viera da herança de uma tia e
começou a retirar as caixas onde jaziam, há alguns anos, os seus equipamentos de
trabalho.
Foi desencafuando as máquinas, os tripés, as objectivas, limpando e montando
tudo com um rigor quase ritual. Há quanto tempo não manipulava aquela tralha?
Francisco tentou recordar-se do último trabalho que realizara. Dos episódios,
dos pormenores, dos actores, das vozes, dos diálogos, dos monólogos que mantinha
sempre consigo, à margem mas a propósito de tudo. Recordava-se de velhos de olhar
vazio, como se olhassem já só para dentro, para coisas e gente que já ninguém mais
via, pois residiam na memória. Recordava-se de se perder a pensar como haveria a
objectiva de uma máquina fotográfica de registar as imagens arquivadas na memória
de um ancião. Explorava expressões e mãos. A expressão das mãos parecera-lhe, em
dada altura, o meio mais eficaz para aceder às imagens que a memória invocava.
Fotografara centenas de mãos.
E então surpreendeu-se a pensar como poderia explorar, através da objectiva,
as imagens soltas de trezentos anos da vida de um querubim, prisioneiro do espaço
circunscrito de uma igreja.
Poderia sequer surpreender e registar na película de celulóide a imagem do
querubim, encavalitado no ombro de Joana, a segredar-lhe promessas aos ouvidos?
Tomou fôlego, arrumou no estojo uma máquina com o respectivo tripé e
esgueirou-se rua acima, em direcção à igreja. Estava vazia.
Montou o dispositivo no corredor lateral do lado esquerdo da nave, junto ao
lugar onde tinha surpreendido o querubim pela primeira vez. Ajustou as lentes, a
abertura, o tempo de exposição. A luz era difusa, mas com algum artefício realizaria
imagens impressionantes. Disparou algumas vezes, em direcção a alguns pormenores.
Depois sentou-se à espera.
E estava assim na modorra da expectativa, cogitando sobre se o querubim se
revelaria ou não após ter visto aquele aparato todo, quando irrompeu da sacristia o
sacristão. Vinha com ar matreiro.

- Então, caro senhor, hoje nem vem rezar nem dormitar, vem tirar o retrato à
Senhora da Piedade, da Conceição, ou ao pobre do sacristão?

- Vinha tirar retratos a vários destes preciosismos e arrebiques, que vossemecê


cuida com tanto esmero, polir ali, alinhar acolá, espanejar mais adiante. Mas, já que
vem a talhe de foice, não quer ter a fineza de se perfilar ali naquele canto, com aquela
belíssima coluna em jaspe verde por detrás, para não faltar no repertório dos santos
que povoam esta sagrada casa? Para mais, será o único que poderá escolher a pose e a
expressão com que ficará no retrato.

- E porque não? E que expressão e que pose quer que componha?

- Assim uma de sujeito distraído, que nem se apercebe do que se passa por
detrás e por de cima de si.

E o sacristão, que era matreiro, nem por isso era muito rápido na dedução. E
foi-se perfilar um metro à frente da coluna, de frente mas com a cabeça voltada a três
quartos, com ar de quem fizera parte daquela composição há mais de dois séculos. E
nessa altura já o querubim pairava um pouco por detrás e por cima do cocuruto da sua
calvície, batendo ao de leve as asas, para se imobilizar suspenso. Uma obra prima, se
a película de celulóide fosse apta para captivar a circunstância. Francisco enquadrou
com todo o rigor e disparou.
E já nem quis saber de mais nada, nem do sacristão nem do querubim, que
encontraria por lá no dia seguinte, arrumou atabalhoadamente a tralha e esgueirou-se.
Quando reentrou em casa, foi fazer uma sumária visita à mãe, para confirmar
que nada lhe faltava, e encafuou-se na única divisão da casa que conservava
aferrolhada, interior, que lhe servira desde a juventude de câmara escura para as
revelações. Passadas duas horas já tinha as provas suspensas do estendal onde ficavam
a secar. Depois de inspeccionar com detalhe o que ficaria registado, exclamou
ruborizado pela excitação:

- Apanhei-te!

Francisco deixou os aprestos todos ali mesmo, ao lado do estendal, preparados


para outras súbitas incursões, aferrolhou a porta e foi para a cozinha preparar o jantar,
para a mãe e para si, que serviria ainda de ceia para a filha.
Cumpriu com ar absorto os rituais da rotina e sentou-se na sala a fumar e a
pensar.
Ora, que um querubim se lhe houvesse revelado, era aceitável, poderia sempre
presumir-se que o inventara. Que se revelasse a Joana, era ainda tolerável, bastava
congeminar a idéia de que um pai é capaz de transpor para a imaginação da filha um
ser imaginário que inventou. Mas que um querubim se revele à película de celulóide
através da objectiva de uma máquina fotográfica... bem, a coisa requer outros
parâmetros de ponderação...
E agora? Assim sendo, até o sacristão o poderia surpreender e caçar em
qualquer ratoeira. A coisa parecia negra.
Até então todos jogavam apenas um jogo ambíguo envolvido em astúcias e
alusões, na presunção de que um querubim pudera ter sido inventado
simultaneamente e em conjunção tácita, por um idiota solitário, por sua filha
desencantada com o mundo e por um sacristão malévolo, na expectativa de
descarregar a sua ira sobre quem quer que fosse que não lhe pudera dar réplica. No
início de tudo ficava um episódio com uma verosimilhança incontornável, um arco
em talha cheio de arrebiques a pingar sobre a pedra da soleira. Fora daí que tudo
partira.
Era certo que o sacristão ouvia cantorias, nas circunstâncias em que os outros
as ouviam. Mas uma cantoria não é necessariamente um querubim. Era certo que
alguém baralhava e derrubava as alfaias que o sacristão alinhava com tanto esmero.
Mas não seria ele próprio, ou Francisco para o arreliar, ou para dar consistência à
presença de um querubim inventado?
Era certa muita coisa, de que ninguém podia deduzir, como de condição
necessária e suficiente, um querubim.
Mas uma máquina fotográfica não corrobora a invenção de um querubim.
Joana chegaria em breve. Revelar-lhe-ia a novidade?
Logo pensamos no burro, logo tropeçamos na albarda, soe dizer-se. Francisco
já não teve tempo para congeminar a resposta à interpelação que lançara aos botões de
seu colete. Ouviu a chave girar, a porta a gemer nos gonzos, passos exaustos, o arfar
sibilante e um sussurro.

- Pai?...

- Senta-te, filha. Vou trazer-te o jantar.

Joana entrou na sala de ombros descaídos como se carregasse o peso inteiro do


universo, pálida, estirou-se no sofá e ficou por alguns instantes de olhar vazio, a
respirar fundo em golfadas espaçadas.

- Oh! Minha filha... que posso fazer por ti?

- Trazer-me o jantar. Não foi o que disse?

Francisco suspirou, nada havia a fazer. Dirigiu-se à cozinha e preparou o


tabuleiro. Aconchegou-o no regaço da rapariga e passou-lhe lentamente as mãos pelo
rosto. Estava gelada.

- Porque me fazes isto, filha?

- Não lhe quero mal algum, pai. Que quer que lhe diga, que vossemecê não
veja? Estou doente, mais nada.
Amanhã, de manhã, vou ver o nosso querubim. Que mais pode fazer por mim?

Joana comeu lentamente, como quem cumpre uma obrigação, com uma
expressão em que era evidente o fastio. Seguidamente acendeu um cigarro o que a fez
tossicar até atingir quase a apoplexia. Apagou-o em meio.

- Vai descansar. Amanhã de manhã irás ver o teu querubim. Eu estarei por lá,
discretamente e afastado, sem me intrometer.

- Boa noite, meu pai.

- Boa noite. Dorme bem. E sonha, mulher, sonha. Acabe hoje ou amanhã a
vida, a melhor coisa que dela levamos são os sonhos.

- Não, pai. Os sonhos ficam por cá, a acompanhar e a decompor-se com o


cadáver. Disso eu tenho a certeza.

- Que sabes tu disso? Boa noite.

Francisco ficou quase toda a noite acordado, a ouvir a tosse seca e arranhada
da filha, sem nada fazer, senão pensar, pensar, pensar. Pensar em nada e em tudo,
num curso deambulante e labiríntico, que retornava recalcitrantemente aos mesmos
temas, às mesmas imagens, às mesmas interrogações, sempre sem resposta.
Que seria feito dos nossos sonhos, quando a vida se extinguisse? Que sonhos
animariam o sono de um querubim durante mais de duzentos anos? Ou fora
simplesmente o querubim o sonho de alguém, cuja vida se extinguira há muito, que
perdurara todavia pelo seu sonho?
Que sonhos, ou pesadelos, agitavam as noites de Joana? Que sonhos poderia
ter uma rapariga doente, convencida de que se extinguiria em breve?
E Francisco já nem sabia se pensava ou se sonhava, se dormia ou permanecia
em vigília, mas não deixava de ouvir a tosse de Joana e o ressonar da mãe longínquo.
E adormeceu então profundamente quando os alvores do dia rompante já se
insinuavam na janela, para acordar alagado em suor e a arfar, no meio de um
pesadelo que não conseguiu reconstituir. Durara talvez uma breve meia hora, mas
pareceu-lhe que sonhara a vida inteira. Pensou então que talvez nem tivesse acordado
e que aquela sufocante sensação fizesse ainda parte do sonho.
Alguma vez teria acordado, desde que irrompera do ventre de sua mãe? Não
teria sido tudo nada senão um sonho? Não teria meramente sonhado tudo, a mãe, o
pai, a filha, o querubim, o sacristão, o padre e o mestre de obras? Não teria começado
aí a sua vida, nesse episódio em que se lhe revelara um querubim? Não teria sonhado
tudo o que ficara para trás, para atribuir contexto à revelação de um querubim?
Ergueu-se bruscamente, fez alguns movimentos bruscos para reactivar a
circulação, dirigiu-se decididamente ao improvisado estúdio, abriu a porta e observou
durante uns minutos a fotografia revelada na véspera.

- Deixa-te de devaneios – pensou.

E depois de se vestir e compor, entrou no quarto da mãe, abriu as janelas e,


com gestos concisos e movimentos quase mecanizados, que reprimiam um afecto
todavia emanente, serviu-lhe a refeição matinal, compôs-lhe a roupa do leito, os
cabelos, cumpriu enfim todos os rituais quotidianos que, nas interpelações com que a
consciência o interpelava, lhe pareciam mais servir para o pacificar consigo próprio
do que contribuir para confortar a vida sem horizontes definidos da anciã.

- A Joana?

- Dorme ainda, mãe. Chegou ontem muito cansada.

- Que podemos fazer por ela, meu filho?

- Pouco... ou nada. Aquilo que ela nos deixar fazer. A mãe sabe como é.

- Sei, filho... sei. Sou tua mãe. Talvez inventar-lhe um sonho, uma ilusão...

- Ela já inventou um.

- Não terás sido tu, por acaso, quem o inventou.

- Não, mãe. Eu inventei um, ela outro. E a minha mãe, não inventa outro?

- Já inventei todos os que consegui inventar. Enterrei-os bem fundo, para não
me atormentarem.
- Minha mãe... minha mãe. Agüente-se, que precisamos todos ainda de si. Da
sua presença difusa a presidir a tudo. Como se cumpríssemos um destino ou
rompêssemos um trilho que a mãe traçou há muito.

- Foi sempre o meu papel neste teatro. O de cada um me atribuir a autoria do


seu próprio destino.
E o meu, quem o traçou?

- Talvez o meu pai, que vossemecê inventou... talvez eu... sei lá... Mas
agüente-se, mãe, agüente-se.

- Agüentar-me-ei. Enquanto tiver forças para puxar o ar para dentro do peito.


Vou à igreja, demoro duas horas.

- Essa tua mania de descrente que vai à igreja...

Francisco foi recolher a máquina fotográfica que utilizar na véspera, aplicou-


lhe a objectiva que determinara para a função que lhe destinara para aquela manhã e
saiu.
Quando entrou na igreja, sentou-se logo à entrada, no fundo da nave, num
lugar penumbrento mergulhado em sombras. Pelas vidraças das frestas e janelas
irrompia uma luz densa, avermelhada ainda, do Sol a despontar das neblinas matinais,
que repousava cintilante nos dourados das talhas e no polimento dos mármores.
O querubim irrompeu logo de lugar esconso e indefinido, irrequieto, como se
ansiasse há muito por romper o tédio e a solidão.

- Hoje vens tu... que desilusão. Começas a tornar-te maçador.

- Pois. Mas venho para estar só, a pensar. A Joana vem daqui a pouco. Tem
paciência e espera.

- O que mais tenho é paciência.

Sumiu-se num vôo rápido.


Joana chegou passada uma boa hora. Ignorou-o, subiu pela nave e foi sentar-se
num lugar banhado pelo Sol, na primeira fila de bancos, na coxia central, bem visível,
como se reclamasse a atenção do querubim. O ladino desceu em volteios em espiral,
lentamente, até lhe poisar no ombro. Joana ficou imóvel e expectante, como se
escutasse algo que lhe segredava.
A luz que sobre eles jorrava parecia emanar das portas escancaradas do
paraíso. Com uma regulação eficaz do tempo de exposição, realizaria um registo
fotográfico memorável. Francisco regulou a máquina, aproveitou uns instantes de
distracção, quando Joana se colocara de perfil para olhar de frente o querubim, e
disparou. O estalido ecoou pela nave, quase como um tiro abafado de pistola,
sobressaltou-lhes momentaneamente a atenção e intimidade, olharam em redor e
passaram à frente.
Francisco esgueirou-se, sem dar nas vistas. Quase correu até casa. Passou
brevemente pelo quarto da mãe, que dormia, beijou-a na testa e foi aferrolhar-se no
estúdio. Sentiu-se afogueado, como nos velhos tempos. Passada uma hora, as
primeiras provas pendiam do estendal. Fechou a porta e guardou as observações para
a tarde.
Joana chegou uns minutos depois. Vinha com o rosto inundado de rubor, a
expressão aberta, irradiando uma alegria discreta, quase matreira. Deu duas palmadas
afectuosas na face do pai.

- Afinal, pai, não foi o querubim que lhe roubou a filha, fui eu que lhe roubei
o querubim.

- Ninguém me roubou nada, minha filha. Mas eu furtei-vos aos dois um


instante, que te mostrarei logo à noite. Vou preparar o almoço. Senta-te e repousa um
pouco.

- Furtou-nos o quê?

- Logo verás.

Depois do almoço, Francisco aguardou que o ambiente serenasse, a filha na


sala a ler um livro velho, a mãe na cama a balbuciar murmúrios, talvez a rezar, e foi
de novo encerrar-se no estúdio.
Observou de relance a fotografia. Perfeita. A filha de costas sentada num
banco, o rosto virado quase de perfil, o querubim aninhado no seu ombro esquerdo,
de frente, com a expressão de quem atirara uma graçola inesperada e aguardava com
simulada indiferença pelo efeito que produziria.
Subitamente sobressaltou-se. Havia mais qualquer coisa. Foi buscar uma lente
e esquadrinhou a fotografia. Junto à ombrera do arco da Capela das Relíquias, quase
imperceptível, espreitava a cabeça do sacristão, os olhos perscrutadores fixos em
Joana, ouvido à escuta.
Não era possível. A máquina andava a pregar-lhe umas partidas. Como
poderia o sacristão ter-se dissimulado?
Dissimular-se dele e de Joana era possível. Bastaria que estivesse por lá
escondido desde manhã. Ou que se tivesse escondido quando Francisco entrou.
Mas como poderia o sacristão ter-se dissimulado do querubim? Não era
aceitável que o querubim deixasse, por um instante, de seguir todos os seus passos e
movimentos. Porventura já lhe adivinharia, até, em cada momento as intenções.
Francisco escapuliu-se de casa, sem que alguém notasse, dirigiu-se para a
igreja. Entrou e ficou de pé, no meio da nave, à espera. Com o olhar varreu e
inspeccionou todos os recantos.
O sacristão entrou na abside por uma porta lateral, como se aguardasse a sua
chegada. Aproximou-se sem pressas, como se o fizesse casualmente.

- Então, caro Senhor, a sua filha perdeu uns parafusos... Com a barafunda que
vai por aí... Coitada.

- Ai sim?... E de que deduz esse disparate?

- Ora... Estava escondido por aí, hoje de manhã, a ver se apanhava um certo
peralvilho que anda a mangar comigo, e vi-vos entrar, primeiro vossemecê, depois
ela. Foi sentar-se junto do lugar onde me escondera e ouvi muita conversa...

- E só viu isso?
- Não havia mais que ver. O que havia era para ouvir, mas não consegui ouvir
tudo. Mas o mais interessante era que mudava de voz, conforme falava ela ou o
interlocutor imaginário.

- Pois vossemecê pensa que vê tudo, nesse seu negócio de espião, mas escapa-
lhe muita coisa.

- Vi perfeitamente que lhe tirou uma fotografia. Por acaso não terei ficado
também nela e é a razão porque voltou aqui?

- Pois... pois ficou. E ficou lá também aquilo que não vê.

- Talvez... talvez. Mas olhe que eu sou um homem muito paciente.

O sacristão virou as costas e regressou ao local de onde surgira. Rodou a


chave da porta com vigor, para deixar claro que se ausentara.

- Não tarda, esgueiras-te por outra porta qualquer...

Murmurou Francisco.
Sentou-se, para pensar um pouco. Não tardou a surgir-lhe o querubim pelas
costas, para se sentar no espaldar do banco fronteiro.
Francisco franziu o sobrolho, anunciando que ia ralhar.

- Andas a brincar com o fogo. Vais-te queimar.

- Ora... não percebes nada. Eu existo e sou visível, como aqueles meus
semelhantes todos, que ali estão e todos vêem. A minha magia, para além de estar ou
parecer vivo, não consiste em tornar-me visível, senão em ocultar-me a quem não me
interessa que me veja. O sacristão não me vê. Não está apto para me ver.
Só me pode ver quando me meto no meio dum magote desses monos. Então
vê-me e, se me for tocar, sou de madeira como eles.
Não percebes nada. E ainda diz a tua filha que foste tu quem me inventou...

- Ah... Então porque temes o sacristão?

- Aí está. Não percebes nada. Ele já percebeu.


Passa o tempo todo a contar os querubins de cada magote, para ver quando lhe
aparece um que não estava lá. Mas os magotes são tantos nesta igreja... E cada
magote tem tantos querubins... Mesmo quando lhe parece que surgiu um querubim
novo, que não constava do rol de um magote, ele tem ainda que determinar qual deles
é.
É muito complicado e exige muita aritmética. Por isso ele usa agora um
caderninho, mas quando se descuida e o deixa abandonado em qualquer lado eu
surripio-o.
Já tenho três escondidos por aí.
O sacristão é muito diligente e cauteloso, mas por vezes muito distraído.

- Mas um dia destes apanha-te.

- Ora... se não fosse esse jogo e esse risco, a vida era uma maçada. Sou muito
velho.
Depois, a Joana está doente e prometi-lhe que, se morresse, a acompanharia
para onde fosse. Se me apanhar o sacristão, já lá fico à espera dela.

- Aonde?

- Sei lá... só se sabe quando se lá chega.

- Está bem. Dessas coisas sabes mais do que eu. Mas acertem bem o passo,
não se vão perder pelo caminho, vais tu para um lado, ela para outro, passam o resto
da vida, ou da morte, à procura do destino da viajem de cada um.

- Estás cheio de ironias... Pois vê lá tu aonde vais parar, suspeito que serás
quem acabará por ficar só na conclusão desta história, sem saberes do paradeiro de
ninguém.

- Vai, que o sacristão deve estar a entrar por aí sem mais aviso, através de uma
porta qualquer. Eu também vou.

Razões para partir, razões para permanecer

Francisco regressou a casa e encarcerou-se de novo no estúdio. Com toda a


minúcia, realizou duas provas definitivas das fotografias. Antes de sair guardou-as no
bolso interior do casaco.
Quando entrou na sala, Joana adormecera no sofá, com o braço direito
prostrado no tapete, o livro caído ao lado.
Foi ao quarto da mãe. Sentou-se ao seu lado, na borda da cama,
permaneceram os dois em companhia durante cerca de uma hora, ora conversando,
ora em pausas de silêncio denso. O tema era Joana, mas pouco havia para adiantar.
Depois Francisco ergueu-se e bocejou.

- Vou preparar o jantar. Vai ser uma boa canja de galinha para todos. À Joana
também fará bem.

- Hoje fazem-me um pouco de companhia, depois do jantar. Já não lês para


mim há uns dias.

- Eu sei, mãe. Lerá a Joana, para os dois.

Após o jantar, que cada um sorveu por sua vez, reuniram-se então no quarto
da mãe. Joana sentou-se na borda da cama, Francisco no cadeirão de espaldar, onde a
mãe já raramente se aconchegava por momentos breves, enquanto lhe mudavam a
roupa da cama, ou para descansar as costas, já maceradas pela imobilidade.
A anciã procurou as mãos de Joana, agarrou-as entre as suas, pressionando-as
com a pouca energia que conservava.

- Que tens, filha querida? Tens que falar conosco?

Desde que a mãe de Joana se sumira, a avó tratava-a recalcitrantemente por


filha. Francisco convencera-se de que o fazia para o repreender pelo facto de ter
afastado Joana da sua mãe. Fora sempre esse o entendimento que transmitira das
razões porque a relação entre os pais da neta e desta com sua mãe se gorara até se
diluir no esquecimento.

- Oh... avó... estou doente, é só isso. Muito doente, não sei ainda bem quanto,
mas muito.

- Ora. Isso todos já sabemos. Mas doente, com quê? És uma rapariga que
ainda nem chegou aos trinta.

- O que interessa isso? Vossemecê é médica? Estou doente, nada mais. É


muito provável que não vença o Inverno que há de vir.
Todos havemos de morrer, hoje, amanhã, ou depois. Vou morrer bem se me
concederem o vosso afecto, vossemecê, o pai e um certo sujeito que o meu pai me
deu a conhecer.

- Então o teu pai deu agora em alcoviteiro... anda moiro na costa.

- Moiro não, por acaso é um querubim. Bem loiro e encarnadinho, por sinal.

- Já andas metida com o teu pai nesses devaneios.

Francisco fitou a filha, repreensivo.

- Não consegues respeitar e conservar um segredo, senão os teus.


Dos olhos da anciã romperam duas lágrimas.

- Não vamos azedar. Lê então qualquer coisa, minha filha. E façamos uma
prece a quem acreditarmos que possa interceder. A minha é para a Senhora do
Rosário. A do teu pai a um querubim, senão a Belzebute.
Desculpa-me, meu filho, este azedume não é contra ti, é contra a vida.

- Não será ainda contra o meu pai?

- Não, respeitei muito e amei com paixão o teu pai. Ele também, a mim. Mas
era arredio como a tua filha. Nem quando ficou derradeiramente doente e soube que
se esvaía nos procurou. Morreu só, sem afecto algum.
Não trilhes esse caminho, minha filha. Agarra-te a esse querubim.

Joana iniciou então a leitura, serena e pausadamente, com algum alento, e


conseguiu captivar a atenção da avó durante mais de meia hora. Depois, quando esta
começou a claudicar ao sono, dormitando e despertando alternadamente, a voz da
rapariga ficou sibilante, o rosto ruborizado pelo esforço de coordenar a respiração,
passou brevemente ao delírio, intrometendo querubins, santos e outros disparates no
elenco do argumento da narrativa que lia. Subitamente levantou-se, esgueirou-se sem
ruído e foi sentar-se na sala acometida por uma tosse convulsiva e seca.
O pai fechou a luz e a porta e segui-a.

- O que posso arranjar para te aliviar. Tens algum remédio?

- Prepare-me um chá de limão, quentinho.

Francisco tirou as fotografias do bolso e entregou-as a Joana.

- Vai vendo.

Retirou-se para a cozinha e pôs a água ao lume.

Quando voltou com o tabuleiro, Joana estava mais apaziguada com a tosse,
tinha a mão aberta sobre as fotografias que apertava contra o peito.

- Não acredito. Como fez isto?

- Não fui eu, minha filha, foi uma máquina fotográfica. Eu limitei-me a
enquadrar e a disparar.

- Está a querer dizer-me que o querubim que vossemecê inventou e transpôs


para a minha fantasia, para mitigar a minha solidão e a minha dor, foi tão bem
inventado que a sua imagem, sem qualquer suporte material, impressionou uma
película de celulóide e ficou registado numa fotografia?

- Observa bem essas fotografias. Não estás também numa e o sacristão nas
duas? Por acaso inventei-te a ti e ao sacristão? Porventura não existes, nem precisas
de um chá de limão, posso deitar este fora e inventar um para ti.
Mas, passando à frente dessa matéria, a que te devia preocupar é a presença do
sacristão a espiar os teus namoricos com o querubim.
Joana escancarou os olhos de surpresa, observando de novo a fotografia, não
notara ainda o pormenor. Franziu depois o sobrolho e ficou durante alguns minutos
calada e pensativa.

- Maldito sacristão! E agora?

- Agora, por enquanto, a única certeza que ele tem é a de que tu não és boa da
cabeça, falas sozinha com namorados imaginários e escolheste uma igreja para os teus
devaneios. Sabe também que anda por lá um querubim a mangar com ele, mas não o
consegue ver, nem o associa, com a certeza da prova, a qualquer de nós, embora
desconfie.
É aqui que reside o paradoxo, o querubim não ilude uma máquina fotográfica
mas ilude qualquer um que não quer que o veja. O sacristão não consegue ver o
querubim, mesmo que se plante à frente do seu nariz. Ele explicar-te-á melhor do que
eu.
Mas, hoje ou amanhã, o sacristão arma-lhe uma cilada. Tem cuidado, não
sejas tu o isco.
Agora devolve-me as fotografias, eu guardo-as. E pensa nisto tudo, para ver se
lhe enxergas o sentido. Eu ainda não consegui.

- Porventura não tem sentido algum, senão o que cada um lhe atribuir. Já não
sei se fui eu quem inventou um pai, se vossemecê uma filha, os dois um querubim, ou
o querubim inventou-nos a todos para mitigar o seu tédio secular. Para ser sincera,
nem me interessa, basta-me saber que sempre que for à igreja encontro lá o meu
querubim enamorado.

- Bebe o teu chá e enfia-te na cama. Repousa.

- Sim, pai. Saio cedo amanhã, tenho uns exames para fazer.

- Posso acompanhar-te?

- Não. Porque insiste nisso?

Francisco não respondeu e recolheu-se no seu quarto. Passou a noite ora


dormitando, ora cogitando, com o despontar do dia ouviu Joana pela casa a tossir,
preparando-se para sair. Quando a porta se abriu e cerrou, anunciando a partida da
filha, ergueu-se, sentiu-se exausto, preparou-se meticulosamente para sair e foi tratar
da mãe, que acordou quando abriu as portadas das janelas. Levantou-a em peso
agarrando-a pelos sovacos e pelas dobras das pernas, para senta-la no sofá enquanto
mudava a roupa da cama. Era já quase um passarinho imponderável, se batesse os
braços erguer-se-ia no ar e voaria. Quanto resistiria ainda?
Cumpridos os rituais inadiáveis, Francisco dirigiu-se para a igreja. Entrou,
cerrou os olhos para que se habituassem à penumbra, e foi surpreendido pela
circunstância mais paradoxal, de todas aquelas que pudera congeminar.
O sacristão montara no centro da coxia central da nave um tripé, com uma
máquina fotográfica, e, ajoelhado, apontava a objectiva para o arco de uma das
capelas laterais do lado do Evangelho, salpicado de querubins, sós ou em pequenos
magotes.
Sentiu que o querubim lhe poisara suavemente sobre o ombro.
- Parvo nunca foi ele... mas tinhas que ser tu quem haveria de lhe dar a idéia...

Quando Francisco olhou, o querubim já se sumira. Dirigiu-se ao sacristão.

- Vossemecê agora dedica-se à arte.

O outro estava tão absorvido, que se ergueu num salto e recuou dois passos,
apavorado.

- Ah!... É o senhor. Assustou-me. Estou a fazer o inventário destes tesouros


todos, para ocupar com proveito algum tempo que me sobra.

- E começa pelos anjos, querubins, serafins, coisas afins... Quando se faz um


inventário, num sítio destes, é costume respeitar as hierarquias, primeiro Nosso
Senhor, pai e criador de tudo o resto, depois a sua Mãe, a única mulher do universo
posterior a seu filho.

- Não sei aonde quer chegar com essas blasfêmias, mas, com toda a certeza,
quer amofinar-se comigo. Corre é o risco de se amofinar com todas as pessoas
sagradas que aqui moram.
Pois eu começo pelos anjos, sobretudo pelos mais irrequietos, que poderiam já
cá não estar quando acabasse de inventariar o resto.

- Não me parece que algum desses rapazolas, com ou sem asas, se possa
escapulir do sítio onde o pregaram há centenas de anos. São de madeira.
Porventura o meu caro amigo está ansioso por fazer mal a algum deles,
qualquer que seja.

- E porque haveria eu de querer fazer mal a um anjo de madeira?

- Ora... Porque me parece que gostaria de ser um deles, resistindo ao tempo e


às intempéries, sempre com ar viçoso e encarnado. Talvez um daqueles que erguem a
Virgem na sua assumpção aos céus. Pelo menos ficaria com a ilusão de estar também
a dirigir-se para lá.

- O senhor é muito engraçado e tem o tempo todo para desperdiçar em


conversa fiada.
Agora vá lá rezar, pensar, murmurar, cantarolar, o que quiser enfim e vem
aqui fazer todos os dias. Mas deixe-me trabalhar.
Porque não perde umas manhãs no Nicola, a ver entrar e sair quem por lá
passa? As igrejas são para os crentes.

- Não me parece que vossemecê tenha trabalho algum, exerce um desporto, a


caça aos ratos, aos pombos e aos querubins.

- Já chega, por hoje. Com sua licença...

E o sacristão levantou o tripé com a máquina montada, para o ir colocar no


local de onde apontaria a outros pormenores.
Francisco afastou-se e foi sentar-se num lugar recolhido. O outro sentiu-se
espiado nas suas intimidades, desmontou o aparato com grande estardalhaço, para que
se notasse que ficara incomodado, e retirou-se para poiso incerto.
A coisa começava a ficar séria. O azedume agravava-se, já ninguém podia
mediar a concórdia. Francisco antevia a borrasca a aproximar-se, com o céu
envolvido em trevas.
Veio em lanços curtos de breves esvoaçares o querubim, hesitante, um pouco
tenso, perscrutando o ambiente, não se tivesse escondido o sacristão em qualquer
canto, para espiar.
Sentou-se ao lado de Francisco, mesmo ao seu lado e sobre a tábua do assento
do banco corrido, para ficar menos exposto.

- Não vale a pena perderes tempo a proferir avisos ou admoestações, o velhaco


vai apanhar-me, mais dia, menos dia.
É assim, nem mais, nem menos. Na verdade estou muito velho, ando por aqui
há muito tempo, como uma princesa encantada. Sou um príncipe encantado. Agora
veio a minha princesa e desfez o encantamento, sou mortal como qualquer outro ser,
vulnerável até à ira de um sacristão enfastiado com a vida. Acordei do meu sonho.
Logo que te vi, pela primeira vez, soube que seria através de ti que o meu
encantamento se desvaneceria. Foi por isso que me revelei. Tens ar de desencantar o
mais encantado ser do universo.
Depois, haverias ainda de me trazer a tua filha. Queres melhor razão para que
eu anseie por me libertar deste encantamento e partir para outro, seja qual for, mas
que partilharei com a minha princesa encantada, ou desencantada?
Para ser sincero, estou ansioso por que o sacristão me apanhe. Mas vou-lhe
tornar a coisa difícil, só para brincar, que é o que mais gosto de fazer. A capacidade
de resistência da Joana à sua doença será a medida para a minha resistência ao assédio
do sacristão, pois, como já te disse, qualquer que seja o destino para onde partamos,
projectei estar já lá à sua espera quando ela partir.
Estás a ver... tu nunca imaginaste que assim fosse, mas é. Provavelmente
ficarás surpreendido, quando te detiveres para ponderar aonde pode ir parar a história
tonta de um parvo que entabulou uns colóquios com um querubim. Depois, acusarás a
todos por terem desertado do teu sonho e te deixarem só e acordado, à bulha com a
mesquinhez da vida.
E alegarás que ficas por cá porque a natureza te puniu com uma saúde de ferro
e não tropeçaste com um sacristão com ânsias de te fulminar.

- Está bem. Mas, diz-me, tenho a certeza de que a Joana falou contigo sobre a
sua doença. Podias, pelo menos, revelar-me o que tem, para que possa fazer algo. Ela
não diz.

- Não te diz a ti e não te diz a mim. De resto, que adiantaria? Que sei eu de
doenças? Sei de doentes porque todos eles aqui vêm parar, a pedir a cura. Os casos
mais graves que conheço são os das doenças da alma, porque essas não fulminam
ninguém, encarceram as vítimas na vida e na solidão. Sobrevivem a todos os outros.
Eu sobrevivi umas centenas de anos.
Para poderes fazer algo... O quê? Tudo o que tinhas que fazer já o fizeste.
Resta-te agora esperar pelo desfecho. E não será, por acaso, senão aquele que
projectaste desde o início?

A conversa ficou assim rematada. Francisco regressou a casa e decidiu,


subitamente e contra a sua natureza, contra tudo o que esperara sempre de si próprio,
introduzir-se no quarto da filha e esmiuçar tudo à procura de qualquer indício que lhe
pudesse fornecer uma pista sobre a natureza e a gravidade do seu estado.
Meticulosamente revolveu gavetas, armários, caixas. Pouca coisa acrescia a tudo o
que Joana sempre conservara em casa do pai, cartas antigas trocadas com a mãe,
diários de adolescente, memórias dos primeiros namoricos, coisas enfim de rapariga.
Não violou qualquer intimidade. O que procurava mobilizava em exclusivo a sua
atenção e diligência. Quando saiu, nem o mais adestrado detective suspeitaria da sua
presença e intromissão. Quanto ao que procurava, nada. Joana era também uma
rapariga muito disciplinada e cautelosa.
Quando a filha chegou para almoçar iniciou a abordagem pela periferia.

- Ainda passaste pela igreja...?

- Sim. E também sei que lá esteve, que o sacristão se muniu de uma nova arma
para surpreender o querubim e que o pai resolveu interpelá-lo acerca do assunto com
que me vai agora assediar.
Vai querer saber o resultado dos meus exames.
O que tenho, pai, não tem cura alguma, senão uns paliativos para entreter, que
causam mais dor e martírio do que alívio.
Chega-se sempre a uma altura em que não vale a pena tentar iludir o destino.
Não me terá consigo muito tempo. Uma semana, um mês, não muito mais... Quando
o fim se insinuar, tudo se precipitará num ápice.

Francisco agarrou nas mãos de Joana, encostou-as ao rosto humedecido por


duas ou três lágrimas que irromperam.

- Minha querida filha... não faças isso. Fala comigo. Tenho dinheiro de sobra
para tentar seja o que for. Há sempre alguma coisa. Nem que seja para iludir...

- Não me faça vossemecê isso. Deixe-me disfrutar em paz o restinho de tempo


que me sobra. Porque não compreende? Até parece que me arranjou um querubim
para que tivesse alguém para me compreender.

O desfecho precipitou-se em pouco mais de duas semanas.


Durante cerca de uma dezena de dias Francisco abandonou o ritual da visita à
igreja e ao querubim, arrastou-se por casa em diligentes tarefas inúteis, arrumando, ou
desarrumando o seu arquivo de fotografia, produzindo novas provas de algumas por
que nutria especial estima, experimentando múltiplas graduações de luz e sombra, a
sépia, a negro. Nos intervalos sentava-se no quarto da mãe, entabulando curtos
diálogos vadios entrecortados por longos silêncios, fitando-se longamente a coloquiar
através do olhar.
Uma tarde perguntou-lhe.

- Com que morreu o meu pai?

- Não sei, meu filho, nunca me falou sobre a sua doença. Sabia, tão só, que era
algo nos pulmões. Sei também que sofreu mais nas mãos dos médicos do que
propriamente com a doença. Não tinha cura.
Foi a doença que o afastou de nós, para não ter que falar sobre ela.

- Não tem sentido algum...

- Pois é, meu filho... E pensas tu que tens algum sentido? Cada um tem o seu,
que é a falta dele para todos os outros. Que sentido tenho eu para ti, imobilizada numa
cama à espera da morte?
- Tem o sentido de ser a minha mãe.

- Então basta-te encontrar no teu pai o sentido de ter sido o teu pai.

E o silêncio, de novo. Estava tudo dito.


Joana saía logo de manhã e suspeitava o pai que passava já os dias inteiros na
igreja, só ou na companhia do querubim. Pouco comia e as noites eram um inferno, a
tossir convulsivamente, do quarto e da cama para o sofá da sala e daí para o quarto.
Por vezes parecia que sufocava.
E uma tarde regressou Francisco à igreja, depois do almoço. Permaneceu uma
hora, duas, do querubim nem rasto. Entraram e saíram umas dezenas de beatas, alguns
crentes fervorosos porventura, sempre distintos na sua discrição. E já ao entardecer
entrou o sacristão, com uma braçada de flores para ornamentar as jarras. Passou por
ele com indiferença, nem olhou.
Francisco aproximou-se.

- Então, já concluiu o seu inventário...

O outro respondeu sem o fitar, sem suspender sequer a azáfama, de despejar


as águas fétidas para um balde, renova-las com água límpida que trazia noutro e
compor ramalhetes.

- É verdade, já concluí. E foi uma pena andar tão arredio, porque poderia ter
ficado nele. A sua filha ficou. Por sorte. Se não fosse ela, tinha-me escapado uma bela
peça.
A propósito. Vinha a entrar mesmo atrás de mim. Mas subitamente reverteu a
marcha e saiu. Surgiu-lhe uma idéia qualquer...

A entoação era simultaneamente de fastio, de alguém que cumprira o desígnio


que atribuía sentido à sua vida e nada mais lhe restava senão ocupar o tempo em
trivialidades, e de desafio, como se dissesse.

- És um parvo.

Pela primeira vez porventura na sua vida, Francisco sentiu um arrepio subir-
lhe pelo eixo das costas até à nuca.
Virou costas e saiu, quase atabalhoadamente. Tanto, que, a meio da nave,
tropeçou num ressalto do lajedo e teve que amparar-se com as mãos, cobrindo uns
metros do percurso a gatinhar.
Entrou em casa, dirigiu-se à sala já mergulhada em penumbra e deparou com a
filha sentada de braços caídos no sofá, os olhos rasos de água, silenciosa, com o olhar
fixo num ponto longínquo, quilômetros para além das paredes. No regaço jazia, em
cavacos, quebrado em cinco pedaços, a cabeça, o tronco desmembrado, os braços e o
ventre com as roliças pernas agarradas, o querubim. Das faces evadira-se o rubor
róseo de outrora e as carnações tinham agora a tonalidade pálida de um cadáver.

- Oh... pai... foi o sacristão. Encontrei-o no lixo, enrolado com as flores


murchas e secas que tem andado a substituir.

As lágrimas alagaram os olhos de Francisco, que se ajoelhou em frente da


filha, com a cabeça sobre o seu regaço, ao lado dos fragmentos do boneco.
- Oh... pai... pai... porque tinha que inventar um sacristão, quando inventou
um querubim?

- Juro-te, filha, que não inventei nada. Foste tu quem precisou de um pai
inventor de querubins. Que culpa posso ter eu, por andar por lá um sacristão?

Nos dias seguintes, Joana continuou a sair logo pela manhã, para regressar
pela tardinha, sucessivamente mais debilitada. Passava os dias na igreja, em solidão,
pois já lá não residia ninguém, senão os monos de madeira, algumas beatas e o
sacristão.
Uma manhã, já quase pela hora do almoço, Francisco foi surpreendido pelo
tocar insistente do telefone, há muito defunto, pois ninguém o utilizava e só se
mantinha na expectativa de uma emergência.
Calmamente, todavia remotamente surpreendido, levantou o auscultador. Era
a voz de uma mulher, grave.

- Estou a falar com o Senhor Francisco de Sá?

- O próprio.
- Estou a falar do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. É o pai da Senhora
Dona Joana de Sá?

- Vou já para aí.

O auscultador ficou pendurado, suspenso pelo fio, baloiçando como um


enforcado. Francisco nem se lembrou de passar pelo quarto da mãe. Vestiu o casaco e
saiu.
Quando chegou ao hospital, soube que a filha, saindo da Igreja de São Roque,
a tossir convulsivamente e a respirar com muita dificuldade, desabara na escadaria
onde ficara envolvida por um magote de gente até ser recolhida por uma ambulância.
Sobrevivera cerca de três horas após começar a ser assistida.
Francisco quis falar com o médico.

- O que aconteceu? Que tinha a minha filha?

- Ora essa! O senhor não sabe?

- Não, não sei. Ela nunca me disse.

- Mas não residia consigo?

- Mas nunca me disse.

- A paciência, meu caro senhor, tem limites. Alguma vez quis saber? O senhor
é louco.

Francisco ficou plantado no meio do corredor, com uma caixa de papelão nas
mãos. Eram os pertences de Joana que o médico lhe atirara, com desprezo, para os
braços. Dentro, jaziam os fragmentos do querubim. Deu consigo a pensar, fitando o
médico que desaparecia ao fundo:
- Oxalá, não tenhas feito sofrer muito a pequena.

Depois pensou subitamente no seu pai, na sua mãe, deixou-se escorregar


encostado à parede até ficar sentado no chão, com as pernas longas estiradas quase
atravessando, de parede a parede, o corredor, chorando convulsivamente.
Regressou a casa, entrou no quarto da mãe, depositou ao seu lado a caixa de
papelão, abriu-a e proferiu de braços caídos.

- Tome mãe, é para si. Um querubim.

A anciã tirou da caixa, um a um, os fragmentos, tentando recompô-lo. Não


deixou transparecer sequer um indício de que alcançara qualquer sentido para o
episódio. Apenas duas lágrimas lhe brotaram dos olhos.
Francisco preparou meticulosamente o funeral da filha, em segredo, sem nada
lhe contar.
Durante uma semana inteira não dormiu, senão em breves e súbitas
claudicações, povoadas de pesadelos alucinados.
Depois, um dia, pela manhã, entrou serenamente na igreja e subiu pela nave
até a um altar aonde o sacristão substituía as velas dos castiçais, trauteando uma
cantiga da moda. Quando o homem se voltou e encarou Francisco revelou-se-lhe
instantaneamente o destino. Francisco tirou a mão debaixo do braço. Empunhava a
faca da cozinha, sucessivamente amolada durante quase meio século. Realizou a
função com gestos concisos, nem sequer fulminantes, como um sacerdote que
imolasse ritualmente a vítima. O outro não teve reacção, recebeu a lâmina entre as
costelas, que se entranhou até ao cabo de madeira. De olhos esbugalhados, escorregou
lentamente, agarrando-se ao que lhe estava à mão, até ficar estirado no lajedo,
rodeado de castiçais, jarras, flores, sacras, tudo enfim que veio de arrasto com a
toalha de linho, que ficou a cobrir-lhe parte da metade direita do corpo, como uma
mortalha. Foi através dela que se espraiou a mancha de sangue.
Francisco pensou num ápice que podia sair descontraidamente, ninguém
saberia o que se passara. Mas foi andando em passo decidido de autômato até à
esquadra da polícia e comunicou o crime, confessando a autoria.
Subitamente pronunciou para si próprio: - Esta história não se concluiria nem
cumpriria o seu desígnio se ficasse no segredo e não corresse o mundo.
Durante três dias foi um corrupio, de interrogatório para interrogatório, da
polícia para o juiz e deste para aquela. Depois para os psiquiatras, porque tudo era já
uma confusão alucinada e difusa, com querubins, sacristães, mestres de talha, santos e
santas, umas interpolações de canto chão bem timbradas, uma filha tísica e uma mãe
entrevada. Enfiaram com ele num manicômio, com apertadas medidas de vigilância,
que se foram diluindo na medida em que o olhar se fixava no vazio, uma profunda
astenia lhe invadia a postura, até se hospedar num sofá onde passava dias a fio, com a
cabeça reclinada sobre a mão direita, discorrendo em monólogo sobre matérias
inalcançáveis.
Soube mais tarde que ninguém mais contou o desfecho de tudo à mãe, nem lhe
revelaram o seu paradeiro. Abandonaram-na num lar de idosos, onde morreu passados
três dias, como se adivinhara ou intuíra tudo o que se passara.
De todos os personagens daquele alucinado sonho, ou pesadelo, só ele, que o
congeminara, sobrevivera.
Passou a interpelar o psiquiatra com matéria filosófica, como se pronunciasse
lição de cátedra.
- Não são os sonhos que permanecem. São os sujeitos que sobrevivem aos
seus sonhos.

- Pois... que mate, ou deixe morrer os seus sonhos, ou os dos outros, quem
quer que sejam, ainda se atura... Mas porque haveria de matar um sacristão indefeso?

- Porque matou a minha filha. E um querubim.

- Ah... um querubim... Nenhum sacristão matou a sua filha, morreu de doença,


perante alguma abulia sua, se quer a minha opinião sincera. Por ironia, o que o safa
no meio desta baralhada é o raio desse querubim.

- O que me fulminou, no meio desta baralhada, foi o facto de ninguém senão


eu, nem sequer o querubim, se safar.

- Caramba, homem!... Estou farto disto.


Post scrptum

Este foi congeminado durante algumas manhãs de Outono, no Cemitério dos


Prazeres, em frente da sepultura, arruinada pelo abandono, da septuagenária
Conceição Ferreira. Uma simples laje lisa erguida emergindo sobre um montículo de
terra, com o retrato a sépia da defunta a esvair-se, abraçada por um querubim. De
acordo com o letreiro, falecera faltariam ainda quinze anos para que eu fosse
projectado para fora do cómodo retiro da barriga de minha mãe.
Subitamente, depois de me distrair a observar uns transeuntes que passavam
ruidosamente, olhei de novo e o rapazola piscou-me o olho. Como se dissesse:

- Vem também conosco.

- Deixa-me escrever antes um livro.

Pensei eu. E como não aproveitei aquela oportunidade, fui-me habituando a


ficar por aqui.

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