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1. Introdução:
Crianças e adolescentes nem sempre foram vistos como sujeitos de ação. Seu
estatuto de sujeito aparece e desaparece em momentos da história, marcando concepções
de infância diferenciadas e conferindo-lhes um tratamento específico. A modernidade,
locus do suposto indivíduo livre e igual, tão bem discutido na obra de Luis Dumont (2000)
da sociedade contemporânea, aponta também para o nascimento do sujeito na infância
(Duarte, 1995; Ariés, 1989). O projeto de modernização, higienista, foi criticado por
diversos autores por tentar traçar a homegeneização de culturas específicas (Donzelot,
1980; Fonseca,1993; Duarte, 1995; Ariés, 1989; Dumont, 2000). A forma como estas
concepções modernas de sujeito atingem setores diferenciados da sociedade, no entanto,
não é homogênea. Visando discutir a questão do sujeito na infância como um projeto da
modernidade, discorrerei sobre concepções de infância no Brasil em diversos momentos da
história, mostrando como visibilidades e invisibilidades são construídas, num processo
muitas vezes paradoxal. Um momento ápice do estatuto de sujeito para a infância se dá a
partir do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). No entanto, esta mesma legislação,
que lança luz a esta fase da vida tirando crianças e adolescentes da condição de "feixinhos
de matéria" (Duarte,1995), transformando-os em sujeitos de direito, também produz uma
visão de sujeito infantil essencialista, colocando num estatuto de "igualdade" sujeitos que
se formatam histórica e contextualmente de maneiras muito diferenciadas, criando mais
uma vez novos contextos de exclusão. Focarei na história do tratamento dado à infância e
adolescência chamada de "abandonada" no Brasil, e nas forma como a legislação os nomina
em diferentes momentos, buscando entender como os mecanismos que visibilizam este
novo sujeito é o mesmo que o invisibiliza ou que o exclui socialmente. Meu enfoque neste
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grupo se dá por serem estes os principais alvos tanto do aparato legislativo, punitivo
quanto assistencialista no país, ainda na atualidade, mostrando uma continuidade de
valores que se instituem desde o confronto da igreja com a prática abortiva, de infanticídio
ou de expor.
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Sobre a história da criação e da prática do uso da "Roda dos Expostos" em Desterro, ver
também Cabral, Osvaldo. Nossa Senhora do Desterro. Florianópolis: Lunardelli, 1979. Vol. 2.
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criação da roda por parte das autoridades religiosas e mais tarde adotada pelo estado
pretendia um remodelamento das condutas, chamando atenção para as práticas de
infanticídio e aborto. Sua pesquisa abrange o período de 1828, desde a criação da roda dos
expostos até 1887, quando esta foi extinta.
Os registros históricos sobre o abandono na infância parecem estar então, conforme
os historiadores acima sugerem, intimamente ligados a história do tratamento dado ao
abandonado e ao que abandona. Tal tratamento está vinculado, por sua vez, à uma
concepção de infância que se altera com o passar dos anos.
Um forte marco histórico do tratamento público aos abandonados no Brasil está
ligado à criação da roda dos expostos. Criada na Idade Média, na Itália, a roda constituía-se
num dispositivo onde se colocavam os bebês que se queriam abandonar. A roda tinha
como principal característica a de deixar o expositor anônimo, já que sua forma cilíndrica,
dividida ao meio por uma divisória, se fixava no muro ou na janela da instituição, permitia
que a criança fosse depositada na parte externa. Assim, o expositor girava a roda, puxava
uma cordinha com uma sineta para avisar a vigilante ou rodeira que uma criança havia sido
abandonada e ia embora.
Ou seja, segundo o autor, a roda viria então servir a vários fins. Lima e Venâncio
(1996) apontam ainda as seguintes causas que lavavam a procura da roda no Séculos XVIII
a XIX: "pessoas pobres que não tinham recursos para criar seus filhos, por mulheres da
elite que não podiam assumir um filho ilegítimo ou adulterino e, também, por senhores
que abandonavam crianças escravas e alugavam suas mães como amas de leite"
(1996:67).
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No Brasil, a primeira roda criada foi em Salvador em 1726, trazendo os costumes
de Portugal. A roda, como em Portugal, é instalada numa instituição religiosa, com ajuda do
rei, sendo que a partir de 1830 as províncias passam a ter que subvencionar as casas de
assistência a estes expostos.
Em Desterro (Florianópolis) a roda foi criada em 1828, sendo as crianças expostas
cuidadas primeiramente por famílias da comunidade e depois pela Irmandade do Senhor
Bom Jesus dos Passos. O mais antigo registro sobre a prática de expor, e sobre a existência
de procedimentos para assistir a estas crianças, no entanto, data de 1757 (Oliveira, 1990).
As crianças eram deixadas nas portas das casas, de igrejas, e familiares se ocupavam da
criação dos expostos. A roda vem institucionalizar tal prática, determinando um local
especializado para receber estas crianças.
A roda de fato se instaurou apenas nas cidades que apresentavam características
urbanas, onde o número de crianças abandonadas passava a ter grande visibilidade. No
meio rural, no entanto, a prática de expor ainda era feita à maneira antiga.
Se a roda nasce exatamente com o intuito de "sustar estes 'sacrifícios humanos' da
parte dos genitores (evitar a morte deste frágil ser pelo aborto e infanticídio), criando assim
novas práticas, ela favorece a exposição por propiciar condições para o anonimato dos
genitores e sua criação não garante que todas as crianças ai recolhidas "vinguem". Grande
número destas, por diversos motivos, acabavam morrendo. Venâncio (1997) levanta
números e motivos da mortalidade infantil nas rodas.
O efeito da nova conduta de salvar as crianças da morte não se cumpria por inteiro.
O que se cumpre é a sensibilização crescente à criança como um ser que tem alma. Os
autores Lima e Venâncio (1996) atentam para o fato de que a lei do Ventre Livre pouco
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trouxe de melhoria nas condições de vida da criança negra no Brasil e sim veio contribuir
para o número de abandonos dos filhos de mulheres cativas, por parte dos senhores. Era
comum os senhores deixarem as crianças negras na roda e depois alugarem as escravas
como amas de leite.
Sendo a pobreza um dos motivos freqüentes de mães abandonarem seus filhos,
muitas delas expunham inclusive com a intenção frustrada de reavê-los mais tarde, já que a
maioria das crianças não sobrevivia. Entre as mães que faziam por este motivo, era comum
deixarem bilhetes com o nome que queriam que fosse dado à criança, data de nascimento,
como garantia de identificá-los mais tarde e poder criá-los quando houvessem
possibilidades.
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Segundo Ariés, a sociedade tradicional via mal a criança, e pior ainda o adolescente. " A
duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda
não conseguia bastar-se; a criança então mal adquiria algum desembaraço físico, era logo
misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos." O autor nos lembra ainda que um
período de "paparicação" era reservado a esta nos seus primeiros anos de vida, "enquanto e l a
ainda era coisinha engraçadinha". Depois, era comum que passasse a viver em outra casa que
não a de sua família." (1989:10).Da mesma forma, a noção de família toma novos
direcionamentos. Anteriormente não tinha a função afetiva. Ariés salienta que nesta época
havia uma sociabilidade entre os grupos familiares. "As trocas afetivas e as comunicações
sociais eram realizadas portanto fora da família, num "meio" muito denso e quente, composto de
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A partir de um certo período, e, em todo caso, de uma forma definitiva e imperativa a
partir do século XVII, uma mudança considerável alterou o estado. Isto quer dizer que a
criança deixou de ser misturada aos adultos e apreender a vida diretamente, através do
contato com estes. Começou então um longo processo de enclausuramento das
crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nosso
dias, ao qual se dá o nome de escolarização". (Ariés, 1981:11)
A crescente atenção que se passa a dar às crianças é paradoxal. Se por um lado ela
toma visibilidade, por outro muitas destas crianças, ao serem depositadas na roda, tornam-
se invisíveis à comunidade já que, como explicita Leite (1996) e Venâncio (1997) acolhida"
pelas casas de caridade, morrem em grande número naqueles ambientes.
A prática ilegal e quase aberta do abandono e o fatalismo com que era aceita a
mortalidade infantil revelavam certa indiferença ao valor da criança até o inicio do
século XIX, quando as escolas começaram a descobri-la e a classe médica passou a
insistir na necessidade da criação dos filhos pelas mães, pois cada criança achada
(depois de abandonada) era uma criança perdida. (Leite, 1996:99).
Por ocasião da roda, as crianças expostas eram criadas por amas de leite até os três
anos de idade. Depois, se a ama concordasse, a Câmara pagava-lhe uma quantia para que a
criança ficasse em sua guarda até os 7 anos, em alguns casos, até os 12. Oliveira (1990)
salienta como estas crianças passam a ser alvo de interesse por parte de algumas famílias,
já que, além de receberem por elas, depois de uma certa idade passam a ser trabalhadores
na casa, na lavoura, na lida com o gado, no cuidado dos mais velhos e das crianças da
família. Chamados de "agregados", eram quase sempre serviçais da casa que os "adotava".
"A partir daí, poder-se-ia explorar o trabalho da criança de forma remunerada, ou
apenas em troca de casa e comida, como foi o caso mais comum". (Marcílio, 1997:72).
Estas eram então, tratadas como "agregados" e poucos são os casos em que tais crianças,
quando adultos, fazem parte da partilha das terras, ou são reconhecidos como filhos - são
sim, serviçais que muitas vezes não podem sentar-se à mesa com a família.
vizinhos, amigos, amos e criados, crianças e velhos, mulheres e homens, em que a inclinação se
podiam manifestar mais livremente." (1989:11)
6
2.2 Tratamento da criança: Do estado social ao estado penal
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Fonseca (1996), questionando porque até então o Governo não havia se manifestado sobre a
questão da adoção, deixando que o grande número de casos de enjeitados fossem resolvidos
informalmente ou deixando para o direito contratual, explica este fato histórico por uma
marcada diferença entre os interesses do Estado moderno e da Igreja. Segundo a autora "O Estado
moderno não tinha os mesmo interesses da Igreja para colocar obstáculos à adoção, já que seu
poder econômico residia em outras bases que não a do patrimônio de famílias sem herdeiros."
Mas o Estado também defende seus interesse, e "aproveitava a responsabilidade de garantir
direitos individuais - neste caso o bem estar da criança -, para intervir na vida familiar e assim
estreitar o controle sobre a vida dos súditos." (Fonseca, 1996:119).
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O termo "situação irregular" passa a constar no Código de Menores de 19274.
Simões (1989) diz que infância e delinqüência, na situação irregular, se referiam, na prática,
a uma relação direta com a tutela familiar e a apropriação ilegal de bens (roubo, tráfico,
furto, etc). Tanto ao abandonado quanto ao delinqüente prescrevia-se a internação, o que
por vezes expunha crianças que houvessem saído temporariamente de casa à situação de
interno, dificultando o contato com os familiares. "O artigo 56 do Código Mello Mattos
estabelecia que, se no prazo de trinta dias, a contar da entrada em juízo, o menor fugitivo
ou perdido, que estivesse em situação irregular, não fosse reclamado por quem de direito, o
juiz, declarando-o abandonado, dar-lhe-ia o conveniente destino, isto é, seria internado".
(Silva, 1997:60).
Neste período, que data a criação do atendimento à criança e ao adolescente pelo
Estado (1927) até a criação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) em 1990, o
tratamento da infância por parte do Estado recebeu sérias críticas. Crianças e adolescentes
são enclausurados em verdadeiras prisões para "menores" (Altoé, 1993; Rizinni, 1993). O
próprio termo "menor" toma dimensões estigmatizantes dentro da política de atendimento.
Irma Rizzini (1993) diz que na prática jurídica a construção do "menor" tem os seguintes
sentidos:
Menor não é apenas aquele indivíduo que tem idade inferior a 18 ou 21 anos conforme
mandava a legislação em diferentes épocas. Menor é aquele que, proveniente de
família desorganizada, onde imperam os maus costumes, a prostituição, a vadiagem, a
frouxidão moral, e mais uma infinidade de características negativas, tem a sua conduta
marcada pela amoralidade e pela falta de decoro, sua linguagem é de baixo calão, sua
aparência é descuidada, tem muitas doenças e pouca instrução, trabalha nas ruas para
sobreviver e anda em bandos com companhias suspeitas. (Rizzini, 1993:96).
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O art 2º deste Código dispõe que está em "situação irregular" o menor: I - privado de condições
essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão
de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsáveis; b) manifesta impossibilidade dos pais ou
responsável para provê-las; II - Vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos
pais ou responsável; III - Em perigo moral devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em
ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; I V
- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V :
com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de
infração penal.
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A autora detecta, em análise de documentos, artigos e relatórios, uma diferença na
terminologia empregada pelo Juízo de Menores da Capital de SP para referir-se à crianças
das quais este se ocupa. Segundo a autora, "a diferença na terminologia empregada é
resultado de diferenças significativas na forma de se conceber o menor e a
criança".(Rizzini, 1993: 94). Diversos autores tratam deste assunto, criticando como o
termo vem em direção de um tratamento diferenciado da infância pobre no país5.
Rizzini (1993) mostra ainda como as técnicas e os saberes científicos passam a ser
usados para justificar as necessidades de reforma deste menor, resultando numa prática
excludente e discriminadora - colocando-os em reclusão, sem direito à defesa. Analisando
vários processos, a autora salienta a diferença entre os diagnósticos feitos na década de 20
e os do final da década de 30, inicio de 40. "Observa-se um aumento na utilização de
termos psiquiátricos e uma maior preocupação com a saúde mental". (Rizzini, 1993:.87).
O SAM (Serviço de Assistência ao Menor), criado em 1941, se guiava por tais preceitos.
Na tentativa de uma elaboração teórica sobre o "problema da criança" e a "ação
social do Juízo de Menores", nos vários instrumentos do Juízo de investigação do Menor,
era priorizado o levantamento dos seus antecedentes morais e de sua família. (Rizzini,
1993). Segundo Alvin e Valladares(1988),
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Passeti (1994), Rizzini (1993)., Alvin e Valladares (1988)., Priory. (1996) .
9
Nacional de Aprendizagem Industrial), SENAC, SESC. Reformar e educar para o trabalho
eram objetivos de tais instituições.
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realidade deles e do próprio país. O "Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
Rua" surge neste contexto. Nas instituições de atendimento um novo termo substitui o
"menor": juventude ou infância em "situação de risco". Se define jovens e crianças em
situação de risco como “aqueles segmentos populacionais cujas características de vida -
trabalho e profissionalização, saúde, habitação, escolarização, lazer - os colocam entre as
fronteiras de legalidade e da ilegalidade, em situação de dependência face às instituições de
amparo assistencial e de intervenção legal". (Adorno, 1993:103).
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2.3 Entre o estatuto de menor e o de Criança e adolescente: novos sujeitos,
mesmos culpados
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que inspira a criação do ECA é a "Doutrina de Proteção Integral", que tem como princípio
que as crianças, além de todos os direitos dos adultos, tem uma série de direitos próprios,
por estarem em desenvolvimento físico e mental. Cabe a família, ao estado e à Sociedade a
obrigação da garantia destes direitos. O Ministério Público vai ganhar um papel de
destaque na defesa da criança e do adolescente, cabendo a este decisões anteriormente
tomadas pelo Juizado de Menores.
Com a "prioridade absoluta" e o ECA, há uma grande mudança na forma como
diversos setores da sociedade civil vão lidar com a infância e a adolescência e junto, novos
conflitos e paradoxos se instauram. Se por um lado os novos sujeitos se apresentam como
portadores de direitos, por outro há uma divulgação de um conceito universal de infância à
todos os setores da sociedade, que gera conflitos evidentes entre as práticas já instituídas.
O retorno recente no Brasil da discussão sobre a idade penal, que entra novamente em foco
por causa do assassinato de dois adolescentes classe média por outro adolescente, mostra
que o tema do novo sujeito de direitos é polêmico e de nenhum modo se encerra com o
ECA. Pesquisas divulgadas pela mídia mostram um desacordo entre o estatuto e a opinião
pública sobre a idade em que o novo sujeito pode assumir por seus atos perante a lei
penal6. Neste debate, o termo menor vêm facilmente à tona, apesar de todo o esforço feito
à partir do ECA em incluir no discurso sobre a infância e adolescência a palavra "sujeito de
direitos". Há uma pergunta que não cala: e os deveres deste sujeito? A pergunta que quase
não vem à tona é a que indaga sobre as condições desiguais que crianças e adolescentes e
suas famílias vivem e na forma como são tratados pelo sistema judiciário neste país.
Tampouco se pergunta sobre a eficácia da prisão neste país para a recuperação de um
adolescente.
Outro tema importante para pensar a mudança que o ECA institui na sociedade
brasileira é o trabalho infantil. A penalização do trabalho infantil mexe com a estrutura da
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A discussão centra-se basicamente em dois eixos: quem defende a redução da idade penal -
alegando que se um adolescente pode votar, dirigir com 16 anos, ele pode também assumir seus
atos perante a lei. O outro eixo é de quem defende manter a idade penal para 18 anos e a
ampliação da permanência do adolescente na escola.
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sociedade brasileira, visibilizando desde práticas de cárceres privados e trabalho infantil
escravo, até conflitos com grupos cuja prática de trabalho familiar é uma das heranças que
se deixa ao filho, ou ainda em comunidades onde a escola não constitui nem possibilidades
de melhoria de vida nem é uma forma de sociabilidade da infância e adolescência.
Voltamos aqui à questão central deste texto: mostrar quando a visibilidade constrói
exclusão. O exemplo do trabalho infantil é revelador, mostrando contradições que o novo
estatuto aponta: Numa Conferência Estadual da Infância e Adolescência realizada em 1997
em Florianópolis, diversos agentes sociais da área da infância (professores, sociedade civil,
servidores públicos) propunham novas alternativas para garantir os direitos da criança.
Uma senhora professora, moradora de uma área rural, sugere então a adaptação da escola à
realidade dos agricultores e seus filhos, que tem trabalhos sazonais. Sua proposta é que a
escola funcione de forma diferenciada das demais evitando a reprovação de inúmeras
crianças e adolescentes que participavam da colheita ou do plantio com os pais.
Imediatamente ela foi avisada que se fizesse isto, estaria contra a lei: trabalho infantil é
proibido. Diante dos olhos arregaladas daquela senhora, que como todos ali parecia
preocupada tanto com o direito de todas as crianças do Brasil, quanto com a situação das
crianças que ela própria acompanhava na sua comunidade rural, podemos refletir sobre
como o estatuto da criança e do adolescente tem a mesma perspectiva discutida por
Dumont (2000) quando aborda o individualismo como valor. A supremacia do ECA sobre
as diversas realidades do país, aplicando a lei para diferentes realidades, parece fazer parte
da continuidade de um projeto moderno, que entende o indivíduo como valor acima de
tudo, - ou seja, o indivíduo é o termo englobante - e a criança definitivamente ganha o
estatuto de indivíduo. Assim, perante a lei, a família desta criança e adolescente que ajuda
na colheita é ilegal, pois desrespeita os direitos individuais de seus filhos.
A pergunta que fazemos é quais os processos que este tipo de legislação acarreta
nas diferentes dinâmicas dos grupos sociais? Como determinadas práticas de organização
social (familiar ou comunitária) acabam sofrendo sanções quando se aplica a lei a todas as
situações, indiscriminadamente?
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Para pensar este novo sujeito das sociedades complexas, se é que há alguma que
seja simples, o ECA, trazendo o estatuto de sujeito à infância, se apoia em uma noção de
infância homogênea e essencialista, (como fizeram as feministas e outros movimentos em
prol dos direitos humanos) colocando abaixo do mesmo estatuto todas as variações de
práticas e concepções dos primeiros anos da vida7, criando novas situações de exclusão e
principalmente de penalização.
Assim, quero destacar o entrave nas lutas pelos direitos humanos lembrando o
paradoxo instaurado na legislação que reconhece a infância e adolescência como sujeito de
direitos. Parece que na institucionalização da novos códigos de conduta, a mesma lei que
"liberta" é a que informa o sujeito que ele é explorado. A proibição do trabalho infantil
vem surpreendendo inúmeras pessoas que descobriram-se, tardiamente, como
trabalhadores infantis, e seus pais também tem sido tardiamente criminalizados.
O tratamento à infância no Brasil parece ter caminhado do Estado social de
abandonado a um crescente Estado penal da criança e do adolescente (quando o vê como
menor), e da família (quando a vê, sob quaisquer circunstancias como negligente).
A intenção deste texto não é desvalorizar os movimentos que buscam um país
mais igualitário e livre. Seus valores são, muitas vezes, valores que eu compartilho. Mas o
que pretendo é visualizar algumas continuidades e descontinuidades, paradoxos, inversões,
os jogos de verdade que se instauram nesta arena sobre a infância. Encerro citando Simmel,
lembrando sua sugestão de que não nos cabe acusar ou perdoar, mas refletir sobre novos
contextos e novas práticas e as contradições do mundo moderno e suas lutas por direitos.
"Uma vez que tais forças da vida que se estenderam para o interior das raízes e para o
cume do todo da vida histórica a que nós, em nossa efêmera existência, como uma célula,
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É bastante surpreendente vermos por exemplo, que nos grupos associados à tecnologia
reprodutiva, o estatuto do indivíduo seja dado já ao embrião, tão bem abordado por Tania Salem
(1997) e que em algumas comunidades do Nordeste Brasileiro, com alto índice de mortalidade
infantil, algumas práticas, como o batismo tardio, parecem demonstrar que a criança só recebe
este mesmo estatuto quando se tem certeza que "vingou" - ou seja, quando a família tem certeza
que não fará parte das estatísticas da mortalidade. Antes disto não há nome e não há o mesmo
apego ao bebê como se manifesta nos modelos propagados como moralmente corretos.
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só pertencemos como uma parte, não nos cabe acusar ou perdoar, senão compreender".
(Simell, 1979:25).
***
BIBLIOGRAFIA:
16
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Seminário "Fazendo Gênero II": Gênero e Saúde. Realizado entre 13 a 15 maio de 1998,
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17