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Índice Editorial
Editorial…………………………..2
Esta edição é eclética em termos de géneros. Pese embora tenha
Corvos no Fio, Csilla Kleinheincz…..3 iniciado o projecto tentando ter contos de FC da linha hard acabei, por
Herói da Causa, Telmo Marçal…….12 força das várias circunstâncias, por optar pela diversificação. Tenho,
Apêndice para Obra Desconhecida, Luís desta forma, para si, caro leitor, uma mescla de sobrenatural, horror e
Filipe Silva………………………...32 FC.
Origami, Santiago Eximeno………...37 E antes de apresentar o conteúdo desta edição uma palavra de
Sobre os autores………………….44 agradecimento, mais uma vez, ao Tiago Gama, editor do Phantastes,
que me enviou textos de dois autores estrangeiros para minha
Todos os direitos são pertença dos autores. apreciação. Um dos autores, Csilla Kleinheincz, foi seleccionado e o
Proibida a reprodução de qualquer texto sem
conto Corvos no Fio surge vertido para o nosso idioma naquela que é a
autorização expressa do respectivo autor.
segunda publicação desta jovem escritora em terras portuguesas.
Imagens de erlebnis, kenket e beccapark.
Telmo Marçal volta a marcar presença no NOVA com Herói da
Causa, um conto onde a velha máxima “quem não quer ser Lobo não
lhe veste a pele” tem superior expressividade.
Já anteriormente publicado online e no estrangeiro, Luís Filipe Silva
dá-nos Apêndice Para Obra Desconhecida, onde sob a forma de notas
temos um vislumbre dum futuro que pode estar ao virar da esquina.
Santiago Eximeno oferece-nos um conto de horror com laivos de
Clive Barker dos tempos áureos de Books of Blood. Um homem de
3.ª idade encontra num jovem um companheiro para a solidão mas
que verá o jovem nele? O conto venceu o prémio Ignotus de 2003.
Esta é também a edição onde opto, talvez definitivamente, por um
formato A4, disponibilizando-o como PDF já que o anterior formato
não foi do absoluto agrado de todos.
NOVA – e-zine de Ficção Científica e
Fantástico, número 2, Dezembro de 2007 Estou muito satisfeito com a qualidade desta edição e espero que
Email: thanabur@gmail.com esta satisfação perpasse para si, caro leitor, que em última análise é a
Site: nova-ezine.farvista.net
razão de ser da existência deste projecto.
O Editor
Outubro/Novembro, 2007
Csilla Kleinheincz
Os olhos de Krá faiscaram e Roárk deu um salto
para trás.
Caiu o silêncio. As penas eriçadas de Krá alisaram,
mas as garras continuavam cravadas bem fundo na
- NÃO ME ESTÁS A DAR a devida atenção. -
casca do ramo. Por cima deles, os habitantes dos céus
disse Roárk.
voavam, pretos, cinzentos, as vozes misturavam-se
A esposa não respondeu, manteve-se sentada na
com o barulho da cidade.
árvore, e o seu olhar brilhava no entrelaçado dos
As rodas dos carros guinchavam, a música vinda
ramos.
dos cafés e dos telhados, os sons faziam vibrar os fios
- Nunca me dás atenção. É má educação um corvo
esticados. E isso irritava Krá. Havia demasiado som
não levar o corpo quando voa para longe. Estás a
no ar. Na floresta, entre os picos verdes das
ouvir? E estou a arriscar a minha vida por ti. Porque é
montanhas era diferente.
que me casei contigo?
- Então, estavas a olhar para onde? - perguntou
Krá não respondeu, só eriçou as penas na parte de
Roárk.
trás do pescoço.
Krá apontou para a praça com o bico. - Aquele ali.
- Quem vai procurar o jantar? - perguntou Roárk, e
Está lá todos os dias.
inchou o peito. - Vou eu! E quem vai enxotar as
- São todos iguais.
pombas? Vou eu! E tu ficas aí agachada, sempre
sentada a olhar... a olhar... Estás a olhar para o quê, - Não acho.
hã? Ambos olharam por entre os ramos entrelaçados
- Oh, cala-te. - disse Krá, e virou-se para o marido. para a praça. Do lado oposto, no banco desgastado,
Os olhos estavam molhados. - Tu não sabes nada. Só estava sentado um rapaz de casaco preto, com uma
sabes crocitar, é só o que sabes. prancha de desenho nos joelhos. O cabelo caía-lhe
nos olhos, as mãos agitavam-se ao longo do papel
- Ingrata, - replicou Roárk, mas não lhe tocou. -
como um insecto branco. Ao desenhar mordia os
Mas quando os nossos filhos....
lábios.
- Que tem? - perguntou Roárk.
NOVA 3 Dezembro - 2007
- Estou curiosa por ele estar sempre ali. prédios cinzentos projectavam-se nas árvores
- E isso interessa? É um humano. despidas, os escorregas desertos e os baloiços sem
assentos.
Roárk começou a limpar as penas. Krá continuou a
observar o rapaz. O casaco preto e o cabelo escuro Krá observava a praça com a cabeça inclinada de
despenteado faziam-lhe lembrar penas arrepiadas. lado. Roárk andava algures à procura de comida, ou a
Como se tivesse apanhado uma chuvada, estava tudo discutir com outros corvos, mas apesar do frio ela
agarrado a ele. Fazia-lhe lembrar qualquer coisa, sentia-se primaveril. Krá debruçou-se entre os ramos
talvez um sonho, ou uma história de corvos. e observou o homem de preto no banco de jardim.
Reflectindo, encrespou as penas. Nas mãos segurava o bloco, como de costume.
Roárk pigarreou. - Vens jantar? Krá esticou-se, bateu as asas e voou. O ar elevou-a,
e pousou suavemente nas costas do banco. O rapaz
Krá olhou para ele, abanou os ombros, e com as
não deu por ela; abanou um pouco a cabeça, e
asas bem abertas voou até aos caixotes do lixo.
continuou a desenhar.
Espantaram todos os outros pássaros. Quando se
tratava de comer não havia amizade, nem entre eles Krá olhou para o bloco, sentiu-se como se tivesse
partilhavam as migalhas. sido atingida por uma pedra, só que o impacto não a
magoou. Na folha branca de desenho sobressaíam
Mais tarde, quando o céu começou a ficar bordado
linhas pretas entrelaçadas umas nas outras
pelas estrelas e os barulhos acalmaram, Roárk falou
estendendo-se para os lados. Corvos e ossos, penas e
de novo:
órbitas oculares, para sempre captadas na superfície
- Porque é que estavas a observar aquele homem?
de papel. Numa das páginas havia uma humana com
Krá não respondeu. O corpo negro formava uma
cara de pássaro sentada num ramo, pelas dobras da
figura esbelta na escuridão alaranjada pela luz dos
saia comprida não se percebia se eram pregas ou um
candeeiros. Por cima deles, mensagens invisíveis
grupo de penas. E os olhos... um ponto de luz
zumbiam no ar.
ressaltava do papel. Os olhos de Krá.
- Bem, - disse Roárk pigarreando, - seja como for,
Krá não sabia qual era a sua imagem, mas no
ele já foi para casa. Vamos dormir.
íntimo não tinha dúvida que era ela na folha de papel.
- Sim, vamos dormir. O rapaz roubou-lhe a alma, transformou-a e tornou-a
Roárk tocou nas asas da esposa. - Para toda a vida, semi-humana. Quem mais poderia ser?
Krá. Quem é este rapaz? De um salto nas costas do
- Para toda a vida, Roárk. - repetiu a esposa sem banco, aproximou-se e inclinou-se por cima dos
prestar atenção. Continuava presa ao pensamento que ombros dele. Na folha, os esqueletos desenvolveram
a tinha assaltado enquanto observava o rapaz. asas lentamente. Krá, pestanejando, observava a
* caneta a rolar por toda a folha, e de repente levantou
No dia seguinte, o asfalto da praça estava branco voo tocando no rosto do rapaz, que olhou para cima
perplexo.
resplandecente, até os charcos escuros estavam
iluminados pelo ar gelado. As sombras dos grandes - Já sei! - gritou Krá, e desapareceu por entre os
fios que zumbiam. - Roárk, já sei!
NOVA 4 Dezembro - 2007
- O que é que já sabes, mulher? - perguntou Roárk Como não conseguia nem rir nem chorar,
e esvoaçou lá de cima até junto da esposa. encolheu os ombros e olhou para a árvore.
- Já sei quem é este rapaz! *
Roárk resmungou. - Foi por isso que me chamaste? - Roárk? - perguntou Krá enquanto olhava as
- Eu não te chamei! - replicou Krá zangada. pessoas apressadas na rua. Pelas portas do teatro saía
Esvoaçavam no ar, à volta um do outro, as asas a luz e o público, saltos altos a tamborilar, as portas
criando um remoinho por cima das chaminés. dos carros a bater asperamente. A lua espreitava-os
detrás de uma antena.
- Vá lá, diz-me e vai-te embora, tenho coisas para
fazer! Krá observava as pessoas na rua, a correrem
apressadas, rindo e abanava a cabeça. - Roárk?
- Coisas de corvos! - atirou-lhe Krá com desprezo.
- Sim?
- De que sabes tu? Nem sequer és um corvo
genuíno! - O que se passa comigo?
Krá tentou bicá-lo, mas falhou. Lá do alto os Silêncio, e depois a voz rouca de Roárk soou. -
pombos insolentes gritaram-lhes: - O que se passa, Não se passa nada contigo. Não penses nisso.
Roárk? A senhora está nervosa? Krá, agradecida, aconchegou-se a ele. Precisava do
Repentinamente Krá virou-se e desceu. Pensou calor. As penas das asas estavam a tremer ao ritmo do
que Roárk a iria seguir, mas não ouviu o bater das coração.
asas atrás dela. Voltou rapidamente para a praça e - Tens demasiadas expectativas. Tens de te limitar
aconchegou-se no alto dum baloiço. O coração ainda ao corvo que és.
batia pesadamente. Quis atingir, ferir Roárk sem saber - Eu bem queria. - Os ombros de Roárk eram
por quê, mas nos seus ossos, nas suas penas havia a macios e quentes.
paixão quente dos últimos anos, do último Verão, dos
- Vais-te sentir melhor quando chegar a Primavera.
jovens passarinhos...
Só precisas de um par de filhotes, e...
De repente os ombros de Krá afrouxaram e parou
Krá voou para longe, os olhos amarelos brilhando
de crocitar. - Sou eu. Roárk tem razão, há qualquer
despeitosamente no escuro.
coisa errada comigo.
- Sim! Com certeza! O que queres de mim, Roárk?
Observava silenciosamente o rapaz enquanto ele
O que sou eu para ti?
desenhava até ficar com os dedos dormentes. Depois
- A minha companheira, - disse Roárk
levantou-se, arrumou o bloco, e com os ombros
silenciosamente. - Para toda a vida.
curvados afastou-se no meio das casas, o cabelo nos
Krá lastimou-se.
olhos.
- Sei disso! Sei disso, Roárk!
- Sei quem tu foste, - disse Krá nas costas dele, e
de repente sentiu vontade de rir e chorar. Era uma As asas tocavam ao de leve nos ramos, alvoroçava
sensação estranha, como se quisesse morrer, mas não as penas ao debater-se nos padrões entrelaçados dos
era isso. galhos, mas não parou. Acabou por sair da copa nua e
lançou-se na noite de índigo diluído.
Sorriu, hesitante, virou-se e lançou-se à mole de ser alimentada e estou contigo. Dizem que sou forte.
pessoas. - E és. - disse Krá com sentimento de culpa na
Lentamente a intranquilidade e o medo voz.
desapareceram, e a felicidade instalou-se. Gostava de - No entanto não o sou suficientemente para ti.
ser alta e de poder ver as cores - a luz dourada dos Krá não respondeu, apenas baixou a cabeça.
candeeiros inundou-lhe os olhos e lavou-lhe os - Então falta alguma coisa. Os filhotes?
pensamentos. O vermelho era como o calor de uma
- Estar com eles. - Porque és louca. - disse o rapaz sem olhar para
ela.
Um relâmpago azulado faiscou. Oh, aqueles olhos.
Krá respirou fundo.
- Eu não escolhi.
- Então deixa-me falar contigo.
Krá ficou silenciosa. Sentia que alguma coisa
desagradava ao rapaz, por isso caminhava de cabeça Ele fez um movimento impaciente e riu-se
baixa ao lado dele, olhando os sapatos de atacadores nervosamente.
- Pronto. Está bem. Vamos falar... És
completamente louca, sabias? - resmungou, mas abriu
1Expressão idiomática de origem desconhecida. Quase todas as a porta. Enquanto subiam as escadas até ao segundo
fontes citam um incidente ocorrido durante as tréguas da guerra
norte-americana de 1812. Segundo as fontes um oficial britânico andar, as palavras afluíam-lhe aos lábios. - És
desarmado encontrou um caçador norte-americano perto do rio
Niágara, apoderou-se do mosquete deste e forçou-o a comer um absolutamente incrível... não me conheces. Estavas a
corvo que ele próprio tinha acabado de alvejar. N. E.
NOVA 8 Dezembro - 2007
falar a sério? As raparigas não costumam oferecer-se. - Muito. - Levantou-se e aproximou-se do rapaz. -
Nem mesmo as loucas. Estavas só a brincar ou era Obrigada.
mesmo a sério? Por um momento ele não proferiu palavra, depois
- Absolutamente a sério, - exclamou Krá, - sempre. perguntou com hesitação:
O rapaz riu-se, mas a voz começou a mudar, a - E ainda não desististe da ideia, pois não? O teu
hesitação desapareceu. Quando chegou à porta, e o marido sabe?
molho de chaves tilintou de novo, estava totalmente - Não, - disse Krá e olhou de perto os olhos azuis
confiante. do rapaz. Veios índigo escuros estendiam-se a partir
- Está bem, então entra! das pupilas.
O apartamento estava cheio de imagens, posters - Espero que não haja problema. Olha, tu és muito
com corvos, gralhas, esqueletos e pessoas com olhos gira, mas... isto nunca me aconteceu antes, -
de gato. Havia roupas espalhadas pelo chão, mas nem sussurrou. - E foste tu que quiseste. Ainda queres?
o rapaz, nem Krá se importaram com a desarrumação - Eu escolhi-te, - disse Krá à vontade. - Os corvos
do quarto. são monógamos, mas já não sou um corvo, - e riu-se
- Não há cores, - declarou Krá. Todo aquele preto com um tom de amargura. -Não quero saber do que
e cinzento pareceram-lhe fastidiosamente familiares. o meu marido vai dizer.
- Não gosto delas. Habituei-me ao preto. Humm... - Não te posso prometer nada, compreendes?
queres beber alguma coisa? Vamos apenas beijar-nos, abraçar-nos, estar juntos...
- Bebo quando tiver sede. não te conheço. Digamos que...
Indicou a Krá um colchão para se sentar e - Aprendeste a falar assim tanto com as pessoas? -
instalou-se numa almofada velha em frente a ela. perguntou Krá e agarrou o rapaz pelos ombros.
- Então... de que queres falar? A seguir ficaram em silêncio por algum tempo.
Ambos eram desajeitados, mas Krá não desistiu da
Krá encolheu os ombros.
intenção, insistiu, decidiu que ficaria satisfeita porque
- De muitas coisas. Deixei o meu marido, sabes.
tinha optado por esta solução, e enganar-se-ia a si
- Não sabia.
própria se não ficasse satisfeita. O espaço que estava
- Por tua causa. Fiquei a observar-te enquanto fechado dentro de si abriu-se, e estava a preenchê-lo
desenhavas... - Krá olhou para as paredes e suspirou. - com sensações. Se lhe sabia bem não era importante,
Depois disso, nada me satisfazia. É possível que já o importante era que Roárk já não existia. Para toda a
faltasse qualquer coisa antes, mas não me tinha vida? A voz interior gritou, e riu-se sem emitir um
apercebido. som. Aí tens!
- Gostaste deles? - perguntou o rapaz Ela mudou, o rapaz fora o catalisador, o homem
cautelosamente e ligeiramente corado. Não olhava no banco de jardim, e Krá puxava-o impiedosamente,
directamente para Krá, só pelos cantos dos olhos, acariciando-o, esperando que a transição continuasse,
como os pássaros. que o velho eu se extinguisse e se tornasse quem ela
Krá sorriu-lhe. queria ser.
- Ainda bem que fala em químicos. Quero que - Eu sabia, estavas só a disfarçar, não era? Para eles
tenha o máximo de cuidado com os preparados. O não te poderem bater mais. Olha, meu amigo, bem
tipo não me serve de nada se ficar tolinho da cabeça. vejo que já sofreste muito, mas não podes desistir
agora. Foste condenado, já nada de pior te pode
acontecer. Tens de lutar pela causa até ao fim. Para
Na verdade Ornatus Ludiv não passa de um agente
que todo o sofrimento não tenha sido em vão.
infiltrado. O melhor, o mais corajoso e determinado
Atenção, parece que eles vêm aí!
que foi possível encontrar nas fileiras. Quem
A enfermaria tem quatro catres, apenas dois estão
desconfiará agora, depois de um dia tão preenchido às
ocupados de momento. Está isolada do consultório
mãos dos algozes, que a sua culpabilidade é forjada?
por uma pesada cortina, que se abre para dar
Que as suas tendências Simpáticas são mera
passagem ao clínico de serviço e a Tanus Ordicus.
artimanha?
- É este o seu rapaz? Ainda não acordou. Estou a
Tanus Ordicus, mentor e artífice de toda a
pensar mandá-lo para o redil tal como está.
operação, receia que o seu homem, fanático da
Precisamos das camas, sabe…
perfeição como é, tenha levado as coisas longe de
mais. Mesmo depois de ouvir os prognósticos - Compreendo… E quem é a moça?
optimistas ainda está apreensivo. Era uma chatice se o - A namoradinha de um dos vossos Inquiridores. A
infiltrado morresse simplesmente, sem proveito para besta partiu-lhe os dois pulsos e rebentou-lhe o
a nação nem direito a glória póstuma. buraco do cu. Está quase recuperada.
- Durante o interrogatório?
Há dois dias que Ornatus está completamente - Não! Antes disso, numa sessão privada. Tivemos
desperto e ainda ninguém deu por nada. O homem é de a pôr minimamente capaz. Segue ainda hoje lá para
um génio da simulação. Mudam-lhe a fralda com baixo, para ser interrogada.
merda, enfiam-lhe papas pela goela, lavam-no com - Compreendo… Bem, vamos fazer como você
uma esponja, sem conseguirem perceber que o coma aconselha. Se o condenado não acordar digam-me,
terminou. Na enfermaria está acamada apenas mais que eu trato de o retirar. Mas dêem-lhe mais dois dias.
uma colega. A tipa parece que desconfia de qualquer Não há aqui falta nenhuma de camas. Sabe que temos
coisa, a julgar pela conversa em surdina quando ficam muitos olhos em cima de nós, nem toda a gente
sozinhos. compreende a necessidade de rigor. Preferimos não o
- Ei! Consegues ouvir-me, não consegues? Se tirar daqui neste estado.
conseguires faz qualquer coisa. Abana um dedo, mexe - Pfff! A merda das relações públicas. E depois
o braço… ainda se queixam…
Após a chuva de detergente e água segue-se uma As opções de Ornatus estão muito condicionadas
nuvem de pó avermelhado que adere à pele húmida e pela debilidade física, por isso escolhe o abrigo mais
queima. próximo. Confirma que está deserto, aninha-se na
palha a curtir a última pontada de febre e adormece,
“Avançar depressa até à próxima zona.”
faltando à chamada para o repasto ao fim da tarde.
O ardor extingue-se com as bátegas de água fria
Com o anoitecer chega companhia à barraca, mas ele
que lavam a pasta. A secagem é assegurada por um
nem os pressente.
ciclone morno. Na paragem seguinte o bufo recebe
A buzina do despertar guincha como um porco em
ordem para envergar a libré do lugar. Calça e túnica
apuros. O reconforto de uma noite bem dormida,
cor de areia, chapéu largo em fibra forte, botas
aliado aos apoios medicamentosos ministrados no
castanhas de plástico moldado.
último momento, retemperaram o ânimo ao espião.
“Cada prateleira tem uma farda completa.
Pela primeira vez em vários dias sente-se
Tamanho grande, médio e pequeno. Vestir a que for
perfeitamente lúcido e sem dores. Espreguiça-se
mais adequada. O tempo disponível para esta
prazenteiramente.
operação é de dois minutos.”
Um condenado entra de rompante pela cortina às
É quanto basta.
tiras que protege a abertura do abrigo e aterra-lhe em
“Terminou o tempo! Avançar imediatamente. No
cima. Prende Ornatus num abraço rude e sussurra-lhe
próximo posto será feita uma inspecção. Qualquer
com os lábios encostados ao ouvido:
não conformidade será severamente punida.”
- Não te descuides! Não podes falar. Eles vão
À boca do túnel sombrio estão dois polícias
provocar-te, dar-te ordens, fazer perguntas… não
protegidos com armadura. Não são muito minuciosos
abras a boca. Eu tomo conta de ti. Eu tomo conta de
na inspecção, limitam-se a mirá-lo de alto a baixo.
todos. Aqui todos têm o cérebro queimado, menos
Um deles usa o chicote para incentivar Ornatus a
eu. Não te preocupes! Faz o que te mandam e não
Tampa a garrafa, ainda com líquido, e atira-a O grupo original é mandado de volta ao local de
intencionalmente na direcção de Ornatus, que a trabalho designado. Retemperado pela pausa, Ornatus
agarra num acto reflexo. Nem que fosse veneno! A não hesita em lançar mãos mais diligentes à terra
sede é tanta que o recipiente é esvaziado num trago. dura. Não aproveita a pá abandonada pelo monstro,
por desconhecimento das regras aplicáveis à permuta
A preguiçosa desfigurada é forçada a erguer-se um
de utensílios. A fiel depositária da ferramenta anda
pouco para o homem da lei lhe avaliar a condição.
para ali às voltas, como uma tonta, sem se afastar em
Este sacode-a levemente, resmunga, e ampara-a de
demasia. A outra fêmea, mais discreta, vai fingindo
volta à posição horizontal. Depois abeira-se de
que trabalha. Sem que nada o fizesse prever atreve-se
Ornatus em duas passadas bruscas, arranca-lhe o
a quebrar a regra da incomunicabilidade.
recipiente vazio das mãos e dá meia volta,
regressando para donde veio. - És um bom filho da puta! – afirma entre dentes. -
Há bocado bebeste a água toda que o polícia te deu.
- Trabalhem, seus cabrões! – sugere ele, à
Estás aqui por ser Simpático, meu cabrão! Daqui já
despedida.
não passas. Este não é o lugar mais indicado para
A subversiva retoma as cantilenas sem pés nem
esquecermos o principal motivo da nossa luta.
cabeça.
Lembras-te? A solidariedade com os nossos
semelhantes.
O tempo arrasta-se na mesma toada de pasmaceira
Ornatus apanha um compreensível susto. Mais
até soar a buzina, simultaneamente nas quatro torres.
uma vez vê-se envolvido sem querer numa grave
A mulher mais nova põe a ferramenta ao ombro e
ofensa aos preceitos. Não admira que a vida dos
encaminha-se para a zona dos abrigos e demais
insurrectos em cativeiro seja curta. Nem face ao
instalações de apoio. A outra levanta-se e segue-a um
castigo mostram o mínimo respeito pela disciplina.
sobreviver um dia. Eu vou continuar a proteger-te. aproveitamento. Pode ser eliminada de imediato. Eu
Não comas o cubo de amido que deram para a deixo a informação no sistema, à saída.
sobremesa. É a tua contribuição para a resistência. À Quando desfaz a continência, a guardiã do redil
noite vou ter contigo para mo dares, depois falamos relanceia em volta à procura dos semblantes menos
melhor. imbecilizados.
(2) a citação não provêm de Kemp, mas é adaptada como mau planeamento, condições ambientais,
de uma conclusão do ensaio de Hamasi: «[a instabilidade política, falta de financiamento, falta de
o surgimento de nódulos auto-reguladores que são logísticas. Interessante é o facto de nos 40%
anula o efeito da primeira, e sobre este pano neutral controlo e financiamento de países e entidades
inscrever a sua própria interpretação» e ainda «quem ocidentais, que reservam para si os direitos
identidades falsas, obter senhas e contra-senhas e (6) cf. Kropotkin às Avessas, S. Biergenstein e Unidade
efectuar espionagem de informação de forma barata e Pan-Europeia: Tecnocracia com Pernas, M. Holder (ambos
imediata.» Nova Iorque, 19PCI).
2 3
O tempo passa muito devagar quando na vida nada Numa manhã como qualquer outra, decidi voltar
tem sentido. Permiti que a rotina do lar me ao parque. À luz do Sol tudo parecia diferente. Onde
envolvesse e durante meses limitei-me a comer, antes encontrava mistério e sedução, agora florescia a
dormir e ver televisão na sala de convívio. À minha vulgaridade. Uma multidão de crianças inundava o
volta formavam-se grupos de amigos que local, correndo de um lado para o outro, deslizando
organizavam partidas de cartas ou dominó com nos tobogãs, brincando nos baloiços, perseguindo-se,
apostas ínfimas para não arruinar a pensão a rindo, brigando... Em duas ocasiões tive que
ninguém. Um par de vezes convidaram-me a juntar- abandonar o caminho de terra para permitir que uma
me a eles e recusei com cortesia. Preferia enterrar-me mulher passasse com um carrinho-de-bebé. Não, não
num dos cadeirões e permanecer umas horas vendo era esta a imagem que eu recordava, nem a que
qualquer coisa que emitissem. As discussões com a procurava.
escolha do canal tornaram-se tão aborrecidas que Voltei ao lar e comi em silêncio, numa mesa
quando alguém se dirigia a mim para perguntar a afastada. Serviam-se sempre dois pratos, primeiro um
minha opinião, premiava-o com um sorriso idiota, leve e variado e um segundo forte, mas baixo em
improvisava uma desculpa e subia ao meu quarto para gorduras, para cuidar da nossa dieta. O vinho era
dormir. permitido, mas só um copo por refeição. Eu comia
Na residência tínhamos uma pequena biblioteca, sempre com água, e só provava um bocado se o
um quarto diminuto de paredes cinzentas e primeiro prato fosse uma sopa e o segundo peixe
descascadas com várias estantes de metal, nas quais se grelhado, como costumavam servir-nos todos os dias
empilhavam caoticamente todo o tipo de exemplares da semana menos às quintas-feiras. Uma das
manuseados e estragados pelo tempo. Um dia decidi enfermeiras aproximou-se de uma das mesas mais
pegar num par de livros e preencher as minhas noites afastadas e ajudou uma mulher a sentar-se. Observei a
de insónia, que não eram poucas, com eles. As cena distante, como se não pertencesse a este lugar.
enfermeiras percorriam os corredores à noite, Auto-sugestão, chamam-lhe.
dizendo-nos que apagássemos as luzes como se
NOVA 38 Dezembro - 2007
A tarde decorreu com indolência, sentado frente ao O jovem apareceu por um dos caminhos laterais,
televisor sem sequer prestar atenção ao écran, dançando alegremente atrás de um enorme avião de
acompanhado pelo sussurro constante das peças de papel. O avião balanceou um par de vezes, desviou-
dominó resvalando sobre uma das mesas próximas. se, e finalmente o peso da cabeça levou-o a estatelar-
Aproveitei um dos intervalos da programação para ir se contra o solo, a uns centímetros do meus pés.
à casa-de-banho, e tive que esperar vários minutos Nervoso, agachei-me e segurei aquele papel dobrado
que um dos abandonados terminasse. Recordo que entre as mãos. Notei, admirado, que parecia estar
aquele adjectivo, abandonados, surgiu de um dos quente e palpitar na minha mão.
guardas de segurança num daqueles longínquos dias - Boa noite. - disse o jovem, estendendo a mão e
de festa, quando ninguém se preocupava com os apertando torpemente a minha enquanto tentava não
copos de vinho que consumíamos às refeições. Não deixar cair o avião. - Não pensei voltar a vê-lo por
voltámos a vê-lo, mas a palavra ficou associada a aqui.
todos aqueles que entre nós nunca recebiam visitas,
Sorri. O facto dele se lembrar de mim encheu-me
nem de familiares, nem de amigos. Agora eu fazia
de alegria. Abri mais o sorriso e devolvi-lhe o
parte do grupo.
brinquedo.
À noite, como de costume, instaram-nos a
- Chamo-me Eduardo. – disse. - Conhece o Ken
recolhermos aos nossos quartos. Depois de vários
Blackburn?
minutos de discussão com a enfermeira da recepção,
Neguei com a cabeça enquanto rebuscava nos
que repetidas vezes aludiu à minha propensão a ter
bolsos do meu fato de treino de forma dissimulada.
um enfarte, aos meus problemas da próstata e ao meu
Há muito tempo que esperava este encontro e queria
cansaço e preguiça habitual, consegui que me dessem
mostrar àquele jovem estranho os meus próprios
uma chave que me permitia sair para dar um breve
progressos. No fundo temia que se risse de mim, mas
passeio. A palavra breve foi reforçada com
ao menos devia tentar. Por fim tirei do bolso direito
insistência.
um pequeno modelo de avião feito com uma folha
O parque destilava silêncio na penumbra do
quadrada do bloco de notas que repousava na minha
anoitecer. Quebrei o encanto arrastando os sapatos
mesinha.
pelo chão de terra. Levava um fato de treino azul e
- Fiz isto. - murmurei, envergonhado.
sapatos, a imagem típica do velho decrépito. Mas
Eduardo sorriu abertamente e pegou-lhe. Não
também não me importava demasiado com o que os
deixou de sorrir embora os olhos mostrassem outra
outros pensavam de mim, para ser sincero. Caminhei
coisa. Notei, curioso, um gesto inesperado de repulsa
um pouco, olhando para um lado e para o outro,
quando o tomou nas mãos. Depois retocou com
esperando com o coração nas mãos. Quando
cuidado os airelons e lançou-o em direcção a um dos
envelhecemos restam poucos momentos de
bancos de pedra. O avião planou uns segundos,
verdadeiro prazer. Este era um deles: o prazer da
apenas quatro ou cinco, e aterrou sem contratempos
espera, a sensação de que ia acontecer um momento
sobre o banco.
mágico.
E aconteceu.
Encontrávamo-nos sempre no parque ao anoitecer, me doía essa falta de confiança, e uma noite censurei-
com tédio até chegar o momento de nos vermos. As - Copiá-las, Paco? - e explodiu numa gargalhada. -
enfermeiras tinham notado o aumento dos meus Não, amigo, não se trata disso. É... não sei, não
passeios nocturnos, mas parecia que tal não as consigo explicar-lhe de forma fácil. Simplesmente,
preocupava demasiado. Melhor, não me agradava a assim que as termino, ninguém deve tocá-las.
ideia de ter que justificar as minhas andanças na Ninguém, nem mesmo eu. Entendes?
Csilla Kleinheincz é uma jovem escritora húngaro-vietnamita de 28 anos de idade. Traduziu clássicos do
género fantástico tais como as obras de Peter S. Beagle, trabalha como editora na Delta Vision um dos maiores
editores húngaros de Fantasia. A sua primeira novela, publicada em 2005, e muitos dos contos são parte da literatura
slipstream húngara.
Visite o blogue dela em <http://kleinheinczcsilla.deltavision.hu/wordpress/>.
Telmo Marçal é autor de contos de FC que misturam um certo tom kafkiano com uma ironia mordaz muito
própria. Recentemente o conto O Pico de Hubert surgiu na antologia Por Universos Nunca Dantes Navegados.
Consulte o primeiro número do NOVA para uma bibliografia.
Luís Filipe Silva recebeu em 1991 o prémio Caminho Ficção Científica pela colectânea O Futuro à Janela,
agora disponível em e-book no site que mantém em <http://www.tecnofantasia.com/>. É autor do ciclo
GalxMente, composto de duas novelas, Cidade da Carne e Vinganças e co-escritor com João Barreiros do vasto
romance Terrarium. O conto aqui publicado surgiu originalmente em castelhano na revista argentina Axxón e foi
seleccionado para representar Portugal na antologia Creatures of Glass and Light: New European Stories of the
Fantastic, livro publicado por ocasião da Eurocon 2007. O mais recente trabalho é a noveleta Aquele que Repousa na
Eternidade inserida na colectânea A Sombra sobre Lisboa: Contos Lovecraftianos na Cidade das Sete Colinas.
Recentemente foi também editor da antologia Por Universos Nunca Dantes Navegados.
Santiago Eximeno nasceu em Madrid em 1973 e é um prolífico autor publicado em diversas antologias e várias
vezes premiado. Já traduzido para inglês, francês, búlgaro, japonês e agora, pela primeira vez, para português. Já
recebeu o prémio Ignotus da Associação Espanhola de Fantasia, Ficção Científica e Terror <
http://www.aefcft.com/> por duas vezes e o prémio Xatafi-Cyberdark. Pode visitar o site do autor em <
http://www.eximeno.com/>.