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NOVA 1 Dezembro - 2007

NOVA – E-ZINE DE FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTÁSTICO

Índice Editorial
Editorial…………………………..2
Esta edição é eclética em termos de géneros. Pese embora tenha
Corvos no Fio, Csilla Kleinheincz…..3 iniciado o projecto tentando ter contos de FC da linha hard acabei, por
Herói da Causa, Telmo Marçal…….12 força das várias circunstâncias, por optar pela diversificação. Tenho,
Apêndice para Obra Desconhecida, Luís desta forma, para si, caro leitor, uma mescla de sobrenatural, horror e
Filipe Silva………………………...32 FC.
Origami, Santiago Eximeno………...37 E antes de apresentar o conteúdo desta edição uma palavra de
Sobre os autores………………….44 agradecimento, mais uma vez, ao Tiago Gama, editor do Phantastes,
que me enviou textos de dois autores estrangeiros para minha
Todos os direitos são pertença dos autores. apreciação. Um dos autores, Csilla Kleinheincz, foi seleccionado e o
Proibida a reprodução de qualquer texto sem
conto Corvos no Fio surge vertido para o nosso idioma naquela que é a
autorização expressa do respectivo autor.
segunda publicação desta jovem escritora em terras portuguesas.
Imagens de erlebnis, kenket e beccapark.
Telmo Marçal volta a marcar presença no NOVA com Herói da
Causa, um conto onde a velha máxima “quem não quer ser Lobo não
lhe veste a pele” tem superior expressividade.
Já anteriormente publicado online e no estrangeiro, Luís Filipe Silva
dá-nos Apêndice Para Obra Desconhecida, onde sob a forma de notas
temos um vislumbre dum futuro que pode estar ao virar da esquina.
Santiago Eximeno oferece-nos um conto de horror com laivos de
Clive Barker dos tempos áureos de Books of Blood. Um homem de
3.ª idade encontra num jovem um companheiro para a solidão mas
que verá o jovem nele? O conto venceu o prémio Ignotus de 2003.
Esta é também a edição onde opto, talvez definitivamente, por um
formato A4, disponibilizando-o como PDF já que o anterior formato
não foi do absoluto agrado de todos.
NOVA – e-zine de Ficção Científica e
Fantástico, número 2, Dezembro de 2007 Estou muito satisfeito com a qualidade desta edição e espero que
Email: thanabur@gmail.com esta satisfação perpasse para si, caro leitor, que em última análise é a
Site: nova-ezine.farvista.net
razão de ser da existência deste projecto.
O Editor
Outubro/Novembro, 2007

NOVA 2 Dezembro - 2007


CORVOS NO FIO

Csilla Kleinheincz
Os olhos de Krá faiscaram e Roárk deu um salto
para trás.
Caiu o silêncio. As penas eriçadas de Krá alisaram,
mas as garras continuavam cravadas bem fundo na
- NÃO ME ESTÁS A DAR a devida atenção. -
casca do ramo. Por cima deles, os habitantes dos céus
disse Roárk.
voavam, pretos, cinzentos, as vozes misturavam-se
A esposa não respondeu, manteve-se sentada na
com o barulho da cidade.
árvore, e o seu olhar brilhava no entrelaçado dos
As rodas dos carros guinchavam, a música vinda
ramos.
dos cafés e dos telhados, os sons faziam vibrar os fios
- Nunca me dás atenção. É má educação um corvo
esticados. E isso irritava Krá. Havia demasiado som
não levar o corpo quando voa para longe. Estás a
no ar. Na floresta, entre os picos verdes das
ouvir? E estou a arriscar a minha vida por ti. Porque é
montanhas era diferente.
que me casei contigo?
- Então, estavas a olhar para onde? - perguntou
Krá não respondeu, só eriçou as penas na parte de
Roárk.
trás do pescoço.
Krá apontou para a praça com o bico. - Aquele ali.
- Quem vai procurar o jantar? - perguntou Roárk, e
Está lá todos os dias.
inchou o peito. - Vou eu! E quem vai enxotar as
- São todos iguais.
pombas? Vou eu! E tu ficas aí agachada, sempre
sentada a olhar... a olhar... Estás a olhar para o quê, - Não acho.
hã? Ambos olharam por entre os ramos entrelaçados
- Oh, cala-te. - disse Krá, e virou-se para o marido. para a praça. Do lado oposto, no banco desgastado,
Os olhos estavam molhados. - Tu não sabes nada. Só estava sentado um rapaz de casaco preto, com uma
sabes crocitar, é só o que sabes. prancha de desenho nos joelhos. O cabelo caía-lhe
nos olhos, as mãos agitavam-se ao longo do papel
- Ingrata, - replicou Roárk, mas não lhe tocou. -
como um insecto branco. Ao desenhar mordia os
Mas quando os nossos filhos....
lábios.
- Que tem? - perguntou Roárk.
NOVA 3 Dezembro - 2007
- Estou curiosa por ele estar sempre ali. prédios cinzentos projectavam-se nas árvores
- E isso interessa? É um humano. despidas, os escorregas desertos e os baloiços sem
assentos.
Roárk começou a limpar as penas. Krá continuou a
observar o rapaz. O casaco preto e o cabelo escuro Krá observava a praça com a cabeça inclinada de
despenteado faziam-lhe lembrar penas arrepiadas. lado. Roárk andava algures à procura de comida, ou a
Como se tivesse apanhado uma chuvada, estava tudo discutir com outros corvos, mas apesar do frio ela
agarrado a ele. Fazia-lhe lembrar qualquer coisa, sentia-se primaveril. Krá debruçou-se entre os ramos
talvez um sonho, ou uma história de corvos. e observou o homem de preto no banco de jardim.
Reflectindo, encrespou as penas. Nas mãos segurava o bloco, como de costume.

Roárk pigarreou. - Vens jantar? Krá esticou-se, bateu as asas e voou. O ar elevou-a,
e pousou suavemente nas costas do banco. O rapaz
Krá olhou para ele, abanou os ombros, e com as
não deu por ela; abanou um pouco a cabeça, e
asas bem abertas voou até aos caixotes do lixo.
continuou a desenhar.
Espantaram todos os outros pássaros. Quando se
tratava de comer não havia amizade, nem entre eles Krá olhou para o bloco, sentiu-se como se tivesse
partilhavam as migalhas. sido atingida por uma pedra, só que o impacto não a
magoou. Na folha branca de desenho sobressaíam
Mais tarde, quando o céu começou a ficar bordado
linhas pretas entrelaçadas umas nas outras
pelas estrelas e os barulhos acalmaram, Roárk falou
estendendo-se para os lados. Corvos e ossos, penas e
de novo:
órbitas oculares, para sempre captadas na superfície
- Porque é que estavas a observar aquele homem?
de papel. Numa das páginas havia uma humana com
Krá não respondeu. O corpo negro formava uma
cara de pássaro sentada num ramo, pelas dobras da
figura esbelta na escuridão alaranjada pela luz dos
saia comprida não se percebia se eram pregas ou um
candeeiros. Por cima deles, mensagens invisíveis
grupo de penas. E os olhos... um ponto de luz
zumbiam no ar.
ressaltava do papel. Os olhos de Krá.
- Bem, - disse Roárk pigarreando, - seja como for,
Krá não sabia qual era a sua imagem, mas no
ele já foi para casa. Vamos dormir.
íntimo não tinha dúvida que era ela na folha de papel.
- Sim, vamos dormir. O rapaz roubou-lhe a alma, transformou-a e tornou-a
Roárk tocou nas asas da esposa. - Para toda a vida, semi-humana. Quem mais poderia ser?
Krá. Quem é este rapaz? De um salto nas costas do
- Para toda a vida, Roárk. - repetiu a esposa sem banco, aproximou-se e inclinou-se por cima dos
prestar atenção. Continuava presa ao pensamento que ombros dele. Na folha, os esqueletos desenvolveram
a tinha assaltado enquanto observava o rapaz. asas lentamente. Krá, pestanejando, observava a
* caneta a rolar por toda a folha, e de repente levantou

No dia seguinte, o asfalto da praça estava branco voo tocando no rosto do rapaz, que olhou para cima
perplexo.
resplandecente, até os charcos escuros estavam
iluminados pelo ar gelado. As sombras dos grandes - Já sei! - gritou Krá, e desapareceu por entre os
fios que zumbiam. - Roárk, já sei!
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- O que é que já sabes, mulher? - perguntou Roárk Como não conseguia nem rir nem chorar,
e esvoaçou lá de cima até junto da esposa. encolheu os ombros e olhou para a árvore.
- Já sei quem é este rapaz! *
Roárk resmungou. - Foi por isso que me chamaste? - Roárk? - perguntou Krá enquanto olhava as
- Eu não te chamei! - replicou Krá zangada. pessoas apressadas na rua. Pelas portas do teatro saía
Esvoaçavam no ar, à volta um do outro, as asas a luz e o público, saltos altos a tamborilar, as portas
criando um remoinho por cima das chaminés. dos carros a bater asperamente. A lua espreitava-os
detrás de uma antena.
- Vá lá, diz-me e vai-te embora, tenho coisas para
fazer! Krá observava as pessoas na rua, a correrem
apressadas, rindo e abanava a cabeça. - Roárk?
- Coisas de corvos! - atirou-lhe Krá com desprezo.
- Sim?
- De que sabes tu? Nem sequer és um corvo
genuíno! - O que se passa comigo?

Krá tentou bicá-lo, mas falhou. Lá do alto os Silêncio, e depois a voz rouca de Roárk soou. -
pombos insolentes gritaram-lhes: - O que se passa, Não se passa nada contigo. Não penses nisso.
Roárk? A senhora está nervosa? Krá, agradecida, aconchegou-se a ele. Precisava do
Repentinamente Krá virou-se e desceu. Pensou calor. As penas das asas estavam a tremer ao ritmo do
que Roárk a iria seguir, mas não ouviu o bater das coração.
asas atrás dela. Voltou rapidamente para a praça e - Tens demasiadas expectativas. Tens de te limitar
aconchegou-se no alto dum baloiço. O coração ainda ao corvo que és.
batia pesadamente. Quis atingir, ferir Roárk sem saber - Eu bem queria. - Os ombros de Roárk eram
por quê, mas nos seus ossos, nas suas penas havia a macios e quentes.
paixão quente dos últimos anos, do último Verão, dos
- Vais-te sentir melhor quando chegar a Primavera.
jovens passarinhos...
Só precisas de um par de filhotes, e...
De repente os ombros de Krá afrouxaram e parou
Krá voou para longe, os olhos amarelos brilhando
de crocitar. - Sou eu. Roárk tem razão, há qualquer
despeitosamente no escuro.
coisa errada comigo.
- Sim! Com certeza! O que queres de mim, Roárk?
Observava silenciosamente o rapaz enquanto ele
O que sou eu para ti?
desenhava até ficar com os dedos dormentes. Depois
- A minha companheira, - disse Roárk
levantou-se, arrumou o bloco, e com os ombros
silenciosamente. - Para toda a vida.
curvados afastou-se no meio das casas, o cabelo nos
Krá lastimou-se.
olhos.
- Sei disso! Sei disso, Roárk!
- Sei quem tu foste, - disse Krá nas costas dele, e
de repente sentiu vontade de rir e chorar. Era uma As asas tocavam ao de leve nos ramos, alvoroçava

sensação estranha, como se quisesse morrer, mas não as penas ao debater-se nos padrões entrelaçados dos

era isso. galhos, mas não parou. Acabou por sair da copa nua e
lançou-se na noite de índigo diluído.

NOVA 5 Dezembro - 2007


Sobrevoou os candeeiros das ruas, através das chaminé, e o verde como gotas de chuva nas penas.
iluminações de Natal que transformavam a rua na Via O azul? Era como flutuar no ar, o bater das asas.
Láctea. Misturou-se no barulho, os sons estridentes As outras pessoas mal reparavam nela, era igual a
dos travões dos carros, as sirenes das ambulâncias e a eles, e Krá banhava-se nos olhares que por vezes lhe
música que saía dos bares. Janelas escuras e lançavam.
iluminadas passavam rente a ela, até que chegou à rua
“Sou um ser humano,” pensou, e parou. Deixou os
principal, onde as árvores estavam cheias de lâmpadas
retardatários passarem por ela observando as roupas,
em vez de folhas, e aí pousou no pavimento.
as caras e as vozes. Sentiu-se leve, a insatisfação que a
À sua volta ouvia-se o roçar dos casacos e o bater invadira interiormente desaparecendo. Finalmente
dos sapatos. Quando uns saltos altos vermelhos sentia que pertencia algures.
passaram por ela, deu meia volta e foi atrás deles.
*
“Se ele conseguiu, eu também consigo”, pensou, e
Quando voou de volta à árvore, como corvo,
recordou o rapaz quando deixou a praça com as
tentou não fazer barulho para não acordar Roárk.
costas curvas e a cabeça baixa, com o casaco
Com cuidado aninhou-se ao lado do marido e enfiou
pendurado como duas asas fechadas. “Eu também
o bico entre as asas.
consigo...”
- Krá... - a voz de Roárk era profunda e desperta,
Sentiu comichão nos pés. Começou a crescer,
sem sinais de sonolência ou de estar a sonhar.
joelhos, ancas e ombros surgiam-lhe perante os olhos,
- Sim? - respondeu Krá com voz amorosa. Agora já
que se fixavam em frente, captando o olhar de outro
conseguia ser simpática. Fora humana até as ruas
ser humano. O homem afastou repentinamente o
ficarem vazias, e até o seu coração se encher de cores.
olhar, mas não foi isso que fez estremecer Krá.
Estava cheia de verdes, vermelhos e laranjas.
Baixou os olhos para si. Saia preta, mãos brancas,
- Diz-me... o que é que tenho de mal? - perguntou
sapatos pretos com atacadores. Olhou para cima, e
Roárk.
mirou-se numa das montras. Rosto branco, olhos
amarelo-âmbar e caracóis negros-azeviche. No coração de Krá, as cores preciosamente
guardadas desvaneceram-se.
Perdeu o equilíbrio, e por momentos sentiu um
medo desconhecido, medo de se ter perdido a si - Tens de mal?
própria. Mas depois reconheceu-se nos olhos - Eu esforço-me por ser um bom marido. Enxoto
reflectidos na montra. os outros pássaros, alimento-te quando precisas de

Sorriu, hesitante, virou-se e lançou-se à mole de ser alimentada e estou contigo. Dizem que sou forte.
pessoas. - E és. - disse Krá com sentimento de culpa na
Lentamente a intranquilidade e o medo voz.

desapareceram, e a felicidade instalou-se. Gostava de - No entanto não o sou suficientemente para ti.
ser alta e de poder ver as cores - a luz dourada dos Krá não respondeu, apenas baixou a cabeça.
candeeiros inundou-lhe os olhos e lavou-lhe os - Então falta alguma coisa. Os filhotes?
pensamentos. O vermelho era como o calor de uma

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- Não quero filhotes. - murmurou Krá, mas as - Eu sei como fizeste. Há semanas que te tenho
palavras saíram sem força. observado, sabes?
- Não te compreendo. - Semanas? - O rapaz olhou-a embaraçado.
- Creio que é exactamente esse o problema. Krá apontou para as árvores.
- Mas Krá... - disse Roárk suavemente, e os olhos - Era ali que eu estava sentada a observar-te
brilharam no escuro, - tu também não te enquanto desenhavas. Vi o que conseguiste fazer. Por
compreendes. isso achei que também conseguia... e tinha razão.
Nevou durante a madrugada e a praça estava - Não sei de que é que estás a falar.
coberta de branco. Só o vermelho do banco - Não faz mal. Não é urgente que compreendas
sobressaía, tal como um... Krá não sabia como para já.
compará-lo. As cores ainda eram novidade para ela.
Krá observava o rapaz, e o rapaz a ela. Fez-se
Estava em pé atrás da árvore, de vestido preto, silêncio, só se ouvia um chilrear de pássaros ao longe.
com o chapéu a tapar a cara e o casaco aberto. Por fim, o rapaz pigarreou e virou-se, abanando a
Aguentava o frio, como todos os pássaros. Pôs as cabeça silenciosamente ao mesmo tempo.
mãos no tronco e observou o trilho que atravessava a
- Bem, prazer em conhecer-te. Adeus!
praça - as pessoas que vieram passear os cães já
O coração de Krá desfaleceu.
tinham quebrado a cobertura branca. Gostava do
- Não vais desenhar?
facto de poder agarras as coisas e de poder virar o
pulso. A falta das asas incomodava-a um pouco, mas - Está frio.
havia tantas coisas que compensavam! A cor O rapaz começou a trilhar a neve estaladiça na
vermelha só por si, sim, só isso bastava, pensou, e direcção de onde tinha vindo, o casaco esvoaçando
decidiu que ia arranjar qualquer coisa vermelha. Aos atrás dele.
olhos dos pássaros tudo é branco, cinzento ou preto - - Não te vás embora! - Krá correu atrás dele,
e já estava farta disso. agarrando-lhe as asas - o casaco.
Não reparou no rapaz imediatamente porque Ele virou-se e olhou-a por entre o cabelo. - Não és
estava a olhar para as cores, e o casaco preto um pouquinho estranha?
misturava-se nos entrançados dos arbustos. Vinha a - Sou. E tu também. - replicou Krá asperamente, e
andar com a cabeça inclinada para a frente, com o depois perguntou:
cabelo colado à cara, e nas mãos segurava
- Posso ir contigo?
desesperadamente o bloco e a prancha de desenho.
Ele encolheu os ombros, mas abrandou para que
Krá lançou-se de detrás da árvore e correu para ele.
Krá o conseguisse acompanhar.
- Eu também consegui! - gritou ao rapaz, que
- Todos me acham estranha - continuou, Krá. - Já
estremeceu e olhou para cima. Os olhos eram grandes
estou acostumada. Ainda bem que reparei em ti.
e azuis. Um azul comovente.
Desde aí que me sinto muito mais eu, embora tudo
- O quê? - perguntou o rapaz.
seja novidade. As cores... a maneira como sinto o
Krá sorriu-lhe.

NOVA 7 Dezembro - 2007


meu corpo... Sim, estou feliz por ter reparado em ti no passeio lamacento à medida que eles espreitavam
no banco. por baixo da saia.
- Estás a falar a sério? - o rapaz olhou para ela e - Desejei fugir... - disse ela finalmente. - Há muito
parou ao lado do passeio. tempo que eu esperava por qualquer coisa... mas
- O quê? depois vi-te, e percebi que tinha de partir.

- Que me estiveste a observar? Falou com ar sério e pensativo. Sentiu que


precisava de ser cuidadosa: as palavras ora saíam com
- Com certeza. Não te disse já?
fluência ora ficavam presas na garganta. Nunca tinha
Atravessaram a passadeira de peões, seguindo a luz
falado tanto assim com Roárk. Como se a cada frase
verde.
fosse mudando um pouco, retirando uma pedra da
- Sempre observei as pessoas, - disse Krá. Sentia-se
calçada atrás dela.
feliz por poder falar. - Sempre me interessaram.
- E depois? - perguntou ele e parou em frente dum
Sempre tiveram um sentido de determinação, e ao
quarteirão de casas. Meteu a mão ao bolso e puxou
mesmo tempo é como se a alimentação e a procriação
um molho de chaves tilintantes.
não fossem os únicos objectivos, mas também muitas
- Parti por tua causa. - disse Krá suavemente, e
outras coisas, coisas pelas quais vale a pena viver...
fechou os olhos.
- É assim que pensas que são as pessoas? -
- Por minha causa?
perguntou ele.
- Não me queres?
- Foi assim que as vi. E tu também não comes
corvos1. - Meu Deus, eu...

Ele riu-se. Krá olhou para cima e franziu o sobrolho zangada.

- Sim, lá isso é verdade. - Sei o que estou a dizer. Quero-te. Deixas-me


entrar?
- Provavelmente foi por isso que escolheste o
mesmo... - Não.

- O quê? - Porquê? – o coração soçobrando.

- Estar com eles. - Porque és louca. - disse o rapaz sem olhar para
ela.
Um relâmpago azulado faiscou. Oh, aqueles olhos.
Krá respirou fundo.
- Eu não escolhi.
- Então deixa-me falar contigo.
Krá ficou silenciosa. Sentia que alguma coisa
desagradava ao rapaz, por isso caminhava de cabeça Ele fez um movimento impaciente e riu-se
baixa ao lado dele, olhando os sapatos de atacadores nervosamente.
- Pronto. Está bem. Vamos falar... És
completamente louca, sabias? - resmungou, mas abriu
1Expressão idiomática de origem desconhecida. Quase todas as a porta. Enquanto subiam as escadas até ao segundo
fontes citam um incidente ocorrido durante as tréguas da guerra
norte-americana de 1812. Segundo as fontes um oficial britânico andar, as palavras afluíam-lhe aos lábios. - És
desarmado encontrou um caçador norte-americano perto do rio
Niágara, apoderou-se do mosquete deste e forçou-o a comer um absolutamente incrível... não me conheces. Estavas a
corvo que ele próprio tinha acabado de alvejar. N. E.
NOVA 8 Dezembro - 2007
falar a sério? As raparigas não costumam oferecer-se. - Muito. - Levantou-se e aproximou-se do rapaz. -
Nem mesmo as loucas. Estavas só a brincar ou era Obrigada.
mesmo a sério? Por um momento ele não proferiu palavra, depois
- Absolutamente a sério, - exclamou Krá, - sempre. perguntou com hesitação:
O rapaz riu-se, mas a voz começou a mudar, a - E ainda não desististe da ideia, pois não? O teu
hesitação desapareceu. Quando chegou à porta, e o marido sabe?
molho de chaves tilintou de novo, estava totalmente - Não, - disse Krá e olhou de perto os olhos azuis
confiante. do rapaz. Veios índigo escuros estendiam-se a partir
- Está bem, então entra! das pupilas.
O apartamento estava cheio de imagens, posters - Espero que não haja problema. Olha, tu és muito
com corvos, gralhas, esqueletos e pessoas com olhos gira, mas... isto nunca me aconteceu antes, -
de gato. Havia roupas espalhadas pelo chão, mas nem sussurrou. - E foste tu que quiseste. Ainda queres?
o rapaz, nem Krá se importaram com a desarrumação - Eu escolhi-te, - disse Krá à vontade. - Os corvos
do quarto. são monógamos, mas já não sou um corvo, - e riu-se
- Não há cores, - declarou Krá. Todo aquele preto com um tom de amargura. -Não quero saber do que
e cinzento pareceram-lhe fastidiosamente familiares. o meu marido vai dizer.
- Não gosto delas. Habituei-me ao preto. Humm... - Não te posso prometer nada, compreendes?
queres beber alguma coisa? Vamos apenas beijar-nos, abraçar-nos, estar juntos...
- Bebo quando tiver sede. não te conheço. Digamos que...

Indicou a Krá um colchão para se sentar e - Aprendeste a falar assim tanto com as pessoas? -
instalou-se numa almofada velha em frente a ela. perguntou Krá e agarrou o rapaz pelos ombros.

- Então... de que queres falar? A seguir ficaram em silêncio por algum tempo.
Ambos eram desajeitados, mas Krá não desistiu da
Krá encolheu os ombros.
intenção, insistiu, decidiu que ficaria satisfeita porque
- De muitas coisas. Deixei o meu marido, sabes.
tinha optado por esta solução, e enganar-se-ia a si
- Não sabia.
própria se não ficasse satisfeita. O espaço que estava
- Por tua causa. Fiquei a observar-te enquanto fechado dentro de si abriu-se, e estava a preenchê-lo
desenhavas... - Krá olhou para as paredes e suspirou. - com sensações. Se lhe sabia bem não era importante,
Depois disso, nada me satisfazia. É possível que já o importante era que Roárk já não existia. Para toda a
faltasse qualquer coisa antes, mas não me tinha vida? A voz interior gritou, e riu-se sem emitir um
apercebido. som. Aí tens!
- Gostaste deles? - perguntou o rapaz Ela mudou, o rapaz fora o catalisador, o homem
cautelosamente e ligeiramente corado. Não olhava no banco de jardim, e Krá puxava-o impiedosamente,
directamente para Krá, só pelos cantos dos olhos, acariciando-o, esperando que a transição continuasse,
como os pássaros. que o velho eu se extinguisse e se tornasse quem ela
Krá sorriu-lhe. queria ser.

NOVA 9 Dezembro - 2007


Por fim virou-se de costas e olhou o tecto, ainda - Sou um ser humano, - Krá sentou-se também. -
ofegante. Mas já fui um corvo. Tal como tu.
- Meu Deus... - disse ele junto a ela, com voz Ele abanou a cabeça e de repente o rosto
trémula. entristeceu.
- Estranho. Agora consigo sentir. - disse - Compreendo agora. Ouve... eu nunca fui um
igualmente Krá com uma voz vinda de longe, como corvo. Nunca.
fumo soprado na cara, como se não fosse sequer dela. Krá olhou para ele e compreendeu. Estava sozinha.
- Quando aconteceu pela primeira vez, não senti
- Não importa, - disse ela, mas não conseguiu ouvir
nada. Roárk simplesmente saltou para cima de mim, e
a própria voz. - No fundo estou feliz por te ter
foi só isso. Mas evidentemente era assim que devia
conhecido.
ser. Isto é diferente... todos o fazem da mesma
Vestiu-se lentamente. O rapaz não a deteve, nem
maneira?
se mexeu em direcção a ela, continuou sentado no
- Penso que sim, - arquejou o rapaz no pescoço
chão, atordoado, e os seus olhos apenas reflectiam
dela.
pesar. Krá sorriu-lhe debilmente.
- Quando pus os ovos, senti... eram três. Quentes e
- Não faz mal. Não me importo.
às pintas, e soube logo que era a coisa mais
E assim saiu pela porta, seguindo em direcção ao
importante que me podia acontecer. Adorava-os. -
telhado.
calou-se de repente. - Quando eles saíram das cascas,
Voou com a saia espadanando, até ver os outros
eu estava por cima deles. Não os ajudei, mas cuidei
pássaros. Os pombos estavam pousados no fio uns
deles. Estavam nus e olhavam para mim... Então veio
ao lado dos outros, observando o lixo no chão.
uma tempestade, e o ninho soltou-se, foi-se
Agachado no meio deles estava um grande corvo
desfazendo em bocados até já não nos aguentar...
preto.
- De que raio estás tu a falar? - perguntou o rapaz,
- Então? Vens para ficar? - perguntou Roárk
saindo do seu estado febril.
quando Krá se instalou ao lado dele no fio que
- Caíram no chão. - Krá olhou para o tecto. -
zumbia, e brincou com ela. O casaco esvoaçava no ar,
Pesados, tal como gotas de chuva. Quando
tal e qual uma cauda de penas.
finalmente consegui lá chegar não restava nada,
- Penso que não. Lamento, Roárk.
apenas um monte de galhos vazio. - Olhou para o
rapaz, mas não viu qualquer sentimento no espelho Não olharam um para o outro.

azul, apenas ressentimento. - Muitos de nós - É melhor ser humano?


perdemos os filhos. Ninguém sente a falta deles. Krá olhou rua afora, as antenas a chegar bem alto
Haverá outra Primavera, dizem. Só eu sofria, só eu no céu.
sentia o lugar vazio dos ovos. E não havia nada ali. - Não, não é melhor. Mas o vazio é mais
- Estás a falar de quê? - Sentou-se. - Acreditas conveniente.
mesmo que és um pássaro? - Queres dizer, a fome?
Krá sorriu tristemente.

NOVA 10 Dezembro - 2007


- Sim, Roárk. Deixei de ter fome.
- Eu sabia que não eras um corvo genuíno, - Roárk
abanou a cabeça e crocitou silenciosamente.
Ficaram pousados no fio, a humana e o corvo, a
observar a cidade, de saia preta ondulante e casaco de
penas lustroso, enquanto a noite se estendia sobre a
cidade. 
Tradução de Isabel Martins

NOVA 11 Dezembro - 2007


HERÓI DA CAUSA
TELMO MARÇAL
A sua autorização de segurança é reconhecida.
O colega na sala em baixo dá uma espreitadela por
cima do ombro para confirmar no painel a posição do
elevador.
- Eu não dizia? É matemático, o homem não
consegue resistir…
- ESPERA AÍ, NÃO LHE ARREIES mais! O gajo
desmaiou outra vez.
O zeloso funcionário pousa o bastão na bancada O edifício sede do Serviço de Informações está
dos apetrechos, deixa escapar um suspiro cavado, enterrado na rocha. Quatro grandes salões circulares
limpa o suor da testa com as costas da luva. sobrepostos, servidos por dois poços de elevador. O
arrojado delírio de fibra e ligas sinterizadas à
- Uff! Ainda bem, aproveito para fazer uma pausa.
superfície, como um chapéu de cogumelo distorcido,
Vê se consegues acordar o malandro, acho que está a
serve apenas para as relações públicas.
fingir-se de morto outra vez. Eu vou lá acima apanhar
ar. Volto já! As confissões são obtidas no piso mais profundo.
A sala está dividida por tabiques em nove gomos
O auxiliar é um puto novo, graduado há menos de
distintos, abertos para um átrio central. Quatro das
seis meses, mas já tem familiaridade suficiente com o
boxes destinam-se aos interrogatórios, as outras
superior para se armar em engraçado.
acolhem serviços de apoio: arrumos, autópsias, bloco
- Vê lá! Não te distraias pelo caminho…
de reanimação assistida, registo de depoimentos, zona
Os colegas nas boxes contíguas da sala de
de repouso com bar.
interrogatórios acham piada à advertência. A fraqueza
O piso favorito de Jamus, segundo a contar de
de Jamus Orundos, Inquiridor Principal, é por demais
baixo, está dividido em compartimentos idênticos. Lá
conhecida.
se recolhem os acusados seleccionados para as
Fazendo jus à pilhéria, ao entrar no elevador Jamus
sessões com os interrogadores. A abertura das boxes
não pressiona os códigos do piso térreo. Fica-se pelo
para o átrio tem grades metálicas. Existem ainda
patamar seguinte. Para sair nesse destino tem de
acomodações destinadas aos serventes, uma unidade
descalçar as luvas, aplicar ambos os polegares aos
para processamento de refeições, zona de desinfecção
sensores da porta e dizer qualquer coisa em voz alta,
e sanitários.
não importa o quê…
- Foda-se para isto!
NOVA 12 Dezembro - 2007
A entrada do Inquiridor no recinto, deserto àquela voz, entra na jaula e puxa a rapariga para fora.
hora morta do meio da tarde, é saudada pelo Quanto mais ela berra mais ele se excita.
intensificar das luzes no tecto. - Não te preocupes, ainda não é a tua vez de ires lá
- Toca a acordar, malandragem! Vou começar a para baixo. Está na hora da farra…
vistoria. Deixem lá de esfregar os olhos e venham cá As contorções da vítima são aproveitadas para lhe
para a frente. Quero vê-los todos bem encostadinhos algemar facilmente os punhos no gradeamento, à
às grades. altura da cintura. Quando a tem em posição dá um
O funcionário faz um périplo com passos passo atrás, livra-se do avental ensanguentado,
teatralmente lentos. A ponta do bastão telescópico a desaperta o macacão e avança entusiasticamente.
matraquear os ferros. Os mais molengões provam-lhe Arranca a bata à moça, dobra-lhe a espinha e empina-
a ponta eléctrica, que distende automaticamente até lhe o traseiro. Enquanto a estupra no ânus procura o
aos confins da jaula para aplicar o castigo. olhar dos respectivos companheiros de cela, ainda a
- Agora virem-se de costas para mim e levantem as recuperar dos arrepios eléctricos. Aproveita uma
batas. Quero apreciar esses rabiosques. momentânea pausa na gritaria da parceira para lhes
voltar a recomendar:
A ordem é clara mas inusual, por isso custa a ser
entendida. Só graças ao bastão maldoso, manejado - Não se atrevam sequer a pestanejar! O primeiro
com perícia, se garante o êxito da operação. Começa que eu veja a mexer faço-lhe o mesmo. Tenho tusa
então a fase mais delicada do ritual: exercer o que chegue para vocês todos.
privilégio de escolha, seleccionar o melhor entre duas
dezenas. Pode levar o seu tempo, mas quando Jamus No andar em baixo não há pausas para
Orundos avança é porque está seguro de ter feito a divertimentos. Cumprindo as instruções do chefe, o
única escolha acertada. Inquiridor Auxiliar procura reanimar a vítima.
Hoje está mais virado para as mulheres. Por entre Garante o sucesso da incumbência atirando-lhe uma
os ferros lança a mão ao ombro da preferida e, sob baldada de água pela cabeça abaixo. Um piscar de
ameaça do instrumento de castigo, ordena aos demais olhos reflexo, ao contacto do líquido gelado,
ocupantes do cubículo que ajoelhem junto à parede permitem-lhe desmascarar o pantomineiro.
do fundo. - Então, meu cabrão! Pensas que isto é algum
- Quietos e calados! hotel? Não estás aqui para dormir… É só esperar que
Todos os sacrifícios para merecer as listas de venha o Senhor Inquiridor e já continuamos.
Inquiridor Principal são amplamente recompensados. Entretanto bebe isto para recuperares forças. Não
A inteligência autónoma que controla os ferrolhos, queremos que te apagues sem bufar tudo o que sabes.
luxo tecnológico importado, obedece-lhe aos A verdade é que o Auxiliar está estafado e
mínimos desejos. Os serventes do piso não se desanimado. O dia começou muito mal. O primeiro
atrevem a pôr o nariz de fora, com receio do seu paciente, um rapazote de onze ou doze anos, vinha
cultivado mau humor. Jamus marca os códigos, encharcado em químicos inibidores da dor.
insulta os transdutores para que lhe reconheçam a Disfarçava tão bem que nem o experiente Jamus

NOVA 13 Dezembro - 2007


Orundos desconfiou. A tortura parecia surtir efeito, o provavelmente a enrabar um colega teu. Mas vamos
sujeito estava prestes a quebrar, apenas um pouco começar já a pôr-te jeitoso.
mais de insistência… Ao fim de meia hora o puto Jamus vai ter com eles à sala das gravações. O
conseguia fazer-se matar, deixando os Inquiridores suspeito, confortavelmente sentado numa cadeira-de-
com cara de parvos. Agora aquele teimoso, preso à rodas, lavado e pensado nos golpes do rosto e da
maca desde o meio da manhã, sem dizer uma palavra. cabeça, está a postos para debitar o depoimento. As
A dupla de profissionais está na iminência de duas Testemunhas de turno acabam de tomar os
terminar o dia de trabalho sem nada relevante para respectivos lugares. O Inquiridor Auxiliar, inchado de
apontar no relatório, além de um falecimento por justificado orgulho, murmura ao ouvido do superior:
inépcia e talvez outro por despeito.
- Consegui dobrá-lo! Vai contar tudo o que sabe.
O Inquiridor, mesmo sem o beneplácito do seu
Jamus Orundos pigarreia e, em duas passadas,
superior, resolve mimar o paciente com uma injecção
toma o centro do compartimento. Com um aceno de
de vitaminas e outra de antibióticos.
cabeça cumprimenta as Testemunhas instaladas ao
- E agora o que é que tu queres mais, meu cabrão! fundo. Assenta as manápulas descalças na secretária,
Falas ou não falas? mira de relance o Memorando irrepreensivelmente
O discernimento do supliciado anda à deriva em preparado pelo ajudante, procura o olhar mortiço da
neblina pastosa. Com um esforço considerável do vítima e debita para as câmaras, microfones e
instinto consegue romper o manto entorpecente e assistência:
atilar os pensamentos. As últimas horas, as piores da - Interrogatório oficial ao suspeito Ornatus Ludiv
sua vida, são perspectivadas. Retorta, processo número 342-F, conduzido pelo
Encaixou no lombo bátegas de socos e pontapés. Inquiridor Principal Jamus Orundos e pelo Inquiridor
Tem as costas sulcadas pela chibata, o peito e os Auxiliar Ananias Filopo. O sujeito deu entrada nesta
braços marcados a ferro em brasa. Faltam-lhe duas instituição no dia 20 do corrente, sob custódia da
unhas num pé e a cabeça do dedo indicador na mão Polícia Civil. Consta dos autos que é suspeito de
direita. O último desmaio nem sequer fora fingido. integrar movimentos criminosos subversivos,
O prisioneiro pondera as suas opções. Talvez seja havendo fortes indícios de ter tendências Simpáticas.
suficiente, talvez já possa pôr fim ao martírio. Ele está O orador interrompe e relanceia em volta, à
familiarizado com as rotinas meticulosas dos procura de algo. O solícito Ananias adivinha a
Inquiridores. Perante nova recusa em colaborar vem a necessidade, pega numa cadeira próxima e oferece-
fase das brocas ferrugentas, a trabalhar nos dentes e lha. Jamus ajeita-se no assento e vira algumas páginas
gengivas. ao documento processual.
- Eu não posso… está bem, eu digo tudo. Não - Muito bem! Vamos continuar.
façam mais… - balbucia. “O suspeito foi denunciado, em circunstâncias
- Ahh sim? – surpreende-se o Inquiridor. – Pois diferentes e autónomas, por dois informadores
agora temos de aguentar, o meu chefe está registados, com as credenciais actualizadas. De
acordo com a lei em vigor, ser objecto de duas

NOVA 14 Dezembro - 2007


denúncias independentes e formais, no espaço de um aquela que o senhor… estava mais para lá do que
mês, implica uma investigação aprofundada. A para cá.
referida investigação foi levada a cabo e os resultados, Os serventes empurram a cadeira-de-rodas com o
embora reservados, indiciam a confirmação das ocupante desfalecido até ao elevador. Um rasto de
suspeitas. Por esse motivo foi agendada a presente sangue fresco junta-se às manchas já secas deixadas
detenção para interrogatório. As fases preliminares pelos antecessores. Sobem ao terceiro piso, segundo a
encontram-se concluídas e o senhor Ornatus Ludiv contar de cima, onde estão instalados alguns serviços
mostrou-se disposto a apresentar voluntariamente a de apoio, entre os quais uma belíssima clínica. É
sua declaração.” necessária para corrigir qualquer asneira ou
O interrogado, visivelmente débil, fala em frases precipitação que possa ocorrer durante as inquirições.
desgarradas, entrecortadas por grandes silêncios. Por No átrio, sob a vigilância da Polícia Civil, alguns
várias vezes tem de ser animado a prosseguir. Os indiciados aguardam ansiosos pelo desfecho das
preparados de arribar que lhe administram pelas veias averiguações preliminares. Logo saberão se retornam
e pela boca ainda empastelam mais as ideias. Quatro à superfície ou afundam mais no edifício. Os de
minutos de esforço e volta a desmaiar. É suficiente consciência pesada invejam o prisioneiro que passa.
para se dissiparem todas as dúvidas. A recusa do Para ele o pior já passou.
suspeito em adiantar qualquer informação útil para Ornatus Ludiv Retorta é deixado à porta do
desmantelar a rede terrorista prova irrefutavelmente a gabinete médico. Antes de regressarem aos seus
sua culpabilidade. Merece a pena máxima aplicável ao afazeres os serventes carregam no botão de aviso e
delito. O Auto de Condenação é de seguida colocam a papelada no cesto a tal destinado.
elaborado, assinado, carimbado e registado.
- Cuidadinho com esse! – graceja um, para o polícia
O vivaço ajudante usa o intercomunicador para mais próximo. – É muito perigoso, não lhe tirem os
pedir a presença do pessoal de apoio. Já enfada a olhos de cima. Senão ainda se levanta e desata a
demora quando os madraços finalmente se correr daqui para fora.
apresentam. Jamus franze-lhes um sobrolho
A porta do consultório entreabre-se. Uma mulher
ameaçador.
com bata empurra a cadeira rolante para o interior.
- Pedimos desculpas, senhor Inquiridor – protesta
o mais afoito. – Mas é que tivemos de levar a
A equipa médica está concentrada em recompor as
rapariga, o senhor sabe, aquela que…
mazelas do supliciado. Já lá vão quase duas horas de
- Não quero ouvir desculpas! Quero que se
intervenção, os sinais vitais permitem algum
despachem, que este já não aguenta muito. Levem-no
optimismo, a descontracção começa a instalar-se. O
ao Doutor e digam que o ponha fino. Por hoje já me
suficiente para cirurgiões e enfermeiros trocarem
chega de mortos.
algumas frases de pura cavaqueira enquanto
O servente acena em concordância, todavia sente- trabalham. O homem que está do outro lado da
se na obrigação de esclarecer o graduado. parede envidraçada, a observar tudo desde o
- Certo! Imediatamente! Mas olhe que se calhar não princípio, decide que é o momento de intervir. Abre a
vai ter sorte com isso dos mortos. Sabe, a rapariga, porta do bloco e fecha-a atrás de si. Não se anuncia,
NOVA 15 Dezembro - 2007
limita-se a ficar imóvel, pernas ligeiramente afastadas estes animais. Têm de chegar ao redil incólumes, sem
e mãos cruzadas sobre a cintura. O primeiro um arranhão, penteados e a cheirar a rosas.
enfermeiro a dar por ele apanha um susto, cuja - Pois! Para surtir efeito é melhor assim…
expressão sonora chama a atenção dos outros.
O bom doutor indigna-se.
- Que raio...?! – exclama o chefe da equipa. – Mas
- Melhor assim? Nós aqui esmiframos os tostões,
que merda vem a ser esta? O que está aqui a fazer este
meu caro. Melhor assim? Vá dizer isso às pessoas lá
gajo? Tirem-no daqui, chamem os guardas…
fora. Os nossos recursos, esta clínica, custam caro à
- Calma doutor, eu explico! Sei que não estou nação. São a salvaguarda dos inocentes, que vão parar
desinfectado nem vestido apropriadamente, por isso lá abaixo quando vocês metem a pata na poça. Não
não me vou aproximar mais. Chegue-se o doutor aqui devem ser desperdiçados com terroristas. Surtir
para ver as minhas credenciais. efeito! Bah! Estou-me borrifando para as politiquices
Quando o atónito cirurgião pousa o que tem em e as vossas manobras psicológicas. Por isso é que a
mãos, dá as necessárias instruções e se abeira do sublevação se espalha como uma epidemia. Sou
recém-chegado, este segreda-lhe ao ouvido: contra as falinhas mansas e os paninhos quentes.
- Sou lá de cima, do piso -1, agente especial das Cidadãos são cidadãos e bandidos são bandidos.
Operações. Limite-se a fazer o seu trabalho. Só estou Ao Operacional agrada a legítima ira do
aqui para ajudar nalguma coisa que venha a ser interlocutor. Nem se ofende com os injustos
preciso. remoques implícitos no comentário. Afinal de contas,
O clínico roda nos calcanhares, debruça-se sobre o qualquer Cidadão, mesmo um quadro da hierarquia,
paciente e completa os procedimentos, limitando as com elevadíssima classificação de segurança, tem
observações à estrita comunicação funcional. Mais direito à sua opinião. Sente, contudo, que é melhor
meia hora e Ornatus é despachado para o levantar uma ponta do pano, não vá a conversa
compartimento da enfermaria, contido em talas, descambar num azedume a raiar a sedição.
cosido, entrapado e sedado, mas de boa saúde. O - Este tipo é especial! É para lhe dizer isso que
agente abelhudo acompanha-o até ao destino e depois estou aqui. Não podemos deixar que morra.
reúne-se ao coordenador dos serviços médicos, para Recupere-o. Faça tudo o que estiver ao seu alcance.
uma troca de impressões descontraída. Quanto estiver arribado, antes de seguir para o redil,
- O suspeito que a sua gente acaba de operar estava mande chamar-me. Depois transmito-lhe o resto das
mal, hein doutor?! instruções. Deste piso para baixo só você sabe que o
tipo é especial. Mais ninguém pode sequer desconfiar.
O interpelado corrige, polidamente.
O médico engole seco e maldiz em silêncio a sua
- Perdão, não é um suspeito mas sim um
grande língua. Quando retoma a palavra procura
condenado. Condenado à pena máxima. Tenho aqui
mudar o tom.
cópia do Auto. Se fosse há três meses, antes das
novas regras, era logo recambiado para uma jaula. Ou - Não se preocupe, pode contar comigo. O rapaz é
recuperava ou morria. Mas agora passámos a ser uns dos rijos. Parece pior porque está encharcado em
corações de manteiga. Tratamento de primeira para

NOVA 16 Dezembro - 2007


químicos e em estado de choque. Dê-me uma semana Pela primeira vez o agente infiltrado decide
e vai ver. Entrego-lho como novo. cooperar. Oscila muito debilmente o pé, que está
Antes de sair o Operacional deixa uma última suspenso em roldanas e fios dentro de uma forma de
recomendação: plástico.

- Ainda bem que fala em químicos. Quero que - Eu sabia, estavas só a disfarçar, não era? Para eles
tenha o máximo de cuidado com os preparados. O não te poderem bater mais. Olha, meu amigo, bem
tipo não me serve de nada se ficar tolinho da cabeça. vejo que já sofreste muito, mas não podes desistir
agora. Foste condenado, já nada de pior te pode
acontecer. Tens de lutar pela causa até ao fim. Para
Na verdade Ornatus Ludiv não passa de um agente
que todo o sofrimento não tenha sido em vão.
infiltrado. O melhor, o mais corajoso e determinado
Atenção, parece que eles vêm aí!
que foi possível encontrar nas fileiras. Quem
A enfermaria tem quatro catres, apenas dois estão
desconfiará agora, depois de um dia tão preenchido às
ocupados de momento. Está isolada do consultório
mãos dos algozes, que a sua culpabilidade é forjada?
por uma pesada cortina, que se abre para dar
Que as suas tendências Simpáticas são mera
passagem ao clínico de serviço e a Tanus Ordicus.
artimanha?
- É este o seu rapaz? Ainda não acordou. Estou a
Tanus Ordicus, mentor e artífice de toda a
pensar mandá-lo para o redil tal como está.
operação, receia que o seu homem, fanático da
Precisamos das camas, sabe…
perfeição como é, tenha levado as coisas longe de
mais. Mesmo depois de ouvir os prognósticos - Compreendo… E quem é a moça?
optimistas ainda está apreensivo. Era uma chatice se o - A namoradinha de um dos vossos Inquiridores. A
infiltrado morresse simplesmente, sem proveito para besta partiu-lhe os dois pulsos e rebentou-lhe o
a nação nem direito a glória póstuma. buraco do cu. Está quase recuperada.
- Durante o interrogatório?
Há dois dias que Ornatus está completamente - Não! Antes disso, numa sessão privada. Tivemos
desperto e ainda ninguém deu por nada. O homem é de a pôr minimamente capaz. Segue ainda hoje lá para
um génio da simulação. Mudam-lhe a fralda com baixo, para ser interrogada.
merda, enfiam-lhe papas pela goela, lavam-no com - Compreendo… Bem, vamos fazer como você
uma esponja, sem conseguirem perceber que o coma aconselha. Se o condenado não acordar digam-me,
terminou. Na enfermaria está acamada apenas mais que eu trato de o retirar. Mas dêem-lhe mais dois dias.
uma colega. A tipa parece que desconfia de qualquer Não há aqui falta nenhuma de camas. Sabe que temos
coisa, a julgar pela conversa em surdina quando ficam muitos olhos em cima de nós, nem toda a gente
sozinhos. compreende a necessidade de rigor. Preferimos não o
- Ei! Consegues ouvir-me, não consegues? Se tirar daqui neste estado.
conseguires faz qualquer coisa. Abana um dedo, mexe - Pfff! A merda das relações públicas. E depois
o braço… ainda se queixam…

NOVA 17 Dezembro - 2007


Quando se retiram a suspeita convalescente - Mas para quê? Vão estar todos estúpidos…
recomeça a lengalenga. - Não te preocupes, o braço da Simpatia tem um
- Ouviste? Vão mandar-me outra vez para as jaulas. longo alcance.
Não há tempo a perder. Daqui a pouco vou morrer.
Não posso correr o risco de ser interrogada, está
Tanus Ordicus insiste numa última entrevista antes
muita coisa em jogo. Mas tu tens ainda uma tarefa a
do seu pupilo ser lançado às feras. O encontro tem
cumprir. Sei que foste condenado à pena máxima.
lugar num cubículo do piso que fica imediatamente
Perdeste todos os direitos de cidadania. Vão vender-
antes da superfície. Quase se sente o cheiro da luz do
te, para seres processado como suplemento proteico.
sol.
Não acreditas? Segues para o matadouro na próxima
- Parabéns! Os meus mais sinceros cumprimentos.
leva. Estás a ouvir-me?
Não há muitos homens com a sua fibra. O sucesso
Ornatus opta por manter a discrição, limitando-se
foi absoluto, ninguém tem a mínima suspeita. Você
a balançar um pouco a perna suspensa.
foi condenado, passou ao nível de besta. Vai ser
- Óptimo! Contamos contigo. Sei que não vais contido no redil da cidade até lhe ser designado um
falhar. Só tens de transmitir uma mensagem muito destino. Insistirei, no relatório que vou enviar ao
simples. Quando estiveres no redil procura o Natan responsável pelo gado, para que o vendam como
Querin. Percebeste? Natan Querin. Diz-lhe que alimento. Vou justificar a proposta com cópias dos
aguente firme até ao dia do transporte. Só isso. Que relatórios médicos. Você ficou tão mal tratado que
não faça nada e aguente firme. Ele vai compreender. dificilmente lhe arranjarão qualquer outra utilidade.
O agente pressente que só tira nabos aproveitáveis Mas a verdadeira razão é outra. O próximo transporte
daquela púcara se for mais interventivo. Resolve de cabeças vivas para o matadouro é só daqui a três
começar a acordar. dias. Vai haver tempo suficiente para recolher
- Onde…, como? Onde estou eu? Quem está a informações preciosas junto dos condenados.
falar? Continue o bom trabalho. Não tarda a terminar a
missão e ir para casa descansar. Aguente-se firme, boa
- Estás na enfermaria do edifício das Informações,
sorte!
no covil do inimigo. Foste sujeito a tortura e
condenado por Simpatia. Depois fizeram-te várias
operações e tratamentos, para disfarçarem o estado «Esta é a plataforma logística do sistema de
em que te deixaram. Eu também sou Simpática. eliminação e encaminhamento de degredados. Há
Responsável regional da organização. Estava também quem lhe chame o sifão da nossa bela cidade.
precisamente a preparar uma operação para resgatar A merda concentra-se toda aqui e depois sai. Não
condenados quando fui capturada. Não posso ser volta e não deixa cheiro.»
interrogada. Preciso que leves uma mensagem para o É assim, de uma forma grosseira, que o redil dos
redil. Diz-lhes que estejam preparados para o resgate. condenados é apresentado aos turistas. O guia leva-os
É no dia do transporte. Quando começar a confusão de elevador lá acima, em grupos pequenos, à
têm de dar luta. Diz-lhes isso. plataforma de vigia mais alta. Conta-lhes umas

NOVA 18 Dezembro - 2007


patranhas sobre a excessiva brandura do sistema para de inibidores da agressividade. Ficam embrutecidos e
com tão grandes patifes e anedotas macabras sobre lerdos. Por isso também lhes costumamos chamar
tentativas de fuga infrutíferas. Todos os visitantes, “os estúpidos”. A vantagem é que assim não é
apesar de pouco distinguirem a tanta altitude, dão o necessário manter uma força de segurança apreciável
seu tempo por bem empregue. É emocionante contar dentro do redil. Basta alguém que saiba apascentar
que se esteve no mais emblemático estabelecimento gado.»
do afamado sistema de purificação social.
O redil é apenas um enorme cercado em terra Ornatus desce às instalações subterrâneas, por
batida, nos arrabaldes da metrópole. Tem a forma baixo do redil, pelo seu próprio pé. Com um toque de
rectangular, duas centenas de metros no lado mais bastão o polícia da escolta indica-lhe que deve
comprido e metade disso à largura. Cada vértice é atravessar o átrio, dirigindo-se directamente para a
ocupado por uma torre em estrutura metálica, galeria principal, onde uma funcionária os aguarda
recheada na base com a necessária maquinaria, atrás da secretária, para dar as boas-vindas.
encimada por acomodações para vigilantes. A torre
- Aqui damos abrigo a animais das mais diversas
mais alta, com mais do dobro das outras três, também
raças. Temos cá de tudo, cada um com a sua história
é utilizada para prevenir movimentações suspeitas
para contar. Pff! Isso era se os deixássemos falar.
naquele lado do perímetro urbano. A sua plataforma
Regra número um: aqui só falam os guardas. As
é partilhada entre a Polícia Civil e elementos do
bestas não falam. Nem com as pessoas, nem umas
Exército, que se movimentam no varandim superior.
com as outras. Abrem o pio… buraco com eles. Esta
O que lhe fica imediatamente abaixo está aberto aos
regra serve para evitar confusões.
visitantes.
“A regra número dois serve para manter o gado
As delimitações entre torres, a “cerca”
saudável: barriga cheia e exercício físico. Quem
propriamente dita, resume-se a feixes energéticos de
trabalha come duas refeições por dia. Quem não
sinalização. Os acumuladores só descarregam, em
trabalha come só uma, não precisa de mais. Aqui há
campos magnéticos orientados e quase maciços,
muitos tipos de trabalho. Dá para todos andarem
quando algo suspeito, com massa suficiente para
entretidos. Todas as manhãs, quando toca a sirene,
poder ser uma pessoa, se interpõe entre os sensores.
quem quiser trabalhar apresenta-se na pedreira.”
Tecnologia importada da mais elevada sofisticação.
“Há só mais uma regra, a número três. Serve para
«Lá em baixo podem encontrar de tudo – afiança o
manter a disciplina. Quem faz asneira é deitado ao
desenvolto guia turístico. -Mercenários desertores,
buraco. Não se habituem à boa vida, ninguém fica
emigrantes clandestinos, criminosos de delitos
aqui hospedado muito tempo. Agora é só seguir por
comuns, refugo dos depósitos de excedentes,
esse túnel. Quando o condenado chegar ao redil deve
terroristas e subversivos. Uma vez lá dentro não se
escolher um lugar para dormir. A próxima refeição é
distinguem. Para todos os efeitos legais não passam
ao cair da noite.”
de animais. Neste caso domésticos, porque o
Ornatus avança no sentido que lhe indicam, a
proprietário tem a obrigação de os alimentar. Para
coxear, os passos algo renitentes. A recepcionista
evitar que se desfaçam uns aos outros levam injecções

NOVA 19 Dezembro - 2007


comenta para a escolta, enquanto preenche a subir a escadaria que conduz à única entrada do redil.
papelada oficial: A poucos metros começam as filas dos abrigos.
- Este não passa de amanhã! Pffff! Menos um a
comer à conta. Os abrigos são paralelepípedos estanques, em
No trajecto existem alguns escolhos não compósito rígido, translúcido, presos ao chão por
anunciados. Zonas onde se preparam os escolhidos espigões chumbados nos cantos. Lá dentro um
para a sua nova e breve vida. As instruções são dadas homem alto apenas pode ficar de joelhos. Estirados
por altifalantes autoritários. A obediência não é ao comprido, em cima da palha, cabem à vontade
facultativa. A escolta segue os acontecimentos a oito condenados. Como nada obriga a respeitar os
poucos passos de distância, bastões a postos, meio locais de pernoitar, a ocupação de um módulo pode
distendidos. variar entre vazio e abarrotado. Há vinte
“Atenção, parar! Tirar a roupa. Deixá-la ficar no paralelepípedos alinhados em duas filas no topo norte
chão juntamente com todos os pertences trazidos.” do redil.

Após a chuva de detergente e água segue-se uma As opções de Ornatus estão muito condicionadas
nuvem de pó avermelhado que adere à pele húmida e pela debilidade física, por isso escolhe o abrigo mais
queima. próximo. Confirma que está deserto, aninha-se na
palha a curtir a última pontada de febre e adormece,
“Avançar depressa até à próxima zona.”
faltando à chamada para o repasto ao fim da tarde.
O ardor extingue-se com as bátegas de água fria
Com o anoitecer chega companhia à barraca, mas ele
que lavam a pasta. A secagem é assegurada por um
nem os pressente.
ciclone morno. Na paragem seguinte o bufo recebe
A buzina do despertar guincha como um porco em
ordem para envergar a libré do lugar. Calça e túnica
apuros. O reconforto de uma noite bem dormida,
cor de areia, chapéu largo em fibra forte, botas
aliado aos apoios medicamentosos ministrados no
castanhas de plástico moldado.
último momento, retemperaram o ânimo ao espião.
“Cada prateleira tem uma farda completa.
Pela primeira vez em vários dias sente-se
Tamanho grande, médio e pequeno. Vestir a que for
perfeitamente lúcido e sem dores. Espreguiça-se
mais adequada. O tempo disponível para esta
prazenteiramente.
operação é de dois minutos.”
Um condenado entra de rompante pela cortina às
É quanto basta.
tiras que protege a abertura do abrigo e aterra-lhe em
“Terminou o tempo! Avançar imediatamente. No
cima. Prende Ornatus num abraço rude e sussurra-lhe
próximo posto será feita uma inspecção. Qualquer
com os lábios encostados ao ouvido:
não conformidade será severamente punida.”
- Não te descuides! Não podes falar. Eles vão
À boca do túnel sombrio estão dois polícias
provocar-te, dar-te ordens, fazer perguntas… não
protegidos com armadura. Não são muito minuciosos
abras a boca. Eu tomo conta de ti. Eu tomo conta de
na inspecção, limitam-se a mirá-lo de alto a baixo.
todos. Aqui todos têm o cérebro queimado, menos
Um deles usa o chicote para incentivar Ornatus a
eu. Não te preocupes! Faz o que te mandam e não

NOVA 20 Dezembro - 2007


faças sons, não cantes, não assobies. Não há nada exercício, as vezes necessárias até o dar como
pior que o buraco. O buraco é o fim… perfeito. É ela que elucida os predispostos à labuta
O bom conselheiro larga bruscamente Ornatus e acerca das tarefas do dia.
avança de gatas até ao lado oposto. Remexe no monte - Hoje vamos partir pedra!
de palha, descobre uma mulher que continua Voouuuchh! Tchháá! Remata o chicote no ombro
adormecida. Pega-lhe na mão e arregaça a manga à do primeiro prisioneiro da fila. A anfitriã enceta um
altura do cotovelo. A prisioneira abre os olhos a passeio vagaroso, ao longo da comprida linha de
custo, prostrada pela moléstia. O visitante mune-se de rostos inexpressivos.
um caco de vidro e corta-lhe o polegar. Quando passa
- Sei que não é novidade. Partimos pedra todos os
por Ornatus, na fuga, acena-lhe com o apêndice e
dias… Este, este e este! Vão mudar a palha das
murmura:
barracas. Perceberam cabeças de burro? Mu-dar. Pa-
- Carne! Isto é o que nos dá forças para continuar a lha. Sabem onde fica o telheiro da palha? Toca a
lutar pela causa. correr!
A mutilada, aterrada pela certeza do castigo, O chicote falha um dos escolhidos que,
contém-se sem soltar um lamento. Ornatus sai para a apressando-se como ordenado, consegue escapar
luz do sol e estuga o passo na direcção que vê tomada ileso. A oficial suspira sonhadoramente pela agilidade
pelos demais companheiros. que a juventude levou, mas logo recompõe a
No extremo sul do perímetro há um monte de compostura.
grandes pedregulhos e vários montículos de - Vocês quatro – Vouuchh! –, vão espalhar brita
elementos pétreos mais modestos. Junto a um grupo nos regos. Ali ao fundo o piso está uma desgraça.
de polícias nasce uma linha de condenados perfilados Levem o carro-de-mão e ferramentas. Estes aqui vão
que o bufo acrescenta, conforme vê os outros fazer. passar revista aos barracos e tirar os mortos para fora,
Mal se posiciona um dos prisioneiros abandona o se houver. E por hoje é tudo quanto a trabalhos leves.
respectivo lugar para se enfiar a seu lado, à custa de O resto fica a partir pedra. Bem tenho choramingado,
empurrar o parceiro. Trata-se do prático conselheiro não pensem que não tenho… mas ninguém me
que ainda há pouco tomou a iniciativa de se arranja nada útil para vocês fazerem durante a
apresentar. Sorri para Ornatus deixando antever, estadia… Tu e tu… vão buscar a panela da água.
entre dentes, o petisco que mastiga.
Um dos chibatados dá imediatamente meia volta,
Os guardiães interrompem finalmente a cavaqueira para cumprir a ordem. O outro acusa o toque do
para se ocupar dos voluntários. O oficial mais cabo do chicote, com um uivo contido, mas mantém-
graduado é uma megera alta, enrugada e esquálida. se imóvel, em sentido, cabeça baixa e ombros
Fez-se mestre no manejo do chicote, pois não perde descaídos. Avançam dois diligentes subordinados
qualquer oportunidade de praticar a sua arte. Termina para impor o respeito. A velha graduada desfere novo
todos os comentários com uma torção hábil do pulso golpe, de baixo para cima, fazendo o condenado cair
direito, que leva a ponta castigadora à parte do corpo de costas desamparado. Quando lhe aprecia a
que antecipadamente seleccionou como alvo. Nas expressão apática, olhar mortiço focado no infinito,
raras ocasiões em que falha repete a frase e o
NOVA 21 Dezembro - 2007
espuma a nascer entre os lábios, refreia os impulsos hedionda cabeça. Uma visão de pesadelo. Tufos de
dos acólitos. cabelo cinzento a despontarem ao acaso no couro
- Deixem estar… o gajo teve um curto-circuito. calvo e seboso, sulcado por veias enegrecidas,
Tem bom cabedal, serve para partir pedra. salientes e palpitantes. O olho esquerdo foi esvaziado
com pouca perícia, as peles da órbita repuxadas para
Ornatus até treme com ânsias, ao ver aproximar a
cobrir o vazio. Carne, sobrancelhas e pestanas
panela da água. Tenta manter-se calmo ao sorver, não
amalgamadas no caminho dos pontos, ainda
vá deixar escapar algum precioso líquido pelos cantos
sanguinolentos, com que concluíram a cirurgia. O
da boca.
resto da face espelha o sofrimento latente, em derme
de tom esverdeado. Na parte visível do pescoço, logo
O valoroso espião é integrado num pequeno grupo
abaixo do queixo, inicia uma papada escamosa, o
de três condenados, com instruções para avançar até
verde ainda mais carregado, que se esconde para lá do
ao barracão metálico e brilhante onde se guardam as
decote.
ferramentas. Cabe-lhe em sorte o carro-de-mão. Os
Indeciso face ao meio de trabalho atribuído,
parceiros, munidos respectivamente de pá e picareta,
Ornatus ainda não encetou qualquer actividade
são duas mulheres. Não se juntam ao colectivo na
produtiva. O carro-de-mão servirá eventualmente
frente de britagem, recebem ordens mais específicas.
para transportar terra. Mas de onde para onde? Após
- Vocês vão abrir uma cova. Sigam em frente até
breve reflexão opta por lançar-se ao trabalho
encontraram as marcações no chão. É já ali! Hoje o
principal de escavação, usando as mãos nuas à falta de
buraco tem de ficar pela altura da minha cintura. Já lá
melhor utensílio. Quando é acometido por uma
vou para ver se estão a trabalhar ou a preguiçar.
vontade imperiosa de aliviar a bexiga não interrompe
A duas dezenas de metros na direcção indicada o serviço, com receio de desagradar. Desenrasca-se ali
distinguem-se realmente uns traços raspados na terra. mesmo, pelas calças abaixo.
Ornatus, que segue na frente, é o primeiro a
A condenada asquerosa, quando repara nele
encontrá-los. Faz sinal às companheiras e aguarda que
encharcado em mijo, desata numa risota inopinada.
se aproximem.
Logo em seguida retoma a seriedade para anunciar
A mulher da picareta é relativamente nova e uma súbita decisão.
desenvolta. Ainda lhe resta algum viço na passada,
- Que se foda! – profere num volume próximo do
carne e músculo em cima do esqueleto. Sem grande
berro. - A mim não me metem medo.
convicção lá começa a picar os torrões, dobrando a
Com as forças restantes tenta arremessar longe a
espinha ritmadamente.
pesada pá. O gesto sai frustrado, a ferramenta quase
A detentora da pá chega-se perto e fica imóvel,
lhe cai aos pés, mas fica simbolicamente marcado o
apoiada ao cabo da ferramenta, completamente
protesto. Depois enverga o capuz, deita-se ao
absorta nos seus pensamentos. Veste uniforme de cor
comprido sobre a terra e fecha os olhos. Para ali fica,
diferente, mais claro, uma peça única a envolver
sem se calar um minuto, sempre a cantarolar músicas
pernas, tronco e braços. Um largo capuz cai-lhe sobre
parvas. Tamanha desfaçatez desmotiva os parceiros.
as costas. Antes estivesse no devido lugar, cobrindo a
Ornatus esgadanha sem brio, a mulher da picareta

NOVA 22 Dezembro - 2007


abranda a níveis letárgicos, o ferro quase não descola pouco atrás. O bufo fecha a marcha, com a roda do
dos torrões. seu inútil carro de mão a guinchar ritmadamente.
Aproxima-se um polícia, em inspecção de rotina, Como só os bons trabalhadores são merecedores
passada que está metade da manhã. O agente de almoço, Ornatus não sabe o que esperar quando
infiltrado teme pelo êxito da missão. À velha chega a sua vez frente ao panelão. Integrou uma
repelente estão reservadas as famosas agruras do equipa que nada de útil produziu em toda a manhã.
buraco. E ao resto da equipa? Sem um palmo de terra Contudo a falta passa sem castigo: o degredado de
cavado a direito para mostrar… serviço passa-lhe para as mãos uma tigela a
O polícia corre para a prevaricadora mal se transbordar. Sopa de aveia com soja e lentilhas. Na
apercebe da situação. Ajoelha-se e puxa da garrafa orgulhosa nação, há muitos cidadãos impolutos com
com água que trás à cinta. Amparando-a com a mão repastos bem menos substanciais, que o servido no
esquerda, emborca-lhe o conteúdo goela abaixo, até a redil. No fim da tigelada cada condenado ainda tem
desmiolada se engasgar. Quando a vê aos arrancos de direito a uma barra vitamínica, empurrada por
tosse parece ficar mais aliviado. generosas goladas de água limpa.

Tampa a garrafa, ainda com líquido, e atira-a O grupo original é mandado de volta ao local de
intencionalmente na direcção de Ornatus, que a trabalho designado. Retemperado pela pausa, Ornatus
agarra num acto reflexo. Nem que fosse veneno! A não hesita em lançar mãos mais diligentes à terra
sede é tanta que o recipiente é esvaziado num trago. dura. Não aproveita a pá abandonada pelo monstro,
por desconhecimento das regras aplicáveis à permuta
A preguiçosa desfigurada é forçada a erguer-se um
de utensílios. A fiel depositária da ferramenta anda
pouco para o homem da lei lhe avaliar a condição.
para ali às voltas, como uma tonta, sem se afastar em
Este sacode-a levemente, resmunga, e ampara-a de
demasia. A outra fêmea, mais discreta, vai fingindo
volta à posição horizontal. Depois abeira-se de
que trabalha. Sem que nada o fizesse prever atreve-se
Ornatus em duas passadas bruscas, arranca-lhe o
a quebrar a regra da incomunicabilidade.
recipiente vazio das mãos e dá meia volta,
regressando para donde veio. - És um bom filho da puta! – afirma entre dentes. -
Há bocado bebeste a água toda que o polícia te deu.
- Trabalhem, seus cabrões! – sugere ele, à
Estás aqui por ser Simpático, meu cabrão! Daqui já
despedida.
não passas. Este não é o lugar mais indicado para
A subversiva retoma as cantilenas sem pés nem
esquecermos o principal motivo da nossa luta.
cabeça.
Lembras-te? A solidariedade com os nossos
semelhantes.
O tempo arrasta-se na mesma toada de pasmaceira
Ornatus apanha um compreensível susto. Mais
até soar a buzina, simultaneamente nas quatro torres.
uma vez vê-se envolvido sem querer numa grave
A mulher mais nova põe a ferramenta ao ombro e
ofensa aos preceitos. Não admira que a vida dos
encaminha-se para a zona dos abrigos e demais
insurrectos em cativeiro seja curta. Nem face ao
instalações de apoio. A outra levanta-se e segue-a um
castigo mostram o mínimo respeito pela disciplina.

NOVA 23 Dezembro - 2007


A atrapalhação não passa despercebida à fora-da- responsável pelo campo executa rigidamente a
lei, embora a interprete erradamente. saudação marcial.
- Estás com vergonha? Pensavas que por estares - Meu comandante…
num redil te devias portar como um animal? Não vês - À vontade! Vimos à procura da cobaia do
que é exactamente isso que eles querem? Não laboratório.
respondas, se estás assim tão borrado de medo. Eu já
- Temos vários ao nosso cargo nessas condições,
dei todas as palestras de doutrinação que tinha a dar.
meu comandante…
Agora só quero chegar ao fim de cabeça erguida. Mas
Os civis que acompanham o grande chefe
ainda estou capaz de tratar os traidores e os cobardes
conhecem perfeitamente o seu objecto de estudo.
como eles merecem.
- É aquela, comandante. Tragam-na cá que nós
Como o visado nada contrapõe a conversa morre
tratamos de tudo.
por ali. Mas fica no ar uma questão pertinente: como
Dois subordinados lançam-se sobre a tenebrosa
é possível a um condenado manter presença de
mulher do olho cosido.
espírito bastante para remoques tão acutilantes?
- Segurem-na bem! – pede o técnico. - É só tirar
uma amostra de sangue e de pele.
O degredado que engraçou com Ornatus consegue
Completado o exímio trabalho da seringa e do
de novo um lugar contíguo na fila para o jantar. Os
bisturi, a comitiva faz tenção de se retirar de imediato.
condescendentes polícias autorizam o gado a ajoelhar
Mas antes uma pergunta tem de ser colocada:
ou acocorar para fazer as honras ao petisco. Quando
a vigilância abranda o canibal murmura: - Meu comandante, o que fazemos à cobaia?

- Assim mesmo camarada! Já conseguiste - Está imprópria, já não tem qualquer

sobreviver um dia. Eu vou continuar a proteger-te. aproveitamento. Pode ser eliminada de imediato. Eu

Não comas o cubo de amido que deram para a deixo a informação no sistema, à saída.

sobremesa. É a tua contribuição para a resistência. À Quando desfaz a continência, a guardiã do redil
noite vou ter contigo para mo dares, depois falamos relanceia em volta à procura dos semblantes menos
melhor. imbecilizados.

Aproxima-se um grupo acabado de sair do alçapão - Este e este!


por onde se acede ao redil. O primeiro polícia a Voa a ponta do chicote, certeira.
reparar dá sinal à superiora. - Levem o animal para o buraco. Um que esteja
- Vem lá gente! Devem ser mais condenados. vazio, não quero misturas de micróbios.
- Se pensam que ainda vêm encher a pança Ao sentir-se agarrada a condenada desata aos
enganam-se. Vocês aí, recolham as panelas! – dispõe a coices. Um dos acompanhantes, dolorosamente
previdente mandante, rasgando carne à chicotada. atingido entre pernas, indigna-se e dá-lhe um murro
As divisas e a postura do mais adiantado entre os nas costas. Ao outro resta tão pouco tino que começa
recém-chegados fazem os polícias gelar no lugar. A a gritar.

NOVA 24 Dezembro - 2007


- Mata essa puta! Dá-lhe com força. Arrebenta-lhe - Estás a desafiar-me, meu cabrão? Não te
a barriga… ensinaram o que é a disciplina? Hoje vais ficar sem a
O polícia melhor colocado apaga-o com uma ponta da orelha. Hé, hé! Amanhã, não te atrevas a
pancada de bastão no alto da cabeça. Quando a comer a contribuição. Senão ficas sem caralho.
vítima toca o chão repete a dose. Ornatus arrisca elevar a voz para pedir apoio aos
- Se estiver vivo vai para o buraco. Se estiver morto companheiros do abrigo.
enterra-se. – decide a perspicaz patroa, ainda antes da - Socorro, ajudem!
poeira assentar. Os dois continuam a roncar como porcos que são.
A cobaia aproveita a distracção geral para se lançar Ouvem-se as tiras da cortina afastar para deixar
em corrida. A poucos metros desaparece subitamente passar mais uma sombra falante.
de vista com um uivo lúgubre.
- Sabia que te encontraria aqui, pulha. A massacrar
- Caiu num buraco. – constata o polícia que se o novato.
adiantou para a perseguir.
- Natan Querin… - proferiu o canibal,
- Antes assim! – considera a chefe. – Mandem-lhe descorçoado, a meio de se engasgar.
com este imbecil em cima. Quero lá saber dos
- Desta vez não escapas. Sabemos muito bem que
micróbios… Quando estiver a cheirar muito mal
és um bufo, a soldo dos agentes de investigação.
tapamos tudo com terra. E agora acabou o circo.
Tiveste azar em te meter com um herói da causa. Vais
Depois de mijarem e cagarem quero todos a dormir.
morrer como um cão.
O pescoço que o energúmeno escolhe para torcer
Ornatus arrasta-se até ao abrigo, aconchega a palha não é o de Ornatus, mas sim o do seu atacante, opção
e aninha-se. A cortina volta a abrir, o lusco-fusco que muito surpreende o agente infiltrado.
ainda permite distinguir a entrada de um casal de
- Já está! – anuncia o desenrascado cadastrado,
condenados. Tomam o canto oposto do cubículo sem
quando o corpo do canibal pende inerte para o lado.
proferir palavra. O sono do bufo chega logo em
– Agora transmite a tua mensagem, companheiro.
seguida e vem pesado, mas não lhe é permitido durar
Sabemos que és um herói, pelo que aguentaste na
muito.
tortura. Sabemos também que estiveste com a Irina
- Passa para cá o cubo. Ouviste? Sou o líder da Malgovia. O que disse ela? Trazes alguma mensagem?
resistência aqui no campo. Tens de me obedecer.
Embora ainda esteja a tentar orientar-se por entre a
Vamos, novato, acorda!
sucessão de equívocos, as instruções da Simpática
As frases são em surdina, quase inaudíveis, mas os violada ocorrem à memória do bufo.
safanões produzem efeito. Ornatus emerge dos
- No dia do transporte. Devem estar preparados
sonhos um pouco descontrolado. O suficiente para se
para dar luta… No dia do transporte…
insurgir irreflectidamente.
- Porra! – reclama o operacional subversivo. – O
- Larga-me, larga-me. Não tenho cubo nenhum.
transporte é amanhã. Não vamos a tempo de preparar
Tenho é fome.
tudo.
O inoportuno já lhe está escarranchado em cima.
NOVA 25 Dezembro - 2007
Ornatus fica de novo sozinho. O par de imbecis As altas plataformas estão instáveis, entornam
ressonadores e o cadáver do malogrado suspeito de coisas e figurinhas a esbracejar. O registo do guincho
chibo não contam como companhia. O instinto baixa a rangido, e logo depois a estrondo, quando a
treinado compele-o a sair para a luz fria da lua, em sobranceira estrutura se desfaz no solo. A
busca de mais segurança. Entra às apalpadelas no extremidade superior arrasa boa parte dos abrigos. Na
abrigo em frente e enfia-se por entre os ocupantes base da torre rebenta uma tempestade de faíscas,
que gozam o imerecido repouso. Não consegue arcos eléctricos de halos azulados, projecções
adormecer logo. A raiva e o terror queimam-lhe no direccionadas de fumo negro que rasgam a poeira
peito. Cada vez compreende melhor a importância levantada. Os feixes delimitadores do perímetro
vital da sua missão. Os insurrectos estão por todo o inexpugnável também são vítimas do desastre. O redil
lado. Superiormente organizados, detentores de torna-se campo aberto.
recursos impensáveis, uma infecção que se propaga Ainda ecoam os últimos harmónicos do estertor e
velozmente e à qual nenhuma estrutura da sociedade já a lúcida mentora projecta o vozeirão.
parece estar imune. Todo o seu reconhecimento e
- Isto é que é um caralho duma porra! Não sei que
admiração vão para Tanus Ordicus, o leal agente que
merda é esta, mas daqui não foge nenhum animal
compreende a dimensão da ameaça e se dispõe a dar-
vivo. Mexam-se! Corram lá abaixo buscar armas. É
lhe combate à altura.
disparar à vontade, disparar à vontade…
O automatismo da obediência sobrepõe-se ao
O novo dia nasce acinzentado, ameaça choviscar, pasmo. Vários guardiães partem em busca do
ameaça acontecimentos escabrosos a desfavor dos utensílio recomendado, o único apropriado à
justos e inocentes. No redil, os voluntariosos já estão circunstância. Outros, à ordem da chefe, permanecem
perfilados. Quanta daquela mansidão é um mero no local para conter o potencial de desgraça. Os
embuste? Quantos daqueles espíritos só chicotes distendidos começam a rasgar carne
pretensamente estão adormecidos, a fervilhar em indiscriminadamente, como medida preventiva.
ânsias pelo deleite da maldade? A ríspida gestora
Nos mesmos cinco minutos o impossível volta a
afaga o cabo do chicote e comenta para si própria:
acontecer. Eleva-se de entre os desmiolados uma voz
“Porra, que merda de dia!”
de comando rival, em projecção sonora e
Mal ela sabe… clarividência estratégica.
- Agora! Saltem em cima deles. Sirvam-se das
Lancinantes guinchos metálicos rasgam a falsa paz. ferramentas. Matem esses cabrões… - incita Natan
Os olhares a quem sobram lampejos de lucidez Querin.
concentram-se num único ponto. A grande torre Torna-se evidente que aqueles rebaixados estão
como que soçobra, agoniza sobre um dos pilares em bem fornecidos de antídoto. Vários deles,
aparente liquefacção. notoriamente aliviados do embrutecimento químico,
Ilusão de óptica, alucinação colectiva, delírio começam a agir de forma coordenada e violenta.
intoxicado…

NOVA 26 Dezembro - 2007


Que podem simples chicotes, e um ou outro Consegue que a maior parte dos desmiolados o
bastão telescópico, contra a solidez de picaretas e sigam, direitinhos ao centro do campo. A mais idiota
enxadas, à razão de dez para um? das trajectórias de fuga, mas a melhor direcção para
- Traição! – resume numa amarga constatação, a intersectar os reforços da lei.
destronada líder do rebanho. Mais longe, nas colinas, evolui um rasto de poeira
que se aproxima rapidamente. Em breve a viatura de
resgate irrompe pelo desclassificado redil. Mantêm-se
O massacre dura três ou quatro minutos de
paralela aos destroços da torre, invisível tanto das
empenho desesperado, dor e urros. Sobrevém-lhe um
forças da lei como da maralha já adiantada. É um belo
instante de absoluta calmaria. Os irremediavelmente
transporte. Seis rodados salientes, prestáveis em todos
“fundidos” permanecem sensivelmente onde estavam
os pisos, cabina blindada com torre de metralhadora
quando começou a sucessão de tragédias, erectos ou
no topo, motor de combustão interna incrivelmente
cambados consoante as bordoadas que encaixaram.
generoso. Como conseguirão os celerados colocar tais
Os colegas de pensamento mais vivo detêm-se a
meios à disposição?
contemplar o cenário de vitória. Todos os polícias
jazem desfalecidos, mortos ou a cumprir o último O veículo não se dirige ao grupo de amotinados.
estertor. Aliás, nem espalmados caberiam metade. Esses
encontram pela frente a linha das forças da lei, pés
Ornatus não se encaixa em nenhum dos grupos.
bem assentes no chão, esgar vingativo nos lábios,
Está acocorado, cabeça protegida entre os braços,
canos negros a descarregar metralha.
respiração ofegante, coração a reverberar de angústia.
Sabe que a missão por que tanto se sacrificou está em O condutor procura as duas figuras agachadas, que
perigo, que tudo depende de tomar decisões puxam um terceiro da cova terminal. É junto a esse
acertadas. Não consegue escolher nenhuma. grupo que o transporte imobiliza. O tempo necessário
ao embarque é concedido pelo artilheiro da torre, que
A coberto da breve dança do caos, dois expeditos
impede os reforços policiais de evoluírem naquela
conspiradores correm para lá das habitações
direcção. Quando o trio fica a salvo os motores
amalgamadas, directos à zona dos buracos terminais.
roncam em direcção ao centro da confusão. Natan
Junto à cavidade escolhida, um ajoelha na terra, outro
Querin, premeditadamente posicionado na retaguarda
desenrola a escada de corda que transporta.
das suas hostes, corre ao encontro dos salvadores.
A escassas dezenas de metros, brotam do alçapão
Num intrépido salto agarra-se às pegas da cabina.
os primeiros polícias equipados a rigor, com
O líder Simpático grita qualquer coisa para dentro
armadura, capacete e armas letais. O plano terrorista
da viatura. O rugido motorizado altera a trajectória,
previa essa possibilidade. Natan Querin evita que as
detendo-se à beira de Ornatus, ainda plantado no
suas hostes destrocem, arenga-lhes de novo para que
meio dos mortos.
não se percam em debandadas anárquicas,
espicaçados pelo pavor às represálias. - Anda! Para ti há lugar. Não importa o que te
fizeram. Podemos tratar-te…
- Por aqui! Depressa. Há um transporte preparado
para nos levar a todos. Venham comigo, rápido… A indecisão é um caldo cada vez mais espesso,
tolhe o discernimento e a atitude. Que oportunidade
NOVA 27 Dezembro - 2007
para cavar fundo nas raízes da insurreição! Mas sem um homem corpulento e uma mulher franzina, com
um cabo para se manter ligado aos seus, como evitar uniformes em couro, aos quais confessa, pesaroso:
naufragar no lodaçal? - Esta cabeça é tudo o que nos resta. Como já
Providencialmente o bufo é aliviado do pesado expliquei, estamos a braços com graves problemas.
fardo do livre arbítrio. Uma fibra entrançada envolve- Tem sido uma manhã terrível! Por imperativos de
lhe o pescoço, puxa-o para trás com força até ao segurança, o gado foi todo abatido. A rapaziada
desequilíbrio. Na queda Ornatus dá meia volta sobre entusiasmou-se em demasia, acho eu! Suponho que
si próprio, para não se estatelar de costas, sem escapar não estejam interessados em carcaças…
ao aperto. Aterra em cima da legítima líder do redil, O grande macho adianta-se a responder.
destronada e ressuscitada, que o enlaça a partir do
- Está a brincar comigo? Imobilizei a caravana
chão. A velha tem feridas debilitantes, ficou alheada
junto à via principal. Esvaziei um camião, trouxe-o
do real por uns tempos, mas tornou à consciência
até aqui por esses caminhos de cabras que vocês
determinada a reconduzir os acontecimentos.
chamam estradas. Um desvio de mais de cinquenta
- Daqui não escapas, cão tinhoso! quilómetros. Tenho espaço no transporte para trinta
cabeças. E agora você diz que só tem isto para
O agente especial Ornatus Ludiv desce às entregar?
catacumbas atado pelo pescoço, como um animal de A mulher, numa toada mais contida e formal,
companhia. A partir da maca onde é transportada, a corrobora na indignação.
chefe dos polícias não larga o cabo do lendário - O meu Navegador tem razão. A Companhia
chicote, agora transformado em trela. Percorrem os encomendou vinte cabeças. Trago comigo o vosso
corredores por entre a azáfama até ao hospital de documento de confirmação. Não podemos absorver
campanha, montado para a funesta ocasião no os custos da demora, do desvio e da falta da
exterior do perímetro. A dedicada oficial é observada mercadoria. Terá de haver lugar a uma indemnização,
pelos técnicos de saúde, uma primeira despistagem de não é verdade?
mazelas e aplicação de curativos. Ninguém se impõe
O desconsolado oficial insurge-se mentalmente
ao seu mau feitio para dar caminho adequado ao
contra a má sorte. Que péssima altura para chegar o
condenado. Já está na fila da ambulância, prestes a
transporte do matadouro, precisamente a meio da
embarcar, quando lhe fazem a primeira proposta
maior crise jamais vivida pelo estabelecimento
aceitável.
prisional. Tenta contemporizar, embora consciente
- Pode largar! A partir daqui fica ao meu cuidado. que a causa está perdida.
Vinda de um superior hierárquico, a ordem é - Sabe, Condutora, a bem ver não temos qualquer
prontamente obedecida, com um suspiro de alívio responsabilidade nesta situação. Tanto quanto sei é
pelo dever cumprido. tudo obra dessas bestas, esses anti-sociais, assassinos
O alto responsável também aproveita a trela e cobardes. Estamos todos solidariamente envolvidos
improvisada para conter a presa. Acompanham-no em dar-lhes combate, é um problema da civilização,

NOVA 28 Dezembro - 2007


pelo que os azares… enfim, a todos dizem respeito, A Condutora da caravana toca no antebraço do seu
não é verdade? adjunto para lhe impor contenção e remata:
- Olha-me este gajo! – comenta o enfadado - O que eu reparei é que vocês, os soldadinhos,
Navegador, preparando-se para expressar a sua fazem um trabalho de merda. Navegador, não dês
opinião pessoal, assaz negativa, sobre a dita mais conversa a este tipo. Vamos embora, traz o
solidariedade. animal para o camião.
- Vamos com calma! – exige-lhe a chefe da O bufo insiste em expor o seu ponto de vista.
caravana. – Estes assuntos tratam-se noutros locais, - Esperem, estão completamente enganados, eu
por outra gente. A nossa responsabilidade é apenas sou…
recolher, transportar e entregar a mercadoria no
- Nem mais um pio, grande cabrão!
destino. Aqui nada mais temos a fazer, vamos
O corpulento Navegador deita o braço esquerdo
embora. Diz-me que esse é o único exemplar vivo?
ao pescoço de Ornatus e puxa-o para si, num forte
Passe-o para cá, fica já abatido na conta que o
aperto. Leva a mão livre ao bolso lateral do uniforme,
fretador não deixará de apresentar. Está bem assim?
onde se mune com uma seringa abastecida. Encosta a
Tudo para que os inoportunos desamparem a loja
ferramenta ao ombro da presa, prime o gatilho,
o mais depressa possível, com os seus camiões
aguenta o abraço durante cinco segundos e depois
carregados de gado vivo e malcheiroso, defendidos
afrouxa. O agente infiltrado está irrevogavelmente
por artilheiros de dedo leve.
reduzido à condição cerebral de “fundido”, a única
- Pois, claro! Aqui o tem. autorizada pelas normas da firma no transporte de
Quem não gosta do que ouve é Ornatus, que gado vivo. As pernas por pouco não vacilam, os
perante o desenrolar dos acontecimentos decide braços pendem inertes, o rosto perdeu toda a
clarificar a respectiva posição. expressão.
- Oiçam lá… Esbaforido, o agente operacional Tanus Ordicus
- Mas o que vem a ser isto? – rebenta o Navegador. chega em passo corrida, um instante antes do grupo
- Ele nem sequer está inibido? Nunca vi tamanha se desfazer. Vem angustiado com o pressentimento
incompetência! de ser demasiado tarde. Atrasou-se a discutir, exibir
credenciais, implorar e ameaçar, nos postos de
O oficial da polícia, no ingrato papel de
controlo atabalhoadamente montados na sequência
comerciante, reage mal ao orgulho ferido. Quando
da aparatosa fuga.
eleva a voz, esta sai-lhe demasiado fina e estridente.
- Larguem esse homem! É meu, pertence às
- Olhe que não é bem assim! Somos agentes da lei,
Operações.
lidamos com criminosos desesperados, cheios de
manhas, capazes de tudo. Pensa que isto é alguma O iluminado estratega depõe as provas da sua
quinta? Que estes tipos são gado pachorrento, tratado peculiar afirmação nas mãos do oficial da polícia, que
geneticamente, operado, castrado? Não temos cá se enfronha imediatamente na leitura das miudezas
disso. Guarde lá as impertinências para quando impressas.
estiver a falar com vendilhões da sua laia.

NOVA 29 Dezembro - 2007


A Condutora da frota foi talhada para rodar livre - Que é que está para aí a dizer? Venho aqui
nas grandes vias, não para sustentar discussões precisamente alertar para uma tenebrosa conspiração.
estéreis em cenários de caos, cabeça descoberta a Infelizmente parece que não chego a tempo, os
receber os primeiros pingos de chuva. Indiferente ao passarinhos já voaram da gaiola. Bem, ao menos
recém-chegado, completa a anunciada retirada. apanharam este. Penso que seja o cabecilha. Esses
O seu segundo-em-comando, madurão vivido e documentos, onde se diz que está ao nosso serviço,
coscuvilheiro, ao adivinhar chatices deixa-se estar, são forjados. É a prova de que esta escumalha está
com a presa entre as manápulas. organizada ao mais alto nível, e por certo fortemente
apoiada pelos nossos inimigos externos.
Enquanto retoma o fôlego, Tanus repara na
inacção do pupilo. Nasce-lhe no espírito uma dúvida O oficial faz parte da cadeia de responsabilidade na
gelada, que o leva a questionar: maior falha de segurança de que há memória, e sabe-o
bem. Agarra a oportunidade que lhe é oferecida de
- Deu-lhe alguma coisa?
bandeja para uma escapatória airosa.
- FZ345, claro! – responde o empregado graduado
- Compreendo, compreendo… uma conspiração
da companhia transportadora. – É o que usamos
desse gabarito explica muita coisa!
sempre, normas da casa.
- Eu é que não compreendo nada. – declara o
- Ahh... Então não se pode fazer nada…
abelhudo Navegador, com indiferença, já à laia de
- Fazer o quê?
despedida.
Tanus Ordicus sente calafrios, sabe que está a um
Tanus Ordicus lança-se então numa tirada de
passo de comprometer toda a operação.
patacoadas herméticas, acerca de níveis de segurança
- Bem…, quer dizer…
e segredos de Estado. Mais do que suficiente para
Entretanto o graduado da polícia dá-se por deixar o polícia de boca calada para todo o sempre,
esclarecido e decide retornar à acção. com pavor à caverna das confissões. Após terminar
- Ora, ora! Parece que temos aqui um caso bicudo. despede-se formalmente e regressa ao local onde
Este menino é então especial… E nós sem saber deixou a viatura.
nada, a fazer figura de parvos. O resultado está à Ainda por ali está o grande camião de transporte,
vista, à pois está. com dois pisos de jaulas quase vazias. O veículo
O agente das operações sente-se cada vez mais ligeiro de escolta já se posicionou na dianteira para
desconfortável. O esquema que engendrou foi abrir caminho, os motores roncam a anunciar a
desvirtuado por imponderáveis, falhou iminente partida.
redondamente, mas tal não é impeditivo de novas Inconscientemente o operacional aproxima-se.
tentativas. O pior foi ter-se precipitado, desvendando Espreita por entre os gradeamentos, observa os
segredos a um homem desesperadamente necessitado poucos imbecis malcheirosos até encontrar o rosto
de arrastar outros no abismo do fracasso. que tão bem conhece. O seu pupilo e amigo está no
É à firmeza das suas convicções que Tanus vai andar de cima. Mãos enclavinhadas sobre as barras,
buscar presença de espírito para voltar à mó de cima. olhos duros a procurarem os de Tanus.

NOVA 30 Dezembro - 2007


- Cab…, cabr… - balbucia ele, incoerentemente.
“Pobre coitado, está mesmo tontinho. Ser abatido
é o melhor que lhe pode acontecer.” – consola-se o
leal estratega, destruindo no íntimo quaisquer
tentações fragilizantes da má consciência. 

NOVA 31 Dezembro - 2007


APÊNDICE PARA OBRA DESCONHECIDA
L U Í S F I L I P E S I L V A
era como se fossemos governados por uma vontade
maior, invisível mas a que não se podia fugir (...)»
(lectures.bhamasi.caltech.edu, 12.05.17PCI).
(2) uma segunda versão do artigo, um resumo com
cariz mais técnico, surgiu na revista-papel La
Nouveaux Ordre Mondial com o título «Est-il possible
(O SEGUINTE CONJUNTO DE ANOTAÇÕES
de voir les puissances invisibles?» (Quebéc,
foi encontrado no disco rígido do único computador sobrevivente
16.03.17PCI).
à destruição do edifício Coral; o ficheiro estava marcado como
(3) alcunha espirituosa com que Hamasi costumava
backup e referia-se a um outro ficheiro – presumivelmente a
referir-se ao colégio de consultores académicos
obra principal -, o qual não se conseguiu encontrar, quer sob o
composto por autoridades provenientes de diversas
nome referenciado quer sob qualquer outro; o autor deste texto é
universidades mundiais, cuja função é pronunciar-se
desconhecido e embora a maioria das referências citadas sejam
anualmente sobre a validade das novas teorias
verídicas, nem a teoria a que se refere o texto nem o presumível
culturais e sociais, e que reflectia a sua opinião do
professor que lhe terá dado autoria existem nas bases de dados
mesmo; derivado da lenda de Procrustes.
académicas do mundo inteiro; aferiu-se no entanto que o
(4) M. Tensih não seria tão delicado em privado:
software em que foi escrito estava registado sob pertença da
em discussão com os restantes membros do colégio,
universidade situada no edifício; pela falta de evidências
afirmava que não tinha «tempo a perder com mais
concretas e a possibilidade forte de se tratar de ficção, conclui-se
uma teoria da conspiração, inventada por mais um
que deve existir pouca probabilidade de ligação deste documento
livre-pensante, daqueles que se põem a analisar o
com o atentado.)
tráfego da rede e descobrem fantasmas e esquemas
CAP. I – Conspiração sobre a Teoria ocultos (...) matemática dúbia e interpretação
da Conspiração imberbe» (Mailing-list 3453.google, 31.10.16PCI).
(5) o corpo estava em elevado estado de
(1) professor emeritus da UPC (Barcelona) onde decomposição, depois de uma semana na água; o
leccionou sobre os novos modelos políticos de 7PCI despiste genético não conseguiu provar a 100% que
a 13PCI; de acordo com o seu blog, desenvolveu aí os se tratava de Hamasi (relatório do médico-legista,
fundamentos que dariam origem à teoria dos poderes 20.05.17PCI).
invisíveis «inspirado pela organização dos diversos
(6) nome de solteira da mãe; Hamasi, pela lei de
departamentos, um padrão de atitudes e
Singapura, não estaria a apresentar um nome falso
procedimentos que surgia da sua interligação
mas a desenvolver uma segunda identidade (a
electrónica, e ao qual se obedecia sem grande crítica;
alteração voluntária de identidade é um direito
NOVA 32 Dezembro - 2007
protegido por vários países da orla do Pacífico desde (11) o computador de Tensih foi encontrado nos
5PCI). Contudo, como apenas utilizou essa destroços, mas irrecuperável.
identidade durante o tratamento psiquiátrico, a (12) vi-lhe ainda o rosto, pois a entrada da estação
imprensa e a comunidade internacional concluiriam onde tínhamos combinado fica a cinquenta metros do
apressadamente que Hamasi tinha tentado esconder a cruzamento; o carro dele voou literalmente na minha
verdade sobre a sua condição mental. frente ao ser projectado para fora do viaduto. Não
(7) segundo o Rig Veda, Varuna guarda as almas de cheguei a prestar atenção ao outro carro.
quem morre por afogamento. (13) escrita à mão numa letra muito miudinha; a
(8) Esta espantosa evidência é difícil de compilar, primeira ex-mulher de Dvorak, que encontrei no
mas pode ser obtida nas bases de dados dos serviços velório, ajudou-me a decifrá-la; quando terminou,
de necrologia das universidades dos diversos países; mudou de atitude e pediu-me para desaparecer da
alguns, nomeadamente os africanos, irão requerer cerimónia e não voltar a contactá-la.
autenticação por parte da academia que suporta o (14) A lista inclui ainda técnicos de software,
estudo; outros poderão requerer o uso de meios analistas demográficos, juristas, cirurgiões, membros
menos oficiais – aconselha-se o investigador a ter o de organismos de segurança social, técnicos políticos,
espírito aberto no que toca a questões éticas, entender legisladores, as respectivas datas e locais de óbito e o
os costumes de cada país e concentrar-se nos tipo de acidente envolvido.
resultados. Eu própria não teria perseguido esta
questão se não tivesse querido falar pessoalmente CAP. II – Uma Nova Camada de
com alguns dos membros do comité. Pele
(9) Dvorak pertenceu ao comité de Janeiro a
(1) inicialmente, apenas a partir dos dez anos, mas a
Setembro de 16PCI, tendo tido acesso ao corpo da
lei tem baixado a idade mínima legal para a adesão à
teoria mas nunca chegando a manifestar a sua
derme, situando-se na maior parte da Europa e
opinião.
Estados Católicos Americanos nos quatro anos, cinco
(10) Segundo a caixa preta do avião, esta mensagem
para os Estados Árabes Americanos e Alemanha, e
teria sido enviada pelo co-piloto às 20.35; contudo,
quinze para o Brasil (por ventura do conflito entre as
este, dos poucos ocupantes a terem sobrevivido,
várias culturas de dermes - v. cap. III).
negou a existência de tal mensagem, bem como de
(2) espátula impregnada de nanócitos-gm com que
que houvesse o problema relatado a bordo. Não foi
se raspa as gengivas do recém-nascido.
possível prosseguir a investigação porque o co-piloto
morreria passadas algumas horas pela administração (3) cf. Construindo Cibersacerdotes: A Adesão da Derme
fatal de insulina, derivada da troca incorrecta de como Processo Iniciático na Cultura Protestante, A. Brahm e
etiquetagem dos medicamentos no serviço do S. Bram (Londres, 3PCI).
hospital (relatório da comissão de investigação do (4) Madagáscar é a excepção à regra; a Tanzânia,
desastre do vôo New Pan-American 0743, pelo contrário, sobrevive com uma das dermes mais
30.03.20PCI). atrasadas do planeta, depois da catástrofe da erupção

NOVA 33 Dezembro - 2007


do Kilimanjaro provocada pelo projecto África (7) designação pela qual a imprensa designou o
Século XXII. Primeiro Colapso da Internet durante os primeiros
(5) nos ECA, por motivos práticos (necessidade de meses após o evento e que seria ocasionalmente
pagar apenas um acto religioso por parte das famílias), utilizada em publicações anteriores ao Segundo.
o baptismo e a activação da derme começam a juntar- (8) a versão 3.3 apenas monitoriza o nível de
se num só acto, realizado pela figura sacerdotal, que serotonina, não é capaz de o influenciar.
se encontra devidamente certificada pelo Gabinete de (9) R. G. Martin ratifica a sua perspectiva
Gestão da Plataforma Comum de Comunicação – o contraditória numa entrevista posterior: «a alucinação
que acaba por ter interessantes consequências colectiva a que me referi anteriormente poderá ser
políticas (cf. ob. cit, A. Brahm e S. Bram, pp. 170- explicada, em grande parte, pela adaptação de uma
185). Pela natureza da religião, esta tendência é menos população a uma nova forma tecnológica de
forte nos EAA, mas houve estudos que verificaram a comunicação (...) a derme é sem dúvida inofensiva a
intensidade de actuação da derme durante o Salat (cf. nível biológico e mental (...) novos estudos
«Variação da actividade na nano-derme na rotina convenceram-me que prosseguia por uma
diária de dez indivíduos», T. Borme, T. Shackra & F. argumentação errada (...)» (44534US.visual.google,
Lampreia, Nova Deli, 23PCI). 8.9.3PCI, dois meses depois da tentativa de rapto do
(6) a tendência tem vindo a propagar-se pelas filho mais novo).
culturas orientais, onde a dimensão e densidade (10) cf. Efeitos da Exposição Prolongada de Fetos da
populacional explica a quantidade de medidas de Cobaia à Acção da NanoDerme, por H. Simmons,
controlo do nível de saúde geral da população, as Cambridge, 22PCI.
quais têm sido alvo de críticas a nível mundial.
(11) comparem a citação mencionada com a
Segundo Deerk (Antuérpia, 12PCI), «contra a
seguinte, retirada de um jornal-papel publicado na
democracia fala a higiene, ou o que passa por higiene,
época: «segundo Herbert Simmons, investigador e
de um povo ou uma cidade ou um estado;
obstetra no Bristol General Hospital, “apesar das
defensável? Veja-se o caso de Hong-Kong, onde os
protecções anunciadas, é expectável que um nível
monitores individuais de saude estão em constante
mínimo da nanoderme da mãe ultrapasse a barreira da
vigilância pelo Estado e sintomas que possam indicar
placenta, transportada no sangue; não me pronuncio
uma das doenças colocadas em lista negra, obrigam o
sobre o nível de intervenção que terá a nível do feto,
indivíduo a apresentar-se para check-up imediato e
uma vez que a programação é estritamente controlada
iniciar o tratamento, podendo ser preso caso recuse e
e poderá não representar qualquer ameaça (...) os
mantido sob custódia até terminar o processo de
testes normais não incidem sobre a presença de nano-
cura.» Ou como diz Silverberg (Bagdad, 16PCI), «o
derme.”» (Bristol Sun, 12.2.23PCI). A citação surge
corpo deixa de ser pertença do indivíduo e é pertença
apenas nesta publicação; a entrada do blog foi refeita
do Estado - o indivíduo é neste caso ocupante
sete meses mais tarde e não surge sequer no Internet
indesejável e por vezes incomodativo (...) a cura, e
Archive.
logo estar vivo, torna-se uma sentença (...).»

NOVA 34 Dezembro - 2007


CAP. III – Ordem Mundial, ou (4) de acordo com a mesma reportagem, são na
Desordem Organizada? ordem dos trinta mil, em Zanzibar, concentrados na
zona sul da ilha. Os bebés são mergulhados à
(1) utilizamos o conceito tal como descrito por P. nascença durante dois dias num líquido inibidor – que
Morris (Nova Iorque, 15PCI): «De tal forma é na verdade uma derme de versão mais antiga com a
complexo e interligado se tornaram os aparelhos que qual a residente encontra incompatibilidades de
a humanidade inventou para a ajudar a dominar o actualização e logo não se sobrepõe. Embora desta
meio ambiente e proporcionar melhores e crescentes forma estes residentes, que se recusam a aceitar a
níveis de qualidade de vida, de tal forma dependem as situação de nação-escrava por questões culturais,
nossas vidas - inclusivé literalmente, em certas consigam fugir ao escrutínio da África do Sul, existe o
doenças - da continuação e crescimento deste status perigo de submeterem crianças tão novas à actuação
quo mecânico e electrónico, e de tal forma esses de uma derme antiga; o resultado tem-se manifestado
mesmos mecanismos se tornaram autónomos, na decrescente taxa de natalidade, que não pode ser
capazes de decidir, escolher e evoluir sem intervenção considerada apenas como efeito natural no fluxo da
humana, que a denominação arcaica de “tecnologia” população. Os habitantes aguardam pacientemente
deverá também evoluir para uma “tecno-ecologia”, «pelo dia em que a dívida esteja paga e possam voltar
em tudo semelhante, como conceito, à da Natureza. a ser os donos da terra.»
Na verdade, uma Natureza-2, ficando a Natureza-1 (5) os números do Banco Mundial (relatórios anuais
como designação base do mundo biológico terrestre de 20-23PCI) revelam 60% de insucesso nas
como sempre o conhecemos.» iniciativas de adesão de tecnologia moderna por parte
dos «Países a Vapor», atribuídas a causas tão diversas

(2) a citação não provêm de Kemp, mas é adaptada como mau planeamento, condições ambientais,

de uma conclusão do ensaio de Hamasi: «[a instabilidade política, falta de financiamento, falta de

disseminação indiscriminada de informação] provoca competências nos recursos humanos, dificuldades

o surgimento de nódulos auto-reguladores que são logísticas. Interessante é o facto de nos 40%

capazes de produzir informação contraditória que restantes, existir consistente e coerentemente

anula o efeito da primeira, e sobre este pano neutral controlo e financiamento de países e entidades

inscrever a sua própria interpretação» e ainda «quem ocidentais, que reservam para si os direitos

tenha os instrumentos correctos é capaz de subsequentes de exploração e pesquisa durante o

determinar o comportamento dos nódulos (...) roubar primeiro século.

identidades falsas, obter senhas e contra-senhas e (6) cf. Kropotkin às Avessas, S. Biergenstein e Unidade
efectuar espionagem de informação de forma barata e Pan-Europeia: Tecnocracia com Pernas, M. Holder (ambos
imediata.» Nova Iorque, 19PCI).

(3) da mesma forma que a Argélia se tornou nação-


escrava em 19PCI perante o consórcio germano-
turco com uma dívida combinada de 1500 milhões de
euros.

NOVA 35 Dezembro - 2007


a situação estava normal e só não consegui mostrar-
lhes os gráficos de evolução das doenças menores
CAP. IV – É possível ver os Poderes porque o ecrã não funcionava (o que é recorrente
Invisíveis?
quando tento apresentar evidências)... quando sairam
a luz começou a piscar intermitentemente, o teclado
(1) compare-se no controlo evidenciado nas
não respondia, a água saía fria e depois suja... não
estatísticas das aprovações de natalidade na China nos
consigo alugar carros, o sistema fica avariado quando
últimos dez anos com o crescimento do volume de
entro e volta a funcionar quando saio... como é que
abortos espontâneos da Pan-Europa e ECA
posso convencer alguém? É um berdadeio jofo do
(relatórios do Banco Mundial).
gato w rato... percberam konteud d maill nao consg
(2) o processo não é perfeito, senão Dvorak teria
escccvr +...”
tido, mais cedo, um possível destino igual aos dos
(4) os padrões surgem quando menos esperamos:
restantes membros do comité, antes que eu própria o
ao comparar as iniciais das primeiras seis frases do
conseguisse contactar (obviamente que esta frase não
capítulo IV das versões francesa, inglesa, espanhola e
é comprovável cientificamente).
norueguesa do manual de instruções da Plataforma
(3) embora Hamasi se referisse à citação como Financeira Comum, utilizado por estes países,
estando no blog, não consegui encontrá-la, o que chegamos também à designação Varuna. Por sinal, se
aumenta a necessidade de reproduzir o email na
juntarmos as iniciais dos relatórios do Banco Mundial,
íntegra: «Vou ao limite de crer numa conspiração que dos livros mencionados neste ensaio, e em grande
me acerca, que tudo conspira contra mim, desde o parte dos textos oficiais, encontramos
mais singelo meio de transporte aos mecanismos no
constantemente esta designação. Manipulação? Ou
meu lar, que vão um a um deixando de me obedecer. estará esta assinatura digital já impregnada no nosso
A que extremo se torna a perspicácia em paranóia? pensamento, impedindo que [ficheiro corrompido e
Recuperar o equilíbrio é essencial, mas como ter a
irrecuperável] 
certeza do que sou? Um alvo genuíno? Não um louco
convicto? Apenas um acumular de evidências que
tento negar mas que me procuram, como o facto de
tudo se encontrar na normalidade quando estou
acompanhado mas começar a funcionar mal quando
estou só. Ontem entretive dois professores em casa...

NOVA 36 Dezembro - 2007


ORIGAMI
S A N T I A G O E X I M E N O
coberta de ferrugem e verdete em partes iguais. Umas
letras apagadas pela lama e sujidade acumulada
durante anos mostravam o nome do parque. Tentei
ler o que diziam, mas esquecera-me dos óculos na
residência pelo que me foi impossível. O parque
permanecia num silêncio mágico, envolvente. Decidi
Perante a iminência da morte seguir por um dos caminhos de terra que se
a cigarra torna-se mais melodiosa embrenhavam pelas encostas de relva e iam dar à
no Outono fonte ornamental.

Shiki Masaoka Caminhava absorto nos meus pensamentos

1 quando algo passou a voar junto à minha cabeça,


roçando a orelha. Mal pude vê-lo, brilhante e rápido,
e confundi-o com um pássaro. Sobressaltado, cobri o
VI-O PELA PRIMEIRA VEZ NUM PEQUENO
rosto com um braço e emiti um grito abafado
parque do outro lado da rua, junto ao edifício
impróprio de um homem maduro. Das sombras
cinzento e murcho onde passei os dois últimos anos
surgiu um jovem. Vestia umas jeans pretas e uma
da minha vida. Era um parque de relva verde e
camisola sem mangas da mesma cor e tinha o cabelo
baloiços coloridos, com bancos por baixo de árvores
comprido e descuidado agarrado com um elástico. Ao
frondosas e uma fonte de pedra com seis tubos por
passar ao meu lado parou um instante e exibiu um
onde saía um ténue fio de água não potável.
sorriso de anúncio televisivo.
Naquela tarde esperava a chegada do meu filho.
- Desculpe. - sussurrou. - Pensei que não havia
Desde a morte de Yolanda, a mãe, a regularidade das
ninguém.
visitas alterou-se e há vários meses que não vinha
Sobressaltado, devolvi-lhe o sorriso. O jovem
visitar-me ao lar. O tempo tudo cura, dizem. Na
agachou-se e apanhou um diminuto avião de papel,
nossa família aquele lugar-comum parecia não
construído em cores brilhantes, e dedicou-me outro
funcionar. Enquanto a noite caía sobre a cidade e se
dos seus encantadores sorrisos, talvez demasiado
tornava mais evidente a cada minuto que não viria,
forçado. O avião agitou-se nas suas mãos, movido
decidi atravessar a cerca e dar um breve passeio pelo
por alguma corrente inesperada e o jovem apressou-
parque.
se a enfiá-lo numa caixa transparente que levava no
Uma cancela ferrugenta chiou quando tentei abri-
bolso das calças.
la. O estado de degradação da cancela era evidente,
NOVA 37 Dezembro - 2007
- Origami, sabe. - disse com voz grave e fossemos miúdos pequenos. Eu, obediente, apagava o
desapareceu por entre as árvores. candeeiro da minha mesinha, e quando a enfermeira
Prossegui o meu caminho até à fonte e sentei-me de guarda voltava à sua guarita, dedicava-me a
num dos bancos de pedra a contemplá-la. Duas horas devorar uma daquelas obras. Depressa compreendi
mais tarde despertei sobressaltado, sem saber o que pouco poderia tirar daquela colecção, limitada a
motivo. Hirto de frio, com uma sensação amarga na obras de Cela, Gala ou Pérez-Reverte. No entanto, na
boca e uma terrível dor de cabeça, arrastei-me até ao secção de hobbies encontrei um livro com uma capa
meu quarto acanhado naquela prisão para anciãos curiosa, um passarito de papel colorido. Falava de
lamentando em silêncio mais um mês de solidão. dobragem de papel, claro. Falava de origami.

2 3

O tempo passa muito devagar quando na vida nada Numa manhã como qualquer outra, decidi voltar
tem sentido. Permiti que a rotina do lar me ao parque. À luz do Sol tudo parecia diferente. Onde
envolvesse e durante meses limitei-me a comer, antes encontrava mistério e sedução, agora florescia a
dormir e ver televisão na sala de convívio. À minha vulgaridade. Uma multidão de crianças inundava o
volta formavam-se grupos de amigos que local, correndo de um lado para o outro, deslizando
organizavam partidas de cartas ou dominó com nos tobogãs, brincando nos baloiços, perseguindo-se,
apostas ínfimas para não arruinar a pensão a rindo, brigando... Em duas ocasiões tive que
ninguém. Um par de vezes convidaram-me a juntar- abandonar o caminho de terra para permitir que uma
me a eles e recusei com cortesia. Preferia enterrar-me mulher passasse com um carrinho-de-bebé. Não, não
num dos cadeirões e permanecer umas horas vendo era esta a imagem que eu recordava, nem a que
qualquer coisa que emitissem. As discussões com a procurava.
escolha do canal tornaram-se tão aborrecidas que Voltei ao lar e comi em silêncio, numa mesa
quando alguém se dirigia a mim para perguntar a afastada. Serviam-se sempre dois pratos, primeiro um
minha opinião, premiava-o com um sorriso idiota, leve e variado e um segundo forte, mas baixo em
improvisava uma desculpa e subia ao meu quarto para gorduras, para cuidar da nossa dieta. O vinho era
dormir. permitido, mas só um copo por refeição. Eu comia
Na residência tínhamos uma pequena biblioteca, sempre com água, e só provava um bocado se o
um quarto diminuto de paredes cinzentas e primeiro prato fosse uma sopa e o segundo peixe
descascadas com várias estantes de metal, nas quais se grelhado, como costumavam servir-nos todos os dias
empilhavam caoticamente todo o tipo de exemplares da semana menos às quintas-feiras. Uma das
manuseados e estragados pelo tempo. Um dia decidi enfermeiras aproximou-se de uma das mesas mais
pegar num par de livros e preencher as minhas noites afastadas e ajudou uma mulher a sentar-se. Observei a
de insónia, que não eram poucas, com eles. As cena distante, como se não pertencesse a este lugar.
enfermeiras percorriam os corredores à noite, Auto-sugestão, chamam-lhe.
dizendo-nos que apagássemos as luzes como se
NOVA 38 Dezembro - 2007
A tarde decorreu com indolência, sentado frente ao O jovem apareceu por um dos caminhos laterais,
televisor sem sequer prestar atenção ao écran, dançando alegremente atrás de um enorme avião de
acompanhado pelo sussurro constante das peças de papel. O avião balanceou um par de vezes, desviou-
dominó resvalando sobre uma das mesas próximas. se, e finalmente o peso da cabeça levou-o a estatelar-
Aproveitei um dos intervalos da programação para ir se contra o solo, a uns centímetros do meus pés.
à casa-de-banho, e tive que esperar vários minutos Nervoso, agachei-me e segurei aquele papel dobrado
que um dos abandonados terminasse. Recordo que entre as mãos. Notei, admirado, que parecia estar
aquele adjectivo, abandonados, surgiu de um dos quente e palpitar na minha mão.
guardas de segurança num daqueles longínquos dias - Boa noite. - disse o jovem, estendendo a mão e
de festa, quando ninguém se preocupava com os apertando torpemente a minha enquanto tentava não
copos de vinho que consumíamos às refeições. Não deixar cair o avião. - Não pensei voltar a vê-lo por
voltámos a vê-lo, mas a palavra ficou associada a aqui.
todos aqueles que entre nós nunca recebiam visitas,
Sorri. O facto dele se lembrar de mim encheu-me
nem de familiares, nem de amigos. Agora eu fazia
de alegria. Abri mais o sorriso e devolvi-lhe o
parte do grupo.
brinquedo.
À noite, como de costume, instaram-nos a
- Chamo-me Eduardo. – disse. - Conhece o Ken
recolhermos aos nossos quartos. Depois de vários
Blackburn?
minutos de discussão com a enfermeira da recepção,
Neguei com a cabeça enquanto rebuscava nos
que repetidas vezes aludiu à minha propensão a ter
bolsos do meu fato de treino de forma dissimulada.
um enfarte, aos meus problemas da próstata e ao meu
Há muito tempo que esperava este encontro e queria
cansaço e preguiça habitual, consegui que me dessem
mostrar àquele jovem estranho os meus próprios
uma chave que me permitia sair para dar um breve
progressos. No fundo temia que se risse de mim, mas
passeio. A palavra breve foi reforçada com
ao menos devia tentar. Por fim tirei do bolso direito
insistência.
um pequeno modelo de avião feito com uma folha
O parque destilava silêncio na penumbra do
quadrada do bloco de notas que repousava na minha
anoitecer. Quebrei o encanto arrastando os sapatos
mesinha.
pelo chão de terra. Levava um fato de treino azul e
- Fiz isto. - murmurei, envergonhado.
sapatos, a imagem típica do velho decrépito. Mas
Eduardo sorriu abertamente e pegou-lhe. Não
também não me importava demasiado com o que os
deixou de sorrir embora os olhos mostrassem outra
outros pensavam de mim, para ser sincero. Caminhei
coisa. Notei, curioso, um gesto inesperado de repulsa
um pouco, olhando para um lado e para o outro,
quando o tomou nas mãos. Depois retocou com
esperando com o coração nas mãos. Quando
cuidado os airelons e lançou-o em direcção a um dos
envelhecemos restam poucos momentos de
bancos de pedra. O avião planou uns segundos,
verdadeiro prazer. Este era um deles: o prazer da
apenas quatro ou cinco, e aterrou sem contratempos
espera, a sensação de que ia acontecer um momento
sobre o banco.
mágico.
E aconteceu.

NOVA 39 Dezembro - 2007


- Bravo, foi um grande voo. - disse, e acrescentou, minha idade. Quando o sol se ocultava, pegava no
- O senhor pode vir amanhã? Ensinar-lhe-ia algumas casaco e numa caixa de sapatos onde guardava as
outras coisas, de certeza que lhe interessariam. minhas criações e caminhava até ao banco de pedra
- Claro. Com certeza. Sim. E o meu nome é que tínhamos tacitamente acordado como local de
Francisco, mas todos me chamam Paco. encontro. Eduardo chegava sempre uns minutos mais
tarde, a maioria das vezes precedido por um dos seus
- Paco. Perfeito. Então, amanhã espero-o aqui à
aviões. Sorria, sentava-se a meu lado, e fingia espanto
mesma hora. - e despediu-se com um gesto.
- com um considerável bom coração - pelo que
Durante mais uns minutos passeei pelo parque,
denominava “os meus fabulosos progressos”. Mentia,
desfrutando da solidão. Depois regressei ao lar.
mas fazia-o com tanto carinho que não me
Enquanto caminhava, trauteei uma velha canção de
importava. Era incapaz de criar modelos complexos,
escola que me veio à cabeça. Só quando cheguei ao
as minhas mãos eram demasiado torpes e a vista
quarto e me deitei é que me lembrei que me tinha
faltava-me nos momentos críticos. Apesar disso,
esquecido do avião no banco de pedra.
tentei várias vezes um modelo de elefante que
Eduardo considerava muito bonito, e acabei com o
4 bloco de notas antes de conseguir terminá-lo.
Em certas noites, Eduardo mostrava-me as suas
- Yoshizawa, Nakano, Kaway... Que sabem eles? obras. Trazia-as em caixinhas de plástico
Dobram e dobram e dobram, mas... e a vida? E o transparente. Uma vez trouxe uma girafa realmente
sentimento? - dizia Eduardo. excelente. Outra, um chinesinho que agitava a cabeça
Eu escutava e assentia, assentia e escutava. Às em jeito de saudação. Alguns insectos, modelos de
vezes fazia uma pergunta e ele respondia-me sem em aviões que não podiam voar. Uma vez chegou a
nenhum momento deixar de sorrir, com aquele trazer uma máscara muito bonita, mas não permitiu
sorriso carente de alegria que nunca abandonava o que eu a pusesse. Na realidade, não permitia que
rosto. Falava de aviões, de pássaros, de dobragens ninguém tocasse nas suas criações. Mantinha-as
básicas, de tipos de papel, dos movimentos e dos dentro de caixas, fechadas, e eu observava-as durante
gestos. Também falava da vida, da morte, das horas tentando adivinhar como as teria dobrado. Não
sensações. Era um erudito e eu, um homem sem me importava de não lhes poder pegar com as mãos,
cultura, escutava encantado a única pessoa que pois provavelmente seria incapaz de compreender a
parecia saber que eu existia. complexidade da sua construção. Mas é verdade que

Encontrávamo-nos sempre no parque ao anoitecer, me doía essa falta de confiança, e uma noite censurei-

como dois namorados. As horas no lar decorriam o amavelmente.

com tédio até chegar o momento de nos vermos. As - Copiá-las, Paco? - e explodiu numa gargalhada. -
enfermeiras tinham notado o aumento dos meus Não, amigo, não se trata disso. É... não sei, não
passeios nocturnos, mas parecia que tal não as consigo explicar-lhe de forma fácil. Simplesmente,
preocupava demasiado. Melhor, não me agradava a assim que as termino, ninguém deve tocá-las.
ideia de ter que justificar as minhas andanças na Ninguém, nem mesmo eu. Entendes?

NOVA 40 Dezembro - 2007


O seu rosto adquiria então um tom sombrio, como nenhum valor para ele. Alguém ligou a televisão e o
se manipular aquelas criações de papel implicasse barulho do aparelho terminou a nossa conversação.
algum tipo de perigo indefinido. Não, não o entendia, Partiram como vieram, correndo debaixo da chuva.
mas não tinha importância. Nenhuma importância. Nunca voltei a vê-los, e no fundo do coração não o
lamentei. A partir daquele momento a vigilância sobre
5 os meus movimentos furtivos a altas horas da noite
apertou-se. Duas enfermeiras patrulhavam o corredor
como se fossem dois cães de caça, e um segurança
Quatro dias depois o meu filho veio visitar-me.
permanecia a postos junto da porta da entrada
Caía uma chuva fina que ensopava a roupa e
durante toda a noite. No fundo divertia-me com a
resfriava a pele. O meu filho chegou num carro
perspectiva de aumentar a despesa da residência, mas
desportivo novo e brilhante, acompanhado por uma
a impossibilidade de me reunir com Eduardo
esbelta jovem de olhos grandes e pernas esguias
destroçava-me por dentro.
enfiadas numas jeans justas, que eu nunca tinha visto
Voltei à rotina, absorto nos meus próprios
antes. Correram debaixo da chuva desde o
pensamentos. Se antes só me relacionava com os
estacionamento até à entrada, onde uma das
internos, agora resumia-me a um estado de silêncio e
enfermeiras e eu esperávamos em silêncio. Ambos
incomunicação absoluto. Recolhia-me ao quarto e
exibiam sorrisos despreocupados, e não pararam de
deixava passar as horas deitado na cama, olhando o
falar enquanto percorríamos o lar. Falaram da casa,
vazio. Uns dias abria a janela e observava a rua, mas
do carro, do trabalho. Falaram do tempo, de política,
dali não podia ver o parque e depressa me assaltava a
dos planos de casamento.
tristeza.
- Por que vieste, Jorge? - perguntei, aproveitando
Os dias passaram como folhas de Outono, e
um instante em que ficámos sós.
tornou-se evidente que o meu estado depressivo não
A jovem dançou atrás da enfermeira em direcção à
beneficiava nada com o ambiente do lar. Uma manhã
cozinha, provavelmente com a intenção de saber que
especialmente triste, com nuvens cinzentas
tipo de veneno de acção lenta nos serviam
inundando o céu, a enfermeira-chefe chamou-me ao
diariamente. Eu e o Jorge ficámos junto à porta da
seu gabinete e teve uma grande conversa privada
sala de convívio. Entretanto acendeu um cigarro e
comigo. Não narrarei os pormenores, direi apenas
olhou-me de alto a abaixo.
que depois de mais de duas horas de discussão,
- Aqui é proibido fumar. - censurei-o. concedeu-me uma licença para sair uma noite por
- Não me fodas com a tua algaraviada, pai. - disse, mês, sempre regressando antes da madrugada.
dando uma puxada. - Sabes por que vim. Andas a Recordo que aquele dia não era quinta-feira, e creio
comportar-te como um velho louco fodido, saindo às que foi a única vez que acabei os dois pratos. Depois
noites sabe Deus aonde... subi ao meu quarto, e com traço firme e seguro,
Falou durante vários minutos, recriminando a marquei com uma cruz a quadrícula do dia doze de
minha vida. Não respondi. Escutei em silêncio, Novembro no calendário que tinha pendurado na
consciente de que as minhas palavras não teriam parede.

NOVA 41 Dezembro - 2007


consegui, e lamentei não possuir um sentido de
6 orientação mais desenvolvido.
- Às vezes é difícil, Paco, sabe. - disse-me Eduardo
enquanto caminhávamos pelas ruas obscuras e as
Eduardo estava sentado no banco de pedra, uma
primeiras gotas de chuva caíam sobre nós. - Muito
gárgula na obscuridade. Quando pousei a mão no
difícil. Algumas noites não param de se mexer, de se
ombro dele, deu um safanão e levantou-se de um
agitar. Não consigo dormir. Passo noites inteiras
salto. Retrocedi assustado. Tinha os olhos vermelhos,
acordado, noites inteiras ouvindo as vozes… E eles
injectados de sangue, e a cara pálida como se estivesse
pedem-me… exigem-me que continue com o
há vários dias sem dormir, num estado de extrema
trabalho... Mas eu não pedi isto, Paco. Eu não pedi.
tensão.
Não sou como o meu pai.
- Voltou, Paço. - disse, a voz era débil, apagada. -
Chegámos até um portão iluminado. Subimos
Estive à sua espera vários dias. Preciso de que me
umas escadas sem nos olharmos e entrámos no
ajude, que venha comigo.
edifício. Esperámos a chegada do elevador em
Algo nos seus gestos e na maneira de falar induziu-
silêncio. Eduardo mordia as unhas como se tivesse
me a desconfiar. Senti temor, pois a atitude era muito
quinze ou vinte anos menos. Os seus olhos não
diferente da de tantas outras noites. Enquanto
paravam de observar à volta, como se temesse que
pensava nele, Eduardo agitava as mãos e depositava o
alguém se lançasse sobre nós de um momento para o
peso primeiro num pé e depois no outro. Aquele
outro. Ao chegar à porta do apartamento, Eduardo
jovem provavelmente era a única pessoa no mundo a
pareceu recuperar um pouco a presença de espírito e
quem podia chamar amigo sem medo de me enganar,
dedicou-me um sorriso fraco, apenas uma sombra do
por isso não me fiz rogado e anuí com a cabeça.
habitual.
- Estupendo! - gritou, tentando esboçar um sorriso.
- Agora, Paco, deve falar-lhes, deve explicar-lhes o
- Estupendo! Venha comigo, e eles compreendê-lo-
que aconteceu... Fui fraco, permiti que os meus
ão. Vai explicar-lhes e eles vão entender. Qualquer
sentimentos mais indignos me dominassem... Mas
um pode ter um dia mau, não é, Paco? Qualquer um!
nunca quis fazer-lhe mal, juro... Nunca quis fazer-lhe
Ainda por cima nós, que não temos uma vida fácil.
mal. - disse com lágrimas nos olhos, enquanto abria a
Oh, sim, e eles sabem perdoar...
porta do apartamento.
E continuou falando e falando sem parar durante
No interior fazia calor, talvez demasiado para a
todo o trajecto até à sua casa. As ruas giravam,
época do ano. Contudo, quando notei como a porta
retorciam-se, giravam e terminavam numa outra rua
se fechava atrás de mim, senti um calafrio. Olhei à
mais ampla. Os semáforos sucediam-se uns atrás dos
minha volta com a boca aberta. A casa era em si
outros. Não vimos carros, apenas um ou dois. Não
mesma uma única divisão. Quatro paredes. E do chão
nos cruzámos com ninguém. Enquanto nos
ao tecto, as paredes estavam repletas daquelas
internávamos na cidade tentei memorizar o caminho
caixinhas transparentes, aquelas pequenas celas de
de volta, porque devia regressar sozinho. Não
plástico. No interior de cada caixa, uma criatura - sim,
criaturas, não poderia denominá-las de outra maneira

NOVA 42 Dezembro - 2007


- debatia-se contra as paredes. Consegui ouvir as Depois sentei-me no chão e chorei.
vozes, os gritos enquanto batiam uma e outra vez nos
muros das prisões. E todas elas se agitavam e moviam
7
à vez, seguindo um ritmo inexplicável, uma ladainha
inumana de papel dobrado.
Umas horas depois deixaram-me partir, mas tive
Reparei sem querer num pedaço de papel no chão.
que lhes prometer que voltaria. Eduardo cuidou deles
Tinha sido cortado uma vez, e outra, e outra, com a
durante os últimos anos, e precisavam que alguém
ajuda de uma tesoura. A beleza do elefante tinha sido
continuasse a cuidar. Compreenderam que não
mutilada, a vida ceifada por umas mãos vingativas e
poderia passar muito tempo ali, as responsabilidades
rancorosas. Ainda se moviam as patas numa agonia
da minha vida num lar limitavam-me bastante. Por
eterna de cortes sem sentido. A caixa de plástico que
isso prometeram ajudar-me.
o tinha guardado jazia alguns centímetros mais além,
Cheguei tarde ao lar, e a enfermeira do turno
queimada nas bordas, mais um sinal da alma torturada
aproveitou a oportunidade para me repreender.
e desfeita que tinha feito aquilo. As vozes reclamavam
Escutei-a em silêncio, com um sorriso no rosto.
justiça. As vozes reclamavam vingança.
Ofendida, afastou-se não sem antes dizer-me que
As criaturas das paredes saltavam e uivavam como
notificaria a enfermeira-chefe. Quando fechei a porta,
possessas. Peixes, árvores, aviões, leões, máscaras,
tirei de um dos bolsos do casaco uma caixinha de
passaritos, andróides, homens, portas... Todos
plástico transparente. No interior uma minúscula
sentiam a perda, todos sentiam a dor. As vozes
criatura agitava-se, nervosa.
enchiam-me a cabeça, gritavam na minha alma.
Prometeram ajudar-me.
Apanhei a tesoura.
Esta noite, o farão. 
- Compreende agora? - gritou Eduardo atrás de
Tradução de Isabel Martins
mim, dificilmente audível naquela cacofonia.
Senti a sua dor, senti a sua perda. Eles falavam
comigo, precisavam de mim. Os gritos de Eduardo
não afogavam as suas súplicas. Cravei uma e outra
vez, uma e outra vez, deixando que eles guiassem as
minhas mãos. Quando deixou de gritar, a divisão
ficou num silêncio absoluto. Todos se calaram, e
apesar da maioria não ter olhos, senti que me
olhavam, e à minha alma chegou um murmúrio suave
de aprovação.

NOVA 43 Dezembro - 2007


Sobre os autores

 Csilla Kleinheincz é uma jovem escritora húngaro-vietnamita de 28 anos de idade. Traduziu clássicos do
género fantástico tais como as obras de Peter S. Beagle, trabalha como editora na Delta Vision um dos maiores
editores húngaros de Fantasia. A sua primeira novela, publicada em 2005, e muitos dos contos são parte da literatura
slipstream húngara.
Visite o blogue dela em <http://kleinheinczcsilla.deltavision.hu/wordpress/>.

 Telmo Marçal é autor de contos de FC que misturam um certo tom kafkiano com uma ironia mordaz muito
própria. Recentemente o conto O Pico de Hubert surgiu na antologia Por Universos Nunca Dantes Navegados.
Consulte o primeiro número do NOVA para uma bibliografia.

 Luís Filipe Silva recebeu em 1991 o prémio Caminho Ficção Científica pela colectânea O Futuro à Janela,
agora disponível em e-book no site que mantém em <http://www.tecnofantasia.com/>. É autor do ciclo
GalxMente, composto de duas novelas, Cidade da Carne e Vinganças e co-escritor com João Barreiros do vasto
romance Terrarium. O conto aqui publicado surgiu originalmente em castelhano na revista argentina Axxón e foi
seleccionado para representar Portugal na antologia Creatures of Glass and Light: New European Stories of the
Fantastic, livro publicado por ocasião da Eurocon 2007. O mais recente trabalho é a noveleta Aquele que Repousa na
Eternidade inserida na colectânea A Sombra sobre Lisboa: Contos Lovecraftianos na Cidade das Sete Colinas.
Recentemente foi também editor da antologia Por Universos Nunca Dantes Navegados.

 Santiago Eximeno nasceu em Madrid em 1973 e é um prolífico autor publicado em diversas antologias e várias
vezes premiado. Já traduzido para inglês, francês, búlgaro, japonês e agora, pela primeira vez, para português. Já
recebeu o prémio Ignotus da Associação Espanhola de Fantasia, Ficção Científica e Terror <
http://www.aefcft.com/> por duas vezes e o prémio Xatafi-Cyberdark. Pode visitar o site do autor em <
http://www.eximeno.com/>.

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