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Leandro Calbente Câmara

Dissertação: Rousseau e o Contrato Social

O objetivo desta dissertação é discutir o sentido da seguinte afirmação do filósofo


genebrino Jean-Jacques Rousseau: “Todo governo legítimo é republicano” 1 . Esta assertiva
está situada no centro do pensamento político do autor e para compreendê-la é necessário
recuperar a articulação entre uma antropologia do homem moderno e a construção de uma
poderosa crítica lançada contra as estruturas sociais dos finais do Antigo Regime.
Esta articulação está claramente anunciada logo no início do Contrato Social: “quero
indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura,
tomando os homens como são e as leis como podem ser” 2 . O que me parece decisivo nessa
frase é a clara afirmação de que o teórico da política deve, acima de tudo, assumir na sua
reflexão os homens como são, nunca como poderiam ou deveriam ser. Nada de idealizações
ou abstrações, a única possibilidade de encontrar o assento para um governo legítimo é
trabalhar com a natureza concreta dos homens, ou seja, com a maneira que os homens vivem
presentemente.
Como se sabe, é no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens”, escrito em 1753, que Rousseau elabora, de maneira sistemática, sua
antropologia, partindo do homem natural, despido de todos os traços de sua sociabilidade,
acompanhando as transformações promovidas na sua natureza ao longo da história da
humanidade. Nesse sentido, a questão chave da obra é tratar de desfazer uma concepção a
respeito da moral humana: os homens contemporâneos são maus, mas o homem não é
essencialmente mau. Sua antropologia visa demonstrar como se deu esta conversão. Nesse
sentido, é interessante destacar as palavras de Rousseau: “O princípio fundamental de toda
moral sobre a qual raciocinei em todos os meus escritos e que desenvolvi neste último
[Emílio ou da educação] com toda a clareza de que era capaz, é de que o homem é um ser
naturalmente bom, amando a justiça e a ordem; que não há perversidade original no coração
humano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos. (...) Mostrei que todos
os vícios que se imputam ao coração humano não lhe são naturais; disse a maneira segundo a

1
ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Livro II, cap. VI, p. 55.
2
Do Contrato Social. Livro I, p. 21.
qual eles nascem; segui, por assim dizer, sua genealogia e fiz ver como, pela alteração
sucessiva de sua bondade natural, os homens se tornam afinal o que são” 3 .
Assim, Jean-Jacques acreditava que a única possibilidade de compreensão da
sociedade coetânea, os homens como são, era iniciar por esta genealogia do próprio homem,
desbastando as múltiplas camadas de temporalidade que foram se depositando em seus
modos, ações e comportamentos, indo até a essência primeva do homem. Com isso, seria
possível recuperar um homem “que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que
provavelmente jamais existirá” 4 . Somente após atingir esse ponto zero é que se torna possível
reconstruir a textura da temporalidade humana até a sociedade atual e todas suas
desigualdades e contradições.
Não cabe nos propósitos dessa dissertação a reconstituição minuciosa dos argumentos
desenvolvidos no Discurso. O que interessa, na realidade, é recuperar algumas idéias centrais
para a compreensão desta conversão do homem natural em social, ou melhor, do processo de
desnaturação do homem. E para isso, é necessário compreender o conceito de perfectibilidade.
No pensamento do filósofo, pouco distingue o homem natural dos demais animais,
sendo obrigado a enfrentar as intempéries da natureza, este ser desenvolve, em maior grau, as
faculdades necessárias para sua sobrevivência, sua capacidade de atacar suas presas, de se
defender dos animais mais selvagens, de encontrar o abrigo adequado. É um ser que pensa
pouco e suas únicas preocupações são aquelas voltadas para sua própria conservação.
Porém, ao contrário dos demais animais, presos aos seus instintos particulares, o
homem é dotado de uma capacidade única, “de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio
das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras” 5 . A possibilidade de
conservar e acumular estes aperfeiçoamentos se dá através da linguagem, por isso para o autor
é este par linguagem/perfectibilidade que marca uma cisão entre os homens e os demais
animais, bem como atuará como o motor fundamental do processo de desnaturação desse
mesmo homem 6 .

3
ROUSSEAU, J. J. Carta a Beaumont apud FORTES, Luiz Roberto Salinas, Rousseau: o bom selvagem., p.
15.
4
ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo:
Nova Cultural, 1988, volume 2, p. 32.
5
Discurso, p. 47.
6
Rousseau abre seu ensaio sobre a origem das línguas afirmando que é “a palavra [que] distingue os homens
entre os animais”, ver ROUSSEAU, J. J. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 1978p.
159.
Como esta capacidade quase não se encontrava desenvolvida no estado de natureza,
este homem vivia apenas segundo seu instinto, desconhecendo o uso da razão, a fonte das
maiores paixões e responsável pelo nascimento do sentimento de amor-próprio. Por isso, é
apenas o desejo de conservação que anima suas ações. Este sentimento é chamado por
Rousseau de amor de si. E dele nasce outro sentimento natural, a piedade, aquela
repugnância inata de ver um semelhante a si sofrer. A combinação do amor de si com a
piedade tornam suas ações o menos prejudicial a qualquer outro homem. Logo, nesse estado
primevo da humanidade quase não havia possibilidade de conflitos e desentendimento. Era
um tempo tranqüilo.
Entretanto, por razões fortuitas, que seguiram apenas ao acaso, essa tranqüilidade
inicial foi se desfazendo. A capacidade de se aperfeiçoar possibilitou o exercício da razão
humana. Os homens começaram a viver mais próximos dos seus semelhantes. A natureza
humana foi, pouco a pouco, sendo modificada pela sociabilidade nascente. O homem natural
foi transformado em um “ser social”. É o início da história e também o início da queda.
Os homens conseguiram dominar os obstáculos da natureza, construíram ferramentas
rudimentares, estabeleceram os primeiros rudimentos de uma linguagem, criaram os primeiros
vínculos com seus semelhantes. E mais importante, começaram a lançar para si próprio um
olhar de admiração, tornando-se orgulhoso de seus feitos e conquistas. Ganharam gosto pelas
suas posses e obras. Isso tudo colocou em movimento a roda da história, o embrião da
sociedade civil.
A sociabilidade implicou em ganhos, mas estes também foram acompanhados pelo
desentendimento, pelas paixões conflituosas, o homem passou a desejar aquilo que seu
semelhante detinha. O orgulho ferido alimentou a violência e motivou as mais sanguinárias
vinganças. O amor de si, convertido em amor próprio, não sustentava mais um sentimento
instintivo de piedade natural. O egoísmo começou a grassar nos corações dos homens 7 .
Este homem repleto de interesses particulares, dominado pelo amor próprio, é o
homem social, é neste ponto que Rousseau começa a demonstrar como as camadas de
historicidade converteram aquela bondade natural num ser corrompido e desvirtuado. É desse

7
Como explica Maurizio Viroli, “in passing from the state of nature into civil society, man’s amour de soi is
transformed into amour propre ahd the fureur de se distinguer becomes the prime concern in life. As a result,
every man’s fellows are reduced to just so many rivals in the struggle for appreciation and esteem” em The
concept of ordre and the language of classical republicanism in Jean-Jacques Rousseau em PADGEN,
Anthony, The languages of political theory in early-modern Europe. Inglaterra: Cambridge University Press,
1987, p. 162.
homem que o teórico da política deve tratar, é com estes homens que a sociedade civil será
erguida.
Como fica claro, o filósofo enxerga de maneira profundamente negativa este
movimento. A história é vista por Rousseau como a lenta “degeneração e enfraquecimento”
da alma humana e suas instituições, marcada por uma “trajetória linear de decadência e
corrupção progressivas” que, quando iniciada, torna-se irreversível. Esta visão foi “herdada da
tradição cristã, mas que se afasta dela do ponto de vista da direção do curso dos
acontecimentos: os homens caminham sim de um ponto de origem a um ponto de chegada.
Mas este percurso não é o da salvação, e sim o da perdição” 8 .
Porém, o pensamento de Jean-Jacques não assume apenas uma faceta crítica-
decadentista, que se limita a saudar uma era grandiosa que não existe mais. Na realidade, sua
empreitada filosófica assume uma postura crítica justamente porque o autor escapa dessa
posição, defendendo uma postura ética e de ação contra a ordem existente. Afinal, em uma
sociedade corrompida, a única opção válida para aqueles que tomam consciência desse fato é
buscar a sua negação, tendo como modelo de ação uma outra ordem normativa, agora
socialmente instituída, como por exemplo, o próprio pacto social. Isso, no entanto, não
garante a possibilidade efetiva de transformação da sociedade existente, mas torna factível
uma existência ética e afirmativa e, portanto, crítica do presente 9 .
Esta idéia me parece uma chave importante de leitura do Contrato Social. Aquilo que
é proposto neste texto deve ser entendido, sobretudo, como a tentativa de elaborar um modelo
normativo para a constituição de uma sociedade capaz de atenuar o sentido geral da
historicidade humana. Por isso, como explica Milton Meira do Nascimento, “em nenhum
momento Rousseau tenta realizar o modelo político do ‘Contrato Social’ como programa de
ação, mas sua tarefa se limita a uma aplicação prática dos princípios estabelecidos no
‘Contrato’, apenas como referência a um sistema de medidas” 10 .
Este “sistema de medidas” visa, sobretudo, estabelecer um conjunto de leis (“as leis
como podem ser”) capaz de reestabelecer uma harmonia entre os interesses particulares dos
homens em sociedade, através da constituição de um governo legítimo. Este governo, e

8
SOUZA, Maria das Graças de Souza, Ilustração e História. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 72 e 75.
9
Maria das Graças de Souza, op. cit., p. 91-92. De maneira análoga, Pierre Manent demonstra como a “boa
política” em Rousseau significa uma tentativa de reatar a unidade do homem que fora rompida com o
desenvolvimento social, negando esta sociedade. Ver História Intelectual do liberalismo: dez lições, p. 114.
10
NASCIMENTO, Milton Meira do. “O contrato social – entre a escala e o programa” em Discurso, n. 17, p.
120.
apenas este governo, será capaz de unir a justiça com a utilidade, de garantir a introdução da
liberdade, agora não mais natural, mas civil.
Rousseau, no Contrato Social, após desfazer qualquer possibilidade de fundar um
direito legítimo através da força, parte de uma suposição já esboçada no Discurso:
“suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua
conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada
indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode
subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria” 11 . A partir deste
estágio, qual seja, o da constituição da sociedade civil, é necessário pactuar de maneira a
encontrar uma medida legítima de governo, lembrando que nenhum homem possui qualquer
tipo de direito que lhe coloque acima dos demais numa estrutura hierárquica de comando.
Esta igualdade fundamental encontra-se profundamente articulada com aquela
antropologia esboçada em outras obras. Ora, se o homem social converteu seu amor de si em
amor próprio, significa que ele sempre irá orientar a sua ação sobre o mundo segundo seus
interesses particulares, tratando a todos como potenciais inimigos, numa situação muito
similar ao estado de guerra hobbesiano. Por isso, a única maneira de garantir a criação de um
mecanismo capaz de refrear esta condição moral é através do estabelecimento de uma
igualdade absoluta, ou seja, através da alienação total de todas as capacidades individuais.
Esta é a cláusula fundante do pacto social: “a alienação total de cada associado, com todos os
seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se
completamente, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém
se interessa por torná-la onerosa para os demais” 12 .
Nesse sentido, ainda que não acompanhe a análise integral que Althusser desenvolve a
partir desta passagem do texto, há uma idéia que vale destacar: o pacto rousseuísta se constitui
na mais profunda imanência, ou seja, para estabelecer uma igualdade capaz de refrear os
instintos particulares dos homens, o autor não recorre a uma instância que transcenderia ao
próprio pacto (não há um príncipe, por exemplo, que estaria acima do pacto), não há um
terceiro. Existe apenas o conjunto de individualidades que pactuam para constituir entre eles
mesmos uma comunidade igualitária 13 .

11
Do Contrato Social. Livro I, cap. VI, p. 31.
12
Do Contrato Social. Livro I, cap. VI, p. 32. Adiante, Rousseau afirmará que “a finalidade de todos os
sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade”,
Livro II, cap. XI, p. 66.
13
Louis Althusser, Sobre o contrato social, p. 52.
A partir da instauração do pacto, “produz, em lugar da pessoa particular de cada
contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da
assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade”. Este novo indivíduo, agora uma pessoa pública, poderá estabelecer uma justiça
social, na medida em que “cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um
associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo,
ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem” 14
Esta pessoa pública, o soberano, é um recurso para tentar minimizar a corrupção que
marca o avanço da sociabilidade humana. Sua finalidade é possibilitar o surgimento de uma
liberdade que se perdeu quando os homens abandonaram a solidão da vida natural para
conviver com seus semelhantes na nascente sociedade civil. Assim, “o que o homem perde
pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode
alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui”. O único
limite da liberdade natural era a força de cada indivíduo, por isso marcado por uma
insegurança constante, já o limite da liberdade civil está na força da vontade geral, do poder
instituído na figura do soberano, constante e certo. É neste jogo de perdas e ganhos que se
estabelece o modelo normativo capaz de regrar a ação humana 15 .
A força deste pacto decorre da vontade de todos os participantes em estabelecer uma
ordem capaz de garantir a liberdade de cada um. Dessa forma, a “vontade geral”, expressa na
ação do soberano, é a única medida do governo legítimo, e esta nunca pode ser fragmentada
ou cedida de maneira alguma. O risco da fragmentação é sempre ceder aos interesses
particulares, que só aumentam na medida em que a sociabilidade se desenvolve, pois não há
limites para o amor próprio de cada homem. A única maneira de garantir a manutenção do
pacto primeiro, o estabelecimento da comunidade, é evitando o aparecimento de “sociedade
particular e que cada cidadão só opine de acordo consigo mesmo”. 16 .
Algo que chama constantemente a minha atenção é a presença constante de uma
espécie de individualismo metodológico no pensamento de Rousseau. A base de sua
antropologia é a conversão do amor de si para o amor próprio no seio de cada indivíduo. Com
o progresso da sociabilidade, e consequentemente do amor próprio, o homem encontra-se
cada vez mais cindido entre uma autenticidade interior e as convenções sociais, fruto das

14
Do Contrato Social. Livro I, cap. VI, p. 33
15
Do Contrato Social. Livro I, cap. VIII e IX, p. 36-37.
16
Do Contrato Social. Livro II, cap. III, p. 47.
disputas entre os interesses de cada um. Pode-se dizer que a sociedade coloca em questão a
integridade do indivíduo, por isso é tão necessário estabelecer um pacto capaz de refrear esse
movimento. O problema, porém, é que até mesmo o pacto social encontra-se constantemente
ameaçado por este indivíduo cindido. Há sempre o risco de que os interesses particulares,
expressão mais característica do amor próprio, encerrem o pacto social. Isso exige que o
filósofo encontre um mecanismo capaz de dar conta da ameaça desse individualismo cindido.
Este mecanismo é a lei, ou o “movimento e a vontade” do corpo político.
Para Rousseau, é necessário criar uma legislação “para unir os direitos aos deveres, e
conduzir a justiça a seu objetivo. No estado de natureza, no qual tudo é comum, nada devo
àqueles a quem nada prometi; só reconheço como de outrem aquilo que me é inútil. Isso não
acontece no estado civil, no qual todos os direitos são fixados pela Lei” 17 . O que vale apontar
é o caráter geral que esta lei deve assumir. Como a vontade geral sempre visa os interesses
gerais do corpo político, a expressão material desta vontade nunca pode tratar de temas ou
objetos particulares: “em suma, qualquer função relativa a um objeto individual não pertence,
de modo algum, ao poder legislativo” 18 .
Este traço é fundamental para recuperar meu raciocínio. O processo de corrupção
enxergado por Rousseau na historicidade humana caminha, passo a passo, com a desnaturação
do homem. Esta desnaturação só cresce com as convenções sociais. Com elas, nascem os
interesses particulares, que levam a um estado de desconfiança e desigualdade, e que
finalmente resulta no estabelecimento de grilhões por toda parte, acabando de maneira
irremediável com a liberdade humana. Todavia, se “as potências do devir são potências
corruptoras” 19 , há ainda a possibilidade de retarda-las, desde que o pacto social garanta,
dentro do corpo político, o império da vontade geral, expresso sempre na forma da lei.
Portanto, deve existir, necessariamente, uma relação de interdependência entre esta vontade
(os atos do soberano) e sua expressão (a lei), ambas devem sempre sinalizar para o geral,
visando barrar a potência do particular, logo, do amor próprio.
Com isso em vista, começa a fazer muito sentido a seguinte afirmação: “Chamo pois
de república todo o Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa
conhecer, pois só nesse caso governa o interesse pública e a coisa pública passa a ser qualquer

17
Do Contrato Social. Livro II, cap. VI, p. 54.
18
Do Contrato Social. Livro II, cap. VI, p. 55.
19
Jean Starobinski, “Rousseau e a origem das línguas” em A transparência e o obstáculo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 318.
coisa. Todo o governo legítimo é republicano” 20 . Isso significa, sobretudo, que a única
possibilidade de construção de um governo legítimo, um governo que garanta a afirmação
daquela liberdade civil já explorada anteriormente, é garantindo o império do geral sobre o
particular, da vontade geral sobre a vontade individual, do amor pela pátria (ou a reintrodução
do amor de si, só que agora sob um novo sentido) sobre o amor próprio.
No entanto, a força do pacto social não é capaz de barrar o efeito nefasto da
historicidade humana, e cedo ou tarde as forças particulares acabaram se impondo sobre a
coisa pública. Como fala Rousseau, “o corpo político, como o corpo do homem, começa a
morrer desde o nascimento e traz em si mesmo as causas de sua destruição”21 . Não é difícil
imaginar quais são as principais causas que provocam a destruição do corpo político: “a
diminuição do amor à pátria, a ação do interesse particular, a imensidão dos Estados, as
conquistas, os abusos do Governo” 22 . Tudo isso se reduz ao par interesse particular/interesse
público 23 .
É por isso, que o movimento final do texto trate, justamente, da formação de uma
religião civil, ou seja, de outro mecanismo capaz de fortalecer a vontade geral contra as forças
desagregadoras dos interesses individuais. Esta religião, que deveria ser orientada segundo
preceitos simples, visa a formação do “bom cidadão” ou do “súdito fiel”. É por isso que Luis
Roberto Salinas Fortes afirma que o pacto social, quando efetivo, realiza uma “boa
desnaturação”, capaz de formar “indivíduos que busquem acima de tudo o interesse comum,
transformando o indivíduo independente em mera parte de um todo mais perfeito”. Porém,
quando este pacto inexiste, “o indivíduo torna-se, cada vez mais, o centro do universo,
preferindo a tudo o seu interesse particular” 24 .
E assim, “do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, elevando aos
poucos sua horrenda cabeça e devorando tudo o que percebesse de bom e de sadio em todas as
partes do Estado, conseguiria por fim esmagar sob seus pés as leis e o povo, e estabelecer-se
sobre as ruínas da república”. Quando a “boa desnaturação” está irremediavelmente perdida,

20
Do Contrato Social. Livro II, cap. VI, p. 55.
21
Do Contrato Social. Livro III, cap. XI, p. 102.
22
Do Contrato Social. Livro III, cap. XV, p. 107.
23
Como explica Luis Roberto Salinas Fortes, “um povo deixa de ser disciplinável a partir do momento em que a
força do amor próprio sobrepuja a força da consciência, a partir do momento em que os homens já não amam
senão a si mesmos. As leis só podem ser eficazes fazendo-se respeitar pelo povo cujas condições de vida elas
regulam, se os indivíduos forem capazes de amá-las” em Rousseau: da teoria à prática, p. 115.
24
Rousseau: da teoria à prática, p. 106-107.
chegamos no último estágio do desenvolvimento histórico. O despotismo, último movimento
em direção a desnaturação do homem, marca o ponto máximo da degradação do homem. Os
abusos do governo chegaram a tal ponto que já não existe mais liberdade, todos foram
completamente submetidos aos desmandos e apenas a força mantém os vínculos sociais.
O que Rousseau identifica nesse momento é o fecho do círculo: a igualdade natural,
assumida de forma positivo, é restabelecida, só que agora pela negativa. Todos são iguais em
sua servidão: “todos os particulares se tornam iguais, porque nada são” 25 . A igualdade social
marca a metamorfose final da alma humana, agora completamente desnaturada e degradada,
dominada pelas paixões particulares e pela discórdia generalizada. O homem natural era
sozinho e vivia em sua plenitude, o homem social é sozinho, pois não consegue mais viver
naquela plenitude. A artificialidade da sociedade fragmenta a completude natural do homem.
É contra esse movimento final que Rousseau desenvolve um potente modelo
normativo, este pacto social que funda e estrutura o único corpo político legítimo possível.
Ainda que sua existência esteja sempre posta em perigo pelo movimento de corrupção da
história, é a partir dele que se abre um campo de ação capaz de organizar a sociabilidade
humana segundo um modelo de justiça e utilidade, através do qual seria possível instaurar
uma ordem igualitária e livre.

25
Discurso, p. 84.

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