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SAMIZDAT

www.revistasamizdat.com

26
março
2010
ano III

ficina

Carnaval
SAMIZDAT 26
março de 2010

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho

Revisão Geral As festas carnavalescas, resquícios das dionisíadas gregas,


Maria de Fátima Romani se tornaram, durante a Idade Média, a principal válvula de
escape de uma sociedade regida por rigorosas normas morais
Autores e religiosas.
Caio Rudá Durante algumas semanas ou meses, o povo podia sub-
Cirilo S. Lemos verter a ordem social, os limites entre nobreza e plebe, entre
Giselle Natsu Sato sagrado e profano, inverter os valores e libertar os anseios
Henry Alfred Bugalho
reprimidos. Segundo Bakhtin, só podemos realmente compre-
ender a importância da comédia e do riso na Idade Média se
Joaquim Bispo
considerarmos esta transição entre normatização e liberali-
José Guilherme Vereza dade.
Jú Blasina Em nossa época, muito do significado essencial do carna-
Léo Borges val se perdeu. Não vivemos numa era tão rigorosa e castra-
Marcia Szajnbok dora, mesmo assim os carnavais ao redor do mundo resga-
Maria de Fátima Santos tam o clamor do povo por liberdade, prazer e festa.
Mariana Valle Gostemos ou não desta comemoração, o carnaval ainda
Maristela Deves agrega elementos subversivos e de inversão da ordem e da
Polyana de Almeida moralidade. Durante o Carnaval, tudo é permitido.
Wellington Souza E é através da escrita que os autores da SAMIZDAT cele-
bram, criticam ou analisam esta grande festa popular.
Textos de:
Henry Alfred Bugalho
Gerana Damulakis
Rubén Darío

Imagem da capa:
http://www.flickr.com/photos/
skazar/3349004167/sizes/o/

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As idéias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade
expressa dos colaboradores da revista.
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

AUTOR CONVIDADO
Rasto de Sangue 8
Emanuel R. Marques

MICROCONTOS
Ju Blasina 12

CONTOS
Silêncio 14
Joaquim Bispo
Cena no Quarto 16
Caio Rudá de Oliveira
Um Amor de Carnaval 18
Henry Alfred Bugalho
Ser Genérico 22
Ju Blasina

Biscoitos de Manteiga 24
Maria de Fátima Santos

Quarta-feira de Cinzas 28
Cirilo S. Lemos

A Primeira Noite de Melissa 32


José Guilherme Vereza

Festa no Céu 34
Polyana de Almeida
Borboletas na Barriga 36
Mariana Valle

Duas de cinquenta e três de vinte 38


Léo Borges
Fragmentos: II. O O Início 42
Marcia Szajnbok
Assombrações do Rio Antigo 44
Giselle Natsu Sato
Sempre há uma verdade... (Parte 2) 48
Maristela Scheuer Deves

TRADUÇÃO
Canção de Carnaval 50
Rubén Darío

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
Depois da Chuva, Georgio Rios 54
Gerana Damulakis

POESIA
Só um Balão 56
Ju Blasina
Concisos 58
Wellington Souza
Pecados do Fruto 59
Wellington Souza

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 60


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
5

www.oficinaeditora.com
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo de um samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Autor Convidado

Rasto de Sangue
Emanuel R. Marques

8 SAMIZDAT março de 2010


As hostilidades fermen- crimes, vinganças e des- de dor para um marco de
tavam já o previsível truição de vidas, Pedro sangue. Apesar da dinâ-
aroma da pólvora. Uma sentia uma inexplicável mica da fuga ainda havia
primeira esguia e inex- alegria. Talvez não seja sido atingido pelo rasto
periente bala quebrava assim tão inexplicável. do disperso projéctil.
numa fracção de segundo O seu adorado revólver, De súbito, todo aquele
a antecedente exaltação símbolo de respeito para fervor que crescia em-
vocal. Todos corriam a os seus amigos e seguido- bebido em adrenalina e
cobrir-se, esconder-se, a res, podia agora acordar estupefacção, tornava-se
irremediável fuga a um e oferecer certidões de em penoso sofrimento.
dia de derrota. Fora como óbito aos inimigos. Os incontestáveis súbdi-
um raio a chicotear um No entanto, apesar de tos tinham desaparecido
belo céu azul. toda a coragem e petu- instantaneamente após
Mas, voltando à singela lância que o pobre rapaz o grave ronco da besta
bala que deu o mote de expressava, o seu íntimo de fogo, corrompendo
partida, é de salientar que coração escondia um ca- as imaturas promessas
esta foi ocupar posição muflado receio. Há muito de fidelidade. Não havia
numa enorme e anónima tempo que o seu objecto ninguém para o socorrer
janela, que teve o infor- bélico podia ter come- e, no entanto, também ele
túnio de ser arquitectada çado a cultivar opressão, não se atrevia a procurar
sob aquela orientação. So- mas Pedro não conseguia alguém, a abandonar o
aram estilhaços de vidro ser o primeiro a disparar, seu ninho metálico, pois
que causaram o iminente o seu sangue frio era ain- os rivais poderiam estar
pânico. da morno e necessitava ainda no local e, nesse
O grupo que Pedro de ser motivado por uma caso, a fatalidade seria
comandava assumia a iniciativa exterior. inevitável.
posição de retirada após Enquanto ele se deliciava Na verdade, também os
esta inesperada investida com excitantes reflexões, escassos rivais, nomeada-
dos seus rivais. Pedro, orgulhosamente escondi- mente o autor do disparo,
estonteado pela surpresa, do por finalmente estar haviam fugido amedron-
procurou abrigo no nau- despoletada uma guerra tados pelo desvirgar da
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seante contentor de lixo, real, como as cinéfilas situação.


que expelia os seus odo- visões que lhe pulveriza- Pedro sabia a superficia-
res poucos metros atrás. vam a mente com insó- lidade do seu ferimento,
Há bastante tempo que brias fantasias, o tempo mas o inesgotável sangue
ele antevia a chegada des- sucedia-se ao disparo. O começava a adornar o
te dia, em que as armas ferimento que ele julgava cinzento solo em húmido
assumiriam o papel su- ser um mero arranhão, escarlate. As dores conti-
premo entre os “gangs” da que lhe incendiara o nuavam a progredir, ten-
zona. Era uma das leis de ombro, ao refugiar-se do apenas como anestesia
sobrevivência para quem da trajectória maléfica, a sede de reencontrar
vive este tipo de vida. quando se atirou veloz- os companheiros e pla-
Apesar desta atitude rival mente às traseiras do nearem uma implacável
pressagiar o aumento de contentor, arrefecia agora vingança. Também uma

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tumultuosa sensação de tarde, eram desmascara- de este acontecimento
abandono lhe percorria dos pelo braço recolhido, ir avolumar os receios
o corpo, deixando nesses que estava resguardado que a sua mãe tinha em
pensativos momentos pela mão esquerda, e um relação ao seu modo de
que a dor lhe arrancasse previsível casaco que dei- vida. A pobre velhota iria
alguns lúgubres gemidos. xava transparecer nódoas fazer um pranto salgado
Decidiu nervosamente de sangue fresco. Um assim que o visse embe-
espreitar e certificar-se rasto vermelho ia ficando bido no próprio sangue, e
da presença de alguém, da sua malograda passa- ele não queria torturá-la
amigo ou inimigo, que gem. Cada segundo era com tamanho desespero
ainda estivesse na perife- marcado a conta-gotas e pânico. Ainda tinha na
ria do acontecimento. de sangue na irreversível memória o desgosto que
ampulheta do tempo. a sua progenitora tivera
Ninguém! Apenas alguns
A sua primordial pre- no dia em que ele aban-
transeuntes caminhavam
ocupação não eram os donou o rotinar pelos
despreocupadamente
curiosos observadores recreios da instrução
alheios ao sucedido.
que fingiam acreditar no em prol de um duvidoso
Reparou então na cica- deambular citadino. O
seu encenado, e mal dis-
triz que a bala deixara na seu pai, honesto trabalha-
farçado, bem-estar. Logi-
vidraça da janela atrás de dor sempre preocupado
camente que ninguém se
si. em dar o melhor à famí-
iria intrometer nas rixas
Não haveria ninguém juvenis que todos sabiam lia, havia de conseguir
para reclamar o dano, assombrar a zona, aliás, mudar o rumo do filho.
visto que a bala fora qualquer tipo de ajuda Infelizmente, uma es-
pousar no interior de um oferecida a um membro tranha doença levara-o
armazém abandonado – ferido de um bando po- anos antes de o filho ter
pensava Pedro, como se deria causar possíveis re- tomado esta desenfreada
os verdadeiros chefes de presálias e violências por escolha.
quadrilha se preocupas- parte dos rivais. Assim, A solução? Talvez a sua
sem com os danos prove- a atitude mais indicada namorada ainda estivesse
nientes das suas guerras. seria a de ignorar aquele em casa e o pudesse aju-
Ao ranger dos dentes le- jovem ensanguentado. dar a limpar e tratar da
vantou-se num único im- ferida, ou, quanto mais,
pulso de vontade, vascu- fosse ajudá-lo a camuflar
A sua mãe! Esse era o
lhando de seguida na sua os indícios, de modo a
motivo que consumia
obstinada mente possíveis que a mãe não notasse
a sua confusa cabeça.
soluções. O crucifixo que nada.
Como confrontaria ele a
balanceava no seu pesco- Assim, com este de-
preocupada mulher no
ço irradiava um intenso sesperado objectivo em
estado em que se encon-
brilho de penumbra. Os mente, se foi arrastando
trava. Como lhe explica-
seus cuidadosos passos, já pela perspectiva das ruas,
ria ele o porquê de ter
inseridos numa pequena largando cada vez mais
sido alvejado?
movimentação humana os silenciosos caudais da
oriunda de um final de Era claramente nítido
vida. O cansaço consu-
na sua cabeça o facto

10 SAMIZDAT fevereiro de 2010


mia-lhe a estabilidade lhar num Museu. Con-
Henry Alfred Bugalho
física e mental. Sucessi- tinua a acreditar “… A
GUI
Nova York
vas tonturas levavam-no que o sonho comanda a
a encostar-se às rígidas vida, que sempre que um
paredes que lhe ampa- homem sonha o mundo

para Mãos-de-VAca
ravam violentamente pula e avança…” “Autor
o movimento. Decidiu do livro de contos “Sui
finalmente descansar sen- Generis-Contos DeMen-
tando o seu fraco corpo tes” e do livro de poesia O Guia do Viajante Inteligente
no marmóreo e gélido “Madrugadas indefinidas”.
degrau que dava início a Tem colaborações nas re- www.maosdevaca.com
umas curtas escadas. O vistas “Miasma” (Espanha),
seu coração dava as últi- “Gótica” (México), Juvena-
mas badaladas anuncian- trix (Brasil), Lama (Brasil),
do a hora da derradeira Revista da editora Alma
partida. O ferimento não Azul “O Mal” (Portugal),
fora, afinal, tão superficial “Abismo Humano” (Por-
quanto ele julgara; talvez tugal), Terrorzine (Brasil).
até houvessem sido dispa- Participa das antologias
radas duas balas, em vez “Novos talentos fantásti-
de uma somente A guer- cos” e “Poetas em desas-
ra tinha acabado para ele, sossego”.
ou talvez ele viesse a ser
o motivo, o símbolo que
levaria à guerra os seus
camaradas.
Afinal, a sua mais re-
cente intenção até ia ser
conseguida – não teria
de confrontar a sua mãe
naquele estado lastimoso.

Sobre o autor
Emanuel R. Marques:
Nascido em Aveiro, Por-
tugal. Formado em Co-
municação Audiovisual.
Actualmente, além de
continuar atento e liga-
do às várias artes pelas
quais sente interesse, vive
a crise do país a traba-

11
Microcontos

Oqdz...
Ju Blasina

http://www.flickr.com/photos/paraflyer/431193936/sizes/o/
...Da Carência ...Da Indecência

Sentou no controle remoto, e gemeu, Enrubescia sempre que ele ameaçava


jurando que foi sem querer. Ao menos nas espiar-lhe as calcinhas. Não pela falta de
cinco primeiras vezes. decência da parte dele, mas pela carência da
parte delas.

...Da Clemência ...Da Cadência

Implorou para não fizesse aquilo, daquele Seu ritmo era perfeito! Estava indo tão
jeito, naquele lugar, mas Clemente era surdo bem... Pena ter-lhe faltado
seletivo. as pilhas.

12 SAMIZDAT março de 2010


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
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Silêncio
Contos

Joaquim Bispo

14 SAMIZDAT março de 2010


Todos chamavam Plantão desatinar, a dizer que ouvia mú- vez de rirem, paravam a apre-
ao louco da pequena vila de sica na sua cabeça e que era o ciar o rigor gestual e o espectá-
Sabugal. Calcorreava a povoa- Plantão que a provocava. Todos culo fisionómico do violinista
ção, descalço mas com garbo, se riram dessas declarações e fictício. Inácio, pelo seu lado,
como se medisse cada passada gracejaram, dizendo que estava começava a deixar de ter piada,
com exactidão. Entrava nos a ficar mais louco que o pobre tão deprimente era a sua cara,
cafés, avaliava os circunstantes Plantão. chorando e implorando para que
e dirigia-se a um deles. Ficava No sábado de Entrudo, Plantão parasse de tocar.
a olhá-lo, sem dizer palavra, Plantão transformou-se. Talvez Segunda-feira fez-se um
sem estender a mão, direito e influenciado pelos vários mas- intervalo nas brincadeiras, ex-
parado. Conhecido por todos, carados que, singularmente ou cepto Plantão que passou a tarde
geralmente obtinha do visado em grupo, percorriam as ruas da “a ensaiar” na berma do jardim.
a moeda que almejava. Plantão vila dizendo pilhérias e fazendo Quando Inácio apareceu tentan-
recebia a moeda e retirava-se momices, Plantão passou toda do agredir Plantão, foi severa-
sem agradecer. E recomeçava a a tarde na rua principal, para mente admoestado por tão rude
ronda. Dizia-se, sem ninguém trás e para a frente, a fingir que procedimento e enxotado dali
conseguir confirmar, que tinha tocava, sem arco, o seu violino para fora.
sido seminarista e tinha ficado sem cordas. Toda a gente se Terça-feira foi a grande
enlouquecido entre os ditames surpreendeu com a transforma- apoteose de Plantão e a grande
da religião católica e os textos ção exuberante de Plantão, mas atracção do Entrudo da vila.
dos filósofos niilistas. Dizia-se. acharam-lhe piada. Os mais Parado no largo principal, dava
Era uma figura que, pela sua novos, vendo nele um alvo fácil, o concerto da sua vida, com tais
presença constante, já não se começaram a bombardeá-lo de meneios de corpo, tal virtuo-
estranhava e até se respeitava, longe com bolas de farinha e sismo de gestos e expressões
na sua loucura serena. Mas, a esguichá-lo com pistolas de que só faltava mesmo ouvir-se
certa vez, aí por fins de Janeiro, água, que ele parecia ignorar, a música. No entanto, um ex-
um rapazote de nome Inácio, mas foram rapidamente censu- sargento que tocara na banda da
querendo talvez divertir-se à rados pelos mais velhos. Pelo Armada, disse que reconhecia
custa dele, trouxe um violino fim da tarde, surgiu Inácio, de uma das músicas que Plantão
sem cordas que encontrara no rosto enlouquecido, a berrar parecia tocar. Toda a tarde Plan-
sótão e deu-o a Plantão com para o Plantão parar, e a tentar tão tocou para quem o quis ver.
um sorriso maroto. Este ficou arrancar-lhe o violino, intento
http://www.flickr.com/photos/fraumorgenstern/3263411338/sizes/l/

De Inácio, nem sinal.


a olhar demoradamente para o de que ele se esquivava. A cena,
Quando as velhotas se enca-
instrumento e passou a transpor- de tão concertadamente burles-
minhavam para a missa das sete,
tá-lo debaixo do braço. De vez ca, suscitava grandes gargalha-
já em quarta-feira de cinzas,
em quando, sentava-se na berma das e levava alguns transeuntes
depararam com Inácio caído no
do jardim, colocava o violino na às lágrimas.
adro da igreja e esvaído em san-
posição de tocar e começava a A encenação repetiu-se na gue. De cada ouvido ensanguen-
menear a cabeça como se imagi- tarde soalheira de domingo, tado sobressaía uma cavilha de
nasse as notas. E ficava lá horas entrecortada uma ou outra vez violino.
esquecidas. pelas habituais e bem ensaiadas
Foi desde essa altura, tam- contradanças, que se exibiam
bém, que o rapaz que lhe dera nos largos e nos cruzamentos
o violino, o Inácio, começou a das ruas. As pessoas, agora, em

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Contos

Cena no quarto
Caio Rudá de Oliveira

http://www.flickr.com/photos/onzth/2882821660/sizes/o/
Se o rapaz já era dado no dirigir-se-lhe a palavra, vinho. Boa-sorte, são votos,
a exprimir seus pensa- como de habitual a mo- a esta que continua o ato
mentos sem que passas- ças distintas, sobra-lhe um de felação, mas a baixeza
sem pela censura, que em mínimo de honra enquan- do rapaz não se limita, e
algum canto do cérebro to ser humano, já que na dá o indesejado imagina-
habita, antes de chegarem qualidade de mulher, já do: um gesto desvairado
às cordas vocais, língua e foi dito, lhe é dispensável. que derruba a garrafa de
músculos da fala os impul- Mas este rapaz já não tem um tinto, do criado-mudo
sos elétricos, o vinho o faz controle de si, do que fala, à cama, o rouge a tomar
menos ainda um adepto da tampouco de seus reflexos, lençois e formar uma lenta
repreensão própria, e mais e se o que ele está pró- cachoeira da beirada da
rápido do que do gole ao ximo de proferir não for cama ao chão. A seguir,
estômago, chegará a ideia demasiado ofensivo a esta interrompe-se tudo brusca-
em estado bruto aos ouvi- que lhe suga o órgão, ainda mente, também assim o foi
dos desta figura feminina assim sua noite não será o supetão desta a quem é
que o acompanha. E antes de êxito na cama, já que dito que limpe tudo e bus-
seja que ele lance algu- sabemos que dificilmente que uma garrafa lá mesmo
ma cantada devassa, uma lhe escapará fluido do cor- de onde retirara a primei-
insinuação vulgar, sendo po, e em seu lugar, escapa- ra, que não lamente nem
ainda possível preservar rá o repugnante resultado se preocupe do prejuízo,
alguma dignidade desta da mistura em bucho do que o vinho é tão barato
que o acompanha, pois que tenha entrado, sabi- quanto o é esta que engole
embora não merecedora damente hoje apenas uma lágrimas.
de cuidados ou requintes lasanha e vinho, vinho,

16 SAMIZDAT março de 2010


Ele tinha
nome dediante
“O Cantode
da si sua
lado visão ao concertista.
vampiresco, noturno,
aventureiro – enfim, o meu
chão
diante.a partitura do final
Sereia
SAMIZDATde Bach”, já que a
— Giulia Aquela mesma figura ca- de uma recente compo-
a mais difícil das missões:
Moon é, segundo fontes eu que passava as noites
bela melodia sempre se davérica, que levara tan- sição
SAMIZDATsua – a—primeira
Com tan-a

ficina
seguras (rsrs) um nome teclando com amigos so-
mostrava como um fatal tos a sucumbir,
turnos e escrevendo apontava-
contos tos autores,
lembrar quenacionais
estava eme
artístico. Como é o seu
cumprir a vontade de Deus
enome
irresistível convite ao
de batismo, e por
lhe seus
cruéis na terríveis olhos
Tinta Rubra. estrangeiros,
harmonia comabordando
a música
o vampirismo, é possível
além-túmulo.
que a opção pela adoção ausentes. E como todos os inacabada de Bach. Ter-
fugir de certos clichês
deQuase
um pseudônimo? Você
um ano após o outros,
SAMIZDAT também— OsMozart
vampi- minando,
do gênero,viu ou que a perna
ao fazê-lo
publica textos como “você paralisou-se.
ros são um dos Junto à ima-
temas
www.oficinaeditora.com
que, já estava olivre.
corre-se riscoCorreu
de desca-o
início das mortes, passava
mesma”, diferentes dos de tempos em sentiu
tempos,o racterizar o tema?
pela região umcomo
viajante gem macabra, mais rápido que pôde,
textos escritos Giu- voltam a ser moda. A que
austríaco,
lia Moon? excepcional cheiro da putrefação. As sem
GIULIA olhar paranão
— Bem, trás.existe
O
você atribui este fascínio

http://www.flickr.com/photos/erzs/1357413280/sizes/o/
náuseas dominaram-no, uma lei que diga
som de sua composição que tais
estudante
GIULIA — de música,
O meu nome que temos por estas cria- e tais características são
real é SueliWolfgang
chamado Tsumori. “Giu-Ama- o que o fez libertar-se da servia de trilha sonora
turas? obrigatórias para um perso-
lia Moon”
deus é umQuando
Mozart. nickname paralisia, caindo
GIULIA — Acho que as de joe- para
nagema vampiro.
fuga, enquanto
Acho que
que adotei quando entrei lhos a largos
pessoas gostamvômitos. Em ele
de vampiros pensava
depende como,
do bom até de
senso o
soube da maldição, não
na Tinta Rubra. Ao in- porquea são, em primeiro cada autor. aquela
Um bom senso
se meio engasgos, tosses e momento, música
vésalarmou, disse
de escolher, comoapenas
os lugar, vilões com um bom que o faça reconhecer que,
que gostaria de
outros, um nome romenoouvir o ânsias, ouviu a frase mor- nunca havia lhe parecido
layout. São parecidos com sem algumas características
vampiresco
tal concertocom títulose de
fúnebre de tal: “Termine a música”. tão viva e tão mórbida.
os seres humanos, têm as básicas, o seu personagem
nobreza como “condessa”
conhecer o seu autor. Foi Confuso,
vantagens dadesnorte-
juventude Prometeu não mais
não é um vampiro, mastocá-
e “lady”, reuni dois nomes eterna, imortalidade, la.
alertado de que a história
curtos que tivessem algum
ado, Mozart tentou dons
se alguma outra criatura. Os
psíquicos, força física. É vampiros do meu livro
era
tipo verdadeira,
de significado de para
que as levantar apoiando-se No dia seguinte, o
um monstro que tem um Kaori são os vampiros clás-
pessoas
mim. Eu já não queriam
sempre gostei do no órgão,
arsenal de que
armas sua mão
variado: jovem Mozart já bebem
sicos: predadores, não se
mais estudar música,soava
nome “Giulia”, porque e atravessou
a força, o poder como se nadaa
psíquico, encontrava
sangue (e só pela cidade.
sangue), não
sensual, gracioso e fácil de sedução, a esperteza. Pode andamum a luz do dia,pelo
têm
ele poderia ser o próxi- ali estivesse. Caiu sobre “Mais levado
ser pronunciado. E “Moon”,
mo,
porquee osou
diaumafatalapaixo-
estava o vômito, começando a ou
agir com a “mão pesada” Canto da Sereia de Bach”,de
muita força e capacidade
com sutileza, dependendo se regenerar de ferimentos.
se
nadaaproximando...
pela lua, adoroNada ficar recobrar a razão e ten- diziam. Contudo, soube-
da situação. Mas também Mas já escrevi contos em
devaneando
disso sob uma lua
o espantou. tando
pode ser afastar-se
sentimental, daquele
frágil, se
quenaoshospedaria
vampiros são que ele
seres
cheia ou ler histórias que prenúncio
enfim, pode da
ter morte.
todas as fra- havia partido durante
microscópicos, por exem- a
Dia vinte
envolvam e oito,
noites “Toca-
de luar – quezas
De da mente
bruços sobrehumana,
a terra, plo. Os clichês
madrugada, ruins
são são
e salvo,
ta e Fuga
além em Ré
de achar Menor”,
a grafia de pois já foram humanos um apenas aqueles que são mal
tudo
“moon” como
muitohaviam dito,os sentiu
legal, com algo prendendo-o
dia. Para o autor, é um per-
após o sinistro concerto.
trabalhados pelo autor.
e“o”s
lá lado a lado,
estava lembrando
Mozart pelo
den-Bugalho
sonagempé. Não
muitoteve cora-
estimulante, No cemitério, ao invés do
Henry Alfred
dois olhos arregalados de
tro do cemitério. Com os gem http://www.lostseed.com/extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-crucified.jpg
e issodefazolhar
com que parao ver o
produ- esperado músico morto,

O Rei dos
espanto. Quando lancei o SAMIZDAT — Muitos
olhos fechados, deixava-se que
to daera. E novamente
criação a
tenha grandes foi encontrada apenas
primeiro livro, não havia chances de suplicou:
ficar bom.“Ter-E, autores da nova geração
extasiar
razão para com as compo-
assinar de outra
voz suave uma inscrição com
encantaram-se na terra,
os
para o leitor, é aquele vilão
forma, já
sições deque a maioria
Johann Sebas-dos mine a música”. Fazendo parecida
vampiros com o trecho
por causa dos de

Judeus
(ou vilã) bonitão, sacana
meusBach,
tian leitores
numme estado
conhe- uma desesperada
e malvado que adoramosoração jogos departitura.
alguma RPG, especial-
Desde
cia como “Giulia Moon”. E mental, tateou
odiar. Vilões o solo
assim até
sempre mente “Vampiro: a Más-
então, não se noticiou
de euforia sobrenatural. cara” (publicado no Brasil
assim ficou. Nunca publi- fizeram sucesso,
Subitamente, o som encontrar uma pois pedraadora- mais vítimas do “Canto
quei nada como Sueli,se
pois mos esses contrastes: beleza pela Devir). Você perten-
extinguiu. O jovem
Giulia continua sendo,des-
pelo pontiaguda. Com ela, da
ce aSereia de Bach”.
este grupo ou seu
com maldade, delicadeza
menos para
pertou mim, oemeu
do transe dirigiu começou a desenhar no
com crueldade, e assim por interesse é anterior? Qual

do www.revistasamizdat.com 17
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gr nl
át
oa
is d
Contos

Um Amor de Carnaval
Henry Alfred Bugalho

18 SAMIZDAT março de 2010


Todos os anos era a
mesma história: no feria-
do do carnaval, descía-
mos para a praia.
Às vezes, era para
ficarmos num camping,
curtindo a farra e os des-
confortos de uma barra-
ca, do fogareiro elétrico e
da janta à base de miojo,
mas também ocorria de
minha mãe alugar uma
casa no litoral, que divi-
díamos com várias outras
pessoas, amigos ou pa-
rentes.
O primeiro grande
desafio era o congestio-
namento-monstro na
rodovia. O trecho Curi-
tiba-praias, que num dia
normal fazíamos em uma
hora ou menos, convertia-
se num êxodo — três ou
quatro horas de carros
enfileirados, que sumiam
na estrada a contornar
a Serra do Mar. A visão
do oceano, distante e
plácido entre as colinas,
só aumentava a nossa
ansiedade, então eu e
minha irmã começáva-
mos a nos acotovelar no
banco traseiro, enquanto
minha mãe gritava e nos
ameaçava com uma surra
assim que chegássemos à
praia.
— Vocês dois vão dor-
mir com a bunda quente
hoje!
Eu chorava, minha
irmã mostrava a língua
para mim e os carros
simplesmente não se
moviam sob o sol escal-
http://www.flickr.com/photos/4q/4147135886/sizes/l/

www.revistasamizdat.com 19
dante. Assim que estacio- arrebentação.
Isto quando um aciden- návamos na frente da Nós dois ficávamos no
te no trajeto não piorava casa, uma vez destranca- rasinho, eu tinha uns seis
o fluxo, como da vez que da a porta, eu e minha anos e ela treze, “pegáva-
um caminhão de pepi- irmã checávamos todos mos jacaré” e eu aprovei-
nos capotou, espalhando os cômodos, isto quan- tava para fazer um xixi
barris azuis com pepinos do havia mais de um, na água.
em conserva nas duas para nos certificarmos
se havia camas, beliches Foi neste primeiro dia
mãos da estrada, e com que vi uma menininha,
a cabine do caminhão ou colchões suficientes
para todos, pois não raras brincando na areia com
dependurada para fora baldinho e pá. Ela olhava
da mureta, pendendo na vezes tinha mais gente do
que lugares para dormir, para mim e fiquei com
beira do abismo. vergonha.
então recomeçava a briga
— Dizem que o mo- para decidir quem ficaria Minha irmã voltou
torista foi esmagado... onde, e quem acabaria para perto da minha
— curiosos comentavam, dormindo no chão, num mãe, para tomar banho
todos aguardando fora de colchonete que era igual de sol, e me deixou sozi-
seus automóveis, já que a deitar-se diretamente nho, no raso, pulando as
não nos movíamos um no assoalho. ondas baixas. Sentei-me
milímetro sequer — a po- na areia molhada, volta-
lícia recolheu o coração Logo em seguida, sob
apelos desesperados das do para aquela menina,
dele do asfalto. e fiquei olhando, ainda
crianças, começavam to-
E, para piorar, assim dos os preparativos para muito tímido, para ela.
que o tráfego havia sido a praia propriamente Mais tarde, minha mãe
normalizado, minha mãe dita: filtro solar, guarda- nos chamou para almo-
não conseguia dar a igni- sol, calção de banho, çar, retornamos à casa e
ção. boné, e toda a paraferná- foi quando descobri que
— Maldito carro a lia que apenas os não- a menina que me fitava
álcool! — ela berrava, nativos precisam carregar estava hospedada na casa
dando tapas no volante, para curtir as férias. ao lado, do outro lado
então tínhamos de sair A primeira providência do muro. Minha mãe
correndo, pedindo ajuda que eu tomava, ao atingir conversou com a mãe
aos outros motoristas a areia pelando, era jo- dela por alguns instantes,
para empurrar o Gol gar meus chinelos para a talvez estivessem se apre-
branco que sempre mor- minha mãe e correr para sentando, depois voltou e
ria, especialmente nos a água. me disse:
dias frios de Curitiba. — Você viu que boni-
— Não vai muito fun-
A chegada à praia era do! — ela gritava e eu só tinha a menina aqui do
sempre cheia de empol- respondia com um aceno. lado?
gação, pois então não Minha irmã vinha logo — Não — respondi,
mais avistávamos monta- atrás, justificando que com medo de me entre-
nhas, prédios ou rodovias, ficaria de olho em mim, gar.
mas apenas a imensidão mas que, na verdade, que-
azul que vislumbrávamos ria paquerar os rapazolas Naquela noite, minha
a cada quadra perpendi- mãe e as amigas saíram
que em bandos conver- para dançar, em algum
cular ao mar. savam um pouco após a baile de carnaval, e dei-

20 SAMIZDAT março de 2010


xaram-me com a minha brincar simultaneamente da praia.
irmã. no mar, ou na areia, ain- Obviamente, não tive
Antes de saírem, al- da distantes uma porção coragem de me aproxi-
guém disse para minha de metros. Ele mexia nos mar, mas percebi que ela
mãe: cabelos cacheados, e eu também havia me reco-
me acocorava na água, nhecido e cochichou com
— Ouvi dizer que tem fingindo estar mergu-
lança-perfumes neste suas amigas.
lhando, para dar uma
baile. mijada. A mesma barreira per-
— Eu não gosto disso maneceu entre nós, até o
— minha mãe respondeu, dia dos namorados, quan-
e pensei que era besteira O feriado do carnaval do, apaixonadíssimo, criei
dela, já que ela gostava de acabou e retornamos a coragem e entreguei-lhe
estar sempre muito bem Curitiba. um buquê de flores. Ela
perfumada. Alguns dias depois, co- sorriu, acanhada, escon-
meçava o ano letivo e eu deu o buquê atrás das
Eu e minha irmã jo- costas, esmagando algu-
gamos baralho, ficamos teria de encarar a grande
etapa na vida de um ser mas das flores, e correu
sentados um pouco na para longe de mim, refu-
varanda, mas fatalmente humano: a Primeira Série.
Como todas as demais giando-se para junto das
acabamos brigando. Ela colegas.
puxava meus cabelos e eu crianças, chorei quando
metia-lhe belos pontapés minha mãe me deixou na Eu tinha uma namora-
nas canelas. Mas eu sem- porta da escola, mesmo da!
pre acabava apanhando, sabendo que ela apenas Ao invés da imagem
era menor e mais fraco; daria a volta no quartei- típica do carnaval, do
esta equação só se inver- rão e entraria pela porta sexo, da carne, da exposi-
teria muitos anos depois. lateral, já que ela era a ção, dos confetes e ser-
Até lá, eu era sempre a professora de Educação pentinas, da bebedeira e
vítima. Artística. Mal sabia eu das drogas, da obrigação
que, daquele dia em dian- machista de comer uma
Nos dias seguintes, te, minha mãe seria uma
continuei me encontran- garota, na minha mente
das minhas professoras se gravou esta memória
do com a menininha, e por oito anos consecuti-
revezávamo-nos entre ela fugidia de um amor de
vos. infância, puro e imanen-
brincar no mar e eu na
areia, ou ela na areia e Conheci meus colegui- te.
eu no mar. Não tínhamos nhas, minha professora, Gravou-se a recorda-
coragem de nos apro- e saímos para o recreio, ção da minha primeira
ximar, de dizer “oi” um cada qual carregando a namorada, que havia
para o outro, então brin- sua lancheira com suqui- conhecido no carnaval.
cávamos apartados por nho e pão de forma com
vários metros, numa con- queijo e presunto.
fidência e camaradagem Para minha surpresa,
que apenas duas crianças em meio à criançada que
podem ter, mesmo sem corria pelo pátio, pulava
trocar palavra. amarelinha, brincava de
Depois, ficamos ainda pega-pega, de corda, avis-
mais ousados, passamos a tei a mesma menininha

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Contos

Ju Blasina

Ser genérico
http://www.flickr.com/photos/vicklandon/3575027349/

22 SAMIZDAT março de 2010


De tão indeciso nas- as meninas? Vestido ou num profundo e reflexivo
ceu hermafrodita. E não smoking para o baile de pesar que mais ninguém
bastasse, nasceu em trân- formatura? E o pior: com compreendia. O mesmo
sito: os pais viajavam em quem dançar? ocorria ao abotoar de
férias pelo interior do Não bastasse o dilema uma camisa, fechar de
Interior quando se deu o pessoal e social de toda um cinto ou cruzar de
trabalho de parto. Era um adolescência, o que dizer pernas: qual é o lado cer-
domingo, dia de todos da sua? Uma explosão to? Qual é o lado...
os santos, e no interior hormonal com ares de Foi pai e mãe, biolo-
do Interior não há hos- Big Bang! Ah, se ao me- gicamente falando, mas
pitais. Viajavam de uma nos agradasse a apenas não assumiu nenhum dos
cidadezinha de nome um gênero, talvez a lei de papéis. Não por falta de
estranho A para uma de oferta e procura selasse comprometimento para
nome esquisito B, quan- o seu destino, mas não... com os filhos, mas sim
do as dores começaram. Sua beleza andrógena o para com os pais. Sentia-
As primeiras contrações tornava alvo genérico, se culpado por não poder
se deram ainda em A, o cortejado por ambos os dar-lhes uma resposta
bebê coroou em B, mas sexos. E seu corpo, sem satisfatória, quaisquer que
só teve o cordão cortado preconceitos, respondia fosse.
em C, cidadezinha menos independente do gênero
inóspita. O excesso de opção foi
que o despertava. E na seu maior castigo, sua
Os pais, temendo es- maior parte do tempo maior tormenta. Foi só
colher a opção errônea, sentia-se assim uma pes- na morte que encontrou
recusaram influenciar-lhe soa feliz, indecisa e inde- a paz. Seu epitáfio exibe
o sexo. E então, com a finida. Pena que o mundo sua primeira revelação,
consciência leve pela não só ofereça um espaço de compreendida somente
decisão a qual preferiam cada vez. por suas últimas palavras,
chamar de “criação libe- Tornou-se um indivíduo foram elas:
ral”, chamaram ao bebê tão promíscuo e volúvel
por um nome neutro e “Deixem-me
que nenhum relaciona-
vestiram-lhe em cores mento engrenou. Nunca Apenas
neutras na esperança de soube se preferia ficar Ser”
que o gênero se revelasse por cima ou por baixo,
junto ao desabrochar do por dentro ou por fora.
crescimento. Algumas vezes já nem ti-
Passou a infância di- nha certeza se gostava de
vidido entre Barbies e alguma coisa de fato, ou
Falcons, panelinhas e se só as fazia em busca
playmobiles, bambolês de respostas que nunca
e berlindes, mas foi na vinham.
adolescência que a confu- Envelheceu cheio de
são piorou... E tudo o que rótulos que não lhe ca-
antes parecia complicado, biam e dúvidas que lhe
mostrou-se simples se roubavam o pensar. Toda
comparado ao que estava vez que precisava usar
por vir: futebol com os um banheiro público,
garotos ou shopping com parava em frente à porta

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Contos

Maria de Fátima Santos

biscoitos de manteiga
http://www.flickr.com/photos/aprendizdeamelie/4125175917/sizes/l/

24 SAMIZDAT março de 2010


Um ventinho a soprar de E a seguir foi o silêncio se tivesse mascarado, e lhe
fora fez restolhar o cortina- que era cada uma das se- tivessem atirado o confeti
do que protegia a entrada nhoras a vasculhar memó- quando passava numa rua.
da varanda: um tecido leve, rias onde se reencontrasse Num e outro caso, esque-
branco, vaporoso e muito vestida de pajem ou de cida de que ao outro dia,
limpo. Isaura disse, levan- dama da corte ou bailasse por volta das quatro e um
tando o olhar na direcção num baile. quarto, serviria chá àquelas
onde Iria estava sentada Entrou na sala uma senhoras.
mais perto da janela: moça a empurrar um car- – Isaura, a menina viu o
– Está fazendo fresco. A rinho desses de distribuir cabelo dela?!
amiga, se não se importa, refeições, e disse, com um Assim clamou Iria
feche essa janela. sorriso de quem está quase quando a empregada se
E Iria debruçou o corpo, a sair de serviço, mas conti- afastou saracoteando umas
ergueu-se apenas o neces- nua a cumprir obrigações: nalgas largas sob a bata em
sário para prender um no – Minhas meninas, o quadradinhos azuis.
outro os batentes de vidro, lanchinho. Mas a outra sorriu-lhe,
mas foi reparando no que E foi colocando um ou ao menos era um sorriso
ía na rua, ali à altura de um bule e duas chávenas sobre o que tinha colado no rosto
primeiro andar baixo: uma mesa que parecia estar magro já muito plissado
– Parecem foliões. à espera de servir para em torno dos olhos e nos
Devem ir para a sociedade, alguma coisa, e retirou o cantos dos lábios.
que hoje é sábado-gordo. pano que tapava um pra- Isaura nem deve ter-se
Disse assim para que a to a deixar ver uma fiada apercebido do perigo que
outra soubesse o que ela es- de biscoitos. Cheirou na seria caírem na sua chávena
tava vendo, e voltou a refas- sala à manteiga de que os papelinhos azuis, verdes e
telar-se no cadeirão a esbor- bolinhos seriam feitos, no amarelos, além dos encar-
rachar as florinhas miúdas mesmo instante em que nados que decerto viriam
pinceladas no tecido a par uma madeixa do cabelo de mistura. Que Isaura
com umas aves que talvez que a rapariga tinha pre- apenas tinha olhos para o
fossem pintassilgos. so numa touca, descaiu, e que aqueles papelinhos lhe
quase roçou a superfície do tinham avivado de memó-
– Os carnavais já não líquido escaldante que caía
são o que eram – disse rias: episódios de Entrudos
na chávena de Isaura. da sua juventude e outros,
Isaura Torpes, revirando os
olhos como se tivesse dito, Terá sido disso que Iria mais atrasados que sua mãe
assim dizendo, uma verdade se apercebeu dos confetis contara. E foi recontando
enorme. quase a soltarem-se sobre sem pedir licença e sem
os guardanapos, quase a retirar do rosto aquele riso
E talvez fosse. Ao menos caírem numa orgia colo- miudinho, bem disposto.
assim parecia entender Iria, rida sobre a mesa e sobre
a olhar a outra e a deixar – Ai o que a mim me
cada chá. Uns papelinhos lembrou a ver os papeli-
descair o lábio inferior, a vindos, sabe Deus de que
remoer duas ideias, a pre- nhos …
baile da noite passada onde
parar a boca babosa para a a empregada tivesse andado A minha avó chamava-
frase que disse: apertada nos braços de um se Maria da Assunção, mas
– Eu também concor- arlequim ou de um solda- todos a conheciam por
do… do. Ou nem a moça teria Marquinhas. Naquele En-
brincado, talvez que nem trudo, como de costume,

www.revistasamizdat.com 25
em cada sala de baile estava zer azeite, e à minha mãe, a – Seriam onze horas e
armado o mastro com fitas avó Marquinhas disse que o baile na sociedade dos
e balões, e havia uma mão levasse um bácoro aconche- ricos ía animado. – Isaura
cheia de saquinhos de pano gado no avental – um porco afirmou assim como se lá
cheiinhos de areia ou serra- ainda mal desmamado que tivesse estado e prosseguiu
dura, conforme. E havia ro- minha mãe segurou com o conto sob o olhar atento
los de fitas multicores – as desvelado cuidado. de Iria.
serpentinas – e saquinhos Minha avó materna, Minha mãe contava
repletos de confetis. Os vestiu-se parecida com as que havia muita gente pelas
sacos de pano eram feitos filhas, mas colocou arre- escadas e que se apartaram
expressamente – nos meses cadas nas orelhas, herança a fazerem filas enquanto
de frio, ao serão, mal pas- da mãe dela, e um xaile elas subiam, e que gritaram:
savam os reis, e já em cada sedoso, negro e com cadi- deixem entrar as ciganas,
casa havia ao menos um lhos a descaírem na camisa que seriam elas com minha
par de mãos a recortar te- branca. Na cabeça colocou avó adiante e o bácoro gru-
cidos velhos, a pespontá-los um lenço todo ele em seda nhindo preso nos bracinhos
e a colocar-lhe um atilho pura, ou imitando: de minha mãe ainda quase
no local por onde seria, nas criança.
vésperas de se iniciarem os – Sei lá eu… – e
festejos, colocado o material Isaura riu-se, ainda mais, a Contavam, uma e outra,
que, enchendo-os, e depois acrescentar, para compor o e houve tempo que conta-
de atados, os iriam tornar quadro que ouvira repetido vam as duas, ao despique,
em arma de brinquedo e à avó e à mãe: que no salão parou o baile,
arremesso. Os saquinhos – Um lenço vermelho arredaram-se cadeiras e as
prenhes de serradura ou sobre as tranças que a mi- senhoras olharam-se a per-
areia da praia jogados a um nha avó tinha muito pretas. guntarem o que seria aqui-
e outro no cortejo ou ati- lo, e riam a verem a minha
E prosseguiu contando. avó andando de um lado
rados da janela ao incauto
que passava na rua. Pela hora em que o para o outro na roda que se
povo, e o resto da socieda- fizera no salão mais chique
– Costumes. – dis- de, começava a dirigir-se da cidade.
se Isaura a ver se a outra à sala de baile a que, por
dormitava ou se mantinha Marquinhas e as suas
profissão e escalonamento quatro filhas ensaiando o
atenta ao que estava contan- social, lhe cabia em uso, mi-
do. que nem tinham ensaiado.
nha avó Marquinhas deu a
Nesse Entrudo, minha cada filha uma mascarilha Minha mãe diz que
avó juntou as quatro filhas, que ela mesmo tinha feito teve medo daqueles risos
minha mãe entre elas, e em flanela preta com dois todos a olharem para ela
vestiu-as com saias embebi- buracos para que assomas- muito aflita a segurar o
das em muita goma e com sem os olhos. Em si mesma porco para que não fugisse.
muita roda; colocou na ca- colocou, preso por fitas de Minha avó Marquinhas
beça de cada uma um len- cetim, no mesmo tom, uma sentou-se com a saia em ba-
ço de ramagens e, no braço, rede negra, de tal modo lão espalhada no sobrado e,
a uma pediu que levasse colocada que se lhe fica- espetando o dedo, chamou
um cesto, a outra que segu- vam a ver-se apenas os dois cada uma das filhas segun-
rasse uma galinha, à minha olhos. Nas mãos enluvadas do a sua função:
tia mais novita pendurou de vermelho, Marquinhas
no braço uma bilha de tra- segurava um baralho.
tu que tens o galo, senta- te

26 SAMIZDAT março de 2010


minha filha mais alta da cidade. – ríamos estouvadas como
tu que tens o bacorinho, E minha avó Marqui- devem ser as mascarinhas a
aninha-te neste chão real nhas, esquecida da função andar de sala em sala onde
de ler as sinas, a levantar as houvesse um baile.
saias e a correr pelo salão Ao outro dia, ou na
– Minha mãe jura que de baile a tentar apanhar o mesma noite, como era
a minha avó disse assim porco e a deixar as filhas e divertido conversar com o
quando se referiu ao lugar a galinha sentadas no salão. moço a quem tivéssemos
onde ela se devia sentar. atazanado o juízo, sem
– Eram outros car-
Isaura parou um pouco navais e não esta pouca- que ele nos conhecesse, e
a beber um gole de chá. vergonha das mulheres sem ouvi-lo dizer: sabes quem é
E minha avó chamou a roupa que vê na televisão e aquela mascarinha assim e
filha que trazia a bilha e a nos jornais. assim? e ele a descrever a
outra que levava a galinha nossa triste figura quando
Assim atalhou Isaura, disfarçadas, e a gente: não,
e sentou em sua volta as já Iria tremelicava o lábio
quatro meninas. não conheço…
desejosa de contar o que
Minha mãe contava do entretanto lhe lembrara: Mentiras inocentes.
medo que tinha tido das – Houve um ano… – E sabe, Isaura, foi
caras dos senhores, rindo a nesse Entrudo que comecei
mostrarem dentes de oiro a namorar o meu Francisco,
e a olharem para ela lá do É preciso dizer que Iria que Deus o tenha no Seu
alto da roda que haviam começava sempre deste abençoado seio.
feito em redor do espaço modo cada conto que con- E benzeram-se as mu-
que elas ocuparam. tasse. lheres a tasquinhar ainda
E a minha avó leu sinas Houve um ano… dis- um pedacinho de biscoito
e deu sentenças, coisas que se ela, e foi seguindo: amanteigado.
ela dizia ver nas cartas, ou Houve um ano em que
seriam umas que inventava me mascarei de qualquer
e outras que sabia de verda- coisa. Entrouchada. Era
de serem casos de pessoas assim que se dizia lá na
que estavam na sala ou terra quando não se assu-
eram aparentados. mia uma figura, mas era
Todos riam: olha, olha só a gente a entrapar-se,
o que diz a cigana, e a per- fosse lá como fosse, para
guntarem entre dentes, so- sair à rua que era aí a festa:
bretudo as senhoras: quem andar cada um de cara
será que assim se atreve? e tapada nem que fosse com
a desviarem-se, que sabiam um pano de renda ou um
que no Carnaval valia tudo. trapo com dois buracos mal
E foi quando se deu. cortados, isso se não havia
mascarinha, e não havia
Parece que minha mãe quase nunca. E lá íamos a
dormiu ou pelo menos des- mangar de uns e doutros.
cuidou o segurar no bácoro Mascarinha, diz-me o teu
e este soltou-se, fugiu a gru- nome. E a gente a fazer voz
nhir por entre os pés dos disfarçada – voz de máscara
foliões, senhores da classe

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Contos

Cirilo S. Lemos

Quarta-feira de Cinzas
http://www.flickr.com/photos/cp-inspirations/4167521456/sizes/l/

28 SAMIZDAT março de 2010


Até que a Terça da adocicado devia estar lá rasqueira.
Folia do Clube Vicentino desde seus treze anos, mas – Que isso – ele gritou,
não era um programa tão ela não precisava saber arrancando depressa a ca-
ruim assim, afinal. Renato disso. misinha meio derretida.
odiava o Carnaval, mas os – Sabor morango. Ado- A coelhinha cambaleou
beijos que a mulata fan- rei – ela riu ainda mais para trás, o suor formando
tasiada de coelhinha dava alto e tascou-lhe um beijo, uma nuvem de vapor ao
em seu pescoço compen- a boca deliciosamente seu redor.
savam o barulho, o tumul- quente. Realmente quente.
to, os marmanjos vestidos – Você está bem? – dava
E era macia, úmida. Algo
de mulher rodopiando para sentir um cheiro leve
reagiu nas partes baixas.
orgulhosos pelo salão. E de cabelo queimado. –
Renato agradeceu ao calor
como compensavam. Moça, pelo amor de Deus.
por dilatar seus vasos
Deslizou a mão pelas sanguíneos e aumentar o A coelhinha desabou
costas dela até sentir o fluxo de sangue. ao chão, e então irrompeu
rabinho de algodão no em chamas como se fosse
– Está tão quente aqui...
biquíni branco. Convi- um galão de álcool. Uma
– a coelhinha gemeu, des-
dou-a para um lugar mais fogueira humana, agitando
grudando-se do corpo de
reservado. Ela sorriu e o desesperadamente braços
Renato. Engolia o ar em
arrastou pelo braço até o e pernas. A fumaça negra
grandes bocados. – Quente
banheiro. se espalhou pelo banheiro.
demais.
Não sabia o que uma Renato correu em busca
Renato esfregou a testa
mulher daquela vira num de ajuda, tropeçando nos
suada. A temperatura pa-
cara como ele, mas podia próprios pés, sem acre-
recia mesmo estar subin-
apostar sua coleção de ditar no que acabara de
do.
Sandman – dez deliciosos presenciar. Ao chegar ao
– O ar condicionado salão, viu dezenas de fo-
volumes encadernados,
deve ter pifado. Oitocen- liões – homens, mulheres,
capa dura, papel especial –
tas pessoas espremidas crianças – transformados
que o fato de estar bêbada
num lugar minúsculo e em incêndios ambulantes.
tinha algo a ver com isso.
a direção do clube deixa
Ao diabo com as explica- Entrou em pânico.
o ar pifar. Depois recla-
ções, ele pensou, quando
mam quando são trocados A gritaria terrível tor-
sentiu uma mão abrir seu
pelo Clube Veneza – ele nava impossível pensar
zíper e se enfiar em sua
disse. Seu interesse, po- direito. Mais e mais pesso-
calça.
rém, era outro. Agarrou a as explodiam em chamas
– Você tem camisinha coelhinha pela cintura e e se consumiam em ins-
aí? – sussurrou a coelhi- a puxou para si. Ela veio, tantes sem razão aparen-
nha. mirando-o com olhos san- te. Renato correu para a
– Tenho – respondeu guíneos, e o enlaçou com saída, onde uma multidão
Renato, o coração ao pu- um abraço vulcânico. apavorada se acotovelava
los. Arrancou a carteira do na porta estreita tentan-
Renato tentou penetrá-
bolso, abriu-a atabalhoado: do fugir. Um homem ao
la outra vez. Foi como
o pequeno envelope plás- seu lado se transformou
enfiar o pênis numa chur-
tico de perfume levemente numa bola de fogo. Com

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os olhos ofuscados, Re- e correu para longe dali. perguntando se Deus tinha
nato caiu e foi pisoteado. Como ir para casa? algo com aquela loucura
Levantou-se com esforço. Em qualquer direção que toda, e quase foi atropela-
Atravessou a porta mistu- olhasse, via dúzias de piras do por um ônibus em cha-
rado à floresta de braços incandescentes alucinadas. mas ao atravessar a rua.
coloridos, pernas envoltas Os urros vinham de toda Entrou num beco en-
em meias, troncos em- parte e se misturavam às tre dois prédios altos. O
plumados, cabecinhas de buzinas, sirenes, choros, cheiro enjoativo de carne
fadas, bailarinas e piratas. latidos, marchinhas aban- queimada se misturava ao
Chegou à rua. donadas de Carnaval. ranço dos sem-teto enco-
– Ah, porra. Ali perto, diante de uma lhidos de medo. Pilhas de
Gente em chamas por cruz vermelha de vários cinzas fumegantes se es-
toda parte, gente rolando metros, um pastor ber- palhavam por toda parte.
pelo chão tentando extin- rava ao microfone sobre Renato sentiu o estômago
guir o fogo que lhe devo- o Fim dos Tempos e a se contrair. Vomitou.
rava os corpos, gente se Destruição dos Pecadores. – Coisa estranha, né?
atirando de prédios ou na Louvava ao Senhor por – disse um mendigo.
frente de automóveis para trazer sua Justa Punição Encharcava o corpo com
fazer a dor passar, gente e seu Fogo Purificador no uma garrafa de coca-cola
sem saber o que fazer ou último dia da celebração cheia de urina.
aonde ir, como ele. hedonista da carne. Fiéis Renato não respondeu.
Correu para o estacio- endossavam as palavras Continuava vomitando.
namento, sem coragem do pastor com gritos de
– Vou deixar o corpo
de olhar para os clarões aleluia e braços erguidos.
bem molhado para me
repentinos que surgiam ao Era uma igreja grande e
proteger do fogo. O mun-
seu redor. Alcançou seu próspera. Homens de ter-
do inteiro tá assim, meu
carro. Enfiou a chave na no impediam que as pes-
chapa, a porra do mundo
ignição. Pessoas em cha- soas assustadas buscassem
todo. E sabe por quê? A
mas cercaram-no implo- abrigo dentro dela.
radiação ultravioleta. Tem
rando por ajuda, tentando A multidão apedrejava um vírus nela. Não se
abrir as portas, socando as portas de vidro e força- pode brincar com o pla-
os vidros. Renato viu um va a entrada. Os homens neta, garoto. Ele tem pais
homem se jogar contra o de terno – seguranças, vingativos.
pára-brisas, o fogo torran- na verdade – ameaçavam
– Besteira – grunhiu
do-lhe a pele. Estremeceu. atirar nas pessoas para
Renato, um gosto azedo
Ia ter de atropelar aquelas afastá-las. No fim, dava no
na boca. Cambaleou para
pessoas para poder sair mesmo estar dentro ou
longe dali.
com o carro. Não teria fora: fiéis e infiéis, todos
coragem de fazer uma começaram a queimar – Que explicação você
coisa dessas. Mas tinha de um a um. Renato não viu tem? – ainda ouviu o men-
ir para casa, saber se o pai quando o pastor se tornou digo perguntar.
estava bem. Abriu a porta uma bola de fogo claman- Avenidas, condomínios,
do carro com um chute, do pelo espírito santo: favelas, ruas, praças, edi-
derrubou um dos infelizes correra ao ouvir os tiros, fícios, casas, bares, carros,

30 SAMIZDAT março de 2010


bordéis. Em todos os luga- Uma fuligem gorduro-
res as pessoas – e somente sa começara a cair sobre
Um detetive...
elas – queimavam até a a cidade. Quanta gente
morte. Haveria explicações precisava ser carbonizada Uma loira gostosa...
para isso? para se produzir aquela
A televisão e o rádio quantidade de neve morta? Um assassinato...
instavam a população a – O fim do mundo – ele
não sair de suas casas. suspirou, observando o
Autoridades apareciam fogo que agora se espalha- E o pau comendo entre
falando e falando. Precisa- va também pelos prédios. as máfias italiana e
vam mostrar ao povo que – Não há graça nisso. chinesa.
­
ainda havia alguma ordem Um velho subiu no pa-
no país, apesar de tudo. rapeito da ponte. O último
Mas não havia. Militares e dos suicidas. Com um
políticos também queima- sorriso triste, saltou e foi
vam, e o próprio presiden-
te se transformara numa
engolido pelo rio. Renato
ficou observando as bolhas
O Covil
labareda duas horas antes.
Nada de ordem ou hierar-
na superfície da água. Nas
primeiras horas da quarta-
dos
quia, apenas um colossal
incêndio humano.
feira de cinzas, se viu só.
Inocentes
Renato seguiu pelas
ruas em busca de um www.covildosinocentes.blogspot.com
jeito de ligar para o pai.
Todos os telefones que
encontrava pelo caminho
estavam mudos. Ao longe,
ainda dava para ouvir o
eco mórbido de pessoas
explodindo em chamas.
Mas o silêncio se tornava
cada vez mais presente. A
cidade esvaziava.
Parou no meio de uma
ponte, onde um pequeno
grupo de pessoas saltava
e desaparecia nas águas
escuras do rio. Renato se
perguntou se teria cora-
gem para uma atitude
dessas. A idéia de morrer do
afogado lhe parecia ainda w
gr nl
mais aterradora que mor-
át
oa
rer queimado. is d

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Contos

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José Guilherme Vereza

A primeira noite de Melissa


Depois de algumas horas dos glúteos. Sem malícia, sem antes escovar os dentes.
de sono profundo, sob a vigí- outras intenções, a não ser Danem-se as abluções.
lia curiosa de Thales, Melissa retribuir uma noite de afeto. Nem Thales nem Melissa
vira de bruços, senta lenta- - Que gostoso... fico toda querem perder o gosto da
mente sobre os calcanhares, arrepiada. manhã de uma noite bem
os cabelos longos e castanhos aproveitada.
claros tapam seu rosto. - É meu jeito de dizer bom
dia. E reiniciam o ritual de
Começa a se espreguiçar urros e suores, gostosuras e
como um cachorro vadio. - Eu também quero dese-
jar bom dia pra você. ferocidade, estranhos e inusi-
Alonga os braços, estala os tados.
dedos finos, abre a fecha as Melissa vira-se de costas
mãos. para a cama, traz Thales pe- Não estavam acostumados
los braços, num golpe hábil com isso. Ela jamais se en-
A lentidão dos movimen- tregara tanto. Ele, por fastio,
tos é acompanhada por um de quem aprendera com o
balé dominar o corpo a seu jamais repetiu a dose com
Thales paciente, diferente do mulher alguma.
apressado que quer sempre favor.
deixar a cama vazia de gente Ficam rosto com rosto, Não era dado a delica-
quando encerram as funções. ele por cima, ela por baixo, dezas. O contrato sempre
Dessa vez, é pego de surpresa enrascando as pernas longas cessava à última gota, quan-
por uma vontade de fazer numa armadilha que Thales do Thales ainda melado
carinho. não sairia nem se quisesse. pulava da cama em busca da
carteira para encerrar aquela
Percorre os dedos pelas Roçam pélvis com pélvis, lengalenga.
costas de Melissa caminhan- apertam-se até não poder
do pela coluna vertebral, su- mais, beijam-se, sugam-se, Dessa vez, algo de novo
bindo suavemente ao pesco- contrariando os que dizem estava acontecendo entre os
ço e descendo até os inícios que não se beija ninguém dois.

32 SAMIZDAT março de 2010


- Você é diferente. Por um tremelicando. - Melhor assim. Contrato
momento você me fez es- Num silêncio furioso, é contrato.
quecer que a gente não era o amaldiçoa sua própria hesi- - Tá certa. Fomos longe
que a gente é. tação. demais. E veste logo essa
- E o que a gente é? Seu instante de sinceri- calcinha.
- No principio, eu sou um dade e fraqueza estavam em - Quero ir embora logo,
cliente e você uma prestado- vias de encerrar o sonho sem nada por baixo. Se achar
ra de serviços. aventureiro de uma carreira a calcinha, fica de souve-
- E no fim? bem sucedida de mulher de nir pra você. Melissa bate a
tantos e tantos homens ricos, porta sem olhar para trás.
Os rostos se encostam. Os poderosos, maduros. Esbaforida, desce a ladeira
olhos se fecham. Os lábios se saltitando entres os parale-
falam. Achava que estava vacina-
da contra qualquer trapaça. lepípedos, tentando trazer
- Duas pessoas querendo Mas entregue a uma esfinge junto o coração que cismava
entender o que está se pas- de homem, logo o primeiro em ficar naquele apartamen-
sando. cliente, perdeu o juízo. to bagunçado.
- Duas pessoas que por Sentiu um macho amo- Foge sem querer fugir, en-
alguns instantes viveram roso derramar afeto entre quanto um Thales atordoado
a ilusão de um encontro suas pernas e o que é pior: encontra a calcinha embola-
químico, amoroso, carnal e..., deixou-se retribuir como da numa fronha.
desculpe ir longe demais: a- uma donzela possuída por Leva a lingerie rendada até
pai-xo-nan-te. um príncipe. o rosto, fecha os olhos, beija,
Melissa se levanta de Que pieguice mais ridí- morde, passa a língua, esfrega
supetão. Thales fica paralisa- cula. Como uma aprendiz no nariz, cheira profunda-
do diante da mulher esta- da vida pode fraquejar ao mente o tecido, inalando uma
banada que tentava recolher primeiro serviço? sensação inédita e inebriante.
as roupas espalhadas pelo Tem ímpetos de pagar o
apartamento. O vestido na Que homem era aquele,
que encostado à cabecei- celular:
varanda, as sandálias na sala,
o sutiã na mesa de jantar e a ra, braços cruzados, tórax - Volta, estou morrendo de
calcinha - sabe-se lá onde foi nu, sorria de canto de boca, saudade. Vamos passear de
parar o diabo da calcinha no deixando escapar um olhar mãos dadas,
momento em que foi extir- intermitente entre o inquisi- ir ao cinema, tomar sor-
pada sob a fúria dos esfome- dor e o pidão, vete.
ados. próprio dos machos per- No mesmo, absoluto e
Agora, enquanto recolhe versos e dos meninos meigos coincidente instante, numa
o que vestia antes do baile, que as mulheres gostam de sinergia rara e transcenden-
Melissa balbucia pensamen- botar no colo? tal,
tos em voz alta. Que homem era aquele Melissa desacelera a fuga
- Tia Aurita me avisou... que emanava uma superiori- fingida e inicia uma meia
esse trabalho não é para dade meio besta, ao mesmo volta.
mim. Namorado é namorado, tempo em que suplicava com
os olhos que ela ficasse mais Tem ímpetos de bater na
cliente é cliente... Onde está porta de Thales.
a calcinha... não posso sair um pouco, um pouquinho só,
sem calcinha... para que a eternidade cuidas- - Voltei, estou morrendo
se de resolver o imbróglio de saudade. E quer saber?
- Na cozinha, Melissa. causado pelas surpresas do Meu nome é Ana Luiza.
- E você para de me vigiar. acaso?
Acabou o serviço! Melissa respirou fundo.
- Não estou vigiando... es- - Me dá logo o dinheiro.
tou apressando a sua saída.
- Tá aqui o pagamento.
Melissa fuzila Thales com Como combinado com a tia.
testa franzida e pálpebras

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Contos

Festa no céu Polyana de Almeida

34 SAMIZDAT março de 2010


Seu Jacinto veio me cha- tem feitiço, lancei. É coisa nhecendo-a.
mar no meio da noite. Rugiu, que não há. Andei certas dis- —Estamos esperando. Vem
gritou, mandou meu nome e tâncias, falei, contei o monte logo escutar o samba que
disse: já está na hora. do passado, o cheiro da mata fizemos para te dar. Da tua
Esfreguei os olhos, alisei molhada, a lama debulha- voz tirei a melodia e a har-
meu bendito queixo, e deixei da sob os sapatos a roubar monia eu fiz com teu olhar.
as pálpebras caírem soltas o cheiro do ar, o cheiro da
vida. O barulho encharca- —Tia Ciata, um último
num piscar de sonho. Mas a desejo.
nitidez das coisas, as cores, o do dos espaços, cada passo
tato, o tom pálido dos espa- entrando no chão, como se a —Noel, pode mandar,
ços me desmentia – já não terra me tragasse em mi- sinhô-moço.
durmo, já não sonho. E vivo? nha chegada. Tão cedo. Para
não mais sair, para nunca —O meu destino foi traça-
—Com que roupa eu vou? mais sair. O cheiro forte da do. Mas eu me vou é muito
natureza, plena e esvazia- cedo, eternamente hei de sor-
Sem resposta, ele me guiou rir pra não chorar. Uma jura
até a porta. da, agredia a insipidez das
narinas acostumadas com os que fiz: eu nasci pra batucar.
—Espera mais um ano? excessos do corpo, comba- —As cordas vão dizendo
Assinalando um Não com te deflagrado. A náusea do que o samba é só teu. E no
cabeça, ele me puxou pelo novo; ficará aqui se nós o céu há festa, Noel. Estamos
braço. Toquei as mãos velhas tomarmos como nosso. Cedo esperando...
do preto, senti a casca ru- demais.
gosa da palma, lixa. Apertei
sua mão. Tem pulso firme, o Tamborilei um pouco, jun-
velho, pensei. A mão áspe- Do escuro, uma porta me tei-me à multidão e cantei:
ra de anos, mas a firmeza aguardava. Girei a maçane- Eu vou pra outra Vila, onde
da lida. Com suas mãos, eu ta, e adentrei o espaço. Um o samba também é sina...
antevia sua história. A ca- vasto salão caiado em bran-
beça toda branca. O rosto co, tinta desgastada, abrigava
talhado, sulcos dos anos e do o vazio desolador dos fins (Homenagem ao centenário
bacalhau. Deve passar dos de festa. Garrafas ao chão, do nascimento de Noel Rosa,
setenta, talvez. Deve conter as serpentina jogada aos cantos, prodígio do samba, que mor-
histórias do mundo no dese- um brilho espalhado, dissi- reu aos 26 anos, em 1937. Os
nho pesado das mãos e nas pado no ar, cadeiras postadas trechos a seguir são de excer-
costas. E anda, pensei, como junto à parede, ou em roda. tos ou títulos de suas com-
pode andar? Ao longe, podia ouvir o ruí- posições: “Festa no céu”; “Seu
do sussurrado de uma vitrola Jacinto”; “já não durmo, já não
—Pra dentro, sinhô-moço. antiga. O som ia, aos poucos, sonho”; “Com que roupa eu
Vai chover. Logo mais há de tomando os meus ouvidos, vou?”; “Espera mais um ano?”;
começar. me abraçando, chamando “Você vai se quiser”; “Prazer em
—Você vai se quiser, seu meu ritmo. Quis tamborilar conhecê-lo”; “Essa vila, essa vila
Jacinto. Prazer em conhecê- na palma das mãos o batu- tem feitiço”; “Ou eu me encar-
lo. Eu quero bandear um que dos dedos, o batuque pri- rego de sumir”; “o batuque é
pouco pelos arredores. De- vilégio, a umbigada de meus privilégio”; “Um último desejo”;
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pois trato de entrar. Ou eu vinte e seis anos, cantarolan- “Estamos esperando. Vem logo
me encarrego de sumir. do murmúrios dos tempos escutar. O samba que fizemos
que não voltam mais. para te dar.”; “Da tua voz tirei
E voltou. Retornou para a a melodia e a harmonia eu fiz
escuridão de onde mal havia — Se ainda pudesse... Um com teu olhar”; “O meu destino
se apartado, como um desses último desejo... foi traçado”; “(...) eternamente
mitos da noite, que na noite Como num piscar, a porta hei de sorrir pra não chorar.”
ficam. Tão logo, as gotas in- abriu-se novamente. Uma “Uma jura que fiz”; “eu nasci
vadiram o espaço, num leve multidão avançou, preencheu pra batucar.”; “As cordas vão
correr devasso. Eu levantei a o salão, em um barulho con- dizendo que o samba é só teu”;
cabeça e deixei que a água tínuo. Uma preta, senhora de “Estamos esperando”; “Eu vou
abraçasse minha face. Gotas roupas grandiosas, e colares pra Vila”.)
escorrendo, uma atrás da ou- variados, aproximou-se e
tra, nas bochechas, na boca, segurou minhas mãos. Eu a
nos olhos. Essa vila, essa vila beijei, em reverência, reco-

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Contos

Borboletas na barriga
Mariana Valle

36 SAMIZDAT março de 2010


Eu gosto dele. Tá bom,
eu gosto bastante dele.
Mas o que eu mais gosto
nele é a leveza de não
saber o dia de amanhã.
É um ter vontade de
ficar mais e ao mesmo
tempo não ter a mínima
ideia de quando isso vai
acontecer. E curtir. Curtir
esta incerteza. Aproveitar
apenas o hoje. É tão bom
viver a vida sem roteiro...
Cansei da segurança.
Da hora marcada, do
papo burocrático à noite
pelo telefone. “O que você
fez hoje? Tá com sauda-
de?”
Tenho saudade é da-
quele aperto no peito que
dava ao ver o objeto de
desejo passar. Das borbo-
letas na barriga quando
eu sentia a aproximação
do fulano. Dos incansá-
veis minutos relembran-
do todas as palavras e
entonações do pequeno
diálogo travado entre
nós dois. Das milhares
de conversas imaginárias
que eu tinha com ele em
frente ao espelho do meu
quarto na casa da minha
mãe. Nada como ser ado-
lescente de novo!
Amar é... Lembra da-
quele desenho do casal
fofinho que completava
essa sentença das mais
diferentes maneiras? O
negócio é o seguinte:
amar é foda, mas no mo-
mento eu quero paixão.

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Léo Borges

Duas de cinquenta e três de vinte


– Mãe, está me ouvindo que se dá para a entrada de tura embargou a minha obra
bem? Esse barulho todo é notas falsas em circulação. aqui na rua e estou com isso
porque um bloco está pas- Está havendo um problema na cabeça...
sando por aqui... não, não desse tipo aqui e precisamos Magalhães tinha de ter
vou me fantasiar de odalisca investigar. Fique calma que boa dose de tolerância quan-
desvairada nesse carnaval, está tudo bem... certo... pode do falava com sua mãe, de-
não, isso é coisa do passado... deixar... pode deixar que eu tentora que era de uma idade
pois é... estou, mãe, estou me cobro o perfume que o Bar- avançada. Mas ela também já
alimentando bem, sim... a bosa não pagou... mas, olha, tivera muita paciência com
senhora já perguntou isso da ele reclamou que teve quei- ele em sua infância. Princi-
vez passada... não, não tenho maduras no braço com esse palmente quando o moleque
comido vespa assada nenhu- perfume. A senhora tem que resolvia usar seu estilingue
ma, só disse que já falamos parar de comprar essas coi- contra os pombos.
sobre minha dieta antes. sas no Paraguai! Tudo bem...
Mãe, eu tenho de ir porque agora eu tenho que ir porque – Meu filho, já não lhe
o Barbosa está me esperando. vou pra delegacia de carona disse para não atirar pedras
Não, mãe! Nada a ver com o com o vizinho, o meu Fusca neles?
Bar da dona Rosa... já parei está nos estertores. Não, não – Mas, mãe, eles estão
de freqüentar essa espelunca. pegou fogo... eu não disse comendo pedrinhas no chão
É o Barbosa, meu colega. Isso! extintores, falei estertores! Ele de qualquer jeito!
Ele mesmo, o Barbosa da po- está agonizando, caindo aos – Não, meu filho, eles não
lícia... parece que houve um pedaços. Bom, fica com Deus estão comendo pedras. Estão
derrame e... não, mãe, o Bar- e Nossa Senhora do Embar- ciscando o chão para en-
bosa não teve AVC nenhum, go... ops, sim, sim... desculpe... contrar comida. Eles procu-
não! Derrame é o nome do Amparo! É que a prefei- ram entre a poeira e a terra

38 SAMIZDAT março de 2010


algum grão, alguma migalha bate ao crime, Magalhães? embora alguns afirmassem
para se alimentar. Pombos – Bastante, Jorginho. Hoje, que o “o” era de “Obtusos”.
simbolizam a paz. Use essa por sinal, o Pombo vai bater Barbosa já o aguardava
sua energia de caçador para as asas. com alguma intranqüilidade
brincar de polícia e ladrão. E na porta da DP.
seja sempre o mocinho! – “Pombo”?! Nem me fale
em pombos... desde que em- – Como é que é, Maga-
Magalhães compreendeu bargaram a sua obra que es- lhães? As onças falsas aí fora
que estava maltratando bi- ses pombos não deram mais correndo e você desfilando
chinhos inofensivos e inte- sossego. Estão empoleirados no bloco dos cornos? – sati-
ressantes e, por isso, reverteu nos escombros e alguns até rizou, enquanto o colega saía
sua energia para o futebol, o fizeram ninho no meu telha- do carro.
jogo de peteca e, claro, para do. Eles não criam problemas
brincar com a turma naquilo – Corno é quem usa per-
para você não? fume paraguaio, meu amigo
que dava mais adrenalina:
polícia e ladrão! Depois de – Eu gosto desses bichi- – retrucou rindo. – Alguma
crescidos, muitos se man- nhos. Por sinal a tal obra novidade? São duas de cin-
tiveram fiéis aos ofícios da é um poleiro gigante que quenta e três de vinte mes-
infância: alguns, como Maga- estou construindo ao lado do mo? Qual a fonte?
lhães, entraram para a polí- muro. Todo esse carinho é – Denúncia anônima. Elas
cia, e outros, para a política. porque “Pombo” é o nome de foram vistas na Zona. A notí-
batismo da minha dupla na cia chegou distorcida.
O vizinho já estava com polícia. Eu e Barbosa forma-
o filho dentro do carro, só mos a Equipe Pombo. Quan- – Zona que você diz é o
aguardando o investigador. do tinha a idade do seu filho Bar da dona Rosa?
– Desculpe o atraso, Jorgi- descobri que esses pássaros – Zona Portuária. Parece
nho, é que estava com minha são grandes investigadores. que um capitão da Mari-
mãe no telefone e você sabe Vasculham restos para en- nha desembarcou com elas
como elas são, né? contrar o que querem, e em na semana passada. Vamos
– Tudo bem, Magal. Só termos comparativos é mais procurar por lá. O bordel da
preciso lhe dizer que ainda ou menos o que nós fazemos. dona Rosa não está fora de
tenho que deixar o Arthur “Po” vem de “Polícia” e “MB” cogitação, claro, até porque
na matinê carnavalesca do de “Magalhães e Barbosa”. é o tipo de local onde os
clube. Como na regra ortográfica: marujos freqüentam e fica ali
sempre perto do B, vem o perto.
– É por isso que ele está M; sempre perto do Barbosa,
todo fantasiado de periquito? Magalhães e Barbosa
vem o Magalhães. passaram cinco segundos
– É um falcão – interveio – Pai, pombo não é aque- em silêncio, pensando na
o menino, arrumando as plu- le passarinho que caga nas possibilidade de terem de
mas nas costas. estátuas? voltar ao Bar da dona Rosa.
Magalhães assentiu com – Meu filho – disse o pai Foram assíduos do cabaré
um afago na cabeça do guri, tentando driblar a saia justa até quando este passou a ser
ignorando seu ar sério, até –, todo mundo faz cocô... freqüentado por policiais. Os
porque gafe com crianças integrantes da Equipe Pom-
nunca chega a ser uma gafe – É verdade – completou bo se consideravam agentes
completa. Como a investiga- Magalhães –, mas nem todo diferenciados e não compac-
ção das tais notas falsas na- mundo investiga bem! tuavam com certos manei-
quela sexta-feira pré-carnaval O policial torceu para que rismos dos colegas de labuta,
não era caso tão urgente, o chato do guri não ques- como, por exemplo, beber
ponderou que atrasar-se um tionasse sobre a última letra sem pagar, comer sem pagar
pouco não seria problema. da sigla. Ele costumava dizer e, principalmente, fazer sexo
– Muito trabalho no com- que significava “Oniscientes”, sem pagar.

www.revistasamizdat.com 39
Magalhães e Barbosa, en- – E o que ele fez? – Não te conheço, minha
tão, pegaram os instrumen- – Passou adiante. filha – disse um incomodado
tos pertinentes para aquele Barbosa. – Por favor, chame a
serviço, canetas-marcadoras – Se elas forem falsas, dona.
que constatavam ou não a é crime! – soltou Barbosa,
zangado. A prostituta saiu um tanto
autenticidade das cédulas, e consternada e foi chamar a
saíram. Caso um traço rabis- – Se é crime, desconheço. proprietária. Duas mulhe-
cado tomasse um tom róseo, Mas lembro que ele falou em res obesas e mal cuidadas,
estava decretada a falsidade. sessenta reais. aparentemente fantasiadas
Ao se aproximarem do “Exatamente”. Pensou Ma- de Carmen Miranda – ou de
cais, abordaram um grupo galhães. “A soma das notas algo semelhante –, quando
fardado de branco: falsas de vinte é sessenta souberam que se tratava de
– Senhores, precisamos de reais e agora elas estão sob o diligência policial, surgiram
uma informação sobre duas poder de algum incauto”. com cara de poucos amigos.
onças. – Mais alguma informa- – O que é? – perguntou
– A matinê das onças é ção, caro lobo do mar? – quis a menos amistosa, com uma
só amanhã, gatinho. Hoje o saber Barbosa. voz rouca, particularmente
baile é dos marinheiros! – Essas de vinte tinham esquisita.

Barbosa, ao ver que os desenhos, mas não lembro – Você não é a dona Rosa
marmanjos eram apenas o que eram. Ouvi dizer que – disse Barbosa, lembrando-
foliões fantasiados, soltou simbolizariam a paz. se que Rosa era magra, alta e
um palavrão e continuou no “Marcações nas notas! Isso odiava adereços na cabeça.
trajeto até o píer. facilitará as coisas...”, pen- – Não. Chamo-me Ma-
– Aqueles ali aparentam saram. Viram que procurar dame Cat. Eu e a Baronesa
ser marujos de verdade. o tal trabalhador portuário Pussy compramos o esta-
Devem saber de algo – sus- seria infrutífero e que o mais belecimento da dona Rosa
surrou Magalhães, observan- lúcido era seguirem direto na semana passada. Em que
do alguns homens jogando para o Bar da dona Rosa, o podemos ajudar?
cartas. decadente bordel das docas. – Sou o policial Barbosa
– Por favor, – disse Ma- No estabelecimento, que e quero que a senhora me
galhães, pedindo a palavra estava muito diferente desde mostre o cofre.
– algum de vocês viu duas a última vez que estiveram lá Madame Cat se pôs de
de cinquenta e três de vinte para “saborear as delícias da costas e começou a abaixar a
falsas circulando por aqui? casa”, conforme o slogan na saia. Ao perceber o constran-
porta apregoava, encontra- gedor engano, Barbosa tossiu
– Duas de cinqüenta fal- ram alguns bêbados, outros
sas?! – repetiu o que estava forte e explicou melhor o
alcoolizados e, por fim, que queria:
com um cachimbo no canto pessoas embriagadas. O lugar
da boca, gargalhando em era muito mal iluminado e a – O cofre a que me refiro
seguida. – Vimos, sim! Apa- música do Julio Iglesias tor- é o caixa! Quero ver as cédu-
receram semana passada e nava o ambiente ainda mais las. Estamos investigando um
estão na região. Circularam, sombrio. caso de falsificação e o ponto
mas ninguém pegou. Barra final do crime parece ser este
pesada. Acho que foram pa- – Quero falar com a dona estabelecimento.
rar na Dona Rosa. Rosa – disse Barbosa para
uma das atendentes, nua da Com as notas em mãos,
– E as três de vinte? cintura para cima. Barbosa passou a ticar cé-
– Essas não pareciam dula por cédula utilizando a
– Barbosinha?! Você por caneta verificadora e não se
falsas. Um estivador pegou e aqui? Quanto tempo! – retru-
disse que não eram. deu conta de que Magalhães
cou a garota. havia sumido por entre os

40 SAMIZDAT março de 2010


quartos. sobre a cabeça das mulheres – As carteiras são falsas.
Por vezes, o policial passa- e os puxou: carecas! Eram, na Descobri pelos desenhos.
va a caneta no próprio braço realidade, homens! Travestis Lembra o que um dos mari-
para ver se ela estava funcio- de 50 anos, donos do outro- nheiros disse? Os desenhos
nando a contento. Nas notas ra glamouroso Bar da dona sobre “simbolizar a paz” não
verdadeiras o instrumento Rosa. eram marcações nas notas
não deixava marca nenhuma, No mesmo instante Maga- frias, mas tatuagens tempo-
enquanto que na pele ela lhães apareceu por trás, gri- rárias de pombas brancas
sempre deixava um rastro tando como se desvendasse a na virilha das moças. Para o
preto. segunda parte do mistério: mercado do sexo isso quer
dizer que são muito novas.
– Essa cicatriz no seu – Barbosa! Descobri a farsa Mas elas só admitiram que
braço é de tanto procurar das três de vinte! eram menores de idade
por notas falsas? – perguntou Barbosa, aturdido com o quando engrossei e afirmei
Baronesa Pussy. que descobrira, virou a cabe- que o único “Pombo” ali era
– Não. Isso aí foi perfume. ça para ouvir o parceiro: eu e que a coisa ia feder se
Notas falsas não machucam – As supostas notas de não falassem a verdade.
tanto... vinte falsas não são notas, – Isso é um escárnio com
E foi nesse instante em são mulheres! E todas as três nossa equipe, Magalhães! –
que, por descuido, Barbosa são menores de idade: 16 zangou-se Barbosa.
tocou com a ponta da caneta anos, mas mentem pra todo Os policiais algemaram
no braço da Madame Cat. mundo que têm 20! Meninas as duas de cinqüenta falsas
Pasmo, olhou para a marca assim são tidas no mundo da por rufianismo e deram um
que, naquela pele, começa- prostituição como “mulheres sermão nas três falsas de
va a ganhar uma coloração falsas”. O preço do programa vinte. Enquanto falavam, po-
rosada. Baronesa Pussy, vendo de cada uma era vinte reais, rém, um bêbado fantasiado
os olhos arregalados de Bar- por isso, sessenta reais foi o de almirante resolveu entrar
bosa e movida pela curio- valor que o estivador pagou em cena. Agitava uma cédula
sidade, pegou a caneta e a pelas três, e não a soma de estranha, onde o número 50
passou em seu próprio pulso. supostas notas falsas. e a onça que a estampavam
O susto do policial dobrou Ao ver os travestis ajeitan- pareciam borrados, com
de tamanho ao ver que na do suas perucas, Magalhães pouca nitidez e sem a marca
pele desta gorda o risco tam- quis saber o que os ele- d’água.
bém ficava rosa. Ele sacudiu mentos tinham a ver com a
a cabeça não acreditando no – Opa! Alguém troca essa
história. nota de cinquenta aqui pra
que via. Em qualquer pele
o traço era negro, não ha- – “Elas” – disse Barbosa mim?
via discussão. O tom róseo apontando para os gigolôs
surgia apenas em objetos que –, são as duas de cinquenta
não eram verdadeiros! falsas. A falsidade aqui é o
sexo e não as notas.
A incongruência das
cores confundiu o raciocínio – Não brinca! – disse
de Barbosa até o momento Magalhães querendo rir, mas
em que ele desceu o olhar contendo-se para não desmo-
para o peito das figuras à ralizar o serviço.
sua frente. Ali ele percebeu – De qualquer modo há
que a caneta não errara: por crime: prostituir menores de
entre o decote da fantasia idade – completou Barbosa. –
viu pêlos, pêlos em profusão! Mas, Magalhães, como você
Sem hesitar, o policial meteu descobriu que elas não ti-
a mão nos adornos coloridos nham 20 anos? Pela carteira?

41
Contos

Fragmentos:
II. O Início
Marcia Szajnbok

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42 SAMIZDAT março de 2010


Havia brilho, e luz, um pedaço de vida
muita luz de muitas compartilhando espa-
cores. Havia som. Pul- ços e tempos. Há um
sava o som, ressoando novo enredo. Há.
mundo afora o coração
recém chegado ao uni-
verso das batidas. Um Fragmentos é uma
corte rápido, um súbito série de textos curtos, em
grito, um choro. E risos. geral de parágrafo único,
É um menino! Chama- que descrevem uma situ-
rá João. Bonito nome. ação da realidade e seus
Simples e brasileiro. ecos no mundo interno
João Brasileiro, então, dos personagens, como
nascido na terça-feira se, num documentário
gorda! O leite ralo não da vida real, uma voz
tem sabor de sal nem de fundo narrasse o que
de açúcar. Mas a pele é se passa no íntimo dos
quente e o aroma, ines- atores-autores, que aliás
quecível. Nesse primei- poderiam ser qualquer
ro instante íntimo, os um de nós...
corações batem sincrô-
nicos, surdo e tambo-
rim em ritmo perfeito.
E se olham e se tocam
em harmonia irrecupe-
rável. Uma dança. Há
confetes e serpentinas,
e muitos sonhos. Há
esperanças impronun-
ciáveis. Há os corpos
nus, uns que se exibem,
outros que se trancam.
Há a falsa alegria do
bêbado e o desespero
dos que não amam. Há
de tudo como sempre
houve. Mais um. Mais

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Contos

Assombrações do Rio antigo


Giselle Natsu Sato

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44 SAMIZDAT março de 2010


Ruas estreitas de para- - Estou molhada. Pre- muito desgostoso não teve
lelepípedo serpenteiam as guiçosa- Alzira trincou os forças para lutar contra a
imediações. Abrem-se em dentes e começou a tirar as tuberculose.
incontáveis caminhos, vielas, roupas sujas de mijo. Era a
atalhos e becos. O centro terceira vez naquele dia. Com a pequena pensão,
do cidade um dia foi nobre. levavam uma vida muito
Quando a mãe queria, humilde e reservada. Tudo
Esquecido e sem preser- pedia para ir ao vaso sani- isto era suportável até
vação, tornou-se uma opção tário:- Está faltando água, que começaram as pragas.
de aluguéis baratos em como vou lavar tudo isto? - Terríveis pragas rogadas o
prédios desvalorizados. A velha mostrou a língua e tempo inteiro. Corroíam
deu uma risada. e provocavam sentimentos
rancorosos.
- Alzira, Alzira, não pres-
O BECO DA MORTA ta pra nada, vai morrer sol- Alzira estava perdendo
teirona e pobre. Apodrecer o controle. O ódio, o can-
O velho edifício sobre- neste lugar imundo. Fedor. saço e a miséria venciam a
viveu ao tempo e abrigava Fedor de defunto podre. integridade.
muitos inquilinos. Próximo
ao Instituto Médico Legal, A mulher jogou as rou- Fevereiro era um mês
a entrada principal fazia pas no tanque mínimo e enlouquecedor, 40 graus e
esquina com um beco mal ficou olhando as peças falta d’água eram comuns.
afamado. Pior endereço, im- acumuladas, a pilha cada Todos sabiam que as gela-
possível. Gritos e discussões vez mais alta. Aquela era deiras do necrotério esta-
eram constantes a qualquer ela, saturada e regurgitando vam abarrotadas de cor-
hora. o dia a dia. pos. Véspera de carnaval,
feriado, falta de pessoal e
Algumas vezes o mau Cinco anos tomando o fedor invadiu os aparta-
cheiro e as moscas vare- conta da doente. O hos- mentos.
jeiras invadiam os lares. O pício fechou as portas e
Rio de Janeiro é uma cida- mandou todos os pacientes O ar impregnado provou
de maravilhosa, mas tam- para casa. Uma reportagem reações diversas. A raiva
bém tem seus bueiros. alertou sobre maus tratos e contida explodiu e as pes-
excesso de óbitos. A insti- soas começaram a jogar
Alzira odiava morar tuição perdeu o apoio do pedras no edifício do IML.
no quarto e sala abafado, governo. Deixaram a velha Gritavam contra o sistema,
odiava escutar a televisão senhora na calçada do edi- governo, polícia e defuntos.
no volume máximo o dia fício. O porteiro só enten- Montaram barricadas de
inteiro. Odiava ser vizinha deu que aquela era a mãe restos de lixo, pedaços de
do necrotério. Do décimo da Dona Alzira do 1012. madeira, móveis velhos e
segundo andar, acompanha- pneus. Exigiam a remoção
va uma confusão pela janela Demência. Alzira per- do excesso de corpos e uma
escancarada. A mãe gritou correu muitos hospitais em solução para o ar pestilen-
mais uma vez:- Alzira, Alzi- busca de vaga para interna- to.
ra, rápido, rápido... ção. Não conseguiu nada e
a mãe foi ficando. Quando
-O que é agora? Fome, as crises tornavam-se insu-
sede ou banheiro?- A mãe portáveis, levava a enferma -O BLOCO -
tinha o aspecto cadavérico para o pronto socorro . O
e o olhar penetrante. pai faleceu logo em seguida, Na rua principal, a situ-

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ação estava completamente da multidão. Fugiu para so vender cerveja fiado.
fora de controle. A rádio a calçada e ficou parada,
patrulha encontrou todas respirando fundo. O medo -Não quero nada não, ô
as vielas de acesso obstru- do que acabara de fazer era da Itália. Vim chamar Dona
ídas. Remanescentes de uma mistura de alívio e Alzira. A mãe dela está fa-
blocos carnavalescos, usan- remorsos. zendo o maior escarcéu na
do fantasia juntavam-se aos portaria.
manifestantes. Mascarados Algum tempo depois a
polícia tomou a rua prin- Alzira saiu apressada
e bate-bolas saltavam em mal acreditando no que o
piruetas enquanto as foguei- cipal com suas bombas
de efeito moral e jatos de porteiro dizia. A madruga-
ras queimavam. da quente e a rua comple-
água. Houve trocas de tiros,
Alzira vestiu um camiso- bandidos aproveitaram para tamente deserta:- Não estou
lão preto e pintou o rosto revidar, inocentes foram achando a menor graça,
com tinta branca. Desenhou baleados e pisoteados na onde está minha mãe?
olheiras e colocou uma confusão. -Estava ali, juro. Gritou
velha peruca azul. Queria seu nome um monte de
espairecer, dar uma volta e Dentro do botequim da
esquina do Beco, um grupo vezes. Vai ver foi para outro
aliviar as tensões. A mãe, canto.
neste exato momento, rogou seleto bebia tranquilamente.
uma enxurrada de pragas. Portas arriadas e televisão Juntos deram a volta no
Foi a gota d’água. passando o desfile das esco- quarteirão e nada encon-
las de samba. Alzira estava traram. O porteiro não
Enrolou a doente na capa sentada no canto, dividindo parava de se benzer e falar
da fantasia e prendeu um a mesa com um grupo de de alma penada e outras
chapéu de bruxa. A velhi- travestis, fingia interesse nas assombrações.
nha estava gostando da no- piadas.
vidade e não opôs resistên- Alzira encostou o ho-
cia:- Vamos para o carnaval, O italiano, dono do es- mem medroso na pare-
está ouvindo a confusão? tabelecimento, serviu uma de:- O senhor esqueça esta
Tem festa na rua. cerveja gelada :- Dona Al- história de fantasma ou vou
zira, quanto tempo, está de fazer queixa. Isto é excesso
O elevador estava con- folga da mãezinha?- Quase de cachaça - O porteiro
corrido e a gritaria era engasgando com a bebida, a jurou nunca mais tocar no
geral. Na ânsia de assistir mulher deu uma risadinha. assunto.
e participar do tumulto,
ninguém prestou atenção. -Minha prima levou para
Passaram anônimas até Caxias. Vai passar um tem-
ganhar a rua. O Beco estava po por lá. -O DESFILE-
apinhado de batuqueiros - Que bom. Então apro-
bebendo e fazendo arruaça. As semanas seguintes
veite, amanhã tem o Bola
passaram sem qualquer
No meio do povo a mãe Preta. Imperdível.
notícia. Alzira não queria
quis voltar, gritou e nin- -Verdade. Imperdível. saber se a mãe estava viva
guém ouviu. Foram sen- ou morta. Aos poucos, os
do arrastadas pelas ruas. Várias batidas na porta meses trouxeram alívio. Co-
Quando estavam quase em de ferro e um palavrão bem meçou a fazer novas amiza-
frente à Cruz Vermelha, mandado:- Seu Aylton, de des e freqüentar o clube da
Alzira deu um jeito de sair novo...já disse que não pos- terceira idade.

46 SAMIZDAT março de 2010


O ano terminou e chegou . Ela estava rodopiando caótico, não havia como
o carnaval. Alzira admira- com as baianas, dançando driblar a multidão...o odor
va os adereços da fantasia. com o mestre-sala e porta- nauseante de corpos em
Estava endividada até o bandeira. Indo e vindo com decomposição...e o hospital
ano seguinte sem remor- os passistas, no meio da cada vez mais distante...
sos. Desfilar pela escola de bateria... em todos os luga-
samba era seu maior sonho. res...Cada vez mais perto, Alzira escutava cada
Sentiu-se uma rainha, vesti- apontava a filha, acusando e palavra sem conseguir emi-
da de colombina. perseguindo... tir qualquer som. Queria
contar de onde vinha aque-
Na concentração, o mo- O socorro médico reti- le cheiro de morte ... queria
mento máximo da entrada rou a componente da escola voltar para casa...queria
da escola. Bateria esquen- em pleno desfile. A mulher que eles tirassem a mãe da
tando, o grito de guerra do gritava coisas inteligíveis cabeceira da maca...
puxador e a arquibancada e agredia quem se aproxi-
lotada. Apesar do alardea- masse. Amarrada na am-
do produto desinfetante o bulância , Alzira tentava de
canal do mangue estava de todas as formas avisar sobre
amargar. a presença da morta. Os
enfermeiros aplicaram nova
Quando a escola esta- dose de calmantes:- Rapaz
va toda montada, fogos de , a mulher não fala coisa
artifício explodiram no com coisa e quase estragou
céu da Avenida Presidente o desfile. Tentou me mor-
Vargas. Nada mais impor- der, imagine...
tou, o povo aplaudiu de pé
o imenso carro alegórico do -É o carnaval, amigo.
abre alas. Acho que ela está piorando,
manda o motorista acelerar.
Alzira era só emoção. Meu Deus! Está sentindo
Queria aproveitar casa este cheiro de podre? – A
segundo. No meio da ala sirene berrou no trânsito
reconheceu a figura da mãe

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O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
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Contos

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Maristela Scheuer Deves

Sempre há uma verdade....


(Parte 2)

Tudo começou em próximas. Mas não fui frio e uma urgência de


uma bela noite sem lua, muito longe. correr para casa e me
uma noite que, mesmo colocar em segurança.
sem o seu satélite, estava Eu andara, talvez, uns
clara, incrivelmente clara. 10 minutos quando algo Passado o primeiro
Uma noite que convidava chamou minha atenção. momento, ri de mim
a um passeio a pé pelas Não era nada definido, mesma. Ora, o que estava
vizinhanças, curtindo a talvez uma mudança nos acontecendo? Por aca-
quietude de uma tran- poucos sons da noite, so eu agora estava com
quila cidade interiorana. talvez um incremento do medo de assombração?,
Olhando pela janela, não ar frio ao meu redor. Até perguntei-me, e ri outra
resisti àquela tentação. agora não sei ao certo o vez. No entanto, estava
Pegando apenas um xale que me fez parar, sei ape- realmente ficando frio, e
para proteger-me do sere- nas que senti um arrepio o bom senso – somen-
no, saí a percorrer as ruas que nada tinha a ver com te isso, garanti a mim

48 SAMIZDAT março de 2010


mesma – dizia que era Naquele momento, pois Intrigada, ergui os
hora de eu ir para o meu sei agora que o pavor olhos do café, que de
quarto quentinho. Ajeitei aparentemente sem moti- qualquer forma não me
o xale mais firmemente vo que me envolvia tinha parecia apetitoso, e a vi
sobre os ombros e dei sim razão de existir, que com um florido vestido
meia volta, seguindo pelo o perigo era identificado de verão. “Calorões da
mesmo caminho que no fundo do meu ser por menopausa”, pensei para
viera. Os passos estavam um sexto sentido que mim mesma, sem querer
mais apressados do que sabia muito bem o que dizê-lo em voz alta, mas
antes, mas, afinal, eu pre- estava fazendo e o que nisso meu pai e meu
cisava andar rápido para podia acontecer. irmão também entraram
me esquentar. na cozinha, ambos de
Na manhã seguinte, bermuda. Então, era eu a
Quando cheguei a vin- porém, acordei com um errada.
te metros de casa, perce- ar frio me envolvendo,
bi que estava correndo. e a garganta dolorida. – Acho que estou com
Constrangida, diminuí Gemi e olhei ao redor. A um começo de gripe, não
o ritmo, mas o manti- janela estava não somente estou me sentindo bem –
ve rápido o suficiente aberta, mas escancarada. admiti.
até passar pela porta e O medo que eu sentira
trancá-la atrás de mim. na noite anterior tinha Preocupada, minha
Minha respiração estava desaparecido agora que mãe correu para prepa-
ofegante eu começava o sol se insinuava por rar um chá.
a suar, num marcante entre as curtinas, porém – Com isso você vai
contraste com o frio de o frio parecia ainda mais ficar bem logo, logo – ga-
apenas segundos antes. intenso. Assim, levantei- rantiu, colocando a xíca-
Depois, inexplicavelmen- me ainda meio sonolento ra fumegante na minha
te, voltaram os arrepios. e enconstei a janela, antes frente. – Tome de um
de colocar um casaco. A gole só.
– Devo estar com febre temperatura tinha caído
– disse a mim mesma, em vários graus à noite, ou Com o nariz tran-
voz alta. Assim, dirigi- então era eu que ainda cado do resfriado, não
me ao quarto e me enfiei estava com febre. Tomei senti cheiro nenhum,
embaixo das cobertas, uma aspirina para es- e fiz como minha mãe
deixando só o rosto de pantar a gripe e a dor ordenara. Somente para
fora – o rosto e o pesco- de garganta e desci para cuspir tudo no momento
ço. tomar café. seguinte. Era chá de alho.
Depois de alguns mi- – Você está doente? –
nutos deitada, levantei-me perguntou minha mãe,
para checar se a jane- (continua no próximo
assim que me viu – Essa
la estava bem fechada. mês...)
noite entrei em seu quar-
Senti-me extremamente to e você estava suando,
idiota fazendo isso, mas por isso abri a janela,
estava tomada de um sem querer te acordar
medo que, naquele mo- se tirasse as cobertas. E
mento, acreditava ser agora você me aparece de
totalmente irracional. casaco de lã!

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Tradução

Canção de Carnaval
Rubén Darío
trad.: Henry Alfred Bugalho

Musa, à máscara apronta, Seja lírica e seja bizarra;


Ensaia um ar jovial com a cítara seja grega;
E goza e ri na festa ou gaúcha, com a guitarra
do Carnaval. de Santos Vega.

Ri na dança que gira, Move teu esplêndico torso


mostra a perna rosada, pelas ruas pitorescas,
E soa, como uma lira, e joga e adorna o Corso
Tua gargalhada. com rosas frescas.

Para voar mais ligeira De pérolas rega um tesouro


Ponha duas pétalas de rosa, de Andrade no régio ninho
Como faz tua companheira e na beca de Guido,
A mariposa. pó de ouro.

E que em tua boca risonha, Penas e aflições olvida,


que se une ao alegre coro, canta deleites e amores;
deixe a abelha portenha busca a flor das flores
seu mel de ouro. pela Florida:

Una-te à mascarada, Com a harmonia te encantas


enquanto imita um clown das rimas de cristal,
com a face pintada e desfolha de suas plantas
como Frank Brown; um madrigal.

Enquanto Alerquim revela Pirueteia, baila, inspira


que ao prisma seus tons rouba versos loucos e joviais;
e aparece Pulcinella celebre a alegre lira
com sua corcova, os carnavais.

diga à Colombina a bela Seus gritos e suas canções,


o que dela penso, seus comparsas e seus trajes,
e a uma garrafa desarrolha suas pérolas, tons e rendas
para Pierrô. E pompons.

Que ele te conte como rima E leve a rápida brisa,


seus amores com a Lua sonora, argentina, fresca,
e te faça um poema em uma a vitória de tua risada
pantomima. funambulesca!

Dá ao ar a serenata,
toca o áureo bandolim,
Leva um látego de prata
para o spleen.

http://www.flickr.com/photos/skazar/3339642530/sizes/o/
50 SAMIZDAT março de 2010
Canción de Carnaval
Rubén Darío

Musa, la máscara apresta,


ensaya un aire jovial Sé lírica y sé bizarra;
y goza y ríe en la fiesta con la cítara sé griega;
del Carnaval. o gaucha, con la guitarra
de Santos Vega.
Ríe en la danza que gira,
muestra la pierna rosada, Mueve tu espléndido torso
y suene, como una lira, por las calles pintorescas,
tu carcajada. y juega y adorna el Corso
con rosas frescas.
Para volar más ligera
ponte dos hojas de rosa, De perlas riega un tesoro
como hace tu compañera de Andrade en el regio nido,
la mariposa. y en la hopalanda de Guido,
polvo de oro.
Y que en tu boca risueña,
que se une al alegre coro, Penas y duelos olvida,
deje la abeja porteña canta deleites y amores;
su miel de oro. busca la flor de las flores
por Florida:
Únete a la mascarada,
y mientras muequea un clown Con la armonía te encantas
con la faz pintarrajeada de las rimas de cristal,
como Frank Brown; y deshojas a sus plantas,
un madrigal.
mientras Arlequín revela
que al prisma sus tintes roba Piruetea, baila, inspira
y aparece Pulchinela versos locos y joviales;
con su joroba, celebre la alegre lira
los carnavales.
di a Colombina la bella
lo que de ella pienso yo, Sus gritos y sus canciones,
y descorcha una botella sus comparsas y sus trajes,
para Pierrot. sus perlas, tintes y encajes
y pompones.
Que él te cuente cómo rima
sus amores con la Luna Y lleve la rauda brisa,
y te haga un poema en una sonora, argentina, fresca,
pantomima. ¡la victoria de tu risa
funambulesca!
Da al aire la serenata,
toca el auro bandolín, fonte: http://www.encarnaval.com/
lleva un látigo de plata Literatura/canciondecarnavalDario.
asp
para el spleen.

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Rubén Darío
(Metapa, atualmente Ciudad
Darío, 1867 - León, Nicarágua,
1916).
Poeta nicaraguano. Na sua
juventude, Rubén Darío viaja por
São Salvador, Chile e Argentina,
onde lê e assimila os simbolistas
franceses. Desenvolve uma intensa
actividade jornalística e, em 1892,
integrando uma representação
diplomática, desloca-se a Espa-
nha, onde entabula amizade com
os escritores modernistas e da
Geração de 98. Em 1905 é nomea-
do embaixador, residindo a partir
de então em Paris e em Madrid.
Quando eclode a Primeira Guerra
Mundial volta à Nicarágua, onde
morre.
A primeira obra importante de
Rubén Darío é Azul, obra em
prosa e em verso. Prosas profanas,
colectânea de poemas, assinala
o triunfo da nova sensibilidade
poética, estando nele presentes os
principais elementos do modernis-
mo: o exotismo, os ritmos france-
ses, a sensualidade, a ornamenta-
ção e o colorido. Cantos de vida y
esperanza contém poemas mais ín-
timos e de uma maior simplicidade
expressiva. É evidente e decisiva a
influência directa de Rubén Darío
no desenvolvimento da poesia de
língua castelhana do século xx.

fonte: http://www.vidaslusofonas.
pt/ruben_dario.htm

http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
52 SAMIZDAT março de 2010
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O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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Recomendação de Leitura

54 SAMIZDAT março de 2010


Gerana Damulakis caminhando e carregan- ________________________
do a bagagem necessá- ________________________
Acabei a leitura do livro ria. Seus pés estão bem ____________________
de poemas de Georgio plantados no chão e, do Para mais detalhes, visite
Rios, Depois da chuva sentido do dia a dia que o blogue do autor: Modus
(futurArte, 2009), o qual, se vai vivendo, ele retira Operandi
seguramente, coloca o a poesia do cotidiano.
poeta com um lugar Pode um vento passar e o FICHA TÉCNICA
garantido nas letras baia- poeta sentir esse vento e
nas. As “orelhas” estão as- fazê-lo poema, mas na to- Autor: Georgio Rios
sinadas por Gustavo Rios, talidade é da reflexão do Título: Depois da chuva
autor do ótimo O amor que ocorreu, do que está Editora: Multifoco
é uma coisa feia (7Letras, ocorrendo, que Georgio ISBN: 9788579610837
2007), coletânea de con- cria seus versos. Ano: 2009
tos que comentei aqui no Um bom exemplo: Edição: 1
Leitora. Gustavo acertada- Número de páginas: 73
mente realça: “O cara que Acabamento: brochura
escreveu esse livro está PONTE Formato: 14x21 cm
--------Georgio Rios
em formação. Inacabado
e sugestivo. Como toda Sobre a velha ponte
boa literatura deve ser. fiz passar meus medos.
Lírico, sutil, com domínio
Em fila,
da tal técnica, que serve
os tangi para o outro lado.
para se fazer entender:
poeta, portanto. Para dar Um breve aceno,
o recado pro mundo que uma despedida.
dorme...”
Pela outra
rua,
É fato que há uma es- meus novos medos
trada pela frente para chegavam...
Georgio Rios percorrer,
mas, sem dúvida, ele a E eu não abri a porta...
percorrerá porque já está

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Poesia

Só um Balão
Ju Blasina

56 SAMIZDAT março de 2010


Balões parecem-me Aos teus cuidados
Tão felizes Ao teu olhar
Coloridos, lustrosos Cuja vida depende
Pairando alto Do teu ar. Infla-me!
Flutuando leve E te darei em troca
Subindo ao céu Minhas cores e
Tão belos ao longe Meu feliz estar
Tão cheios Para nele te alegrar
De cor, de ar
De vida, talvez Segure-me firme

http://www.flickr.com/photos/sotto1/2036298210/sizes/o/
E só quando estouram Mas não muito
Revelam o interior Amarre-me forte
Tão vazio e oco Mas nem tanto
Seu corpo, já Não quero
Frágil, disforme Subir ao céu
E morto Nem quero
Romper-me ao chão
Às vezes sou só Quero ter só
Um balão O brilho das cores
Cuja corda dou Do teu balão
Em tuas mãos
Cuja beleza deixo

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Poesia

Concisos
Wellington Souza

BACCO

Não há como aceitar


cordeiros
– não sendo um deus assim como eu.

DESFIBRILADOR

Nas vidas em que a vida não desperta os sentidos


só resta a poesia
tentativa última de elo com o mundo exterior.

RETALHO

E o que somos nós,


senão um mosaico
de lembranças #
num mural de fé?
Se
o
mar
cabe
em
uma
concha,
por que o amar transborda do coração?

58 SAMIZDAT março de 2010


Pecados do Fruto
Wellington Souza
Alvo e limpo como um livro só de poemas
ainda não sentidos.
Seco,
um rosto de lágrimas não vertidas
e inteiro:
um coração na virgem
mata.

http://www.flickr.com/photos/poorgourmet/145854381/sizes/o/
É um fruto
ainda no seio.

À espera que lhe libertem de sua árvore


genealógica.

... de uma ave


que lhe dilacere,
engula e voe
para semeá-lo em outras áreas
com suas fezes vivas,
fontes de ressurreição.

... de uma ventania frenética


na têmpora
que arranque tudo,
inclusive sua prisão,
e lhe dê
descascado
ao mundo do plástico e do neon.

ao invés da inanição
de amadurecer e
apodrecer ainda no pé.

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SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão
Maria de Fátima Brisola Romani
Nasceu em SP em 1957 mas mudou-se para Salvador em 1984 onde reside
até hoje. É arquiteta e artista plástica, além de tradutora (inglês e italiano) e re-
visora de textos. Escreve poesias esporadicamente desde adolescente e há cerca
de um ano começou a escrever contos. Pretende concorrer ao mestrado em
Artes Cênicas na Escola de Teatro da Ufba.

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Colaboração

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Maria de Fátima Santos
Nasceu em Lagos, Algarve, Portugla em 1948. Vi-
veu a adolescência em Angola e reside em Lagos.
Licenciada em Física, é aposentada de professora do
Ensino Secundário. Já participou na SAMIZDAT e por
afazeres de vida afastou-se. Tem poemas em diversas
antologias, e publicou em Janeiro de 2009 um livri-
nho com pequenas histórias, aquelas que lhe voam
no teclado: Papoilas de Janeiro é o título, com ilus-
trações de TCA do blogue http://abstractoconcreto.
blogspot.com/ Muito material está publicado nos
blogues e www.intervalos.blogspot.com e http://tris-
teabsurda.blogspot.com/ Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com

Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

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Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

Dênis Moura
Paulistano de pia, cearence de mar e poeta de
amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberes-
paço, mais com bits de imaginação que com telescó-
pios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e
a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na
outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social,
com a democracia participativa eletrônica, onde o
povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias
sua primeira obra, um Romance de Ficção Científi-
ca, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É
feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize,
o clique, o blogue e o leia!

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Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-
dor, licenciado recente em História da Arte, experi-
menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

José Guilherme Vereza


Publicitário, redator, executivo, professor, aluno, marido,
pai, filho, cunhado, tio, sobrinho, genro, sogro, amigo, bota-
foguense, tijucano, lebloniano, neopaulistano, escritor, leitor,
eleitor, metido a cozinheiro, guloso, nem gordo nem magro,
motorista categoria B, pedestre, caminhante, viajante, seden-
tário, telespectador, pilhado, zen, carnívoro, beatlemaníaco,
cinemeiro, desafinado, sinfônico, acústico, capricorniano,
calorento, alérgico a ditaduras, sonhador, delirante, insone,
objetivo, subjetivo, pragmático, enérgico, banana, introspec-
tivo, extrovertido, goleiro, blogueiro, colunista do Bolsa de
Mulher, colaborador do Mundo Mundano, tem livro publi-
cado, conto premiado, teve texto encenado no teatro, fez ro-
teiros para televisão, criou uma infinidade de comerciais e
aprendeu que aproveitar a vida intensamente é ser de tudo
um muito. Samizdat é seu mais recente energético..

Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

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Marcia Szajnbok

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Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de es-
crever de vez em quando. Paulistana convicta, vive
desde sempre em São Paulo.

Wellington Souza
Paulistano, mas morou também em Ribeirão
Preto, onde cursou economia na Universidade de São
Paulo. Hoje, reside novamente no bairro em que nas-
ceu. Participou das antologias do concurso Nacional
de Contos da Cidade de Porto Seguro e do Poetas
de Gaveta/USP. Escreve poemas, contos, crônicas e
ensaios literáios em um blog (Hiper-link), na revista
digital SAMIZDAT e no portal Sociedade Literária.
“Escrever é um modo de ser outro ser”.

Cirilo S. Lemos
Nasceu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense,
em 1982, nove anos antes do antológico Ten, do
Pearl Jam. Foi ajudante de marceneiro, de pedreiro,
de sorveteiro, de marmorista e mais um monte de
coisas. Fritou hambúrgueres, vendeu flores, criou
peixes briguentos. Chorou pela avó, chorou por seus
cachorros. Então cansou dessa vida e foi estudar
História. Desde então se dedica a escrever, trabalhar
como voluntário numa escola municipal e fazer feliz
a moça ingênua que aceitou ser mãe dos seus filhos.

Polyana de Almeida
Paulistana, 28 anos. Escritora, publicitária, mestre
em Literatura Russa, sonhadora, amante do passado,
apologista da nostalgia. Entre os afazeres da escrita
e do cotidiano, contempla o mundo e questiona: “há
vida sem arte?” No meio do caminho, trôpega, em
desalinho, ela vai se perdendo, caindo, decaindo, a
responder: “sem arte, para mim, vida não há.” E le-
vanta: palavras, palavras, palavras. Corpo. E o sangue
64 SAMIZDAT fevereiro
março dede a pulsar.
2010
2010
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
www.revistasamizdat.com 65

www.oficinaeditora.com
Também nesta edição, textos de

Caio Rudá Léo Borges

Cirilo S. Lemos Marcia Szajnbok

Giselle Natsu Sato Maria de Fátima Santos

Henry Alfred Bugalho Mariana Valle


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Joaquim Bispo Maristela Deves

José Guilherme Vereza Polyana de Almeida

Jú Blasina Wellington Souza

66 SAMIZDAT março de 2010

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