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Samizdat 4

maio de 2008

Capa e Diagramação:

Henry Alfred Bugalho

Autores

Carlos Alberto Ramos

Denis da Cruz

Giselle Natsu Sato


Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-
Henry Alfred Bugalho
Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas
José Espírito Santo 2.5 Brasil Creative Commons.

Marcia Szajnbok

Pedro Faria
Todas as imagens publicadas são de domínio
Volmar Camargo Junior
público ou royalty free.

Autores Convidados

Aline Gallina As idéias expressas e a revisão das obras são


de inteira responsabilidades de seus autores.
Ana Carolina Brazil

Marcello Henrique

Priscila Lopes

Textos de:

Lima Barreto

Jacob e Wilhelm Grimm (trad. Henry Alfred


Bugalho)

Imagem da capa:

Chapeuzinho Vermelho

www.samizdat-pt.blogspot.com
Índice

Por que Samizdat? 1


Henry Alfred Bugalho

A Páscoa Retardada 3
Carlos Alberto Barros

Panorama Literário
Autopublicação – Vale a pena? 7
Denis da Cruz

Recomendações de Leitura
DOIS ROMANTISMOS 10
O tal negócio de “Prestações” 14
Lima Barreto

Arte 17
Volmar Camargo Junior

Laboratório poético I 19
Volmar Camargo Junior

Revolucionários e Reacionários em Literatura 20


Henry Alfred Bugalho

O Abraço 23
Henry Alfred Bugalho

Dedepopoimento de uma vivítima dodo memedo 26


Lilaim Kikuchi

Complexidades 26
Lehgau-Z Qarvalho

A última noite do ano da coisa que não aconteceu 27


Lehgau-Z Qarvalho
O Jogo 28
José Espírito Santo

Três Pontos... 30
José Espírito Santo

MICROCONTOS 31
TRADUÇÃO
Chapeuzinho Vermelho 34
Rapunzel 38
CRÔNICA
Uma Crônica em Três Minutos 42
Volmar Camargo Junior

Na Noite Carioca 43
Pedro Faria

Delta T 46
Marcia Szajnbok

Caso Isabella. Até onde somos culpados? 47


Giselle Natsu Sato

Sobre os Autores da SAMIZDAT 48


www.samizdat-pt.blogspot.com

Por que Samizdat?


Henry Alfred Bugalho

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,


distribuo e posso ser preso por causa
disto”
Vladimir Bukovsky

Inclusão e Exclusão parte da máquina administrativa - que


estipulava como deveria ser a cultura, a
Nas relações humanas, sempre há informação, a voz do povo -, encontraram
uma dinâmica de inclusão e exclusão. na autopublicação clandestina um meio
de expressão.
O grupo dominante, pela própria
natureza restritiva do poder, costuma Datilografando, mimeografando,
excluir ou ignorar tudo aquilo que não ou simplesmente manuscrevendo, tais
pertença a seu projeto, ou que esteja autores russos disseminavam suas
contra seus princípios. idéias. E ao leitor era incumbida a tarefa
de continuar esta cadeia, reproduzindo
tais obras e também as passando
Em regimes autoritários, esta
adiante. Este processo foi designado
exclusão é muito evidente, sob forma de
"samizdat", que nada mais significa do
perseguição, censura, exílio. Qualquer
que "autopublicado", em oposição às
um que se interponha no caminho dos
publicações oficiais do regime soviético.
dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de


se compreender: o diferente, o dissidente
é perigoso, pois apresenta alternativas, E por que Samizdat?
às vezes, muito melhores do que o
estabelecido. Por isto, é necessário A indústria cultural - e o mercado
suprirmir, esconder, banir. literário faz parte dela - também realiza
um processo de exclusão, baseado no
A União Soviética não foi muito que se julga não ter valor mercadológico.
diferente de demais regimes autocráticos. Inexplicavelmente, estabeleceu-se que
Origina-se como uma forma de governo contos, poemas, autores desconhecidos
humanitária, igualitária, mas logo se não podem ser comercializados, que não
converte em uma ditadura como qualquer vale a pena investir neles, pois os gastos
outra. É a microfísica do poder. seriam maiores do que o lucro.

Em reação, aqueles que se A indústria deseja o produto pronto e


acreditavam como livres-pensadores, que com consumidores. Não basta qualidade,
não queriam, ou não conseguiram, fazer não basta competência; se houver quem

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Samizdat 4 - maio 2008

compre, mesmo o lixo possui prioridades melhor, a rede de contatos que, se não é
na hora de ser absorvido pelo mercado. tão influente quanto a da grande mídia,
faz do leitor um colaborador, um co-autor
E a autopublicação, como em qualquer da obra que lê. Não há sucesso, não há
regime excludente, torna-se a via para grandes tiragens que substitua o prazer
produtores culturais atingirem o público. de ouvir o respaldo de leitores sinceros,
que não estão atrás de grandes autores
populares, que não perseguem ansiosos
Este é um processo solitário e
os 10 mais vendidos.
gradativo. O autor precisa conquistar
leitor a leitor. Não há grandes aparatos
midiáticos - como TV, revistas, jornais -
onde ele possa divulgar seu trabalho. O
único aspecto que conta é o prazer que a Os autores que compõem este projeto
obra causa no leitor. não fazem parte de nenhum movimento
literário organizado, não são modernistas,
Enquanto que este é um trabalho pós-modernistas, vanguardistas ou
difícil, por outro lado, concede ao criador qualquer outra definição que vise rotular
uma liberdade e uma autonomia total: ele e definir a orientação dum grupo. São
é dono de sua palavra, é o responsável apenas escritores interessados em trocar
pelo que diz, o culpado por seus erros, é experiências e sofisticarem suas escritas.
quem recebe os louros por seus acertos. A qualidade deles não é uma orientação
de estilo, mas sim a heterogeneidade.
E, com a internet, os autores possuem
acesso direto e imediato a seus leitores. A
repercussão do que escreve (quando há)
surge em questão de minutos. Enfim, "Samizdat" porque a internet
é um meio de autopublicação, mas
Ao serem obrigados a burlarem a "Samizdat" porque também é um modo
indústria cultural, os autores conquistaram de contornar um processo de exclusão
algo que jamais conseguiriam de outro e de atingir o objetivo fundamental da
modo, o contato quase pessoal com os escrita: ser lido por alguém.
leitores, o diálogo capaz de tornar a obra

SAMIZDAT é uma revista eletrônica mensal, escrita, editada e


publicada pelos integrantes da Oficina de Escritores e Teoria Literária.
Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e
de jovens escritores amadores, entusiastas e profissionais. Contos,
crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

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A Páscoa Retardada
Carlos Alberto Ramo
A páscoa estava chegando. Para alguns,
época de felicidade, festa, comer chocolate. Para
outros, exatamente o contrário. E neste último
caso, encontrava-se Dinho – garoto pobre, de
bom coração... na medida do possível, alegre.

Apesar de já ter vivido nove páscoas, o


menino nunca fora presenteado com um ovo de
chocolate. Isso o deixava triste, porque desde
pequeno via na televisão grandes ovos nas mãos
de crianças sorrindo, coelhinhos pulando, aquela
festança. Para ele, não havia esses privilégios. E
agora, já com mais idade, entendia que quem não
tinha dinheiro para comprar toda aquela alegria
era seu pai, pois o trabalho de porteiro não era
dos melhores. Contudo, o homem não se deixava
abater e contornava a situação com a típica frase:
“Dinho, o preço de um ovo é a desgraça de um povo... E chocolate faz mal!” – sempre
que ouvia isso, o garoto pensava: “Mas, parece tão gostoso”.

Aconteceu que, nessa próxima páscoa que se aproximava, a típica frase mudou:

- Dinho, o pai vai ver se consegue te dar um ovo desta vez, hein! Mas, não se
empolga, não. Se der, vai ser pequenininho...

- Êba! Obrigado, pai! – falou o menino, enquanto dava um pulinho como quem
marca um golaço.

Os dias se seguiram com Dinho ansioso, numa expectativa enorme. Para dormir
era difícil, pois ficava imaginando como seria seu ovo. Assim, quando finalmente
chegou a páscoa, acordou mais tarde que de costume – era o resultado das noites
mal dormidas. Ao lado de sua cama havia um bilhete: “Filho, o pai teve que ir trabalhar
mais cedo hoje. Vê se dá uma arrumada na casa. E mais tarde a gente conversa
sobre seu ovo”. Esses recados eram comuns. Inclusive, funcionavam como incentivo
para o menino se desenvolver na leitura, coisa que seu pai fazia questão: “Somos
pobres, mas temos que ser inteligentes” – se preocupava com o filho, que era sua
única família.

Quando o garoto se preparou para levantar, viu algo que fez seus olhos brilharem.
Estava ali no chão, logo à sua frente, o tão esperado ovo de páscoa. Via aquele
embrulho vermelho e sorria. Sorria como quem tivesse encontrado ouro. Seu sonho
se realizara.

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Samizdat 4 - maio 2008

Não se passou muito tempo, já estava com o embrulho aberto sobre seu colo e
o ovo partido em duas metades. De dentro delas, escapou um papel dobrado – era
outro bilhete. “O que meu pai pôs aqui?” – perguntou para si mesmo. Em seguida,
começou a ler:

Atenção: NÃO COMA ESTE OVO! Repito: NÃO COMA ESTE OVO! Ele está
envenenado! Contém toda a ambição e maldade dos homens. Se comê-lo, deixará
de ser uma criança inocente e fará parte de um plano maligno onde poucos ganham
e muitos perdem. Não se deixe dominar! Mais uma vez, repito: NÃO COMA ESTE
OVO!

As palavras soaram estranhas, estava confuso. Sem saber o significado daquilo,


começou a lhe invadir um certo medo. Pensou: “Acho que vou esperar o pai para
perguntar”. E, enquanto refletia, tirava mecanicamente o papel alumínio do chocolate
– era o desejo que sobrepujava o temor.

Levou uma das metades até o nariz e cheirou uma vez; depois outra, mais
profundamente. “O cheiro é gostoso... Não tem veneno, não... É brincadeira do
pai...” – disse, tentando se convencer. Em seguida, quebrou um pedaço e levou à
boca. Saboreou o chocolate como quem nunca tivesse comido, juntando o prazer do
paladar com o da posse. “Um ovo inteirinho para mim. E não está envenenado coisa
nenhuma!” – pensava aos suspiros e mordidas, até que não sobrou mais nada.

Quando o pai de Dinho voltou do trabalho, notou que o rosto do filho estava
diferente. Não sabia exatamente o que, mas algo mudara.

- Aconteceu alguma coisa, Dinho? Está tudo bem? – perguntou.

- Pai, acho que não sou mais uma criancinha para ser chamado de Dinho. Por que
não me chama de Armando? – disse o menino, enfático.

- Mas, meu filho, eu sempre te chamei assim... Que história é esta?!

- Ah, pai... Eu não me sinto mais uma criança. E meu nome é Armando, qual o
problema de me chamar assim?!

- Tudo bem, então, senhor Armando. E, sobre o ovo, queria me desculpar...

Achando que se tratava do fato do ovo não ser tão grande, o garoto se adiantou:

- Não se preocupe, pai...

- Mas, na próxima páscoa, vou te arranjar um ovo bem caprichado – completou o


homem.

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Tempo se passou e Dinho começou a ser Armando experimentando as várias


amarguras da vida. Só quando entrou no mundo do trabalho, aos treze anos, é que
foi voltar a comer um ovo de chocolate – dessa vez, comprando com seu próprio
dinheiro. Seu pai continuou tentando e não conseguindo juntar recursos, nem para
ovos, nem para outras coisas. O que ganhava era suficiente apenas para se manter
com o filho e pagar prestações de antigos empréstimos.

A remuneração do garoto era para ajudar o pai. O pouco que sobrava, guardava
num cofre secreto que tinha embaixo da cama. Pensava em montar um negócio – era
jovem, mas possuía uma mente empreendedora. Com o tempo, conseguiu juntar
algum dinheiro, logicamente, a custo de se afastar dos amigos, não ter namorada,
deixar os estudos e não conseguir mais conversar com o pai direito (brigaram pelo
abando da escola). A vida de Armando era só trabalho, mas, ainda assim, foi um longo
caminho até conseguir o que queria.

Quando, finalmente, juntou uma boa quantia, abriu uma pequena casa de comércio.
O trabalho era duro e, para auxiliá-lo, colocou o pai como seu empregado. Pagava o
mesmo que o homem ganhava como porteiro. “Para ser justo, pai”, dizia. Contudo,
não demorou muito e Armando, já um adulto obstinado, despediu o auxiliar: “Pai, o
senhor sempre está muito doente... Melhor achar outro lugar para trabalhar”.

Anos passaram e os negócios de Armando se expandiram. Já possuía outras


lojas e vários funcionários – sempre pagando um salário justo, como era o do antigo
auxiliar. Mudou-se para o centro da cidade e, na própria casa, montou um escritório.
Há muito não via o pai e as únicas pessoas com quem convivia eram empregados,
clientes ou comerciantes. Sua preocupação era sempre o trabalho e a melhoria da
empresa.

Certa noite, recebeu um telefonema. “Ele está muito mal... não consegue se
cuidar sozinho... precisa de alguém por perto...” – era um vizinho de seu pai. Dias
depois, Armando foi visitar sua antiga residência. Lá chegando, logo cortou os
sentimentalismos: “Pai, sei que o senhor está mal, mas, preciso trabalhar. Vamos
resolver isso logo”. Assim, tratou de encaminhar o velho ao asilo público mais próximo
e, em pouco tempo, já estava de volta aos negócios.

Outros anos se passaram e Armando já era o principal empresário da cidade.


Mensalmente, recebia de um funcionário do asilo (um acordo pago) relatórios
informando a situação do pai. Nos últimos deles, enfatizava-se a vontade do velho
em ver o filho. Diante da insistência, resolveu visitá-lo.

Já no local, o empresário admirou-se com o ser que viu – aparentava cansaço,


porém, grande lucidez. Sentando-se ao seu lado, começou uma pálida conversa:

- Olá, pai! O senhor não parece estar muito mal.

- É, meu filho... Minha mente é de ferro, mas meu corpo...

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Samizdat 4 - maio 2008

- Que é isso?! Nem está tão velho...

Um silêncio constrangedor seguiu-se à fala. Depois de alguns segundos, foi


quebrado pelo pai:

- A páscoa está chegando...

- É verdade – respondeu Armando, indiferente.

- Lembra-se que você sempre quis um ovo?

- Lembro... “O preço de um ovo é a desgraça de um povo” – deixou escapar um


sorriso tímido – era o que você falava.

- É verdade... Como eu era mesquinho! – riu de si mesmo – E, até hoje, nunca


consegui te dar um...

- Como não? E aquele com o bilhete misterioso? Que piada...

- Bilhete misterioso? Piada? Do que você está falando?

- Do único ovo que você meu deu! No chão do meu quarto, com embrulho vermelho,
bilhete dentro...

- Você deve ter se enganado, filho. Eu nunca te dei ovo nenhum.

- Mas... Bom, deixa... Nem me lembro disso direito... Deve ter sido alguma bobeira
de criança, imaginação...

- É... Talvez mais uma das brincadeiras do antigo Dinho...

- Você ainda lembra desse apelido, pai?! – olhou-o entortando o rosto – Não se
esqueça de levar ele para o túmulo – falou consternado.

- Calma... Faz muitos anos que o Dinho já foi enterrado.

- Não precisa repetir esse nome de novo. Não gosto! – olhou o relógio – E eu
tenho que voltar para resolver umas pendências do escritório. Tem algo importante
para falar ainda?

- Tudo bem, então, senhor Armando. Acho que o que tinha para ser dito já foi. Bom
trabalho, meu filho. E boa páscoa. Só tome cuidado, que chocolate faz mal...

- Não se preocupe, pai. E boa páscoa também.

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Panorama Literário

Autopublicação – Vale a pena?

Denis da Cruz

As novas tecnologias permitem como blog, site e revista eletrônica. Neste


ao escritor um imenso horizonte de aspecto, posso afirmar categoricamente:
possibilidades. vale à pena.

Há pouco tempo, a única via para Para se ter “sucesso” com esses
ser lido era ter um caderninho escrito à meios, aconselho duas coisas:
mão e emprestá-lo para amigos (os mais
íntimos, claro). A grande maioria dos 1) Divulgação – Não adianta o autor
textos produzidos iam mesmo era para a se autopublicar num site, ter um blog,
gaveta. e não espalhar aos quatro ventos que
o tem. Parentes, amigos, contatos de
Hoje, até esses escritores de gaveta msn, fóruns, orkut, etc, etc. Onde tiver
podem, no mínimo, publicarem seus oportunidade, diga: “acesse meu blog”.
textos na internet. Aliás, esta é a grande Se o autor é cara de pau o suficiente,
aliada do escritor na autopublicação. mande um spam uma vez ou outra.

Sites, blogs, páginas de sítios 2) Conteúdo de interesse – Nem todo


especializados, revistas eletrônicas e, mundo vai querer ler aquele maravilhoso
até mesmo, editoras por demanda com poema “o menino e a paçoquinha”.
estanders virtuais. Coloque no sítio conteúdo não ficcional,
daqueles que as pessoas pesquisam no
Particularmente, me autopublico em google. Se possível, faça um blog ou site,
alguns dos meios hoje disponíveis, tais parente só com conteúdo não ficcional,
pois ele servirá de divulgação para os

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Samizdat 4 - maio 2008

demais textos. empresa enviará seus respectivos direitos


de autor, depositados diretamente em sua
Outra possibilidade, são as editoras conta corrente.
por demanda. Aqui se deve tomar muito
cuidado para não cair nas mãos de gente Em conversa com Henry Bugalho,
que se aproveita da vontade do escritor em autor do livro “Nova York Para Mãos de
satisfazer o ego e ter um livro publicado. Vaca”, e autopublicado na Lulu, ele disse:
Existe muita pilantragem no meio, “Eu fiz todo o processo de diagramação e
portanto, tenha cuidado com aqueles que capa, e recebi auxílio de algumas pessoas
prometem mundos e fundos e cobram um para revisar o conteúdo. Só no primeiro
absurdo para produzir o livro. mês, o guia “Nova York para Mãos-de-
Vaca” vendeu mais de 100 exemplares,
Prefira, num primeiro momento, uma o que, na minha opinião, foi uma marca
editora que dê possibilidade de optar extraordinária, levando em consideração
por uma quantidade menor de tiragem que não há distribuição em livrarias e
e que tenha apenas um estander virtual que nem todo leitor confia em realizar
(ou seja, o sonho de noite de autógrafo compras pela internet através de cartão
deverá ser adiado). de crédito. Além disto, se pensarmos que
as vendas são efetuadas em dólar e que
a margem de lucro sou eu quem estipula,
Em brevíssima síntese, algumas
se o mesmo guia houvesse sido publicado
dessas editoras possibilitam uma tiragem
no Brasil por uma editora comercial, eu
de 20 livros, não fazem distribuição
teria de que vender 4 vezes mais guias
em livrarias e seu estoque é virtual (só
para obter o mesmo lucro que estou
imprimem um livro quando ele é adquirido
obtendo. (…)a lulu.com ainda é a melhor
no site). O livro estará apenas num site,
alternativa, pois envia livros para mais de
para compra on line e a divulgação ficará
60 países, atendendo também este leitor
por conta do autor.
internacional do meu blog. Numa época
globalizada, este tipo de serviço é uma
Ainda existe a Lulu, onde o escritor mão na roda para o escritor.”
cria uma conta e produz seu livro
inteiramente grátis, disponibilizando-o
Vale anotar que já faz um considerável
para compra, via cartão de crédito
tempo que o Henry possui o Blog www.
internacional. Fizemos isto na Oficina de
maosdevaca.com e os resultados de sua
escritores que originou a Samizdat e o
venda refletem os dois conselhos que
resultado foi surpreendente. A qualidade
dei: divulgação e assunto de interesse.
da impressão é muito boa, sendo que
Certamente, estas manobras servirão
a dificuldade é achar compradores com
de trampolim para um eventual e futuro
cartão internacional.
romance publicado, já que o autor registra
de alguma forma seu nome, saindo da
Na Lulu, o autor cria todo o livro. Faz pecha de “escritor desconhecido”.
um passo a passo, definindo o formato do
livro, carregando o miolo a partir de um
Isto tudo compensa? No geral,
documento do Word ou em pdf, fixando a
financeiramente e a curto prazo, não. O
capa (ou optando por cores disponíveis no
autor não vai ganhar um puto de verdade
site) e, finalmente, definindo qual será seu
nesses meios, principalmente se não fizer
percentual de direitos autorais. Conforme
um bom trabalho de divulgação.
os livros são vendidos e impressos, a

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A longo prazo, pode surtir resultado, Fiz uma rápida pesquisa com tais leitores,
pois, para um eventual contato com questionando como eles gostariam que fosse o
guia, se deveria manter a estrutura do blog ou se
editor, o escritor terá algo concreto deveria se assemelhar mais a um guia tradicional
para apresentar: “meu blog tem muitos e todos, sem exceção, me disseram que tinha
acessos.” “vendi vários livros em sistema que ser como o blog, pois este era o grande
de autopublicação”. diferencial.

Outro retorno é a satisfação pessoal. Inicialmente, ficamos na dúvida se deveríamos


tentar a publicação por uma editora comercial ou
Ter um site bem visitado ou ter um livro sob demanda. Entramos em contato com algumas
impresso em mãos, com seu título e nome editoras e recebemos um parecer favorável, pelo
na capa, é algo sem preço. Melhor ainda menos indicando interesse, da Panda Books,
se tiver retorno financeiro disto, afinal, que já publica guias de viagens com abordagens
quem escreve quer ser lido e, se possível, alternativas.
ser reconhecido pelo que escreve.
Quando recebemos o contato para fazer a
entrevista para a Globo Internacional, decidimos
No mais, boa sorte a todos, não vejo acelerar o processo de publicação do guia, mas
porque não arriscar. sob demanda, pois assim poderíamos aproveitar
o aumento de tráfego no blog para vendermos
mais. Eu fiz todo o processo de diagramação e
Boa Sorte. capa, e recebi auxílio de algumas pessoas para
revisar o conteúdo.
.........................
Só no primeiro mês, o guia “Nova York
para Mãos-de-Vaca” vendeu mais de 100
Inteiro teor da Conversa com Henry exemplares, o que, na minha opinião (baseada na
Bugalho, autor do Guia “Nova York para experiência prévia com o romance) foi uma marca
Mãos de Vaca”, à venda no link http:// extraordinária, levando em consideração que não
www.maosdevaca.com/2008/02/guia- há distribuição em livrarias e que nem todo leitor
nova-york-para-mos-de.html. confia em realizar compras pela internet através
de cartão de crédito. Além disto, se pensarmos
que as vendas são efetuadas em dólar e que
Publiquei o meu romance policial, “O Covil a margem de lucro sou eu quem estipula, se o
dos Inocentes”, pela lulu.com, e vendi apenas dois mesmo guia houvesse sido publicado no Brasil
exemplares. Eu já pressentia que algo semelhante por uma editora comercial, eu teria de que vender
pudesse ocorrer, por duas razões: 4 vezes mais guias para obter o mesmo lucro que
estou obtendo.
1 - o romance estava na íntegra para ser lido
online; Portanto, até o momento, a opção por
uma editora sob demanda me parece ter sido
2 - ficção não vende, muito menos de autor acertada. Às vezes, refletimos se uma publicação
desconhecido. tradicional não daria mais visibilidade à obra,
porém, como temos muito leitores falantes de
português que não residem no Brasil, a lulu.com
Eu não tinha intenção de escrever um guia ainda é a melhor alternativa, pois envia livros
de viagem para Nova York. Comecei a escrever para mais de 60 países, atendendo também este
o blog sem pretensão, apenas com o ideal de leitor internacional do meu blog. Numa época
compartilhar a experiência minha e da minha globalizada, este tipo de serviço é uma mão na
esposa por aqui, ou seja, era apenas mais um blog roda para o escritor.
dentre os vários outros que eu escrevia. Mas, à
medida em que ele começou a fazer sucesso, e os
leitores começaram a divulgá-lo no boca-a-boca, Links de Referência: Lulu - www.lulu.com
passei a receber vários e-mails de leitores dando
a sugestão de escrever um guia de viagem.

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Samizdat 4 - maio 2008

Recomendações de Leitura

DOIS ROMANTISMOS

Henry Alfred Bugalho

anos atrás, quando, pela primeira vez,


tentei ler uma edição em português. O
romance não é longo, mas o enredo não
me cativou.

Tentei uma segunda vez, na época


em que estudava alemão, numa edição
germânica, e também não consegui
concluir a leitura.

A terceira, e derradeira tentativa,


numa edição de bolso americana, lendo
trecho a trecho durante minhas viagens
no metrô, foi a que me permitiu chegar
ao fim.

“Os Sofrimentos do Jovem Werther” é


um romance epistolar - uma coleção de
cartas enviadas ao amigo Wilhelm -, que
Werther e Lotte, da obra clássica de Goethe
narra três etapas da vida de Werther:

- quando ele conhece e se apaixona


por Lotte, uma jovem encantadora e
Os Sofrimentos do Jovem Werther inteligente;

É possível que este romance de - a chegada do noivo de Lotte, que


Goethe seja um dos primeiros grandes representa uma ameaça ao amor que
fenômenos editorais da História. A Werthe nutre por ela;
comoção que a trama envolvendo o
triângulo amoroso - Werther, Lotte e Albert - o desespero e suicídio de Werther.
- causou foi tamanha, que uma geração
de leitores passou a se vestir com roupas Talvez tenha sido a estrutura epistolar
semelhantes as de Werther. um dos fatores que dificultou tanto minha
leitura. Não é o tipo de composição que
Morrer por amor, suicidando-se, mais me agrada e, como escritor, vejo
tornou-se um ideal. sérios problemas na utilização deste
recurso. Goethe se depara com estes
A minha luta para ler “Os Sofrimentos problemas no curso da narrativa, pois,
do Jovem Werther” é antiga. Começou em algum momento, surge a questão:

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“Como narrar o suicídio do protagonis-


ta, se é ele quem conta, através de cartas,
sua desdita?”

Então, subitamente, duma seção para


a outra, Goethe muda o foco narrativo,
e não é mais Werther quem narra, mas
sim um editor, do qual não sabemos
nome nem nada, que continua narrando,
exteriormente, os últimos acontecimentos
da vida de Werther.

Uma falha brutal, na minha opinião,


nesta obra considerada como um dos
clássicos da Literatura. Mesmo assim,
interiormente, nas dúvidas suscitadas por
Werther, há poderosas reflexões.
Jacob e Wilhelm Grimm

o rei que encontra uma menina pobre e a


desposa.

Estes contos populares, de forte apelo


Contos Populares dos Irmãos educacional, foram passados de geração
Grimm a geração, reunidos pelo esforço laborioso
de Jacob e Wilhelm Grimm, e chegaram
É com grande nostalgia que até nós, de maneira amenizada e, de
alguém, como eu, que cresceu ouvindo certo modo, descaracterizadas.
(e assistindo) muitas das histórias
compiladas pelos Irmãos Grimm, retorna Não podemos afirmar com certeza se
a elas e revisita esta maravilhosa criação as mensagens codificadas nas historietas
coletiva. de “Chapéuzinho Vermelho”, da “Branca
de Neve”, da “Rapunzel” ou de “João e
A versão que chegou até a maioria de Maria” possuem o mesmo impacto, o
nós foi, provavelmente, bastante diferente mesmo sentido, que elas tinham num
das histórias contadas pelos Grimm. Nos mundo pré-industrial, num momento de
contos populares, há bastante violência, construção das identidades nacionais.
bastante brutalidade, visava ser um
reflexo da natureza e, na natureza, a Por outro lado, como em qualquer
violência existe. outra boa história, há aquele elemento
universal que as permite transcender seu
Os temas são recorrentes: a madrasta contexto histórico e que ainda nos afeta
má que quer prejudicar as crianças; a - seja como uma criança, seja como um
bruxa que lança encantamento maligno; adulto.
uma interdição - uma porta fechada, um
fruto proibido - que, ao ser violada, lança os
personagens numa série de desventuras;

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Samizdat 4 - maio 2008

realista, este tipo de preocupações éticas


nem seriam suscitadas, Werther e Lotte
consumariam seu amor, e toda a ruína
disto adviria.

Mas, para o conceito romântico, basta


que apenas Werther morra, pois da morte
ele renasce como história e teoria. Graças
à morte de Werther é que temos a história
da vida dele.

Os Irmãos Grimm seguem outra


vertente. Eles são intelectuais, os contos
infantis e populares são apenas uma
pequena parte do vasto trabalho deles;
a missão dos irmãos era a descoberta -
se não a criação - do Espírito Nacional,
daquele elemento pátrio que permitiria
Wolfram von Goethe distinguir uma cultura da outra. Eles
estão no cerne da revolução que levou
à formação dos Estados Nacionais, e o
trabalho deles é parte deste processo de
Dois Romantismos busca pela identidade cultural, lingüística,
social, religiosa e racial.
Estamos diante de duas expressões
românticas; num dos extremos, há Goethe,
o verdadeiro gênio do Romantismo.
Um artista e intelectual que, ao lado de Goethe é a criação, os Irmãos Grimm
Schiller, estabeleceu as bases e princípios são a coleção. Não é possível entender
do movimento. o Romantismo sem considerar estes dois
aspectos, sem correlacionar a busca pela
Suas obras não são apenas trabalhos essência dum povo com a criação duma
de ficção. Em Werther, temos um rapaz nova mitologia para direcionar este povo
com profunda e aguda capacidade a novos horizontes.
intelectual. Ele questiona seu mundo,
seus atos são deliberados. A paixão lhe
turva os pensamentos, mas isto não
significa que ele contradiga seus ideais.
A paixão é um dos ideais e morrer por ele
vale a pena.

Werther morre porque ele não pode


desonrar sua amada, porque seu rival,
Albert, é um homem bom e não merece
ser enganado. Se Goethe fosse um autor

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Autor em Língua Portuguesa

Lima Barreto, UM crítico DA sociedade carioca

entregar-se ao álcool e a ter profundas


crises de depressão. Tudo isso causado
pelo preconceito racial.

No ano de 1909 fez sua estréia


como escritor com o lançamento da
obra “Recordações do Escrivão Isaías
Caminha” publicada em Portugal.
Nessa época, dedicou-se à leitura dos
grandes nomes da literatura mundial,
dos escritores realistas europeus de seu
tempo, tendo sido dos poucos escritores
brasileiros a tomar conhecimento e a ler
os romancistas russos.

Em 1910, fez parte do júri no julgamento


dos participantes do episódio chamado
“Primavera de sangue”, condenando os
militares no assassinato de um estudante,
sendo por isso preterido, daí para frente,
Biografia nas promoções na Secretaria da Guerra.
Em 1911 escreveu o romance “Triste fim
Afonso Henriques de Lima Barreto de Policarpo Quaresma”, publicado em
nasceu a 13 de maio de 1881 no Rio de folhetins no Jornal do Comércio.
Janeiro. Filho de uma escrava com um
português, cursou as primeiras letras Apesar do aparente sucesso literário,
em Niterói e depois transferiu-se para Lima Barreto não consegue afastar-se
o Colégio Pedro II. Em 1897 ingressou do álcool é internado por duas vezes
no curso de engenharia da Escola entre os anos de 1914 e 1919. A partir
Politécnica. Em 1902 abandonou o curso de 1916 começou a militar a favor da
para assumir a chefia e o sustento da plataforma anarquista. Em 1917 publicou
família, devido ao enlouquecimento do um manifesto socialista, que exaltava
pai, e empregou-se como amanuense na a Revolução Russa. No ano seguinte,
Secretaria da Guerra. doente e muito fraco, foi aposentado do
serviço público e em 1º de novembro de
Apesar do emprego público e das 1922 veio a falecer, vítima de um colapso
várias colaborações no jornais da cardíaco.
época lhe darem uma certa estabilidade
financeira, Lima Barreto começou a

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Samizdat 4 - maio 2008

Lima Barreto é considerado um autor como um grande escritor, é inegável


Pré-modernista por causa da forma com que pelo menos o romance “Triste Fim
que encara os verdadeiros problemas do de Policarpo Quaresma” figure entre as
Brasil. Dessa forma, critica o nacionalismo obras primas da nossa literatura.
ufanista surgido no final do séc. XIX e
início do XX. Apesar de Lima Barreto Fonte: Mundo Cultural
não ter sido reconhecido, em seu tempo,

O tal negócio de “Prestações”, de Lima Barreto


Lima Barreto
O SENHOR JOSÉ DE ANDRADE era
contramestre de uma oficina do Estado,
situada nos subúrbios.

Era ele o único homem da casa, pois,


do seu casamento com dona Conceição,
só lhe nasceram filhas, que eram quatro:
Vivi, Loló, Ceci e Lili.

Era homem morigerado, sem vícios,


exemplar chefe de família, que ele
governava com acerto e honestidade. Só
tinha um fraco: jogar no bicho; mas, isso
mesmo, não era diariamente; fazia-o de
longe em longe.

Um belo dia, ganhou na centena.


Adquiriu, por quinhentos mil-réis, um
terreno, em Inhaúma; comprou algumas
peças de uso doméstico e distribuiu
cem mil-réis, igualmente, entre a mulher
e as quatro filhas. Dona Conceição tinha visto nas mãos do Benjamim, vendedor
ambulante, por prestações, uma saia de casimira muito boa. Quis comprá-la, mas não
tinha de mão a quantia que devia dar de sinal. Entretanto, agora, com aqueles vinte
mil-réis, estava de posse dela.

Nem de propósito! No dia seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando
o sinal e obrigando-se a pagar doze mil-réis, mensalmente.

Vivi também tinha visto nas mãos de Sárak uns borzeguins de cano alto, de
pelica, muito bons; mas não tivera o dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro
adiantamento.

Esperou Sárak e adquiriu dois pares: um preto e outro amarelo.

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Estava no dever de pagar doze mil-réis por mês, que ela esperava obter com o
produto de suas costuras.

Loló, essa gostava de jóias e vivia sonhando com um relogiozinho-pulseira que


o Nicolau lhe quisera vender a prestações de quinze mil-réis. Avisou a sua amiga
Eurídice que, quando ele lhe fosse cobrar, o mandasse falar com ela, Loló.

Assim foi feito; e, no domingo seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado que
logo se desarranjou.

Pagaria as prestações com o dinheiro que os bordados lhe dariam.

Ceci e Lili não eram lá muito inclinadas


para esse negócio de prestações; mas o
exemplo das irmãs animou-as.

Ceci tinha uma linda saia de voile azul-


marinho, que o papai lhe dera no mês
passado, quando fizera dezessete anos;
mas não gostava da blusa que era branca.
Queria uma creme; e, justamente, o Ivã,
um ambulante de prestações, que lhe não
deixava a porta, tinha uma em condições, e
magnífica. Ficou com ela; e a sua contribuição
era modesta: seis mil-réis mensais, quantia
ínfima que o pai lhe daria certamente.

Lili, a mais moça, não tendo ainda


dezesseis anos, parecia resistir à atração, à
fascinação de obter um adorno ou uma peça
de vestuário, por meio de quotas mensais.

Guardou, durante uma semana, os vinte


mil-réis intactos; mas apareceu-lhe no portão,
pela primeira vez, um vendedor ambulante
de jóias, a prestações; e ela, dando-lhe o
dinheiro, que tinha reservado, fez dona de
umas “africanas” com a promessa de pagar
dez mil-réis por mês. Chama-se o ambulante
José Síki.

Ela ajudava a mais velha, a Vivi, nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte
do que ganhava.

O mês correu e não bem para os cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não
pudera trabalhar na “Singer”. A moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia

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Samizdat 4 - maio 2008

da família, pois houve aumento de despesas com medicamentos, dieta, etc. dona
Conceição não pôde fazer economias nas compras, pois tinha que atender ao
acréscimo de despesa com o aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar
da irmã, não foi permitido bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da
mais velha, não foi dado oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e,
finalmente, não tendo Vivi trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a primogênita
lhe dava.

No começo do mês seguinte, um atrás do outro, lá batiam à porta, Benjamim,


Sárak, Nicolau, Ivã, José Síki, a cobrar as prestações de dona Conceição, de Vivi, de
Loló, de Ceci e de Lili.

Desculparam-se do melhor modo e os homens se foram resignadamente.

No mês que se seguiu, as coisas não correram tão bem como elas esperavam.

Fizeram alguma coisa, mas insuficiente


para pagar aos russos das prestações.

Não ficaram estes contentes e procuraram


indagar quem era o dono da casa. José de
Andrade não sabia da história de prestações
e ficou espantado quando eles o procuraram,
para a cobrança.

No começo pensou que era só um;


mas quando viu que eram cinco, e que as
prestações alcançavam a respeitável soma
de cinqüenta e nove mil-réis – o pobre homem
quase ficou louco.

Ainda quis restituir os objetos; mas as


peças de vestuário estavam usadas, o relógio
desarranjado e, até, as “africanas” precisavam de consertos no fecho.

Não houve remédio senão pagar, e, ainda hoje, quando o modesto operário
encontra um homem de prestações, diz com os seus botões:

– Não sei como a polícia deixa essa gente andar solta... Só se lembra de perseguir
o “bicho” que é coisa inocente.

Fonte: Domínio Público

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Arte
Volmar Camargo Junior

Um par de olhos observava por detrás última porção a desintegrar-se pelo fogo,
do vidro uma silhueta feminina deformar- conservando até o fim um sorriso casto
se lentamente. Encontrou-a escondida em e estúpido. Já não era mais um corpo,
um dos cômodos da própria casa. Estava mas uma massa amorfa e enegrecida.
nua. Assistia às pequenas mãos e os pés, Sem pressa, o algoz levou os dedos até
delicados, minúsculos, tocando o aço um dos dispositivos do instrumento de
fervente, e em pouco tempo, queimando. sua arte, interrompendo gradualmente o
Os braços e as pernas, curvando-se em alento do fogo até as chamas azuladas
direções não-naturais sob os efeitos da extinguirem. Riu. Em silêncio, para não
temperatura. O cabelo, antes louro e despertar a atenção da vizinhança.
sedoso, misturando-se indistintamente a Esqueceu-se de que o cheiro poderia
todo o resto. Ele achava curioso: a vítima atrair mais curiosidades que qualquer
era em tudo semelhante a uma mulher gargalhada. Assim mesmo, riu satisfeito
adulta, porém, em tamanho menor. e sem fazer ruído por longos instantes.
Definitivamente, concluiu o carrasco, ela
não era como uma mulher, pois ele sabia Não teria problemas em evitar os
que um tanto abaixo do umbigo, na parte intrometidos, os que sempre investigavam-
onde as pernas se uniam, nas mulheres no sobre o que fazia como se tudo fosse
mais velhas havia pêlos. Na da pequena condenável. Tinha em abundância o que
que o calor consumia, era lisa como o mais necessitava: criatividade e tempo. A
resto. Os olhos aproximaram-se do vidro casa era cercada por um arvoredo sombrio.
– ansiavam pelo desfecho. Admirou-se O que desejasse ocultar aos curiosos
ao notar que o rosto de sua cativa foi a tinha naquele labirinto de troncos, folhas,

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Samizdat 4 - maio 2008

arbustos, sombras, formigas e terra o — Credo, piá! Como não? — diz Cássia
esconderijo perfeito. Especialmente o que ao abrir a portinhola do forno do fogão a
fosse preciso manter em sigilo. Arrastou gás. Dentro há tanto o cheiro quanto uns
para lá sua última obra. restos de plástico derretido. — Acho que
a vó esqueceu alguma coisa no forno de
Despreocupado, percorreu o espaço novo. O que será que era?
entre a casa e o bosque até mergulhar
em sua sombra. A terra não era dura, e — Acho que era um pote — diz
ele era habituado a ocultar coisas sob o menino, olhando curioso, como se
o solo. Assim, com as mãos, cavou. realmente não soubesse de que se trata.
Jogou no buraco o pouco que restou da
loura. Sorriu, contemplando-a. Lembrou- — Bom, seja o que for, Eninho, vai
se que ali mesmo, a poucos metros, brincar lá fora, vai. Eu vou limpar isso
ocultara outras artes suas: a ruiva, que daqui antes que a vó ou a... — faz uma
atropelou; a negra, que usou em seus careta de desdém —... Luciana cheguem.
experimentos com água sanitária; até Ah, melhor!, vai tomar um banho. Tu ta
mesmo o moço que serviu de alvo para a podre de sujo, guri!
prática de tiro com arco. Ninguém jamais
soube o que lhes aconteceu. Tinha as
— Ah, não. Eu tomei banho ontem.
mãos, principalmente as reentrâncias
debaixo das unhas, encardidas pelo
negrume da terra do bosque, tantas — ‘Tão ta, Cascão. Tu que te entenda
vezes havia ali enterrado seus segredos. com a vó, daí. Agora, xispa!
Atravessou, imundo, o caminho de volta.
À distância, viu alguém chegar em casa — Por que tu quer que eu saia? Vai
pelo portão da rua. Abalou-se no mesmo brincar de boneca?
instante. Novamente, teria de responder
perguntas. — Eu não brinco de boneca, pirralho!

*** — Ah, é verdade! Tu tem catorze, né?!


Esqueci que tu “já é mocinha” — ri.
Cássia chega da escola. O irmão está
no gramado, com as mãos, os pés, a — Sai daqui, merda! Vai achar o que
camisa, tudo sujo de terra. fazer! Olha aí, ta sujando todo o chão da
cozinha! — Cássia pega uma vassoura,
— E daí, porquinho?! brandindo-a na direção do caçula. —
Sai!
Antes da resposta, a menina percebe
algo, e apruma o nariz como quem está Enio sai, sem reclamar muito. Até
farejando. à tardinha, o menino atira pedras nas
pombas com o bodoque. Ao cair da noite,
— Que cheiro de queimado! janta e faz suas preces. Já deitado, ganha
um beijo e um “Boa Noite” da avó. De
olhos fechados, quase dormindo, planeja
— Bah, nem senti. — responde
o que fará no dia seguinte com outra das
o menino, escondendo as mãos
bonecas da irmã.
instintivamente.

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Laboratório poético I
Volmar Camargo Junior
MCMXXXIX - MCMXLV rapou,
Plácida, frígida, pérfida ética. furou.
Cúpida cúpula, cópula, crápula.
Tétrica, gótica, mórbida súmula. Agora, não tem mais doce,
Cênica, cética: Era monótona. nem a rapa da panela.

Épico, lúdico, próspero círculo. Nem a panela.


Rápido, trágico, ínfimo átimo.
Trôpego, ácido, bêbado íntimo.
Cênico, cínico: último século.

Vômitos tóxicos,
Vísceras cáusticas.
Velhas raquíticas, velhos caquéticos.

Megalomaníacos.
Ambíguos sofísticos.
Cínicos, céticos. Apocalípticos.

A rapa da panela.
O vovô adora comer
a rapa da panela de doce. Flerte
A vovó fez brigadeiro Roseira branca,
só pra ele comer. na cerca, ama o céu
Não quis o doce. negro sem culpa.
Catou a colher e Chuva de verão
raspou o fundo da panela. Folha caída
Rapou, lambeu, lambeu, é barco no falso mar
rapou, lambeu, da enxurrada
rapou, rapou,
lambeu, Delícias
rapou, Chá de erva-doce,
rapou, bolinho-de-chuva.
rapou, Só falta chover.

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Revolucionários e Reacionários em Literatura


Henry Alfred Bugalho

(imagem: http://www.prague-life.com/media/pics/velvet-revolution.jpg)

Vire e mexe surge algum escritor com o mundo, e como influenciaram seus
a inovadora de idéia de: contemporâneos.

“Tenho de revolucionar a Literatura”. Os grandes mestres, ou grandes obras,


dialogam com suas próprias épocas,
Antes de tudo, tentemos compreender abrindo sentido para seus receptores,
do que se trata esta ânsia por mudanças mas, ao mesmo tempo, transcendendo
e porque a tradição incomoda tanto. seu tempo e atingindo também a um
receptor póstero.
A tradição é uma convenção,
geralmente arbitrária, que determina Machado de Assis percebe bem esta
quais foram os grandes expoentes de relação, quando afirma que é o universal
determinada área de atuação, e em quais que permite uma obra literária ultrapassar
épocas. Ela se constrói ao vislumbrar si mesma e ao próprio autor, dotando-a
o passado, constatando em como de longevidade, dum sentido perene.
aquelas produções se relacionaram com

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A tradição é a moldura da produção ou posicionamento voluntário —, e


cultural, a linha-mestra do que, em tese, se opõem a ela cegamente. Este tipo
representou o ápice dum período. de revolucionário é o mesmo que,
vez ou outra, é pego macaqueando,
O problema da tradição é quando, inconscientemente, a tradição, pois, em
ao invés de referência ou inspiração, seu desconhecimento, não sabe a que se
ela se torna uma imposição às gerações opõe. É o herói que luta contra a própria
vindouras, que têm de se pautar por ela, sombra, por não saber quem são os seus
repeti-la, imitá-la. inimigos.

O clamor por “revolução”, ou


“renovação” surge desta asfixia da
tradição, imposta, não pela tradição, mas A Revolução como processo histórico
pelos receptores de Arte, ou por seus
representantes. Apesar de o anseio por mudanças
ser individual, e brotar de indivíduos, a
necessidade de revolução é histórica.

A Revolução como libertação Heidegger aponta com propriedade a


complexidade da formação de sentidos,
Neste sentido, os revolucionários são quando uma camada de sentido se
aquelas pessoas que precisam se libertar sobrepõe às demais, afastando-nos dum
das amarras do que já está gasto, do que conhecimento originário do mundo.
já caiu em desuso. É através do abandono
ao convencional que eles se nutrem, para A tradição serve como uma espécie
poder dar a gênese ao novo. de filtro para nossa compreensão de Arte;
todos nossos conceitos se fundam no já-
Contudo, este tipo de revolução decorre feito, e este já-feito molda o que está-
duma negação positiva do passado, para-vir.
um repúdio às normas conhecidas. O
revolucionário não destrói aquilo que Mas, em certos momentos históricos,
não conhece, ele se desapega do que o em certas conjunturas, novas relações se
oprimia. É uma luta contra o conhecido, estabelecem, as quais, se não invalidam
contra o excessivamente conhecido. totalmente, pelo menos comprometem
as bases dos saberes anteriores. Nestes
momentos de cisão, o que vale para uma
época deixa de valer para a seguinte, e a
manutenção da tradição torna-se apenas
A Revolução como ignorância
um hábito decadente.

Por outro lado, há uma outra estirpe


É neste instante que os indivíduos,
de revolucionários, que renegam o
coletivamente, mas através de suas
passado apenas pelo fato de ser passado,
próprias expressões individuais, iniciam
sem compreensão, sem aquela asfixia
o refluxo e estabelecem as novas bases,
essencial.
que, por sua vez, tornar-se-ão a tradição
no futuro.
Desconhecem a tradição — preguiça,

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Samizdat 4 - maio 2008

Uma revolução dum só homem é um lugar-comum.


“golpe de Estado”. A verdadeira revolução
só ocorre em conjunto, quando o Este revolucionário, não raro um artista
passado não mais basta, não supre mais sem obra, um procrastinador com “ótimas”
as necessidades, não mais responde idéias, mas nenhuma realização concreta,
satisfatoriamente as questões. acaba sendo o arauto da repetição, do
tradicional. Pois todas as épocas possuem
O Reacionário seus revolucionários de mentirinha, que
surgiram prometendo grandes mudanças,
Existem pelo menos dois tipos de mas que desapareceram, dragados pela
reacionários: o que teme a mudança e tradição contra qual combatiam.
reage à ela; e o que tenta compreender
o passado, para poder compreender a Nenhuma injustiça, possivelmente,
mudança. apenas um processo de seleção natural,
não muito diferente da biológica.
O primeiro tipo é avesso a qualquer
transformação. É o idólatra do passado,
dos grandes mestres, incapaz de se voltar
para o seu tempo e identificar as marcas Conclusão
da transformação.
Quase todo escritor vê em si mesmo
O segundo tipo é o que se sujeita ao o germe da mudança, o ponto de ruptura
passado, aprende com ele, descobre o que duma época para outra. Há um prazer em
há de melhor da tradição, dialoga com os se imaginar num limiar, onde as relações
mestres pretéritos, e, quando chega a hora pretéritas serão abandonadas e onde ele,
propícia, despe-se de seu reacionarismo idealizar com grandes reformas, estará
e aproveita seu conhecimento para ajudá- na aurora de novos tempos.
lo em sua metamorfose. Este reacionário
entende que ação-reação só faz sentido
Alguns poucos realmente acertam;
nesta dicotomia, que, se estes pólos
alguns são, de fato, tão geniais quanto
forem suprimidos, qualquer movimento
se imaginam, capazes de concretizar,
deixa de existir, estaríamos abandonados
ou acompanhar, as mudanças que
a uma insossa neutralidade.
vislumbraram.

Este tipo de reacionário é quem


Mas a maioria está absorta por um
prepara as bases sólidas para uma
delírio de auto-emulação, revolucionários
verdadeira transformação, pois tem a
apenas da boca pra fora.
clareza do que deve ser abandonado, do
que pode ser mantido, e do que deve ser
renovado. E a tradição, em sua implacável
arbitrariedade, se lembrará apenas dos
primeiros.
A Revolução: um grande clichê

No fundo, a própria luta forçada para


se estar na linha de frente, para ser a
vanguarda duma geração revolucionária,
não passa dum grande clichê, dum baita

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O Abraço
Henry Alfred Bugalho

Como poderia me esquecer da primeira vez que vi Mariana?

Um colega de trabalho, empolgado com os rumores, me arrastou ao apartamento


dela. Na cozinha, uma dezena de outros homens, silenciosos, fitando a menininha
pré-adolescente, frágil, marias-chiquinhas, olhar vazio.

A mãe dela nos instigava a começarmos.

— Podem fazer o que quiser com Mariana. Eu lhes garanto que ela não sentirá
nada.

Um tal de João, caminhoneiro, boné e tatuagem no braço roliço, se adiantou.


Diante da menina, hesitava:

— Ô, dona, já ouvi muita histórias sobre sua filha e vim ver com meus próprios
olhos. Mas não quero machucá-la.

— Vá em frente, João, ela vai agüentar — a mãe respondeu.

O bruto estalou os dedos, e esmurrou Mariana na cara. Sem se mover, nem gemido,

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Samizdat 4 - maio 2008

nem hematoma, Mariana permanecia impassível. João prosseguiu na pancadaria,


socos, tapas, empurrões e chutes. Mariana, ao contrário do esperado — choros,
gritos e ossos quebrados —, respondeu com apenas um erguer de braços, queria
abraçar João.

O coração se apertou no meu peito. Aquela menina, com talvez onze ou doze
anos, dava a mais profunda lição de cristianismo: sendo atacada, amava seu inimigo;
apanhando, dava a outra face.

Ofegante, após haver espancando Mariana no chão, pisado-lhe a cabeça e o


corpinho, João aguardou que ela se levantasse, completamente incólume.

— Inacreditável! — ele balbuciou.

— Quem é o próximo? — indagou a mãe contente, recebendo dez reais do


caminhoneiro.

A imagem daquela menina me assombrou por dias, a cena dela apanhando dum
homem atrás do outro, sempre com aquele olhar sem vida, com os braços lânguidos
ensaiando um abraço, pele e ossos que pareciam borracha, invulneráveis à dor e ao
dano.

Amaldiçoei meu colega por ter me levado até ela e pedi para que não me convidasse
mais. Aos poucos, a recordação daquela noite foi se apagando.

Porém, um circo foi montado na cidade e prometi à minha irmã que levaria meus
sobrinhos para verem o palhaço e o elefante.

— Queremos ver a menina-borracha! — meus sobrinhos gritaram em uníssono


quando viram o cartaz com uma menina franzina sendo atingida pelo soco dum
truculento. Mariana me escapou das trevas do inconsciente.

Pagamos os dois reais do ingresso e adentramos a tenda. Vislumbrei a mãe de


Mariana num canto, ao lado do palco, e isto me deu a certeza de que a menina-borracha
e Mariana eram a mesma pessoa. A demonstração circense foi muito parecida com
a daquela noite na cozinha: homens fortes esmurrando uma menina indefesa, cuja
única reação era um abraço irrealizável.

Creio que foi naquela noite que tomei a decisão de matá-la. Mariana não tinha um
semblante triste, mas era como se ela não existisse. Talvez ela padecesse de alguma
disfunção rara, que não a permitisse sentir nada, nem dor, nem prazer também. Qual
sentido há em ser apenas uma pedra, sem sensações, sem toque? A vontade de
matá-la era compaixão em mim. Enquanto a mãe queria explorar sua doença, eu, um
estranho, queria salvá-la dela.

Posteriormente, a visão de Mariana na TV, recebendo o mesmo tratamento que a

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vi tendo nas vezes anterior, reforçou minha decisão.

Aguardei na rua, diante do prédio. Ao ver a mãe de Mariana saindo, corri e subi até
o oitavo andar. Bati à porta e quem abriu foi Mariana, sem dizer palavra e oculta pela
penumbra. As luzes estavam apagadas e a única claridade fugidia era da televisão
acesa na sala.

Sem se importar comigo, Mariana caminhou em direção à sala. Entrei, fechei a


porta, retirei a faca da cintura e sussurrei:

— Mariana, vim libertar você.

Ela se virou e, com um olhar mais impenetrável do que antes, me respondeu:

— Tolo! Você nunca conseguirá o que quer.

Ouvir sua voz fez minhas pernas tremerem. Aquela não era voz dum ser humano,
muito menos duma menininha de doze anos. Tive medo, mas, mesmo assim, caminhei
em direção a ela. Ao ver-me me aproximando, Mariana estendeu os braços, aquele
abraço que sempre considerei como sendo uma resposta de amor extremo, mas eu
sabia, agora, que aquele era um abraço de ódio. Mariana não tinha doença alguma,
ela não era humana; se existisse o diabo, ou alguma entidade malévola, Mariana
seria a encarnação dele.

Acertei a primeira facada no pescoço da menina. Ela abraçou minha cintura.


Esfaqueei-a na cabeça, mas, assim como acontecia com socos, não consegui
machucá-la; por outro lado, o abraço dela era forte, tão forte que eu quase perdia o
fôlego. E quanto mais eu tentava feri-la, mais forte ela apertava. Mariana me fitava
com os olhos vazios e, pela única vez desde que eu a conheci, ela me deu um sorriso.
Eu havia vindo para libertá-la, mas o aprisionado era eu. Mariana não era o reflexo do
amor incondicional, ela era a expressão do ódio.

Na manhã seguinte, a mãe de Mariana me encontrou, sem vida, nos braços dela,
coluna vertebral estraçalhada, órgãos esmagados. A perícia policial foi conclusiva em
favor de Mariana, legítima defesa — faca com minhas digitais.

Todos sabiam do poder que a menina tinha para resistir aos ataques, mas
ninguém conhecia a força sobrenatural dela. Por isso, daquele dia em diante, nas
demonstrações públicas de Mariana, as mãos delas eram amarradas nas costas. Os
abraços cristãos enquanto apanhava, não mais.
www.miriades.blogspot.com

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Samizdat 4 - maio 2008

Dedepopoimento de uma vivítima dodo memedo


Liliam Kikuchi

“Eu sou constantemente atacada por


batatas fritas furiosas e suicidas. Elas
chegam sorrateiramente, me encurralando
num canto, ameaçando espirrar óleo quente
em mim, me fazem abrir a boca e pulam
todas dentro dela, uma a uma... Algumas
vêm munidas de sal, que elas, sádica e
masoquistamente, salpicam em si mesmas,
antes do mergulho fatal... Eu já não agüento
mais!!!! Mamãe, me salva!!!!!!!!”

Sobre a autora

Liliam Kikuchi nasceu em São Paulo, mas reside atualmente no Japão. Dona-de-
casa e mãe de duas filhas. Escreve sem pretensões, por puro prazer.

Complexidades
Lehgau-Z Qarvalho

Voltei para o prédio onde ficava o meu quarto e propus para a senhoria limpar os
banheiros, pintar as paredes, lavar a louça, qualquer coisa. Eu precisava ter onde
dormir e, mais do que isso, necessitava reaver o meu PC. Ela jamais mostrara muito
os dentes para mim. Era uma mulher dos seus cinqüenta e poucos anos; cabelos
longos, porém eternamente presos; roupas surradas e fora de moda; olhar triste e
lábios carnudos.

Sim, pela primeira vez eu reparava em seus lábios. Ela falava e eu já nem mais a
escutava. De pé, parado na porta, eu apenas fitava sua boca movendo-se e espiralando
palavras soltas no ar. Passei a sentir também o seu perfume. Suave. Notei que estava
um tanto embaraçada. Eu disse então que precisava ir ao banheiro. Ela permitiu que
eu entrasse em seu pequeno apartamento no andar térreo. Ofereceu-me um café;
acompanhado de uma deliciosa torta de cerejas. Olhei-a bem dentro dos olhos. O
marido falecera há muito. Mais de uma década, falou-me. Senti seu hálito. Doce. A
pele macia e trêmula. A respiração ofegante. A noite a adensar-se. O café a esfriar
sob a puída toalha branca.

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A última noite do ano da coisa que não aconteceu


Lehgau-Z Qarvalho

Era uma pessoa solitária. Pensava


que enganava a todos. Que sua vida
social era intensa. Que era feliz. Mas não
sabia deixar-se amar. Algo acontecera
na infância, talvez. Aquelas coisas
freudianas. Tinha dúvidas. Se tomava
os remédios, ficava mais equilibrada,
menos intensa, sem cor. Se não os
consumia, podia sentir tudo, até demais.
Possuía diversas personalidades. Era
inteligentíssima e muitíssimo imaginativa.
Porém, imatura a ponto de não saber ver
a felicidade bem diante de seus olhos.
Ou não querer. Vivia com seus demônios
e acreditava que deles ninguém se livra,
jamais. Era bela. De uma beleza ímpar.
Feições de misturas longínquas. Tinha
medos; de ficar sozinha, e de não ficar.
Tinha dúvidas; sobre ter certezas, ou
deixar-se fluir. Era valiosa, mas pouco
acreditava em si. Sim, era infeliz; e disso,
sim, já não possuía qualquer suspeição.
E, sim, era submissa a sua infelicidade; e
disso ainda não se livraria, porque disso
ainda não sabia. E nem deixava espaço
para vir a saber.

Uma noite, ao tentar segurá-lo, provocando-o e empurrando-o para longe, deixou


escapar um sonho pela janela iluminada. E nunca mais o recuperou.

Sobre o autor
Lehgau-Z Qarvalho é jornalista por formação; artista gráfico por impulso; músico
por amor e escritor por compulsão. Nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; e
renasceu na Internet, mundo. Autor do romance “A Teoria das Sombras”.

http://lehgau-z.blogspot.com/

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Samizdat 4 - maio 2008

O Jogo
José Espírito Santo

(imagem: http://www.theprintstudio.co.uk/artists/MerlynEvans/theChessPlayers.jpg)

Eu sei que o meu vizinho da frente é um tipo estranho. Habita aquelas duas
pequenas assoalhadas escuras há mais de vinte anos e nunca ninguém lhe conheceu
um emprego ou qualquer outro tipo de ocupação produtiva. Não tem mulher. Não se
lhe conhece qualquer família. Nunca se ouviu sair de lá o choro ou o riso de uma
criança.

Nunca comentei com ninguém sobre ele e nossa amizade. Nem com meus amigos,
nem com meu chefe ou colegas lá da repartição. Nem no restaurante que frequento
praticamente todos os dias. Nem mesmo com a minha família – meus pais velhinhos
lá na província que visito fim-de-semana sim fim-de-semana não.

Não sei como foi... entre nós estabeleceu-se aquele ritual. Todos os dias quando
chego, pego Faruk pela trela e o levo a passear um pouco. Paro aqui e ali, bebo uma
ou duas bicas, um ou dois whisky, ponho a conversa em dia e depois...

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Depois lá estou eu tocando a sua porta. Ele se apressa a abri-la sem uma única
palavra. Conduz-me até à pequena salinha e ficamos os dois a olhar para aquele
rectângulo mágico – o Jogo.

Seguem-se duas ou três horas em que o tempo se esvai sendo substituído


pelos lances rápidos. Meu vizinho é muito bom jogador. Esperto, astuto. Quase diria
possuidor de uma inteligência extra-terrestre. Não que eu acredite em extra-terrestres.
Sempre fui uma pessoa muito céptica.

Ano passado apareceu por lá o Tiago. O miúdo tinha acabado de sair da escola
e ia me ajudar com os processos de sector imobiliário. Logo me veio com teorias de
conspiração. Os extra-terrestres para aqui, os homens verdes para ali. Se eu sabia
que muitas personagens ilustres tinham sido na verdade...extra-terrestres. Se eu
sabia que eles tinham estado na génese de toda a vida no nosso planeta. Se eu sabia
que hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo estávamos sendo observados,
discutidos, estudados. Um dia o miúdo não apareceu. Ninguém voltou a ouvir falar
dele. O mais certo é ter arranjado um biscate mais bem remunerado ou mais perto
de casa.

O meu amigo do apartamento da frente é na verdade uma pessoa pouco comum.


Nunca conheci ninguém tão reservado. Não se interessa por política nem novela. Não
tem rádio, aparelhagem ou televisão. Não reage se lhe falo do Glorioso. Se comento
sobre mulher ouço uma resposta muda. Nem um gesto, nem um pequeno sinal de
entusiasmo ou de excitação. E no entanto...

Todos os dias ele me espera...para jogar. Todos os dias o jogo tem novas nuances,
novos desafios. Às vezes ganho – desconfio que ele me deixa vencer, faz de propósito,
deve ter receio que eu perca o interesse por nosso vício comum. Por vezes me sinto
estudado, analisado, perscrutado até ao mais íntimo através dos desafios daquele
jogo infinito e empolgante. Ele joga em silêncio. Concentração absoluta. Não bebe.
Não come. Apenas através de sinais lhe adivinho a alegria da vitória, o elogio de uma
boa jogada ou a desilusão da derrota.

Hoje cheguei a tempo e horas e me esperou ao invés dele a porta entreaberta. O


vazio. No centro da sala jaz a pequena mesa descolorida, desprovida do rectângulo
mágico alvo das nossas atenções e esforços diários. Dele e do jogo nem o mais
pequeno sinal. Nem o mais pequeno indício. Como se aquele pequeno apartamento
nunca tivesse sido habitado!Eu sei que meu vizinho da frente é um tipo estranho.
Muito estranho mesmo. Mas tenho saudade de seus olhos grandes e cinzentos
em sua carapaça verde. De sua concentração silenciosa. De ver seus tentáculos
manipulando habilmente as peças... esteja onde estiver.

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Samizdat 4 - maio 2008

Três Pontos...
José Espírito Santo

O cego, o surdo e o mudo

Fui, sou e serei três pontos.

Claridade, penumbra e escuro

Fui, sou e serei três pontos.

Passado, presente e futuro

Fui, sou e serei três pontos.

Três. Pontos apenas. Pontos!

Junções em centro de vida

Encontro de desencontros...

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MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho

Ejaculação Precoce

Bastava alguém dizer sim ao seu convite para jantar que já melecava as cuecas.

Mirabolância

Otávio estava falido.

Num gesto de desespero, tomou a decisão: se mataria, para que sua filha pudesse
receber seu seguro de vida.

Bagunçou a casa, escondeu jóias, quebrou móveis, tudo para simular um latrocínio.
Depois, se jogou pela janela.

Caiu sobre a filha, que entrava no prédio.

Ela morreu; ele não.

José Espírito Santo

O Papagaio

Era uma vez um papagaio lindo de bico vermelho e penas amarelas. Não cantava,
nem falava nem voava. Estava morto.

Mundo ao contrário

Era um mundo ao contrário em que se corria da meta para a partida, os homens


procuravam em vão a última mentira e as histórias contavam sempre os mesmos
escritores.

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Samizdat 4 - maio 2008

Volmar Camargo Junior

Desejo
— Príncipe Xin, qual é o seu desejo?
— Desejo ser o Imperador.
— Não será possível antes de sua maioridade,
Alteza.
— Então, me traz um sorvete de abacaxi.

Dívidas
Terêncio estava endividado e sem trabalho. Sacou a última parcela do seguro-
desemprego, rasgou as faturas atrasadas e comprou um revólver. A mulher teve que
vender a arma para pagar a fiança.

Demorou
— Amor...
— Quê?
— Broxei.
— Qual é a novidade? Tu é broxa!
— É, mas ele tava duro agorinha.
— E por que tu não me chamou?
— Eu chamei. Não viu quando eu disse: “Amor...”?

... para entrar para a História.


Seu Nestor, oitenta e um anos, implicou com o busto do Getúlio na praça: achou
que o nariz estava torto. No meio da madrugada, com um torquês, tentou endireitar a
escultura. Acabou deixando o Getúlio sem nariz.
De manhã, a manchete do jornal dizia: “Octogenário é encontrado morto com
um alicate na mão direita e um nariz de bronze na esquerda”. E, no final da matéria:
“Vandalismo não tem idade”.

Tiroteio
— Ouvi dizer que é aqui que estão os valentes da cidade.
— Pois ouviu certo. Veio conferir?
— Não... é que eu não tinha mais onde me esconder do tiroteio.

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Ponto de vista
Sabe, a praça fica bonita à noite. Quer dizer, quando não chove. E quando não
tem nevoeiro. Ah, e quando não está tomada pelos cachorros de rua. E também,
quando não tem feira de dia. Na verdade, era mais bonita quando não tinha esse
bando de camelô. Também era melhor quando não tinha essas piranhas. E o chafariz
também já teve os seus dias. E sem as pichações também não era nada mal. É... a
praça tá feia!

SAC
— Alô, é do SAC?
— Sim, senhora. Em que posso ajudar?
— Vocês estudam pra trabalhar aí?
— S-sim, senhora.
— Então me diz uma coisa: o que é “odorífero”?
— Como?
— “Odorífero”, com nove letras e termina com “NTE”. Só falta essa pra terminar, e
eu não queria olhar nas respostas.

Um belo dia...
... começou a chover. Acabou-se o belo
dia.

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Samizdat 4 - maio 2008

TRADUÇÃO

Os Irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm Grimm,


eram estudiosos alemães que se tornaram
conhecidos pela publicação da coleção de
contos populares e contos de fadas e pela
sua obra em lingüística, relacionando como os
sons em palavras se alteram historicamente (A
Lei dos Grimm). Eles estão entre os maiores
narradores de novelas da Europa, difundindo
fábulas como “A Branca de Neve, Rapunzel,
Cinderela e João e Maria.

(Fonte: Wikipédia)

Chapeuzinho Vermelho
Versão: Jacob e Wilhelm Grimm
trad.: Henry Alfred Bugalho

Era uma vez uma doce menininha. Todo mundo que a via gostava dela, mas
principalmente sua avó, que daria qualquer coisa à criança. Certa vez, deu a ela um
chapeuzinho feito de veludo vermelho. Porque lhe havia servido tão bem, e porque
não queria vestir nada mais, ela ficou conhecida como Chapeuzinho Vermelho.

Um dia, a mãe disse a ela:

— Venha cá, Chapeuzinho Vermelho. Aqui está um pedaço de bolo e uma garrafa
de vinho. Leve-os até sua avó. Ela está doente e fraca, e isto fará bem a ela. Saia antes
que fique muito quente e, enquanto você estiver indo, caminhe tranqüilamente e em
silêncio, e não corra para fora da trilha, ou você pode cair e quebrar a garrafa, então
sua vovó não receberá nada. Quando você entrar no quarto dela, não se esqueça de
dizer “bom dia”, e não fique xeretando em todos os cantos antes.

— Eu tomarei cuidado, Chapeuzinho Vermelho prometeu a sua mãe.

A vovó vivia na floresta, a meia hora da cidade. Assim que Chapeuzinho Vermelho
entrou na floresta, um lobo a encontrou. Chapeuzinho Vermelho não sabia que criatura
terrível ele era, por isso, não tinha medo dele.

— Bom dia, Chapeuzinho Vermelho, ele disse.

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— Muito obrigada, senhor lobo.

— Aonde vai tão cedo,


Chapeuzinho Vermelho?

— Pra casa da minha vovó.

— O que você traz aí no seu


avental?

— Bolo e vinho. Nós o assamos


ontem, assim a pobre vovó doente
terá algo gostoso para fazê-la ficar
mais forte.

— Onde sua vovó mora,


Chapeuzinho Vermelho?

— Mais uns quinze minutos


adiante na floresta. A casa dela fica
sob três grandes carvalhos, logo
abaixo estão as amendoeiras. Com certeza você já deve conhecer, respondeu
Chapeuzinho Vermelho.

O lobo pensou consigo: “que criatura mais tenra. Que refeição apetitosa, será
melhor devorá-la do que à velha. E devo agir com astúcia, assim eu apanho as duas”.
Ele acompanhou Chapeuzinho Vermelho por um tempo, então disse:

— Veja, Chapeuzinho Vermelho, como estão bonitas as flores por aqui. Por
que você não dá uma volta? Acho que você não está ouvindo quão doce é o canto
dos passarinhos. Você caminha seriamente, como se estivesse indo para a escola,
enquanto tudo aqui na floresta está alegre.

Chapeuzinho Vermelho ergueu os olhos e, quando viu os raios de sol bailando aqui
e acolá por entre as árvores e as lindas flores crescendo por todo o lugar, ela pensou:
“que tal eu levar para a vovó um buquê? Isto a agradaria também. Está tão cedo
ainda, que eu conseguirei chegar lá em boa hora”. Assim ela saiu da trilha e correu
para a floresta à procura por flores. Mas toda vez que colhia uma, ela imaginava ter
visto uma ainda mais bonita ao longe, e corria atrás dela, e assim ela adentrava mais
na floresta.

Enquanto isto, o lobo correu direto para a casa da vovó e bateu na porta.

— Quem está aí?

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Samizdat 4 - maio 2008

— Chapeuzinho Vermelho, respondeu o lobo — Trazendo bolo e vinho. Abra a


porta.

— Erga o ferrolho, gritou a vovó, estou fraca demais para me levantar.

O lobo ergueu o ferrolho, a porta se abriu e, sem dizer uma só palavra, ele foi até
a cama da vovó e a devorou. Ele pôs as roupas dela, vestiu-se com o capuz dela,
deitou-se na cama e fechou as cortinas.

Mas Chapeuzinho Vermelho estava colhendo flores e, quando ela havia reunido
tantas que mal conseguia carregá-las, ela se lembrou da vovó, e se pôs a caminho
da casa dela.

Ela ficou surpresa ao encontrar a porta do casebre aberta e, quando entrou no


quarto, ela teve tal estranho sentimento que disse para si mesma: meu Deus, que
angústia eu sinto hoje, das outras vezes, eu gostava tanto de estar com a vovó.

Ela chamou:

— Bom dia, mas não recebeu resposta. Ela foi até a cama e abriu as cortinas. Ali
estava sua vovó com o gorro cobrindo o rosto e com uma aparência muito estranha.

— Nossa, vovó, ela disse, que orelhas grandes você tem.

— Para ouvi-la melhor, foi a resposta.

— Nossa, vovó, que olhos grandes você tem, ela disse.

— Para vê-la melhor.

— Nossa, vovó, que mãos grandes você tem.

— Para abraçá-la melhor.

— Nossa, vovó, que boca terrível você tem.

— Para devorá-la melhor.

E mal o lobo disse isto, ele saltou para fora da cama e engoliu Chapeuzinho
Vermelho.

Quando o lobo havia saciado seu apetite, ele se deitou de novo na cama,
adormeceu e começou a roncar bem alto. O caçador estava passando pela casa e
pensou consigo: “como a velha senhora está roncando. Vou conferir se ela precisa

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de algo”.

Então ele entrou no quarto e, ao se aproximar da cama, ele viu que o lobo estava
deitado nela.

— Eu o encontro aqui, velhaco? — ele disse — Eu o procuro há muito tempo.

Bem quando estava prestes a atirar contra ele, veio-lhe à mente que talvez o lobo
tivesse devorado a vovó e que ela ainda poderia ser salva, então ele não atirou, mas
pegou uma tesoura e começou a cortar a barriga do lobo adormecido.

Ele havia dado duas tesouradas quando viu Chapeuzinho Vermelho aparecer,
então ele deu mais duas tesouradas, e a menininha saltou para fora, gritando:

— Ai, como eu fiquei com medo. Estava escuro dentro do lobo.

E, depois, a vovó também saiu com vida, mas quase não conseguia respirar.
Chapeuzinho Vermelho rapidamente apanhou grandes pedras, com as quais eles
encheram o bucho do lobo e, quando ele acordou, quis fugir, mas as pedras eram tão
pesadas que ele logo caiu e morreu.

Todos os três ficaram contentes. O caçador arrancou a pele do lobo e a levou


para casa. A vovó comeu o bolo e bebeu o vinho que Chapeuzinho Vermelho havia
trazido e se fortaleceu, mas Chapeuzinho Vermelho pensou consigo: “enquanto eu
viver, nunca deixarei a trilha para correr pela floresta, quando minha mãe me houver
proibido”.

***

Conta-se também que, certa vez, quando Chapeuzinho Vermelho levava


novamente bolos para a vovó, outro lobo falou com ela e tentou incitá-la a sair da
trilha. No entanto, Chapeuzinho Vermelho se conteve e prosseguiu em seu caminho,
e disse à vovó que ela tinha se encontrado com o lobo, e que ele tinha dito “bom dia”
para ela, mas com tanta maldade nos olhos que, se eles não estivessem na estrada
pública, ela tinha certeza de que ele a teria devorado.

— Bem, disse a vovó, fecharemos a porta, assim ele não entrará.

Logo depois, o lobo bateu à porta e gritou:

— Abra a porta, vovó, sou a Chapeuzinho Vermelho e trago alguns bolos para
você.

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Samizdat 4 - maio 2008

Mas elas não falaram nada, nem abriram a porta, então o cabeça cinzenta
circundou a casa duas, três vezes e, por fim, subiu no telhado, pretendia esperar até
que Chapeuzinho vermelho fosse para casa à noite, então a seguiria e a devoraria
na escuridão. Mas a vovó viu o que havia nos pensamentos dele. Na frente da casa,
havia uma tina de pedra, então ela disse à menina:

— Pegue o balde, Chapeuzinho Vermelho. Eu fiz algumas lingüiças ontem, então


carregue até a tina a água na qual eu as cozinhei.

Chapeuzinho Vermelho carregou até a grande tina estar quase cheia. O cheiro
de lingüiça subiu até o lobo, ele farejou e olhou para baixo, e, por fim, esticou tanto
o pescoço que não conseguiu mais manter o equilíbrio e começou a escorregar.
Escorregou do telhado direto na tina, e se afogou. Chapeuzinho Vermelhou voltou
feliz para casa e ninguém mais fez mal algum a ela.

(Fonte: Grimm Märchen)

Rapunzel
Versão: Jacob e Wilhelm Grimm
trad.: Henry Alfred Bugalho

Era uma vez um homem e uma mulher que há muito tempo, em vão, queriam
ter um filho. Por fim, a mulher teve esperança de que Deus lhes concedesse este
desejo. No fundo da casa deles, havia uma pequena janela, de onde se podia ver
um esplêndido jardim, repleto das mais lindas flores e ervas. Contudo, o jardim era
cercado por um alto muro, e ninguém se atrevia a ir até lá porque ele pertencia a uma
bruxa, que tinha grande poder e era temida por todo o mundo.

Um dia, a mulher estava diante desta janela, olhando para o jardim, quando ela
avistou um canteiro no qual estavam plantados os mais belos rapôncios — conhecidos
como rapunzéis na região —, e que pareciam tão frescos e verdes que ela os desejou,
e tinha a maior vontade de comer alguns. O desejo aumentou dia após dia, e como
ela sabia que ela não conseguiria obtê-los, ela se debilitou, e começar a parecer
pálida e desanimada.

Então seu marido ficou preocupado e perguntou:

— O que a atormenta, querida esposa?

— Ah, ela respondeu, se eu não puder comer um pouco de rapôncio, que tem no

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jardim atrás de nossa casa, eu vou morrer.

O homem, que a amava, pensou que, ao invés de deixar sua esposa morrer, ele
mesmo traria para ela o rapôncio, não importando o que isto lhe custasse. Ao cair
da tarde, ele escalou o muro e saltou para o jardim da bruxa, apressadamente ele
apanhou um punhado de rapôncios e o levou para sua esposa. Imediatamente ela
fez uma salada com eles e os comeu com voracidade. E, para ela, o gosto era tão,
mas tão bom, que no dia seguinte ela os desejava três vezes mais do que antes. Para
ter sossego, o marido acabou indo mais uma vez ao jardim. Assim, na penumbra da
noite, ele saltou para o outro lado de novo. Mas, após ter escalado o muro, ele levou
um baita susto, pois viu a bruxa parada diante dele.

— Como ousa, ela disse, com olhar de raiva, descer ao meu jardim e roubar meu
rapôncio como um ladrão? Você sofrerá por causa disto.

— Ah, ele respondeu, que a misericórdia substitua a Justiça, pois eu apenas decidi
a agir deste modo por pura necessidade. Minha esposa viu seu rapôncio desde a
janela e o desejou tanto que ela teria morrido se não os tivesse comido.

Então a raiva da bruxa foi aplacada, e ela disse a ele:

— Se este é o caso, como você diz, eu permitirei que você leve consigo quanto
rapôncio quiser, mas eu imponho uma condição, você deverá entregar a mim a criança
que sua esposa trará ao mundo. Ela será bem tratada, e eu tomarei conta dela como
se fosse uma mãe.

Aterrorizado, o homem concordou com tudo, e quando a mulher deu a luz, a bruxa
apareceu, subitamente, deu à criança do nome de Rapunzel e a levou consigo.

Rapunzel se tornou a mais bela criança debaixo do sol. Quando ela completou
doze anos de idade, a bruxa a fechou numa torre, no meio da floresta, que não tinha
escadas nem porta, mas quase no topo havia uma pequena janela. Quando a bruxa
queria entrar, ela ficava embaixo da janela e gritava:

“Rapunzel, Rapunzel,

Jogue as suas tranças!”

Rapunzel tinha magníficos cabelos longos, belos como fios de ouro, e quando ela
ouvia a voz da bruxa, ela soltava suas tranças, enrolava-as num gancho na janela e,
então, o cabelo caía uma distância de doze metros, e a bruxa subia por ele.

Após um ano ou dois, o filho dum rei veio cavalgando pela floresta e passou perto
da torre. Então ele ouviu uma canção, que era tão encantadora que ele parou para
ouvi-la. Era Rapunzel que, em sua solidão, passava o tempo deixando sua doce voz
ressoar. O filho do rei queria subir até ela. Procurou por uma porta para a torre, mas

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não encontrou nenhuma. Ele cavalgou


para casa, mas a cantoria o havia tocado
tão profundamente que, todos os dias,
ele ia até a floresta para ouvi-la. Uma
vez, quando ele estava parado atrás
duma árvore, ele viu a bruxa chegar e a
ouviu gritar:

“Rapunzel, Rapunzel

Jogue as suas traças!”

Então Rapunzel soltou as tranças e a


bruxa subiu por elas.

— Se esta é a escada por onde se


sobe, eu também tentarei a minha sorte,
ele disse. No dia seguinte, quando
começou a anoitecer, ele foi até a torre
e gritou:

“Rapunzel, Rapunzel,

Jogue as suas tranças!”

Imediatamente ela jogou para baixo o cabelo e o filho do rei o escalou. A princípio,
Rapunzel ficou terrivelmente assustada quando um homem, como nunca ela havia
visto antes, apareceu. Mas o filho do rei começou a conversar com ela como se fosse
um amigo, contou a ela que seu coração estava abalado, que não lhe deixava em
paz, e que ele tinha de vê-la. Então Rapuzel perdeu o medo e, quando ele perguntou-
lhe se ela queria se casar com ele, e ela viu que ele era jovem e bonito, ela pensou:
“ele me amará mais do que a velha Dona Gothel me ama”. Ela disse sim, e eles se
deram as mãos.

Ela disse:

— Eu quero ir embora com você, mas eu não sei como vou descer. Cada vez que
você vier, traga um retalho de seda e eu tecerei uma escada com eles, e, quando ela
estiver pronta, eu descerei e você me levará em seu cavalo.

Eles combinaram que, até então, ele viria se encontrar com ela todas as noites,
pois a velha vinha durante o dia.

A bruxa não percebeu nada de errado, até que, certa vez, Rapunzel disse a ela:

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— Diga-me, Dona Gothel, como é que tão mais difícil para você conseguir subir do
que para o jovem filho do rei; ele sobe rapidinho.

— Ah! Sua criança malvada, gritou a bruxa. O que é que você me disse? Eu pensei
que tinha separado você de todo o mundo e, mesmo assim, você me enganou.

Em sua fúria, ela apanhou as lindas tranças de Rapunzel, enrolou-as duas vezes
ao redor de sua mão esquerda, com a mão direita apanhou uma tesoura e, chique-
chaque, ela as cortou. As adoráveis tranças caíram no chão. E ela era tão inclemente
que levou a pobre Rapunzel para um deserto, onde ela tinha de viver em grande
pesar e penúria.

Contudo, no mesmo dia em que ela expulsou Rapunzel, a bruxa prendeu as


tranças, que ela havia cortado, no gancho na janela e, quando o filho do rei veio e
gritou:

“Rapunzel, Rapunzel,

Jogue as suas tranças.”

Ela jogou o cabelo. O filho do rei subiu, mas, ao invés de encontrar sua querida
Rapunzel, ele encontrou a bruxa, que o fitou com maldoso e venenoso olhar.

— Ahá, ela gritou, zombeteira, você veio pegar sua querida, mas o belo pássaro
não canta mais no ninho. O gato o pegou, e arranhará seus olhos também. Rapunzel
está longe de seu alcance. Você nunca mais a verá.

O filho do rei foi consumido por uma dor e, em seu desespero, pulou da torre.
Ele sobreviveu, mas espinhos sobre os quais ele caiu furaram seus olhos. Então ele
vagou, às cegas, pela floresta, não comia nada senão raízes e frutinhas, e não fazia
nada senão se lamentar e chorar pela perda da sua querida esposa.

Assim, ele perambulou, miserável, por alguns anos, mas, por fim, ele chegou
ao deserto onde Rapunzel vivia, com os gêmeos aos quais ela havia dado a luz,
em estado deplorável. Ele ouviu uma voz e ela parecia ser tão familiar que ele foi
em direção a ela e, quando ele se aproximou, Rapunzel o reconheceu, abraçou-o e
chorou. Duas de suas lágrimas molharam os olhos dele, que se abriram, e ele voltou
a enxergar. Ele a conduziu ao seu reino, onde eles foram recebidos com alegria e
viveram felizes por muito tempo, felizes e satisfeitos.

(Fonte: Grimm Märchen)

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CRÔNICA

Uma Crônica em Três Minutos


Volmar Camargo Junior

(escrita entre 07h47min e 07h50min de 18/04/2008)

O que dá para fazer em três minutos?

Dormir três minutos a mais numa manhã fria.


Desligar o chuveiro três minutos antes.
Passar três minutos alongando os músculos.
Reduzir a velocidade do carro três minutos antes...
Olhar para as pessoas durante três minutos dá para criar uma imagem mental
dela.
Concentrar-se, rezar, meditar, conectar-se com o “eu-astral”... o que seja, por três
minutos.
Desligar a televisão, o computador, o aparelho de som e ficar em silêncio por três
minutos.
Pensar no maior número possível de pessoas queridas.
Escrever uma crônica sobre o que fazer durante três minutos.

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Na Noite Carioca
Pedro Faria

(Aviso: O texto contém linguagem não apropriada para menores)

Ele a avistou próxima do Copacabana Palace, na Avenida Atlântica. Ela era ruiva,
usava uma mini-saia de vinil roxo e um top branco. Seus seios eram pequenos e seu
cabelo era curto.
Ela era perfeita.
Sem dizer nada, ele parou seu carro próximo à ela e abriu a porta do passageiro.
Ela fez sinal para sua amiga, que assentiu e voltou a se oferecer aos carros que
passavam. A ruivinha entrou no carro e fechou a porta.
- Qual é o seu nome, querido? -, perguntou ela, tímida. Ou era muito nova na
profissão, ou fingia muito bem.
- Papai. Apenas me chame de “papai”.
- Aonde vamos, papai?
- Fique quieta, querida.

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Samizdat 4 - maio 2008

- Sim senhor.
Ela não disse mais nada.
Eles dirigiram por vários minutos. Durante o caminho, “papai” colocava a mão
nas pernas da pequena ao seu lado, e ia subindo até a entrada de sua vagina, e
pensava no que faria com ela. Ele já tinha tido várias putas como essa, magrinhas e
branquinhas, de peitos pequenos. Lembravam a ele sua filha. Para falar a verdade,
ele ainda preferia sua pequena Irina, porém ela se certificou que ele nunca mais a
tocaria, cortando seus pulsos na banheira.
“Primeiro a foderei, depois talvez eu a estrangule ou esfaqueie. Ainda não sei qual
dos dois”, era o que ele pensava durante sua viagem. Ela, por outro lado, ficou quase
que completamente calada, fora alguns gemidos que soltava quando o dedo dele
roçava em seu clitóris.
Chegaram à uma área florestada, na Tijuca. Estavam completamente sozinhos.
Ele removeu a capota do carro e mandou ela se sair. Ela se levantou, calada, e ele
logo a seguiu. Abraçou-a próximo a si, segurando em suas nádegas.
- Agora você vai agradar o papai, não vai, querida?
Ela olhava para baixo. Ele segurou seu queixo, levantou sua cabeça e olhou em
seus olhos.
- Não vai, querida?
- Sim, papai. -, foi sua resposta.
Ele ficou mais alguns segundos esfregando-se nela. Então, sentou-se no banco
traseiro e mandou ela se ajoelhar.
Abriu sua calça e retirou seu pênis. Notou os olhos dela se arregalando. “Um bom
toque”, pensou ele. Não era tão grande assim. Ele sabia que ela estava fazendo um
teatrinho. E adorava.
- Agora, chupa o papai, chupa.
Reclinou-se e fechou os olhos enquanto ela timidamente segurava seu pau,
movendo o prepúcio para cima e para baixo.
- Sim, sim -, murmurava ele.
Ela passou a punhetar mais rápido, lambendo ao redor da glande. Depois, começou
a chupar, enfiando o pau até o fundo de sua garganta.
Ele adorou. Ela mantia seu pênis em sua garganta, e fazia movimentos de engolir.
Ele, reclinado em bancos de couro já acostumados a receber corpos de putas mortas,
pensava em mil maneiras de vióla-la, após sua morte.
“Fazer um buraco em sua bochecha e foder ali mesmo... é uma boa. Ou então
comer seu cú até as pregas rasgarem. Mas tudo ao seu tempo”.
Enquanto isso, ele, deitado de olhos fechados, sentia algo que nunca havia sentido

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antes. A maneira com a qual ela chupava, era celestial! Ele sentia que seu pau ia
explodir, de tão bom que estava.
Visões de morte permeavam seu pensamento. Era um psicopata, e adorava isso.
Mal sabia aquela pobre putinha, que iria morrer depois de ser fodida.
Sentindo um êxtase até então nunca sentido, ele abriu os olhos e olhou para
baixo.
Era no mínimo engraçado.
Os olhos da menina haviam mudado. Tinham se tornado negros, completamente.
Sua testa adquiriu rugas estranhíssimas, quase que inumanas.
Quase não, inumanas mesmo. E o mais estranho não era isso.
A boca dela tornara-se um buraco negro. Ele se viu quase meio corpo para dentro
dela, porém não sentiu isso. Sentiu o maior dos prazeres que já havia experimentado
até então.
Ele se viu afundando cada vez mais, e pensou na ironia que era a vida.
“Não parece uma maneira tão ruim assim de morrer”, pensou ele.
“Ah, mas é”. Ele ouviu isso em sua mente, uma voz tão horrível, que mesmo essas
poucas palavras lhe causaram um terror que nunca sentira antes.
Após ouvir isso, a dor começou.
Ele começou a gritar. Parecia que estava entrando em um triturador de lixo. Seus
pés foram primeiros, estilhaçados. Suas canelas, joelhos, coxas. Quando chegou a
vez de seu pau, a dor já se misturava em um turbilhão em seu cérebro, e ele não
distinguia mais nada. Ela, por seu lado, gemia e soltava sons de prazer.
Enterrado até o pescoço, triturado da cintura para baixo, ele olhou nos olhos
dela.
Negros como a noite.
“Eu como por fome. Mas você, eu comerei por diversão”.
E ele afundou completamente naquele poço da morte, já morto quando sua cabeça
entrou por fim na boca daquele demônio.
Ela se levantou, boca de tamanho normal, olhos verdes e testa lisinha. Olhou para
o carro do homem a quem acabara de ingerir.
E sorriu, saciada e contente, antes de voltar para seu ponto, curiosa para saber se
sua amiga também se dera tão bem naquela noite.

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Samizdat 4 - maio 2008

Delta T
Marcia Szajnbok

Tempo zero:
Olhos nos olhos, ambos estáticos. Devagar, ele pensa, devagarzinho para não
assustá-la... Não queremos que ela fuja, certo?... A mão direita parada, a esquerda
desliza sutil pela parede, lenta, quadro a quadro... Num átimo, a alcança! Tão
rápido... Sentia seu pequeno corpo frio sob os dedos, mas o olhar não fora capaz
de acompanhar o movimento. Agora lá estava: presa. Sua. Sorria, gozando a doçura
da vitória sobre o mais fraco. Covardia? Por certo, não. Poder, talvez, um treino, um
jogo, um faz de conta... Perdido na imagem de si como rei, ou general, ou ditador, não
notou que ela era capaz de tão estratégica fuga: deixando para trás um pedaço de si,
um resto de corpo mesmo que ainda vivo, escapara... E agora, tudo o que tinha nas
mãos era isso: um resto. Um pedaço de cauda de lagartixa que o menino, derrubado
de volta à realidade, atira longe, tomado de raiva e despeito. Para que serve afinal um
bicho desses? , pensa, em frustrada tentativa de consolo. No íntimo, porém, não se
engana. Foi-se a lagartixa, foi-se o resto da cauda abandonada, ficou a dor. Um ponto
doloroso no meio do peito, atrás do osso... Estranho osso de nome esterno, justo
esse que ficava tão dentro... Tentou jogar bola, saiu a andar, comeu doce de leite. O
dia terminou sem surpresas. À noite, chorou sozinho, escondido pela escuridão até
de si mesmo. Onde já se viu, menino chorar por uma coisa dessas? Mas chorava,
chorava porque doía, doía imensamente aquela falta, aquela partida sem adeus.
Tempo x diferente de zero:
O olhar fixo sobre a porta fechada. Imóvel, recortado do ambiente, não se descuida
da expectante entrada. Mas ela não vem. Ela nunca chega. Por mais que procure
disfarçar de si a própria certeza, ele sabe, convicto: não chegará. Não voltará. Nas
mãos apenas um pedaço de pano azul, o resto, a sobra morta do que fora corpo e
agora pura ausência. Um pedaço de pano-cauda, da mulher-lagartixa para sempre
perdida. Dor.

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Caso Isabella. Até onde somos culpados?


Giselle Natsu Sato
Caso Isabella. Até onde somos mistas na Cadeia Pública? Como não
culpados? - giselle Sato foram socorridas? Ninguém viu ou ouviu.

Não gostaria de falar sobre Isabella mas Jogaram pela janela uma vida enquanto
estou sufocando com tantas informações tantas outras são lamentadas, sofridas e
absurdas. Sinto uma angústia crescente, queridas. Porque o ser humano é capaz
raiva e indignação, dor e desapontamento. de atos tão desprovidos de misericórdia.
Está muito difícil suportar. Não quero
o lamento inútil, desejo ser solidária a Quantos nunca ouviram ou sentiram o
criança que ela personifica. toque sublime do amor incondicional? O
respeito por cada ser vivo. O respeito por
Cada criança perdida desde o início si mesmo.
dos tempos. Crimes que jamais foram
solucionados ou questionados. Nossas Gratidão. Comunhão com a vida.
meninas estão sendo torturadas. Na Compreender que cada respiração é um
inexistência da bondade que a consciência milagre divino. Expandir a consciência
dos deveres paternos sejam mais fortes. e enxergar além da forma física infantil.
Ver que naquele corpinho habita um ser
É difícil aceitar a maldade. Mas ela humano. Com direitos, merecimentos,
existe, disfarçada em lares aparentemente sob nossa tutela, proteção e amparo.
perfeitos.
Não posso negar as palavras o direito
A formação familiar ausente produz de formar o texto que escrevo com tanto
seres incapazes de atitudes morais. O pesar. Não posso calar a voz que grita em
meio em que vivemos não nos ensina meu peito que é preciso ser útil. Mesmo
nada além da violência e competição pela correndo o risco de ser repetitivo e triste.
sobrevivência.
Da próxima vez que for testemunha de
Tiros, assaltos, crimes violentos, alguma agressão ou maus tratos, pouco
espancamentos, todos os dias os jornais me importa se pensarão que sou louca,
publicam horrores. Nossas crianças vou agir de acordo com minha consciência.
brincam com o perigo, estão no fogo Quem sabe aquele pai que caminha pelo
cruzado, são usados como escudos pelos Shopping cheio de sacolas de brinquedos
traficantes. São alugadas como objetos. caros esteja arrastando o filho pelos
cabelos porque está descontrolado e um
São tantas crianças sofrendo e foi simples alerta fará com que ele pense
preciso uma delas ser arrastada em duas vezes antes de atirar o menino pela
frangalhos pelas ruas para a população janela.
ouvir o grito frágil. Encontraram a menina
acorrentada e indefesa. Era apenas Calar também é permitir e se omitir é
mais uma de tantas outras . Porque não tão crime quanto praticar.
escutaram os gritos? Quantas outras
ainda estão no cativeiro? Ou em celas

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Samizdat 4 - maio 2008

Sobre os Autores da SAMIZDAT


Carlos Alberto Barros
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde sempre,
artista plástico formado, escritor. Começou sua vida profissional
como educador e, desde então, já deixou seu rastro por ONG’s,
Escolas e Centros Culturais, através de trabalhos artísticos
e pedagógicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilustração para
crianças, estuda pós-graduação em História da Arte e escreve
para publicações na internet.

http://desnome.blogspot.com

Denis da Cruz
Advogado, Servidor Público, marido de Elisa
e pai dos pequenos Lívia e Kalel. Escritor amador,
faz da literatura um agradável e despretencioso
passatempo. Mais detalhes, o leitor poderá flagrar
nos textos que serão apresentados na Samizdat,
afinal, já escreveu certa vez: “não sou nenhuma de
minhas personagens, mas sou todas elas vivendo ao
mesmo tempo”.
http://www.recantodasletras.com.br/autores/kzar

Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma
contadora de histórias carioca. Estudou Belas Artes
e foi comissária de bordo — cargo em que não fez
muita arte, esperamos. Adora viajar (felizmente!) e
fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando
de concursos e escrevendo para diversos sites pela
net. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a
textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da
sociedade em que vivemos, principalmente daquilo
que é comumente jogado para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.

http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

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Henry Alfred Bugalho


É formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor de
quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Mora, atualmente, em Nova York, com sua esposa
Denise e Bia, sua cachorrinha.

www.maosdevaca.com

José Espírito Santo


Informático com licenciatura e pós graduação
na Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa, trabalha há largos anos em formação
e consultoria, sendo especialista em Bases de
Dados, Sistemas de Gestão Transaccional e
Middleware de “Messaging”. A paixão pela escrita
surgiu recentemente, tendo no ano de 2007
produzido os livros “Esboços” (contos) e “Onde
termina esta praia” (poesia). Vive com a família
em Portugal em Alverca, uma pequena cidade um
pouco a norte de Lisboa.

http://www.riodeescrita.blogspot.com/

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever de
vez em quando. Paulistana convicta, vive desde sempre
em São Paulo.

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Samizdat 4 - maio 2008

Pedro Faria
Estuda Matemática na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, músico amador e escritor
quando dá na telha. Nascido e criado no Rio.

http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Volmar Camargo Junior


Gaúcho. Formado em Letras pela
Universidade de Cruz Alta, não leciona por
sua própria vontade. Começou a namorar
via postal, e acabou trabalhando no Correio.
É casado com a bela Natascha, e com ela
mora em um cartão postal: Canela, na Serra
Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie,
uma gata voluntariosa e cínica. Escreve por
prazer, e até agora não havia pensado em
uma razão para publicar.

http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

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