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maio de 2008
Capa e Diagramação:
Autores
Denis da Cruz
Marcia Szajnbok
Pedro Faria
Todas as imagens publicadas são de domínio
Volmar Camargo Junior
público ou royalty free.
Autores Convidados
Marcello Henrique
Priscila Lopes
Textos de:
Lima Barreto
Imagem da capa:
Chapeuzinho Vermelho
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Índice
A Páscoa Retardada 3
Carlos Alberto Barros
Panorama Literário
Autopublicação – Vale a pena? 7
Denis da Cruz
Recomendações de Leitura
DOIS ROMANTISMOS 10
O tal negócio de “Prestações” 14
Lima Barreto
Arte 17
Volmar Camargo Junior
Laboratório poético I 19
Volmar Camargo Junior
O Abraço 23
Henry Alfred Bugalho
Complexidades 26
Lehgau-Z Qarvalho
Três Pontos... 30
José Espírito Santo
MICROCONTOS 31
TRADUÇÃO
Chapeuzinho Vermelho 34
Rapunzel 38
CRÔNICA
Uma Crônica em Três Minutos 42
Volmar Camargo Junior
Na Noite Carioca 43
Pedro Faria
Delta T 46
Marcia Szajnbok
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Samizdat 4 - maio 2008
compre, mesmo o lixo possui prioridades melhor, a rede de contatos que, se não é
na hora de ser absorvido pelo mercado. tão influente quanto a da grande mídia,
faz do leitor um colaborador, um co-autor
E a autopublicação, como em qualquer da obra que lê. Não há sucesso, não há
regime excludente, torna-se a via para grandes tiragens que substitua o prazer
produtores culturais atingirem o público. de ouvir o respaldo de leitores sinceros,
que não estão atrás de grandes autores
populares, que não perseguem ansiosos
Este é um processo solitário e
os 10 mais vendidos.
gradativo. O autor precisa conquistar
leitor a leitor. Não há grandes aparatos
midiáticos - como TV, revistas, jornais -
onde ele possa divulgar seu trabalho. O
único aspecto que conta é o prazer que a Os autores que compõem este projeto
obra causa no leitor. não fazem parte de nenhum movimento
literário organizado, não são modernistas,
Enquanto que este é um trabalho pós-modernistas, vanguardistas ou
difícil, por outro lado, concede ao criador qualquer outra definição que vise rotular
uma liberdade e uma autonomia total: ele e definir a orientação dum grupo. São
é dono de sua palavra, é o responsável apenas escritores interessados em trocar
pelo que diz, o culpado por seus erros, é experiências e sofisticarem suas escritas.
quem recebe os louros por seus acertos. A qualidade deles não é uma orientação
de estilo, mas sim a heterogeneidade.
E, com a internet, os autores possuem
acesso direto e imediato a seus leitores. A
repercussão do que escreve (quando há)
surge em questão de minutos. Enfim, "Samizdat" porque a internet
é um meio de autopublicação, mas
Ao serem obrigados a burlarem a "Samizdat" porque também é um modo
indústria cultural, os autores conquistaram de contornar um processo de exclusão
algo que jamais conseguiriam de outro e de atingir o objetivo fundamental da
modo, o contato quase pessoal com os escrita: ser lido por alguém.
leitores, o diálogo capaz de tornar a obra
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A Páscoa Retardada
Carlos Alberto Ramo
A páscoa estava chegando. Para alguns,
época de felicidade, festa, comer chocolate. Para
outros, exatamente o contrário. E neste último
caso, encontrava-se Dinho – garoto pobre, de
bom coração... na medida do possível, alegre.
Aconteceu que, nessa próxima páscoa que se aproximava, a típica frase mudou:
- Dinho, o pai vai ver se consegue te dar um ovo desta vez, hein! Mas, não se
empolga, não. Se der, vai ser pequenininho...
- Êba! Obrigado, pai! – falou o menino, enquanto dava um pulinho como quem
marca um golaço.
Os dias se seguiram com Dinho ansioso, numa expectativa enorme. Para dormir
era difícil, pois ficava imaginando como seria seu ovo. Assim, quando finalmente
chegou a páscoa, acordou mais tarde que de costume – era o resultado das noites
mal dormidas. Ao lado de sua cama havia um bilhete: “Filho, o pai teve que ir trabalhar
mais cedo hoje. Vê se dá uma arrumada na casa. E mais tarde a gente conversa
sobre seu ovo”. Esses recados eram comuns. Inclusive, funcionavam como incentivo
para o menino se desenvolver na leitura, coisa que seu pai fazia questão: “Somos
pobres, mas temos que ser inteligentes” – se preocupava com o filho, que era sua
única família.
Quando o garoto se preparou para levantar, viu algo que fez seus olhos brilharem.
Estava ali no chão, logo à sua frente, o tão esperado ovo de páscoa. Via aquele
embrulho vermelho e sorria. Sorria como quem tivesse encontrado ouro. Seu sonho
se realizara.
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Samizdat 4 - maio 2008
Não se passou muito tempo, já estava com o embrulho aberto sobre seu colo e
o ovo partido em duas metades. De dentro delas, escapou um papel dobrado – era
outro bilhete. “O que meu pai pôs aqui?” – perguntou para si mesmo. Em seguida,
começou a ler:
Atenção: NÃO COMA ESTE OVO! Repito: NÃO COMA ESTE OVO! Ele está
envenenado! Contém toda a ambição e maldade dos homens. Se comê-lo, deixará
de ser uma criança inocente e fará parte de um plano maligno onde poucos ganham
e muitos perdem. Não se deixe dominar! Mais uma vez, repito: NÃO COMA ESTE
OVO!
Levou uma das metades até o nariz e cheirou uma vez; depois outra, mais
profundamente. “O cheiro é gostoso... Não tem veneno, não... É brincadeira do
pai...” – disse, tentando se convencer. Em seguida, quebrou um pedaço e levou à
boca. Saboreou o chocolate como quem nunca tivesse comido, juntando o prazer do
paladar com o da posse. “Um ovo inteirinho para mim. E não está envenenado coisa
nenhuma!” – pensava aos suspiros e mordidas, até que não sobrou mais nada.
Quando o pai de Dinho voltou do trabalho, notou que o rosto do filho estava
diferente. Não sabia exatamente o que, mas algo mudara.
- Pai, acho que não sou mais uma criancinha para ser chamado de Dinho. Por que
não me chama de Armando? – disse o menino, enfático.
- Ah, pai... Eu não me sinto mais uma criança. E meu nome é Armando, qual o
problema de me chamar assim?!
Achando que se tratava do fato do ovo não ser tão grande, o garoto se adiantou:
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A remuneração do garoto era para ajudar o pai. O pouco que sobrava, guardava
num cofre secreto que tinha embaixo da cama. Pensava em montar um negócio – era
jovem, mas possuía uma mente empreendedora. Com o tempo, conseguiu juntar
algum dinheiro, logicamente, a custo de se afastar dos amigos, não ter namorada,
deixar os estudos e não conseguir mais conversar com o pai direito (brigaram pelo
abando da escola). A vida de Armando era só trabalho, mas, ainda assim, foi um longo
caminho até conseguir o que queria.
Quando, finalmente, juntou uma boa quantia, abriu uma pequena casa de comércio.
O trabalho era duro e, para auxiliá-lo, colocou o pai como seu empregado. Pagava o
mesmo que o homem ganhava como porteiro. “Para ser justo, pai”, dizia. Contudo,
não demorou muito e Armando, já um adulto obstinado, despediu o auxiliar: “Pai, o
senhor sempre está muito doente... Melhor achar outro lugar para trabalhar”.
Certa noite, recebeu um telefonema. “Ele está muito mal... não consegue se
cuidar sozinho... precisa de alguém por perto...” – era um vizinho de seu pai. Dias
depois, Armando foi visitar sua antiga residência. Lá chegando, logo cortou os
sentimentalismos: “Pai, sei que o senhor está mal, mas, preciso trabalhar. Vamos
resolver isso logo”. Assim, tratou de encaminhar o velho ao asilo público mais próximo
e, em pouco tempo, já estava de volta aos negócios.
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- Do único ovo que você meu deu! No chão do meu quarto, com embrulho vermelho,
bilhete dentro...
- Mas... Bom, deixa... Nem me lembro disso direito... Deve ter sido alguma bobeira
de criança, imaginação...
- Você ainda lembra desse apelido, pai?! – olhou-o entortando o rosto – Não se
esqueça de levar ele para o túmulo – falou consternado.
- Não precisa repetir esse nome de novo. Não gosto! – olhou o relógio – E eu
tenho que voltar para resolver umas pendências do escritório. Tem algo importante
para falar ainda?
- Tudo bem, então, senhor Armando. Acho que o que tinha para ser dito já foi. Bom
trabalho, meu filho. E boa páscoa. Só tome cuidado, que chocolate faz mal...
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Panorama Literário
Denis da Cruz
Há pouco tempo, a única via para Para se ter “sucesso” com esses
ser lido era ter um caderninho escrito à meios, aconselho duas coisas:
mão e emprestá-lo para amigos (os mais
íntimos, claro). A grande maioria dos 1) Divulgação – Não adianta o autor
textos produzidos iam mesmo era para a se autopublicar num site, ter um blog,
gaveta. e não espalhar aos quatro ventos que
o tem. Parentes, amigos, contatos de
Hoje, até esses escritores de gaveta msn, fóruns, orkut, etc, etc. Onde tiver
podem, no mínimo, publicarem seus oportunidade, diga: “acesse meu blog”.
textos na internet. Aliás, esta é a grande Se o autor é cara de pau o suficiente,
aliada do escritor na autopublicação. mande um spam uma vez ou outra.
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A longo prazo, pode surtir resultado, Fiz uma rápida pesquisa com tais leitores,
pois, para um eventual contato com questionando como eles gostariam que fosse o
guia, se deveria manter a estrutura do blog ou se
editor, o escritor terá algo concreto deveria se assemelhar mais a um guia tradicional
para apresentar: “meu blog tem muitos e todos, sem exceção, me disseram que tinha
acessos.” “vendi vários livros em sistema que ser como o blog, pois este era o grande
de autopublicação”. diferencial.
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Recomendações de Leitura
DOIS ROMANTISMOS
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Nem de propósito! No dia seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando
o sinal e obrigando-se a pagar doze mil-réis, mensalmente.
Vivi também tinha visto nas mãos de Sárak uns borzeguins de cano alto, de
pelica, muito bons; mas não tivera o dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro
adiantamento.
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Estava no dever de pagar doze mil-réis por mês, que ela esperava obter com o
produto de suas costuras.
Assim foi feito; e, no domingo seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado que
logo se desarranjou.
Ela ajudava a mais velha, a Vivi, nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte
do que ganhava.
O mês correu e não bem para os cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não
pudera trabalhar na “Singer”. A moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia
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da família, pois houve aumento de despesas com medicamentos, dieta, etc. dona
Conceição não pôde fazer economias nas compras, pois tinha que atender ao
acréscimo de despesa com o aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar
da irmã, não foi permitido bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da
mais velha, não foi dado oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e,
finalmente, não tendo Vivi trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a primogênita
lhe dava.
No mês que se seguiu, as coisas não correram tão bem como elas esperavam.
Não houve remédio senão pagar, e, ainda hoje, quando o modesto operário
encontra um homem de prestações, diz com os seus botões:
– Não sei como a polícia deixa essa gente andar solta... Só se lembra de perseguir
o “bicho” que é coisa inocente.
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Arte
Volmar Camargo Junior
Um par de olhos observava por detrás última porção a desintegrar-se pelo fogo,
do vidro uma silhueta feminina deformar- conservando até o fim um sorriso casto
se lentamente. Encontrou-a escondida em e estúpido. Já não era mais um corpo,
um dos cômodos da própria casa. Estava mas uma massa amorfa e enegrecida.
nua. Assistia às pequenas mãos e os pés, Sem pressa, o algoz levou os dedos até
delicados, minúsculos, tocando o aço um dos dispositivos do instrumento de
fervente, e em pouco tempo, queimando. sua arte, interrompendo gradualmente o
Os braços e as pernas, curvando-se em alento do fogo até as chamas azuladas
direções não-naturais sob os efeitos da extinguirem. Riu. Em silêncio, para não
temperatura. O cabelo, antes louro e despertar a atenção da vizinhança.
sedoso, misturando-se indistintamente a Esqueceu-se de que o cheiro poderia
todo o resto. Ele achava curioso: a vítima atrair mais curiosidades que qualquer
era em tudo semelhante a uma mulher gargalhada. Assim mesmo, riu satisfeito
adulta, porém, em tamanho menor. e sem fazer ruído por longos instantes.
Definitivamente, concluiu o carrasco, ela
não era como uma mulher, pois ele sabia Não teria problemas em evitar os
que um tanto abaixo do umbigo, na parte intrometidos, os que sempre investigavam-
onde as pernas se uniam, nas mulheres no sobre o que fazia como se tudo fosse
mais velhas havia pêlos. Na da pequena condenável. Tinha em abundância o que
que o calor consumia, era lisa como o mais necessitava: criatividade e tempo. A
resto. Os olhos aproximaram-se do vidro casa era cercada por um arvoredo sombrio.
– ansiavam pelo desfecho. Admirou-se O que desejasse ocultar aos curiosos
ao notar que o rosto de sua cativa foi a tinha naquele labirinto de troncos, folhas,
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arbustos, sombras, formigas e terra o — Credo, piá! Como não? — diz Cássia
esconderijo perfeito. Especialmente o que ao abrir a portinhola do forno do fogão a
fosse preciso manter em sigilo. Arrastou gás. Dentro há tanto o cheiro quanto uns
para lá sua última obra. restos de plástico derretido. — Acho que
a vó esqueceu alguma coisa no forno de
Despreocupado, percorreu o espaço novo. O que será que era?
entre a casa e o bosque até mergulhar
em sua sombra. A terra não era dura, e — Acho que era um pote — diz
ele era habituado a ocultar coisas sob o menino, olhando curioso, como se
o solo. Assim, com as mãos, cavou. realmente não soubesse de que se trata.
Jogou no buraco o pouco que restou da
loura. Sorriu, contemplando-a. Lembrou- — Bom, seja o que for, Eninho, vai
se que ali mesmo, a poucos metros, brincar lá fora, vai. Eu vou limpar isso
ocultara outras artes suas: a ruiva, que daqui antes que a vó ou a... — faz uma
atropelou; a negra, que usou em seus careta de desdém —... Luciana cheguem.
experimentos com água sanitária; até Ah, melhor!, vai tomar um banho. Tu ta
mesmo o moço que serviu de alvo para a podre de sujo, guri!
prática de tiro com arco. Ninguém jamais
soube o que lhes aconteceu. Tinha as
— Ah, não. Eu tomei banho ontem.
mãos, principalmente as reentrâncias
debaixo das unhas, encardidas pelo
negrume da terra do bosque, tantas — ‘Tão ta, Cascão. Tu que te entenda
vezes havia ali enterrado seus segredos. com a vó, daí. Agora, xispa!
Atravessou, imundo, o caminho de volta.
À distância, viu alguém chegar em casa — Por que tu quer que eu saia? Vai
pelo portão da rua. Abalou-se no mesmo brincar de boneca?
instante. Novamente, teria de responder
perguntas. — Eu não brinco de boneca, pirralho!
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Laboratório poético I
Volmar Camargo Junior
MCMXXXIX - MCMXLV rapou,
Plácida, frígida, pérfida ética. furou.
Cúpida cúpula, cópula, crápula.
Tétrica, gótica, mórbida súmula. Agora, não tem mais doce,
Cênica, cética: Era monótona. nem a rapa da panela.
Vômitos tóxicos,
Vísceras cáusticas.
Velhas raquíticas, velhos caquéticos.
Megalomaníacos.
Ambíguos sofísticos.
Cínicos, céticos. Apocalípticos.
A rapa da panela.
O vovô adora comer
a rapa da panela de doce. Flerte
A vovó fez brigadeiro Roseira branca,
só pra ele comer. na cerca, ama o céu
Não quis o doce. negro sem culpa.
Catou a colher e Chuva de verão
raspou o fundo da panela. Folha caída
Rapou, lambeu, lambeu, é barco no falso mar
rapou, lambeu, da enxurrada
rapou, rapou,
lambeu, Delícias
rapou, Chá de erva-doce,
rapou, bolinho-de-chuva.
rapou, Só falta chover.
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(imagem: http://www.prague-life.com/media/pics/velvet-revolution.jpg)
Vire e mexe surge algum escritor com o mundo, e como influenciaram seus
a inovadora de idéia de: contemporâneos.
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Samizdat 4 - maio 2008
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O Abraço
Henry Alfred Bugalho
— Podem fazer o que quiser com Mariana. Eu lhes garanto que ela não sentirá
nada.
— Ô, dona, já ouvi muita histórias sobre sua filha e vim ver com meus próprios
olhos. Mas não quero machucá-la.
O bruto estalou os dedos, e esmurrou Mariana na cara. Sem se mover, nem gemido,
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Samizdat 4 - maio 2008
O coração se apertou no meu peito. Aquela menina, com talvez onze ou doze
anos, dava a mais profunda lição de cristianismo: sendo atacada, amava seu inimigo;
apanhando, dava a outra face.
A imagem daquela menina me assombrou por dias, a cena dela apanhando dum
homem atrás do outro, sempre com aquele olhar sem vida, com os braços lânguidos
ensaiando um abraço, pele e ossos que pareciam borracha, invulneráveis à dor e ao
dano.
Amaldiçoei meu colega por ter me levado até ela e pedi para que não me convidasse
mais. Aos poucos, a recordação daquela noite foi se apagando.
Porém, um circo foi montado na cidade e prometi à minha irmã que levaria meus
sobrinhos para verem o palhaço e o elefante.
Creio que foi naquela noite que tomei a decisão de matá-la. Mariana não tinha um
semblante triste, mas era como se ela não existisse. Talvez ela padecesse de alguma
disfunção rara, que não a permitisse sentir nada, nem dor, nem prazer também. Qual
sentido há em ser apenas uma pedra, sem sensações, sem toque? A vontade de
matá-la era compaixão em mim. Enquanto a mãe queria explorar sua doença, eu, um
estranho, queria salvá-la dela.
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Aguardei na rua, diante do prédio. Ao ver a mãe de Mariana saindo, corri e subi até
o oitavo andar. Bati à porta e quem abriu foi Mariana, sem dizer palavra e oculta pela
penumbra. As luzes estavam apagadas e a única claridade fugidia era da televisão
acesa na sala.
Ouvir sua voz fez minhas pernas tremerem. Aquela não era voz dum ser humano,
muito menos duma menininha de doze anos. Tive medo, mas, mesmo assim, caminhei
em direção a ela. Ao ver-me me aproximando, Mariana estendeu os braços, aquele
abraço que sempre considerei como sendo uma resposta de amor extremo, mas eu
sabia, agora, que aquele era um abraço de ódio. Mariana não tinha doença alguma,
ela não era humana; se existisse o diabo, ou alguma entidade malévola, Mariana
seria a encarnação dele.
Na manhã seguinte, a mãe de Mariana me encontrou, sem vida, nos braços dela,
coluna vertebral estraçalhada, órgãos esmagados. A perícia policial foi conclusiva em
favor de Mariana, legítima defesa — faca com minhas digitais.
Todos sabiam do poder que a menina tinha para resistir aos ataques, mas
ninguém conhecia a força sobrenatural dela. Por isso, daquele dia em diante, nas
demonstrações públicas de Mariana, as mãos delas eram amarradas nas costas. Os
abraços cristãos enquanto apanhava, não mais.
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Sobre a autora
Liliam Kikuchi nasceu em São Paulo, mas reside atualmente no Japão. Dona-de-
casa e mãe de duas filhas. Escreve sem pretensões, por puro prazer.
Complexidades
Lehgau-Z Qarvalho
Voltei para o prédio onde ficava o meu quarto e propus para a senhoria limpar os
banheiros, pintar as paredes, lavar a louça, qualquer coisa. Eu precisava ter onde
dormir e, mais do que isso, necessitava reaver o meu PC. Ela jamais mostrara muito
os dentes para mim. Era uma mulher dos seus cinqüenta e poucos anos; cabelos
longos, porém eternamente presos; roupas surradas e fora de moda; olhar triste e
lábios carnudos.
Sim, pela primeira vez eu reparava em seus lábios. Ela falava e eu já nem mais a
escutava. De pé, parado na porta, eu apenas fitava sua boca movendo-se e espiralando
palavras soltas no ar. Passei a sentir também o seu perfume. Suave. Notei que estava
um tanto embaraçada. Eu disse então que precisava ir ao banheiro. Ela permitiu que
eu entrasse em seu pequeno apartamento no andar térreo. Ofereceu-me um café;
acompanhado de uma deliciosa torta de cerejas. Olhei-a bem dentro dos olhos. O
marido falecera há muito. Mais de uma década, falou-me. Senti seu hálito. Doce. A
pele macia e trêmula. A respiração ofegante. A noite a adensar-se. O café a esfriar
sob a puída toalha branca.
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Sobre o autor
Lehgau-Z Qarvalho é jornalista por formação; artista gráfico por impulso; músico
por amor e escritor por compulsão. Nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; e
renasceu na Internet, mundo. Autor do romance “A Teoria das Sombras”.
http://lehgau-z.blogspot.com/
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Samizdat 4 - maio 2008
O Jogo
José Espírito Santo
(imagem: http://www.theprintstudio.co.uk/artists/MerlynEvans/theChessPlayers.jpg)
Eu sei que o meu vizinho da frente é um tipo estranho. Habita aquelas duas
pequenas assoalhadas escuras há mais de vinte anos e nunca ninguém lhe conheceu
um emprego ou qualquer outro tipo de ocupação produtiva. Não tem mulher. Não se
lhe conhece qualquer família. Nunca se ouviu sair de lá o choro ou o riso de uma
criança.
Nunca comentei com ninguém sobre ele e nossa amizade. Nem com meus amigos,
nem com meu chefe ou colegas lá da repartição. Nem no restaurante que frequento
praticamente todos os dias. Nem mesmo com a minha família – meus pais velhinhos
lá na província que visito fim-de-semana sim fim-de-semana não.
Não sei como foi... entre nós estabeleceu-se aquele ritual. Todos os dias quando
chego, pego Faruk pela trela e o levo a passear um pouco. Paro aqui e ali, bebo uma
ou duas bicas, um ou dois whisky, ponho a conversa em dia e depois...
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Depois lá estou eu tocando a sua porta. Ele se apressa a abri-la sem uma única
palavra. Conduz-me até à pequena salinha e ficamos os dois a olhar para aquele
rectângulo mágico – o Jogo.
Ano passado apareceu por lá o Tiago. O miúdo tinha acabado de sair da escola
e ia me ajudar com os processos de sector imobiliário. Logo me veio com teorias de
conspiração. Os extra-terrestres para aqui, os homens verdes para ali. Se eu sabia
que muitas personagens ilustres tinham sido na verdade...extra-terrestres. Se eu
sabia que eles tinham estado na génese de toda a vida no nosso planeta. Se eu sabia
que hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo estávamos sendo observados,
discutidos, estudados. Um dia o miúdo não apareceu. Ninguém voltou a ouvir falar
dele. O mais certo é ter arranjado um biscate mais bem remunerado ou mais perto
de casa.
Todos os dias ele me espera...para jogar. Todos os dias o jogo tem novas nuances,
novos desafios. Às vezes ganho – desconfio que ele me deixa vencer, faz de propósito,
deve ter receio que eu perca o interesse por nosso vício comum. Por vezes me sinto
estudado, analisado, perscrutado até ao mais íntimo através dos desafios daquele
jogo infinito e empolgante. Ele joga em silêncio. Concentração absoluta. Não bebe.
Não come. Apenas através de sinais lhe adivinho a alegria da vitória, o elogio de uma
boa jogada ou a desilusão da derrota.
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Samizdat 4 - maio 2008
Três Pontos...
José Espírito Santo
Encontro de desencontros...
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MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho
Ejaculação Precoce
Bastava alguém dizer sim ao seu convite para jantar que já melecava as cuecas.
Mirabolância
Num gesto de desespero, tomou a decisão: se mataria, para que sua filha pudesse
receber seu seguro de vida.
Bagunçou a casa, escondeu jóias, quebrou móveis, tudo para simular um latrocínio.
Depois, se jogou pela janela.
O Papagaio
Era uma vez um papagaio lindo de bico vermelho e penas amarelas. Não cantava,
nem falava nem voava. Estava morto.
Mundo ao contrário
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Samizdat 4 - maio 2008
Desejo
— Príncipe Xin, qual é o seu desejo?
— Desejo ser o Imperador.
— Não será possível antes de sua maioridade,
Alteza.
— Então, me traz um sorvete de abacaxi.
Dívidas
Terêncio estava endividado e sem trabalho. Sacou a última parcela do seguro-
desemprego, rasgou as faturas atrasadas e comprou um revólver. A mulher teve que
vender a arma para pagar a fiança.
Demorou
— Amor...
— Quê?
— Broxei.
— Qual é a novidade? Tu é broxa!
— É, mas ele tava duro agorinha.
— E por que tu não me chamou?
— Eu chamei. Não viu quando eu disse: “Amor...”?
Tiroteio
— Ouvi dizer que é aqui que estão os valentes da cidade.
— Pois ouviu certo. Veio conferir?
— Não... é que eu não tinha mais onde me esconder do tiroteio.
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Ponto de vista
Sabe, a praça fica bonita à noite. Quer dizer, quando não chove. E quando não
tem nevoeiro. Ah, e quando não está tomada pelos cachorros de rua. E também,
quando não tem feira de dia. Na verdade, era mais bonita quando não tinha esse
bando de camelô. Também era melhor quando não tinha essas piranhas. E o chafariz
também já teve os seus dias. E sem as pichações também não era nada mal. É... a
praça tá feia!
SAC
— Alô, é do SAC?
— Sim, senhora. Em que posso ajudar?
— Vocês estudam pra trabalhar aí?
— S-sim, senhora.
— Então me diz uma coisa: o que é “odorífero”?
— Como?
— “Odorífero”, com nove letras e termina com “NTE”. Só falta essa pra terminar, e
eu não queria olhar nas respostas.
Um belo dia...
... começou a chover. Acabou-se o belo
dia.
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Samizdat 4 - maio 2008
TRADUÇÃO
(Fonte: Wikipédia)
Chapeuzinho Vermelho
Versão: Jacob e Wilhelm Grimm
trad.: Henry Alfred Bugalho
Era uma vez uma doce menininha. Todo mundo que a via gostava dela, mas
principalmente sua avó, que daria qualquer coisa à criança. Certa vez, deu a ela um
chapeuzinho feito de veludo vermelho. Porque lhe havia servido tão bem, e porque
não queria vestir nada mais, ela ficou conhecida como Chapeuzinho Vermelho.
— Venha cá, Chapeuzinho Vermelho. Aqui está um pedaço de bolo e uma garrafa
de vinho. Leve-os até sua avó. Ela está doente e fraca, e isto fará bem a ela. Saia antes
que fique muito quente e, enquanto você estiver indo, caminhe tranqüilamente e em
silêncio, e não corra para fora da trilha, ou você pode cair e quebrar a garrafa, então
sua vovó não receberá nada. Quando você entrar no quarto dela, não se esqueça de
dizer “bom dia”, e não fique xeretando em todos os cantos antes.
A vovó vivia na floresta, a meia hora da cidade. Assim que Chapeuzinho Vermelho
entrou na floresta, um lobo a encontrou. Chapeuzinho Vermelho não sabia que criatura
terrível ele era, por isso, não tinha medo dele.
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O lobo pensou consigo: “que criatura mais tenra. Que refeição apetitosa, será
melhor devorá-la do que à velha. E devo agir com astúcia, assim eu apanho as duas”.
Ele acompanhou Chapeuzinho Vermelho por um tempo, então disse:
— Veja, Chapeuzinho Vermelho, como estão bonitas as flores por aqui. Por
que você não dá uma volta? Acho que você não está ouvindo quão doce é o canto
dos passarinhos. Você caminha seriamente, como se estivesse indo para a escola,
enquanto tudo aqui na floresta está alegre.
Chapeuzinho Vermelho ergueu os olhos e, quando viu os raios de sol bailando aqui
e acolá por entre as árvores e as lindas flores crescendo por todo o lugar, ela pensou:
“que tal eu levar para a vovó um buquê? Isto a agradaria também. Está tão cedo
ainda, que eu conseguirei chegar lá em boa hora”. Assim ela saiu da trilha e correu
para a floresta à procura por flores. Mas toda vez que colhia uma, ela imaginava ter
visto uma ainda mais bonita ao longe, e corria atrás dela, e assim ela adentrava mais
na floresta.
Enquanto isto, o lobo correu direto para a casa da vovó e bateu na porta.
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Samizdat 4 - maio 2008
O lobo ergueu o ferrolho, a porta se abriu e, sem dizer uma só palavra, ele foi até
a cama da vovó e a devorou. Ele pôs as roupas dela, vestiu-se com o capuz dela,
deitou-se na cama e fechou as cortinas.
Mas Chapeuzinho Vermelho estava colhendo flores e, quando ela havia reunido
tantas que mal conseguia carregá-las, ela se lembrou da vovó, e se pôs a caminho
da casa dela.
Ela chamou:
— Bom dia, mas não recebeu resposta. Ela foi até a cama e abriu as cortinas. Ali
estava sua vovó com o gorro cobrindo o rosto e com uma aparência muito estranha.
E mal o lobo disse isto, ele saltou para fora da cama e engoliu Chapeuzinho
Vermelho.
Quando o lobo havia saciado seu apetite, ele se deitou de novo na cama,
adormeceu e começou a roncar bem alto. O caçador estava passando pela casa e
pensou consigo: “como a velha senhora está roncando. Vou conferir se ela precisa
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de algo”.
Então ele entrou no quarto e, ao se aproximar da cama, ele viu que o lobo estava
deitado nela.
Bem quando estava prestes a atirar contra ele, veio-lhe à mente que talvez o lobo
tivesse devorado a vovó e que ela ainda poderia ser salva, então ele não atirou, mas
pegou uma tesoura e começou a cortar a barriga do lobo adormecido.
Ele havia dado duas tesouradas quando viu Chapeuzinho Vermelho aparecer,
então ele deu mais duas tesouradas, e a menininha saltou para fora, gritando:
E, depois, a vovó também saiu com vida, mas quase não conseguia respirar.
Chapeuzinho Vermelho rapidamente apanhou grandes pedras, com as quais eles
encheram o bucho do lobo e, quando ele acordou, quis fugir, mas as pedras eram tão
pesadas que ele logo caiu e morreu.
***
— Abra a porta, vovó, sou a Chapeuzinho Vermelho e trago alguns bolos para
você.
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Samizdat 4 - maio 2008
Mas elas não falaram nada, nem abriram a porta, então o cabeça cinzenta
circundou a casa duas, três vezes e, por fim, subiu no telhado, pretendia esperar até
que Chapeuzinho vermelho fosse para casa à noite, então a seguiria e a devoraria
na escuridão. Mas a vovó viu o que havia nos pensamentos dele. Na frente da casa,
havia uma tina de pedra, então ela disse à menina:
Chapeuzinho Vermelho carregou até a grande tina estar quase cheia. O cheiro
de lingüiça subiu até o lobo, ele farejou e olhou para baixo, e, por fim, esticou tanto
o pescoço que não conseguiu mais manter o equilíbrio e começou a escorregar.
Escorregou do telhado direto na tina, e se afogou. Chapeuzinho Vermelhou voltou
feliz para casa e ninguém mais fez mal algum a ela.
Rapunzel
Versão: Jacob e Wilhelm Grimm
trad.: Henry Alfred Bugalho
Era uma vez um homem e uma mulher que há muito tempo, em vão, queriam
ter um filho. Por fim, a mulher teve esperança de que Deus lhes concedesse este
desejo. No fundo da casa deles, havia uma pequena janela, de onde se podia ver
um esplêndido jardim, repleto das mais lindas flores e ervas. Contudo, o jardim era
cercado por um alto muro, e ninguém se atrevia a ir até lá porque ele pertencia a uma
bruxa, que tinha grande poder e era temida por todo o mundo.
Um dia, a mulher estava diante desta janela, olhando para o jardim, quando ela
avistou um canteiro no qual estavam plantados os mais belos rapôncios — conhecidos
como rapunzéis na região —, e que pareciam tão frescos e verdes que ela os desejou,
e tinha a maior vontade de comer alguns. O desejo aumentou dia após dia, e como
ela sabia que ela não conseguiria obtê-los, ela se debilitou, e começar a parecer
pálida e desanimada.
— Ah, ela respondeu, se eu não puder comer um pouco de rapôncio, que tem no
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O homem, que a amava, pensou que, ao invés de deixar sua esposa morrer, ele
mesmo traria para ela o rapôncio, não importando o que isto lhe custasse. Ao cair
da tarde, ele escalou o muro e saltou para o jardim da bruxa, apressadamente ele
apanhou um punhado de rapôncios e o levou para sua esposa. Imediatamente ela
fez uma salada com eles e os comeu com voracidade. E, para ela, o gosto era tão,
mas tão bom, que no dia seguinte ela os desejava três vezes mais do que antes. Para
ter sossego, o marido acabou indo mais uma vez ao jardim. Assim, na penumbra da
noite, ele saltou para o outro lado de novo. Mas, após ter escalado o muro, ele levou
um baita susto, pois viu a bruxa parada diante dele.
— Como ousa, ela disse, com olhar de raiva, descer ao meu jardim e roubar meu
rapôncio como um ladrão? Você sofrerá por causa disto.
— Ah, ele respondeu, que a misericórdia substitua a Justiça, pois eu apenas decidi
a agir deste modo por pura necessidade. Minha esposa viu seu rapôncio desde a
janela e o desejou tanto que ela teria morrido se não os tivesse comido.
— Se este é o caso, como você diz, eu permitirei que você leve consigo quanto
rapôncio quiser, mas eu imponho uma condição, você deverá entregar a mim a criança
que sua esposa trará ao mundo. Ela será bem tratada, e eu tomarei conta dela como
se fosse uma mãe.
Aterrorizado, o homem concordou com tudo, e quando a mulher deu a luz, a bruxa
apareceu, subitamente, deu à criança do nome de Rapunzel e a levou consigo.
Rapunzel se tornou a mais bela criança debaixo do sol. Quando ela completou
doze anos de idade, a bruxa a fechou numa torre, no meio da floresta, que não tinha
escadas nem porta, mas quase no topo havia uma pequena janela. Quando a bruxa
queria entrar, ela ficava embaixo da janela e gritava:
“Rapunzel, Rapunzel,
Rapunzel tinha magníficos cabelos longos, belos como fios de ouro, e quando ela
ouvia a voz da bruxa, ela soltava suas tranças, enrolava-as num gancho na janela e,
então, o cabelo caía uma distância de doze metros, e a bruxa subia por ele.
Após um ano ou dois, o filho dum rei veio cavalgando pela floresta e passou perto
da torre. Então ele ouviu uma canção, que era tão encantadora que ele parou para
ouvi-la. Era Rapunzel que, em sua solidão, passava o tempo deixando sua doce voz
ressoar. O filho do rei queria subir até ela. Procurou por uma porta para a torre, mas
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“Rapunzel, Rapunzel
“Rapunzel, Rapunzel,
Imediatamente ela jogou para baixo o cabelo e o filho do rei o escalou. A princípio,
Rapunzel ficou terrivelmente assustada quando um homem, como nunca ela havia
visto antes, apareceu. Mas o filho do rei começou a conversar com ela como se fosse
um amigo, contou a ela que seu coração estava abalado, que não lhe deixava em
paz, e que ele tinha de vê-la. Então Rapuzel perdeu o medo e, quando ele perguntou-
lhe se ela queria se casar com ele, e ela viu que ele era jovem e bonito, ela pensou:
“ele me amará mais do que a velha Dona Gothel me ama”. Ela disse sim, e eles se
deram as mãos.
Ela disse:
— Eu quero ir embora com você, mas eu não sei como vou descer. Cada vez que
você vier, traga um retalho de seda e eu tecerei uma escada com eles, e, quando ela
estiver pronta, eu descerei e você me levará em seu cavalo.
Eles combinaram que, até então, ele viria se encontrar com ela todas as noites,
pois a velha vinha durante o dia.
A bruxa não percebeu nada de errado, até que, certa vez, Rapunzel disse a ela:
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— Diga-me, Dona Gothel, como é que tão mais difícil para você conseguir subir do
que para o jovem filho do rei; ele sobe rapidinho.
— Ah! Sua criança malvada, gritou a bruxa. O que é que você me disse? Eu pensei
que tinha separado você de todo o mundo e, mesmo assim, você me enganou.
Em sua fúria, ela apanhou as lindas tranças de Rapunzel, enrolou-as duas vezes
ao redor de sua mão esquerda, com a mão direita apanhou uma tesoura e, chique-
chaque, ela as cortou. As adoráveis tranças caíram no chão. E ela era tão inclemente
que levou a pobre Rapunzel para um deserto, onde ela tinha de viver em grande
pesar e penúria.
“Rapunzel, Rapunzel,
Ela jogou o cabelo. O filho do rei subiu, mas, ao invés de encontrar sua querida
Rapunzel, ele encontrou a bruxa, que o fitou com maldoso e venenoso olhar.
— Ahá, ela gritou, zombeteira, você veio pegar sua querida, mas o belo pássaro
não canta mais no ninho. O gato o pegou, e arranhará seus olhos também. Rapunzel
está longe de seu alcance. Você nunca mais a verá.
O filho do rei foi consumido por uma dor e, em seu desespero, pulou da torre.
Ele sobreviveu, mas espinhos sobre os quais ele caiu furaram seus olhos. Então ele
vagou, às cegas, pela floresta, não comia nada senão raízes e frutinhas, e não fazia
nada senão se lamentar e chorar pela perda da sua querida esposa.
Assim, ele perambulou, miserável, por alguns anos, mas, por fim, ele chegou
ao deserto onde Rapunzel vivia, com os gêmeos aos quais ela havia dado a luz,
em estado deplorável. Ele ouviu uma voz e ela parecia ser tão familiar que ele foi
em direção a ela e, quando ele se aproximou, Rapunzel o reconheceu, abraçou-o e
chorou. Duas de suas lágrimas molharam os olhos dele, que se abriram, e ele voltou
a enxergar. Ele a conduziu ao seu reino, onde eles foram recebidos com alegria e
viveram felizes por muito tempo, felizes e satisfeitos.
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CRÔNICA
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Na Noite Carioca
Pedro Faria
Ele a avistou próxima do Copacabana Palace, na Avenida Atlântica. Ela era ruiva,
usava uma mini-saia de vinil roxo e um top branco. Seus seios eram pequenos e seu
cabelo era curto.
Ela era perfeita.
Sem dizer nada, ele parou seu carro próximo à ela e abriu a porta do passageiro.
Ela fez sinal para sua amiga, que assentiu e voltou a se oferecer aos carros que
passavam. A ruivinha entrou no carro e fechou a porta.
- Qual é o seu nome, querido? -, perguntou ela, tímida. Ou era muito nova na
profissão, ou fingia muito bem.
- Papai. Apenas me chame de “papai”.
- Aonde vamos, papai?
- Fique quieta, querida.
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- Sim senhor.
Ela não disse mais nada.
Eles dirigiram por vários minutos. Durante o caminho, “papai” colocava a mão
nas pernas da pequena ao seu lado, e ia subindo até a entrada de sua vagina, e
pensava no que faria com ela. Ele já tinha tido várias putas como essa, magrinhas e
branquinhas, de peitos pequenos. Lembravam a ele sua filha. Para falar a verdade,
ele ainda preferia sua pequena Irina, porém ela se certificou que ele nunca mais a
tocaria, cortando seus pulsos na banheira.
“Primeiro a foderei, depois talvez eu a estrangule ou esfaqueie. Ainda não sei qual
dos dois”, era o que ele pensava durante sua viagem. Ela, por outro lado, ficou quase
que completamente calada, fora alguns gemidos que soltava quando o dedo dele
roçava em seu clitóris.
Chegaram à uma área florestada, na Tijuca. Estavam completamente sozinhos.
Ele removeu a capota do carro e mandou ela se sair. Ela se levantou, calada, e ele
logo a seguiu. Abraçou-a próximo a si, segurando em suas nádegas.
- Agora você vai agradar o papai, não vai, querida?
Ela olhava para baixo. Ele segurou seu queixo, levantou sua cabeça e olhou em
seus olhos.
- Não vai, querida?
- Sim, papai. -, foi sua resposta.
Ele ficou mais alguns segundos esfregando-se nela. Então, sentou-se no banco
traseiro e mandou ela se ajoelhar.
Abriu sua calça e retirou seu pênis. Notou os olhos dela se arregalando. “Um bom
toque”, pensou ele. Não era tão grande assim. Ele sabia que ela estava fazendo um
teatrinho. E adorava.
- Agora, chupa o papai, chupa.
Reclinou-se e fechou os olhos enquanto ela timidamente segurava seu pau,
movendo o prepúcio para cima e para baixo.
- Sim, sim -, murmurava ele.
Ela passou a punhetar mais rápido, lambendo ao redor da glande. Depois, começou
a chupar, enfiando o pau até o fundo de sua garganta.
Ele adorou. Ela mantia seu pênis em sua garganta, e fazia movimentos de engolir.
Ele, reclinado em bancos de couro já acostumados a receber corpos de putas mortas,
pensava em mil maneiras de vióla-la, após sua morte.
“Fazer um buraco em sua bochecha e foder ali mesmo... é uma boa. Ou então
comer seu cú até as pregas rasgarem. Mas tudo ao seu tempo”.
Enquanto isso, ele, deitado de olhos fechados, sentia algo que nunca havia sentido
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antes. A maneira com a qual ela chupava, era celestial! Ele sentia que seu pau ia
explodir, de tão bom que estava.
Visões de morte permeavam seu pensamento. Era um psicopata, e adorava isso.
Mal sabia aquela pobre putinha, que iria morrer depois de ser fodida.
Sentindo um êxtase até então nunca sentido, ele abriu os olhos e olhou para
baixo.
Era no mínimo engraçado.
Os olhos da menina haviam mudado. Tinham se tornado negros, completamente.
Sua testa adquiriu rugas estranhíssimas, quase que inumanas.
Quase não, inumanas mesmo. E o mais estranho não era isso.
A boca dela tornara-se um buraco negro. Ele se viu quase meio corpo para dentro
dela, porém não sentiu isso. Sentiu o maior dos prazeres que já havia experimentado
até então.
Ele se viu afundando cada vez mais, e pensou na ironia que era a vida.
“Não parece uma maneira tão ruim assim de morrer”, pensou ele.
“Ah, mas é”. Ele ouviu isso em sua mente, uma voz tão horrível, que mesmo essas
poucas palavras lhe causaram um terror que nunca sentira antes.
Após ouvir isso, a dor começou.
Ele começou a gritar. Parecia que estava entrando em um triturador de lixo. Seus
pés foram primeiros, estilhaçados. Suas canelas, joelhos, coxas. Quando chegou a
vez de seu pau, a dor já se misturava em um turbilhão em seu cérebro, e ele não
distinguia mais nada. Ela, por seu lado, gemia e soltava sons de prazer.
Enterrado até o pescoço, triturado da cintura para baixo, ele olhou nos olhos
dela.
Negros como a noite.
“Eu como por fome. Mas você, eu comerei por diversão”.
E ele afundou completamente naquele poço da morte, já morto quando sua cabeça
entrou por fim na boca daquele demônio.
Ela se levantou, boca de tamanho normal, olhos verdes e testa lisinha. Olhou para
o carro do homem a quem acabara de ingerir.
E sorriu, saciada e contente, antes de voltar para seu ponto, curiosa para saber se
sua amiga também se dera tão bem naquela noite.
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Delta T
Marcia Szajnbok
Tempo zero:
Olhos nos olhos, ambos estáticos. Devagar, ele pensa, devagarzinho para não
assustá-la... Não queremos que ela fuja, certo?... A mão direita parada, a esquerda
desliza sutil pela parede, lenta, quadro a quadro... Num átimo, a alcança! Tão
rápido... Sentia seu pequeno corpo frio sob os dedos, mas o olhar não fora capaz
de acompanhar o movimento. Agora lá estava: presa. Sua. Sorria, gozando a doçura
da vitória sobre o mais fraco. Covardia? Por certo, não. Poder, talvez, um treino, um
jogo, um faz de conta... Perdido na imagem de si como rei, ou general, ou ditador, não
notou que ela era capaz de tão estratégica fuga: deixando para trás um pedaço de si,
um resto de corpo mesmo que ainda vivo, escapara... E agora, tudo o que tinha nas
mãos era isso: um resto. Um pedaço de cauda de lagartixa que o menino, derrubado
de volta à realidade, atira longe, tomado de raiva e despeito. Para que serve afinal um
bicho desses? , pensa, em frustrada tentativa de consolo. No íntimo, porém, não se
engana. Foi-se a lagartixa, foi-se o resto da cauda abandonada, ficou a dor. Um ponto
doloroso no meio do peito, atrás do osso... Estranho osso de nome esterno, justo
esse que ficava tão dentro... Tentou jogar bola, saiu a andar, comeu doce de leite. O
dia terminou sem surpresas. À noite, chorou sozinho, escondido pela escuridão até
de si mesmo. Onde já se viu, menino chorar por uma coisa dessas? Mas chorava,
chorava porque doía, doía imensamente aquela falta, aquela partida sem adeus.
Tempo x diferente de zero:
O olhar fixo sobre a porta fechada. Imóvel, recortado do ambiente, não se descuida
da expectante entrada. Mas ela não vem. Ela nunca chega. Por mais que procure
disfarçar de si a própria certeza, ele sabe, convicto: não chegará. Não voltará. Nas
mãos apenas um pedaço de pano azul, o resto, a sobra morta do que fora corpo e
agora pura ausência. Um pedaço de pano-cauda, da mulher-lagartixa para sempre
perdida. Dor.
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Não gostaria de falar sobre Isabella mas Jogaram pela janela uma vida enquanto
estou sufocando com tantas informações tantas outras são lamentadas, sofridas e
absurdas. Sinto uma angústia crescente, queridas. Porque o ser humano é capaz
raiva e indignação, dor e desapontamento. de atos tão desprovidos de misericórdia.
Está muito difícil suportar. Não quero
o lamento inútil, desejo ser solidária a Quantos nunca ouviram ou sentiram o
criança que ela personifica. toque sublime do amor incondicional? O
respeito por cada ser vivo. O respeito por
Cada criança perdida desde o início si mesmo.
dos tempos. Crimes que jamais foram
solucionados ou questionados. Nossas Gratidão. Comunhão com a vida.
meninas estão sendo torturadas. Na Compreender que cada respiração é um
inexistência da bondade que a consciência milagre divino. Expandir a consciência
dos deveres paternos sejam mais fortes. e enxergar além da forma física infantil.
Ver que naquele corpinho habita um ser
É difícil aceitar a maldade. Mas ela humano. Com direitos, merecimentos,
existe, disfarçada em lares aparentemente sob nossa tutela, proteção e amparo.
perfeitos.
Não posso negar as palavras o direito
A formação familiar ausente produz de formar o texto que escrevo com tanto
seres incapazes de atitudes morais. O pesar. Não posso calar a voz que grita em
meio em que vivemos não nos ensina meu peito que é preciso ser útil. Mesmo
nada além da violência e competição pela correndo o risco de ser repetitivo e triste.
sobrevivência.
Da próxima vez que for testemunha de
Tiros, assaltos, crimes violentos, alguma agressão ou maus tratos, pouco
espancamentos, todos os dias os jornais me importa se pensarão que sou louca,
publicam horrores. Nossas crianças vou agir de acordo com minha consciência.
brincam com o perigo, estão no fogo Quem sabe aquele pai que caminha pelo
cruzado, são usados como escudos pelos Shopping cheio de sacolas de brinquedos
traficantes. São alugadas como objetos. caros esteja arrastando o filho pelos
cabelos porque está descontrolado e um
São tantas crianças sofrendo e foi simples alerta fará com que ele pense
preciso uma delas ser arrastada em duas vezes antes de atirar o menino pela
frangalhos pelas ruas para a população janela.
ouvir o grito frágil. Encontraram a menina
acorrentada e indefesa. Era apenas Calar também é permitir e se omitir é
mais uma de tantas outras . Porque não tão crime quanto praticar.
escutaram os gritos? Quantas outras
ainda estão no cativeiro? Ou em celas
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Samizdat 4 - maio 2008
http://desnome.blogspot.com
Denis da Cruz
Advogado, Servidor Público, marido de Elisa
e pai dos pequenos Lívia e Kalel. Escritor amador,
faz da literatura um agradável e despretencioso
passatempo. Mais detalhes, o leitor poderá flagrar
nos textos que serão apresentados na Samizdat,
afinal, já escreveu certa vez: “não sou nenhuma de
minhas personagens, mas sou todas elas vivendo ao
mesmo tempo”.
http://www.recantodasletras.com.br/autores/kzar
Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma
contadora de histórias carioca. Estudou Belas Artes
e foi comissária de bordo — cargo em que não fez
muita arte, esperamos. Adora viajar (felizmente!) e
fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando
de concursos e escrevendo para diversos sites pela
net. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a
textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da
sociedade em que vivemos, principalmente daquilo
que é comumente jogado para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/
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www.samizdat-pt.blogspot.com
www.maosdevaca.com
http://www.riodeescrita.blogspot.com/
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever de
vez em quando. Paulistana convicta, vive desde sempre
em São Paulo.
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Samizdat 4 - maio 2008
Pedro Faria
Estuda Matemática na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, músico amador e escritor
quando dá na telha. Nascido e criado no Rio.
http://civilizadoselvagem.blogspot.com/
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj
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