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(Do livro: "Raça e diversidade", Lilia Moritz Schwarcz, Edusp, 1996,São Paulo, págs. 220 e 221)
"... é nesse contexto de globalização, que é muito importante, que voltou a se acirrar o preconceito em geral,
não só contra o negro....
... a situação ocidental, no momento, é de um racismo raivoso; a xenofobia na Europa de hoje é uma coisa
impressionante; no entanto, é uma situação em alguns países europeus que os próprios colonizadores criaram.
Vou tomar o caso da França. Ali, num certo momento, devido à taxa de natalidade, havia mais pessoas velhas
do que jovens na população; assim, não havia mão-de-obra suficiente para algumas tarefas. A própria França
estimulou a importação de mão-de-obra barata africana, principalmente argelina, devido à questão colonial.
Até aí, tudo bem. Enquanto esses imigrantes ocupavam empregos de baixo nível na sociedade francesa, não
havia dificuldade; a xenofobia não era tão forte, apesar do preconceito que sempre existiu. Mas a partir do
momento que esses imigrantes começaram a ter filhos nascidos na França, e sua taxa de natalidade era muito
alta, então com esses filhos que cresceram e estudaram nas mesmas escolas com os colegas franceses passou a
haver uma situação de xenofobia aberta, conjugada a uma conjuntura econômica de desemprego acelerado.
Na Europa, e pelo menos em alguns países onde as universidade e escolas de primeiro e segundo graus são
públicas, não existe segregação social no ensino, como aqui. O filho do pobre e o do rico podem estudar na
mesma escola e na universidade. Aqui, a segregação social de fato começa – e não estou falando de negro,
estou falando de pobre e de rico – desde o jardim de infância e vai até a universidade. Então, como esses
filhos de imigrantes estudaram nas mesmas universidades com colegas filhos de franceses, eles começaram a
brigar para não ocupar mais as posições inferiores que seus pais imigrantes ocuparam; eles tinham direito a
brigar. E, nesse momento, devido à conjuntura econômica – pois há um problema de disputa pelo mercado de
trabalho e pelo espaço -, a xenofobia foi atiçada com muita força. Vemos o fenômeno dos skinheads, eu
conhecemos também aqui; é uma juventude marginalizada na sociedade, que não encontra o seu lugar mas
encontrou um bode expiatório, que é o imigrante, como aconteceu aqui com os nordestinos.
É isso que acontece nos países ocidentais europeus, tomando o exemplo da França. Além do mais há o fator
demográfico, que a longo prazo é um problema político: os filhos desses descendentes de argelinos, e outros
com nacionalidade francesa, fazem mais filhos do que os franceses, e têm direitos políticos; assim, dentro de
algumas décadas, são eles que irão definir, decidir o futuro político do país. Por aí se vê que é uma questão
política a longo prazo, além de ser uma questão econômica...."
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O RETORNO DO RACISMO
O racismo está de volta? Esta é a pergunta angustiada e angustiante que se faz nos dias
atuais e que pressupõe a existência de um racismo anterior que a história havia se
encarregado de escorraçar, expulsar, exorcizar, pelo menos, das sociedades ocidentais.
Agora, livre das peias que aparentemente o mantinham inerte ou encarcerado, retorna à
cena social, perturbando o cotidiano de pessoas e grupos, a vida de povos e nações.
Sim, o racismo voltou. Porém, ao contrário do que pensava toda uma geração de otimistas e
ingênuos, ele não havia sido sepultado. Permanecera, apenas, anestesiado durante um
quinhão de tempo para, hoje, reaparecer com os mesmos e velhos ingredientes tradicionais
condicionadas pelas configurações históricas da atualidade.
A esse racismo ressureto, que se convencionou rotular emergente, segue-se uma série de
reações. Uma delas, talvez a primeira, é a da perplexidade ante o reaparecimento de um
fenômeno que se julgara nunca mais dever mostrar a sua face perturbadora. Outra reação
explicita-se nas tentativas – racionais e não-racionais – de explicá-lo, e entendê-lo numa
frenética interrogação do porquê de seu retorno. Finalmente, uma terceira reação expressa-
se nos esforços de dominá-lo, de exorcizá-lo para, se possível, mandá-lo de volta a tempos
de onde nunca deveria ter saído.
Por que ficar perplexo perante um fenômeno que, ao que tudo indica, caminhou passo a
passo com diferentes manifestações, o mesmo caminho da humanização e que pode ser
surpreendido em qualquer condição de convivência humana? Em outras palavras, poder-se-
á dizer que o racismo na sua forma primordial – o etnocentrismo – é algo inerente à
própria natureza social do homem. A cultura e a história limitam-se a dar a forma e a
direção a esse etnocentrismo. Sabe-se, hoje, que todos os agrupamentos humanos, todos os
povos têm a explicação supervalorizada a respeito de suas origens, contrapondo-se à
desvalorização do outro.
Lévi-Strauss (antropólogo) relata, em seu livro "Tristes Trópicos", o mito de origem dos
índios mbaiá - guaicuru, cujo território situava-se em terras paraguaias e brasileiras. Eles
aprenderam a montar a cavalos e adquiriram com isso grande mobilidade e poder, passando
a dominar e explorar outros grupos indígenas da região.
"Quando o ser supremo, Gonoenhodi, decidiu criar os homens, tirou primeiro da terra os
guaná, depois as outras tribos; aos primeiros, deu a agricultura, e a caça às segundas. O
Enganador, que é outra entidade do panteão indígena, percebeu, então, que os mbaiá
tinham sido esquecidos no fundo do buraco e os fez sair; mas, como nada mais lhes
restasse, tiveram o direito à única função ainda disponível, a de oprimir e explorar os
outros."
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Os urubus, grupo tribal do vale do Pindaré (Maranhão), assim nomeados pelos vizinhos
(civilizados e índios) se autodenominam Kaapor (Kaa = madeira, mata, floresta e Pôr - ser).
Essa autodenominação sintetiza admiravelmente o mito ou a explicação da origem do
grupo. "Todos os homens vieram das madeiras. Todos. Só que, enquanto os Kaapor
originaram-se das madeiras boas, os outros homens (a humanidade, para eles) nasceram das
madeiras podres.
Jogando com outros dados, porém com os mesmos ingredientes etnocêntricos, a mesma
dualidade (bom/ruim) e com estruturas semelhantes, enuncia-se o mito da criação bíblica
original que, depois de incorporado pelos hebreus, classifica a humanidade em duas
categorias: a dos eleitos e a dos gentios. Foi preciso que o apóstolo Pedro, instado pela
visão do lençol que por três vezes desceu dos céus, concordasse em comer alimentos
proibidos por tabus judeus para que a dualidade eleito-gentio (bom/ruim) se desfizesse. Do
ponto de vista da história das religiões, a metáfora do lençol com a quebra dos tabus
alimentares representou a transformação do cristianismo de religião étnica em religião
universal. Da perspectiva da história no ocidente, do reconhecimento do outro como
portador de qualidades humanas, ou mais humanas, a metáfora simboliza a ruptura do
etnocentrismo pela universalidade da mensagem cristã.
Tudo indica que ainda se respiram resíduos do clima da Segunda guerra Mundial que,
esquematicamente, pode ser reduzida a confronto armado entre o etnocêntricos extremados
e os não menos extremados antietnocêntriso. Cada lado, como se sabe, amparado por
ideologias e políticas que justificam, a seu modo, a ação de cada qual. A Segunda guerra
põe a nu, com crueza, até que ponto o etnocentrismo manipulado ideológica, política e
militarmente pode ser um implacável perorado anti-humanidade com teor de crueldade e
requinte quase inimaginável. A vitória dos aliados representou, nessa linha de raciocínio, a
vitória dos antietnocêntriso e o aceno de uma política de harmonia étnica entre os povos.
Com essa vitória militar, jogava-se para os porões da história, para o pó do esquecimento, o
que havia de mais repelente no nazifascismo. Tão importantes, nesse ideário, como a
libertação política de países e povos do regime nazi-fascista, foram a desestigmatização das
minorias étnicas e a sua libertação para sempre do calvário a que estiveram até então
historicamente submetidas. A busca desse objetivo instrumentalizou-se e institucionalizou-
se, como se sabe, com a criação da Unesco.
Gunnar Myrdal, economista sueco, e neutro nórdico, coube perfeitamente nesse figurino,
conforme avaliação feita pela Carnegie Corporation. Desse trabalho, feito com o apoio de
uma grande equipe de especialistas, surge um livro clássico, com fortes influências
weberianas, que marcou os novos estudos sobre raça naquele país.
Anos depois, o Brasil foi palco de uma experiência muito rica. Baseada na imagem que se
tinha do país no exterior, a Unesco pretendia apresentar ao mundo o sistema racial
brasileiro como o modelo ideal de convivência harmoniosa entre raças diferentes. Essa
crença, fortemente consolidada no imaginário nacional e que a historiografia e a ciência
deram status de verdade, veio pouco a pouco, em ritmo político, se consolidando no
cansativo slogan (repetidos por gregos e troianos) de o país da democracia racial. Em
síntese, dentro do ideário de conhecer para orientar, o Brasil seria um dos modelos a ser
seguido pelas nações plurirraciais. É de todos conhecida a reação de intelectuais brasileiros,
mas à esquerda, contra essa idéia e como dessa reação nasceu o famoso projeto Unesco
sobre relações raciais no Brasil, sob a condenação de A . Metraux.
Os resultados dessa pesquisa inauguraram uma nova e fértil era na reflexão sobre a questão
racial brasileira e marcaram etapa significativa na conscientização do negro no país.
Tais pesquisas, como a realizada no Brasil, vêm revelar diferentes escalas e graduações dos
problemas raciais e deslocam a questão de racismo exterminador nazi-fascista para o
nuançado racismo contemporizador existente pelo mundo afora, em especial nas jovens
nações que se formaram com o braço escravo e com a mão-de-obra imigrante.
O racismo contemporizador, que aparentemente não fazia vítimas fatais e não tinha campos
de extermínio, ainda que desnudado pela sociologia crítica da década de 50, não
comprometia a idéia de que o racismo – o verdadeiro racismo – havia sido apagado da
história. Falar numa volta de políticas ou ações racistas, aqui no Brasil, nas décadas de
50/60, era desafiador, desagradável, inoportuno, quase uma expressão de lesa-humanidade.
Um novo mito se criara e ganhara corpo: a humanidade entrara, após a Segunda Guerra,
numa fase de sua história, desejável e irreversível, numa espécie de apocalipse, quando o
leão e o cordeiro conviviam lado a lado na mais perfeita harmonia. Exatamente nesse
instante o professor Juan Comas, reputado antropólogo espanhol exilado no México,
pronunciou uma série de conferências na USP e na Escola de Sociologia e Política,
alertando a todos os jovens ingênuos e otimistas para uma profecia: antes que o milênio
terminasse, a humanidade entraria em violentos conflitos por causa de exaltações
xenófobas, etnocêntricas, mescladas de radicalismo religiosos e raciais. Sua mensagem
soou como blasfêmia e como blasfêmia permaneceu até que, perplexa, essa geração de
ingênuos olhou um mundo convulsionado pelos mesmos ingredientes que embasaram as
posições nazi-fascistas, mas com uma desalentadora novidade: esses ingredientes estavam
também embutidos ou camuflados nos sistemas sociais tidos como igualitários e que se
proclamavam e eram proclamados como vanguardeiros na preservação das justiças sociais,
traduzidas também no respeito às identidades raciais e culturais.
Quais os fatores novos ou renovados que compõem essa cena étnica da atualidade? Pode-se
citar, em primeiro lugar, a aproximação inédita de povos diferentes no mesmo espaço
social e político, numa escala menor, porém só comparável ao da grande emigração do
século XIX, processo de deslocamento populacional que envolveu cerca de setenta milhões
de indivíduos. No século passado, as rotas de emigração iam da Europa para áreas então
periféricas do mundo, ajudando a construir assim as modernas nações pluriétnicas de hoje,
como o Brasil, Argentina, Estados Unidos, Austrália e tantos outros países de imigração.
Agora, ocorre o inverso, ou melhor, agora ocorre também o inverso através da migração
pan-européia, pan-americana ou, ainda, através da imigração transoceânica que leva
populações da chamada periferia para o centro. Atrás desses deslocamentos e aproximações
de povos e indivíduos estão fenômenos históricos como o desmantelamento de impérios
coloniais, que levou os antigos colonizadores a abrigarem em suas fronteiras expressivas
parcelas de grupos que optaram pela cidadania do Estado colonialista. Estão nesse caso a
França, Inglaterra, Holanda, Bélgica e até mesmo Portugal e Itália.
É uma política de aliciamento de mão-de-obra no exterior que procura não colocar em risco
a peça principal de seu mecanismo etnocêntrico: o cultivo do monorracialismo ou
monoculturalismo como chave do progresso do país. Ao atrair, preferencialmente, para o
seu parque industrial, os dekasseguis, o Japão procura diminuir os riscos de uma diferença
entre nativos e os àdvenas, confiado na ascendência étnica comum. Os fatos se
encarregaram de mostrar, pelo menos, dois pontos: o primeiro é que o Japão, como os
países europeus, não sabem lidar com a diversidade ou com o diferente. Obsedada por um
ideal monorracial, a sociedade japonesa segrega em espaços físicos e sociais os de fora,
mesmo que estes seja os seus descendentes na diáspora. O segundo ponto é que os
dekasseguis só têm em comum com os nativos as características biológicas, a começar pela
prega mongólica, mas ostentam personalidades que se plasmaram sob outras experiências
culturais. Não são japoneses mais, embora nos países de emigração sejam preconceituados
como tais; são americanos, peruanos, mexicanos, brasileiros e assim por diante. Por suas
características biológicas são alvo de estigmas, preconceitos, discriminações dentro da mais
refinada manifestação de racismo.
Outro fator que atua nesse quadro étnico atual está ligado ao que se pode chamar o
redesenhamento do mapa-múndi, que fez com que, em poucos anos, grande parte do
mundo europeu, consolidado há tempo, passasse por uma reviravolta até mesmo
inesperado. Redesenhar mapas é um ato político ou geopolítico. Mas, em geral, constitui-se
em poderoso elemento redistribuídos de populações, algumas com grande sentido de
identidade, a partir da raça, da cultura, do território. Nestes esquemas redistribuidores de
população reconhece-se facilmente uma prática racista: a de limpeza étnica, permeada de
tensões, conflitos e violências de etnias contra etnias....
Finalmente, marcando essa cena estão os fenômenos de reativação dos estigmas contra
etnias historicamente visadas: os judeus, os armênios, os ciganos. Juntem-se a esses povos
estigmatizados tradicionalmente os novos preconceituados e discriminados: negros,
hindus, árabes e até portugueses. Nos Estados Unidos, além do negro, a desqualificação
alcança de maneira dramática os latinos (sem nuanças).
Há um tipo de reflexão que procura estabelecer relação direta entre esses fenômenos e a
ascensão da direita ou o fortalecimento de um conjunto de idéias, à direita, que,
xenófobas, intrinsecamente etnocêntricas, exaltam os valores nacionais e, em
contraposição, repelem os valores e a convivência com os estrangeiros. Essa posição
política ganha adeptos e se fortalece na medida em que encontra uma população nativa que
se sente ameaçada, em vários planos, pela presença do estranho. Seria, entre tantos, os
casos da França e de Israel. Nesse país uma direita belicosa estimula e aplaude atos
políticos contra árabes, em que não estão ausentes as mesmas armas ideológicas,
decalcadas no etnocentrismo, usadas pelos alemães contra os judeus.
Não se trata de criticar a relação entre o estímulo à prática racista e o pensamento e o poder,
à direita, que aprecem empolgar o mundo neste final de milênio. É preciso, porém, deixar
claro que a situação atual representa apenas uma etapa de uma escalada etnocêntrica contra
estrangeiros, pelo menos desde a década de 60, em países como a França e Alemanha