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G.R.S.Mead
Edição de 1901
CONTEÚDO
I Introdução
II As Associações e Comunidades Religiosas do Primeiro Século
III Índia e Grécia
IV O Apolônio das Primeiras Descrições
V Textos, Traduções e Literatura
VI O Biógrafo de Apolônio
VII Primeiros Anos
VIII As Viagens de Apolônio
IX Nos Santuários dos Templos e Retiros Religiosos
X Os Gimnosofistas do Alto Egito
XI Apolônio e os Governantes do Império
XII Apolônio, o Profeta e Taumaturgo
XIII Seu Estilo de Vida
XIV Ele e Seu Círculo
XV De Seus Ditos e Sermões
XVI De Suas Cartas
XVII Os Escritos de Apolônio
I. INTRODUÇÃO
Se, ainda, ele acorrer aos últimos escritores da história da Igreja que
abordaram esta questão específica, verá que eles estão inteiramente ocupados
com os contatos entre a Igreja Cristã e o Império Romano, e só incidentalmente
nos dão alguma informação sobre a natureza do que buscamos. Neste terreno
específico, C.J.Neumann é interessante em seu cuidadoso estudo Der
römische Staat und die allgemeine Kirche bis auf Dioclecian (O Estado
Romano e a Igreja Geral até Diocleciano – Leipzig, 1890); enquanto que o Prof.
W.M.Ramsay, em seu The Church in the Roman Empire before AD 170 (A
Igreja no Império Romano antes de 170 d.C. – Londres, 1893) é extraordinário,
pois ele tenta interpretar a história romana através dos documentos do Novo
Testamento, cujas datas em sua maioria são tão calorosamente disputadas.
Mas, você pode dizer, o que tudo isso tem a ver com Apolônio de Tíana? A
resposta é simples: Apolônio viveu no primeiro século; seu trabalho foi
realizado precisamente entre estas associações religiosas, colégios e guildas.
Um conhecimento deles e de sua natureza nos daria uma ambientação natural
para grande parte de sua vida; e informação sobre suas condições no primeiro
século talvez nos ajudasse a entender melhor alguns dos motivos da tarefa que
ele empreendeu.
Entretanto, pode ser dito que esta informação não está disponível
simplesmente porque não é encontrável. De modo geral isto é verdade; não
obstante, muito mais do que já foi feito até agora poderia ser tentado, e os
resultados da pesquisa em direções específicas e nos desvãos da história
poderiam ser combinados, de modo que o leigo pudesse obter alguma idéia
geral das condições religiosas da época, e fosse assim menos inclinado a se
juntar à agora estereotipada condenação de todo o esforço moral e religioso
não-Judeu ou não-Cristão no Império Romano do primeiro século.
O Império Romano estava no auge de seu poder, e se não tivesse tido muitos
administradores notáveis e homens dignos na casta governante, uma
consumação política como aquela jamais poderia ter sido conseguida e
mantida. Mais ainda, e como jamais no mundo antigo, a liberdade religiosa era
garantida, e onde encontramos perseguições, como nos reinados de Nero e
Domiciano, isso deve ser atribuído a razões políticas antes que teológicas.
Pondo de lado a disputada questão da perseguição dos Cristãos sob
Domiciano, a perseguição de Nero foi dirigida contra aqueles que o poder
Imperial considerava como revolucionários políticos Judeus. Assim, também,
quando encontramos os filósofos presos ou banidos de Roma durante aqueles
dois reinados, não foi porque fossem filósofos, mas porque o ideal de alguns
deles era a restauração da República, e isto os tornou passíveis da
condenação de serem não só agitadores políticos, mas também de tramarem
ativamente contra a majestas do Imperador. Apolônio, entretanto, foi sempre
um ardoroso defensor da regra monárquica. Quando, então, ouvimos sobre
filósofos sendo banidos de Roma ou sendo lançados na prisão, devemos
lembrar que isto não era uma perseguição total da filosofia por todo o Império;
e quando dizemos que alguns deles quiseram restaurar a República, devemos
lembrar que a sua vasta maioria não se envolvia na política, e este
especialmente foi o caso dos discípulos das escolas religioso-filosóficas.
Entre elas devem ser enumeradas não somente as formas inferiores dos cultos
de mistérios de vários tipos, mas também as maiores, como os Mistérios
Frígios, Báquicos, Isíacos e Mitraicos, que estavam espalhados por todo o
Império. Os famosos Mistérios de Elêusis, entretanto, estavam sob a égide do
Estado, mas ainda que fossem tão famosos, como cultos estatais, eram muito
mais perfunctórios.
Além disso, não deve ser pensado que os grandes tipos de cultos de mistérios
acima mencionados fossem uniformes mesmo entre eles mesmos. Não havia
somente vários degraus e graus dentro deles, mas também com toda a
probabilidade havia muitas formas em cada linha de tradição, boas, más e
indiferentes. Por exemplo, sabemos que era considerado obrigatório para todo
cidadão respeitável de Atenas ser iniciado nos Eleusinia, e por isso os testes
não poderiam ser muito exigentes; enquanto que no trabalho mais recente
sobre o assunto, De Apuleio Isiacorum Mysterirorum Teste (Sobre o Teste de
Apuleio nos Mistérios de Ísis – Leyden, 1900), o Dr. K.H.E. De Jong demonstra
que numa forma dos Mistérios de Ísis o candidato era convidado à iniciação
através de um sonho; isto é, ele devia ser psiquicamente impressionável antes
que fosse aceito.
Apolônio circulou neste ambiente; mas quão pouco seu biógrafo parece ter-se
apercebido do fato! Filóstrato tem uma apreciação retórica de uma vida
filosófica palaciana, mas nenhum sentimento para a vida religiosa. É só
indiretamente que A Vida de Apolônio, como agora é descrita, pode jogar
alguma luz sobre estas interessantíssimas comunidades, mas mesmo um
clarão ocasional é precioso onde tudo está em tamanha obscuridade. Fosse
possível apenas entrar na memória viva de Apolônio e ver com seus olhos as
coisas que viu quando viveu dezenove séculos atrás, quão inestimável página
da história poderia ser recuperada! Ele não só percorreu todos os países onde
a nova fé estava assentando raízes, mas viveu durante anos na maioria deles,
e estava intimamente relacionado com diversas comunidades místicas do
Egito, Arábia e Síria. Certamente ele deve ter visitado também algumas das
primeiras comunidades Cristãs, deve ter palestrado até mesmo com alguns dos
“discípulos do Senhor”! Mas nenhuma palavra é dita sobre isso, nem obtemos
sequer um simples fragmento de informação sobre estes pontos do que foi
registrado sobre ele. Certamente ele deve ter-se encontrado com Paulo, se não
em outro lugar, pelo menos em Roma, em 66, cidade que ele teve de deixar por
causa do edito de banimento contra os filósofos, no mesmo ano em que
segundo alguns Paulo foi decapitado!
Há contudo uma outra razão pela qual Apolônio é importante para nós. Ele era
um admirador entusiástico da sabedoria da Índia. Aqui também se abre um
tópico de grande interesse. Que influências, se alguma houve, tiveram o
Bramanismo e o Budismo sobre o pensamento ocidental naqueles primeiros
anos? Alguns asseveram enfaticamente que houve grande influência; do
mesmo modo enfático outros negam que tenha havido alguma. Portanto é
aparente que não há evidência realmente inquestionável a respeito do assunto.
Exatamente como alguns atribuiriam a influência Pitagórica sobre a
constituição das comunidades Essênias e Terapêuticas, outros atribuiriam suas
origens à propaganda Budista; e não somente eles detectariam esta influência
nos preceitos e práticas Essênias, mas relacionariam até o ensino geral de
Cristo a uma fonte Budista sob uma feição monoteísta Judia. E não só, mas
alguns diriam que dois séculos antes, através do contato direto e comum da
Grécia com a Índia, produzido pelas conquistas de Alexandre, a Índia, via
Pitágoras, teria influenciado forte e duradouramente todo o pensamento grego
posterior.
A questão certamente não pode ser resolvida com uma negativa ou afirmação
apressadas; requer não apenas um amplo conhecimento de história geral e um
estudo detalhado das indicações esparsas e imperfeitas sobre o pensamento e
a prática, mas também uma fina apreciação do valor correto da evidência
indireta, pois não temos nenhum testemunho direto de natureza realmente
decisiva. Não pretendemos possuir estas altas qualificações, e nossa maior
ambição é simplesmente dar umas indicações muito breves e gerais sobre a
natureza do assunto.
É claramente asseverado pelos antigos gregos que Pitágoras foi à Índia, mas
como a declaração foi feita por escritores Neo-Pitagóricos e Neo-Platônicos,
posteriores ao tempo de Apolônio, é objetado que as viagens do Tianeu
sugeriram não só este item na biografia do grande Samiano mas diversos
outros, ou mesmo que o próprio Apolônio, em sua Vida de Pitágoras, foi o autor
do boato. A estreita semelhança, entretanto, entre muitas das características da
disciplina e doutrina Pitagóricas e o pensamento e prática Indo-Arianas nos
fazem hesitar ante rejeitar inteiramente a possibilidade de Pitágoras ter visitado
a antiga Âryâvarta.
A Pérsia deve ter estado naquele tempo em contato estreito com a Índia, pois
perto da morte de Pitágoras, no reinado de Dario, filho de Histaspes, e no fim
do sexto e início do sétimo século antes de nossa era, ouvimos sobre a
expedição do general Persa Scilax sobre o Indo, e aprendemos de Heródoto
que neste reino da Índia (isto é, o Punjab), ele constituiu a vigésima satrápia da
monarquia Persa. Mais ainda, havia tropas indianas entre as hostes de Xerxes;
elas invadiram a Tessália e lutaram em Platéia.
Que os Brâmanes tivessem nesta altura permitido que seus livros sagrados
fossem lidos pelos yavanas (os jônios, o nome genérico para os gregos nos
registros indianos) é contrário a tudo o que conhecemos de sua história. Os
yavanas eram mlechchhas [estrangeiros – NT], estranhos à sociedade dos
árias, e tudo o que poderiam obter da ciosamente guardada Brahma-vidyâ ou
teosofia deve ter dependido somente de observação externa. Mas a atividade
religiosa dominante na Índia de então era o Budismo, e é neste protesto contra
as rígidas distinções de casta e raça feitas pelo orgulho Bramânico, e na
extraordinária novidade de uma propaganda religiosa entusiástica entre todas
as classes e raças da Índia, é que devemos procurar pelo contato mais direto
de pensamento entre a Índia e a Grécia.
Por exemplo, em meados do século III a.C., sabemos, pelo XIII Edito de Asoka,
que este imperador Budista da Índia, o Constantino do oriente, enviou
missionários a Antíoco II da Síria, Ptolomeu II do Egito, Antígono Gônatas da
Macedônia, Magas de Cirene, e Alexandre II do Épiro. Quando, em um terreno
de registros tão imperfeitos, a evidência do lado da Índia é tão clara e
indubitável, quão mais extraordinário é que não tenhamos nenhum testemunho
direto de nosso lado sobre uma atividade missionária tão grande. Mesmo que,
então, meramente por causa de uma ausência de toda informação direta a
partir de fontes gregas, seja muito temerário generalizarmos, não obstante por
nosso conhecimento da época não é ilegítimo concluirmos que nenhum grande
impacto público poderia ter sido feito por estes pioneiros do Dharma no
ocidente. Com toda probabilidade estes Bhikshus [sábios ascetas – NT]
Budistas não produziram nenhum efeito sobre os governantes ou sobre o povo.
Mas foi sua missão inteiramente improfícua; e a iniciativa missionária Budista
para o ocidente termina com eles?
Mas mesmo assim, não somos daqueles que por suas limitações de
possibilidades auto-impostas estão condenados a considerar algum contato
físico direto como uma explicação para a similaridade de idéias ou mesmo de
frases. Considerando, por exemplo, que há muita semelhança entre os
ensinamentos do Dharma de Buda e o Evangelho de Cristo, e que o mesmo
espírito de amor e gentileza pervade a ambos, ainda não há necessidade, por
virtude desta semelhança, de procurar por uma transmissão puramente física.
Do mesmo modo quanto a outras escolas e instrutores; condições semelhantes
produzem fenômenos similares; esforços e aspirações similares produzem
experiências e idéias parecidas, e respostas também semelhantes. E este
acreditamos ser o caso não de uma maneira genérica, mas que tudo é muito
definidamente ordenado a partir de dentro pelos servos dos verdadeiros
guardiães das coisas religiosas neste mundo.
Porém, não devemos pensar que Apolônio tenha-se disposto a fazer uma
propaganda da filosofia hindu do mesmo modo que os missionários aprontam-
se para pregar sua concepção do Evangelho. De modo algum; Apolônio parece
ter tentado ajudar seus ouvintes, quaisquer que pudessem ser, do modo mais
adequado para cada um deles. Ele não começava lhes falando que aquilo no
que acreditavam era completamente falso e mortal para a alma, e que seu
bem-estar eterno dependia de sua adoção instantânea de seu esquema
especial de salvação; ele simplesmente tentava purgar e explicar melhor aquilo
que eles já acreditavam e praticavam. Que algum grande poder o susteve em
sua atividade incessante, e em sua obra quase universal, não é tão difícil de
acreditar; e é uma questão do mais profundo interesse, para aqueles que
tentam enxergar através das névoas da aparência, especular o modo como
não só um Paulo mas também um Apolônio foi ajudado e dirigido em sua obra
a partir de dentro.
Mas ainda não nasceu o dia em que será possível para a mente comum no
ocidente abordar a questão livre de preconceitos, para aceitar o pensamento
de que, vistos de dentro, não só Paulo mas também Apolônio bem podem ter
sido “discípulos do Senhor” no verdadeiro sentido da palavra; e que mesmo
que na superfície das coisas suas tarefas possam parecer tão diferentes em
muitos aspectos, e mesmo, para os preconceitos teológicos, inteiramente
antagônicas.
Dion Cássio, em sua história (Lib. I; xxvii, 18), que escreveu entre 211 e 212
d.C., diz que Caracala (Imperador entre 211 e 216) honrou a memória de
Apolônio com uma capela ou monumento (heroum).
Foi bem nesta época (216) que Filóstrato compôs sua Vida de Apolônio, a
pedido de Domna Julia, a mãe de Caracala, e é com este documento
principalmente que temos de lidar a seguir.
Vopisco, escrevendo na última década do século III, nos conta que Aureliano
(Imperador entre 270 e 275) dedicou um templo a Apolônio, de quem ele tivera
uma visão quando assediava Tíana. Vopisco fala do Tianeu como “um sábio da
mais larga fama e autoridade, um antigo filósofo, e um verdadeiro amigo dos
Deuses”, e mais, como uma manifestação da deidade. “Pois quem dentre os
homens”, exclama o historiador, “foi mais santo, quem mais digno de
reverência, quem mais venerável, quem mais divinal que ele? Ele foi quem deu
vida aos mortos. Ele foi quem operou e disse tantas coisas além do poder dos
homens”. (Life of Aurelian – A Vida de Aureliano, xxiv). Tão entusiástico é
Vopisco sobre Apolônio, que prometeu que se vivesse, escreveria uma breve
história de sua vida em latim, para que seus feitos e palavras pudessem estar
na língua de todos, pois até então os únicos relatos estavam em grego (“Quae
qui velit nosse, groecos legat libros qui de ejus vita conscripti sunt – Que quem
quiser saiba que os gregos deixaram livros sobre sua vida”. Estes relatos
provavelmente foram os livros de Máximo, Merágenes e Filóstrato). Vopisco,
entretanto, não cumpriu sua promessa, mas sabemos que perto desta data
tanto Sotérico (um poeta épico Egípcio, que escreveu diversas histórias
poéticas em grego; floresceu na última década do terceiro século) quanto
Nicômaco escreveram Vidas sobre nosso filósofo, e logo depois Tácio
Vitoriano, trabalhando sobre as obras de Nicômaco (Sidonius Apollinaris,
Epistolae - Cartas -, viii, 3. Vide também Legrand d’Aussy, Vie d’Apollonius de
Tyane – A Vida de Apolônio de Tíana -, Paris, 1807; p. xlvii), também compôs
uma Vida. Nenhuma destas Vidas, contudo, chegou a nós.
Também foi exatamente neste período, a saber, os últimos anos do século III e
os primeiros do IV, que Porfírio e Jâmblico compuseram seus tratados sobre
Pitágoras e sua escola; ambos mencionam Apolônio como uma de suas
autoridades, e é provável que as primeiras 30 estâncias de Jâmblico sejam
tomadas de Apolônio (Porphyryus, De Vita Pythagorae – A Vida de Pitágoras -,
seção ii, ed. Kiessling; Leipzig, 1816. Iamblichus, De Vita Pythagorica – Sobre
a Vida Pitagórica -, cap. xxv, ed. Kiessling; Leipzig, 1913; vide especialmente a
nota de Kiessling, pp. II sqq. Vide também Porphyryus, Frag., De Styge –
Sobre o Estige -, p. 285, ed. Holst).
Agora chegamos a um incidente que arremessa o caráter de Apolônio na arena
da polêmica Cristã, onde tem sido debatido até os dias de hoje. Hiérocles,
sucessivamente governador de Palmira, da Bitínia e de Alexandria, e um
filósofo, cerca do ano 305 escreveu uma crítica sobre as reivindicações Cristãs,
em dois livros, chamada Um Apelo Verdadeiro aos Cristãos, ou mais
concisamente O Amante da Verdade. Ele parece ter-se baseado em grande
parte no trabalho anterior de Celso e Porfírio (vide Duchesne sobre as obras
recentemente descobertas de Macário Magno, Paris, 1877), mas introduziu um
novo tema de controvérsia ao contrapor as obras maravilhosas de Apolônio à
reivindicação dos Cristãos de direito exclusivo sobre “milagres” como prova da
divindade de seu Mestre. Nesta parte de seu tratado, Hiérocles usa a Vida de
Apolônio, de Filóstrato.
Mas mesmo depois da controvérsia ainda existe uma larga diferença de opinião
entre os Padres, pois já no fim do século IV João Crisóstomo, com grande
mordacidade, chama Apolônio de enganador e fazedor de más obras, e declara
que todos os incidentes de sua vida são ficção desqualificada (Johannes
Chrysostomus, Adversus Judaeos – Contra os Judeus -, v, 3, p. 631; De
Laudibus Sancti Pauli Apost. Homil. – Sobre as Honoráveis Homilias de São
Paulo Apóstolo -, iv, p. 493 d; ed. Monfauc). Jerônimo, ao contrário, na
mesmíssima data, assume uma posição quase favorável, pois, após ler
Filóstrato, escreve que Apolônio encontrou em toda parte algo que aprender e
algo por onde se tornar um homem melhor (Hieronymus, Ep. Ad Paulinum –
Epístola aos Paulinos -, 53; texto a partir de Kayser, pref. ix). No começo do
século V também Agostinho, enquanto ridiculariza qualquer tentativa de
comparar-se Apolônio com Jesus, diz que o caráter do Tianeu era “muito
superior” àquele atribuído a Júpiter, no que se tratava de virtude (Augustinus,
Epistolae – Cartas -, cxxxviii. Texto citado por Legrand d’Aussy; op. cit., p. 294).
Por outro lado, poucos anos depois, Sidônio Apolinário, Bispo de Claremont,
fala de Apolônio em termos os mais altos. Sidônio traduziu a Vida de Apolônio
para o latim para Leão, conselheiro do Rei Eurico, e escrevendo para seu
amigo, diz: “Lêde a vida de um homem que, religião à parte, se assemelha à
vossa em muitos pontos; um homem procurado pelos ricos, ainda que jamais
tenha procurado riquezas; que amava a sabedoria e desprezava o ouro; um
homem frugal em meio a festins, vestido de linho no meio dos purpurados,
austero no meio da luxúria... Enfim, falando claramente, talvez nenhum
historiador encontrará nos tempos antigos um filósofo cuja vida fosse igual à de
Apolônio” (Sidonius Apollinaris, Epistolae - Cartas -, viii, 3. Também Fabricius,
Bibliotheca Graeca – Biblioteca Grega -, pp. 549, 565; ed. Harles. A obra de
Sidônio sobre Apolônio infelizmente foi perdida.)
Pois Amiano Marcelino, “o último súdito de Roma que compôs uma história
profana na língua latina”, e amigo de Juliano, o Imperador filósofo, refere-se ao
Tianeu como “aquele celebérrimo filósofo” (amplissimus ille philosophus, xxiii,
7. Vide também xxi, 14; xxiii, 19), enquanto que uns poucos anos depois
Eunápio, discípulo de Crisâncio, um dos professores de Juliano, escrevendo
nos derradeiros anos do século IV, diz que Apolônio era mais que um filósofo;
era “um meio-termo, por assim dizer, entre os deuses e os homens” (τι θεων τε
κατ ανΦρωπου μεσο, significando com isso presumivelmente alguém que
tenha atingido o grau de ser superior ao homem, mas ainda não igual aos
deuses. Esta era a ordem “daimôníca” dos gregos. Mas a palavra “daimon”,
devido à aspereza sectarista, há muito degradou-se de seu antigo patamar
elevado, e a idéia original agora encontra tradução na linguagem comum
através do termo “anjo”. Compare com Platão, Symposium – O Banquete, xxiii,
παν τα δαιμσνιονμεταεν εστι θεου τε και ϑνητου – “tudo o que é daimônico está
entre Deus e o homem”. Não só Apolônio era um adepto da filosofia Pitagórica,
mas “exemplificou plenamente o seu lado mais divino e prático”. De fato,
Filóstrato deveria ter chamado sua biografia de “A Estada de um Deus entre os
Homens” (Eunapius, Vitae Philosophorum – Vidas dos Filósofos -, Proêmio, vi;
ed. Boissonade; Amsterdam, 1822; p. 3). Esta apreciação aparentemente por
demais exagerada talvez encontre uma explicação no fato de que Eunápio
pertenceu a uma escola que conhecia a natureza das realizações atribuídas a
Apolônio.
Na verdade, “tão tarde quanto no século V, encontramos um Volusiano, um
procônsul da África, descendente de uma antiga família romana e ainda
fortemente ligado à religião de seus ancestrais, quase adorando Apolônio de
Tíana como um ser sobrenatural” (Réville, Apollonius of Tyana; tr. do francês, p.
56; Londres, 1866. Contudo, não fui capaz de descobrir com que autoridade
esta declaração é feita).
E mesmo que o monge Xiphilinus, no século IX, em uma nota para sua versão
abreviada da história de Dion Cássio, chame Apolônio de astuto ilusionista e
mágico, § (Citado por Legrand d’Aussy, op. cit. p. 286), não obstante Cedreno,
no mesmo século, dá a Apolônio o título não indigno de “adepto filósofo
Pitagórico” (φιλοσοφος ΙΙυφαγσρειος στοιχειωματικσς. Cedreno, Compendium
Historiarium – Compêndio de História -, i, 346; ed. Bekker. A palavra que traduzi
como “adepto” – stoicheiomaticos - significa “o que tem poder sobre os
elementos”) e relata diversos exemplos da eficácia de seus poderes em
Bizâncio. De fato, se podemos acreditar em Nicetas, no século XIII ainda havia
em Bizâncio certas portas de bronze, antigamente consagradas por Apolônio,
que tiveram que ser postas abaixo porque se haviam tornado objeto de
superstição mesmo entre os próprios Cristãos. (Legrand d’Aussy, op. cit., p.
308).
Em acréscimo à tradução latina o século XVI produziu também uma italiana (F.
Baldelli, Filostrato Lemnio della Vita di Apollonio Tianeo – A Vida de Apolônio
de Tíana, por Filóstrato de Lemnos, Florença, 1549, 8°) e uma francesa (B. de
Vignère, Philostrate de la Vie d’Apollonius – A Vida de Apolônio, por Filóstrato,
Paris, 1596, 1599, 1611). A tradução de Blaise de Vignère subseqüentemente
foi corrigida por Frédéric Morel e mais tarde por Thomas Artus, Sieur d’Embry,
com notas bombásticas nas quais ataca ferozmente a taumaturgia de Apolônio.
Uma tradução francesa também foi feita por Th. Sibilet, em torno de 1560, mas
nunca foi publicada; o manuscrito estava na Biblioteca Imperial. Vide Miller,
Journal des Savants, 1849, p. 625, citado por Chassang, op. infr. cit. P. iv).
A editio princeps de Aldus foi superada um século depois pela edição de Morel
(F. Morellus, Philostrati Lemnii Opera – Obras de Filóstrato Lêmnio, Grega e
Latina; Paris, 1608), que por sua vez um século depois foi superada pela de
Olearius (G. Olearius, Philostratorum quae supersunt Omnia – As Obras
Completas Remanescentes de Filóstrato, Grega e Latina; Leipzig, 1709). Cerca
de um século e meio após o texto de Olearius foi superado novamente pelo de
Kayser (o primeiro texto crítico), cujo trabalho em sua última edição contém
todo o moderno aparato crítico (C.L.Kayser, Flavii Philostrati quae supersunt...,
etc; Zurique, 1844, 4°). Em 1849 A. Westermann também editou um texto,
Philostratorum et Callistrati Opera – Obras de Filóstrato e Calístrato, na
Scriptorum Graecorum Bibliotheca – Biblioteca de Escritores Gregos; Paris,
1849, 8°). Mas Kayser trouxe à luz uma nova edição em 1853 (?), e novamente
uma terceira, com informações adicionais no Prefácio, na Bibliotheca
Teubneriana (Leipzig, 1870). Toda a informação que diz respeito aos
manuscritos, é encontrada nos Prefácios Latinos de Kayser.
Agora tentaremos dar alguma idéia da literatura geral sobre o assunto, para
que o leitor possa ser capaz de perceber algumas das várias oscilações da
guerra de opiniões nas indicações bibliográficas. Se o leitor comum for
impaciente e ávido de chegar a algo de maior interesse, ele poderá facilmente
omitir sua consulta; enquanto que se for um amante do caminho místico, e não
tiver gosto pela controvérsia, poderá ao menos simpatizar com o escritor, que
foi compelido a repassar as obras do último século e a dúzia dos séculos
precedentes, antes que pudesse aventurar uma opinião própria com clara
consciência.
Não obstante, Bacon e Voltaire falam de Apolônio nos mais altos termos (Vide
Legrand d’Aussy, op. cit., p. 314, onde são dados os textos) e mesmo um
século antes de Voltaire, o Deísta inglês Charles Blount (The Two First Books
of Philostratus concerning the Life of Apollonius Tyanaeus – Os Dois Primeiros
Livros de Filóstrato a respeito da Vida de Apolônio de Tíana, Londres, 1680, fol.
As notas de Blount, geralmente atribuídas a Lord Herbert, suscitaram tamanha
grita que o livro foi condenado em 1693, e sobrevivem poucas cópias. As notas
de Blount, entretanto, foram traduzidas para o francês um século mais tarde,
nos dias do Enciclopedismo, e anexas a uma versão da Vita, sob o título Vie
d’Apollonius de Tyane par Philostrate avec les Commentaires donnés en
Anglois par Charles Blount sur les deux Premiers Livres de Cette Ouvrage – A
Vida de Apolônio de Tíana, por Filóstrato, com os Comentários feitos em Inglês
por Charles Blount sobre os Primeiros Livros desta Obra, Amsterdam, 1779; 4
vols., S°, com uma irônica dedicatória ao Papa Clemente XIV, assinada
“Philaletes”) ergueu sua voz contra o opróbrio universal lançado contra o
caráter do Tianeu; este trabalho, contudo, foi rapidamente suprimido.
A fim de tornar o resto de nosso sumário mais claro anexamos no fim deste
ensaio os títulos das obras que apareceram desde o início do século XIX, em
ordem cronológica. Um relance nesta listagem mostrará que o último século
produziu uma inglesa (Berwick), uma italiana (Lancetti), uma francesa
(Chassang), e duas alemãs (Jacob e Baltzer) (Filóstrato é um autor difícil de
traduzir; não obstante, Chassang e Baltzer o conseguiram muito bem; Berwick
também vale a pena, mas em sua maior parte nos dá uma paráfrase antes que
uma tradução e amiúde se engana no sentido. Chassang e Baltzer são de
longe as melhores traduções). A tradução do Rev. E. Berwick é a única versão
inglesa; em seu Prefácio, o autor, enquanto proclama a falsidade do elemento
milagroso na Vida, diz que o restante da obra merece atenção cuidadosa.
Nenhum mal sobrevirá à religião Cristã pela sua leitura, pois não há alusão à
vida de Cristo nele, e os milagres são baseados naqueles atribuídos a
Pitágoras.
Esta teoria Crística (levada por alguns extremistas ao ponto de negarem que
Apolônio jamais tenha existido) esteve em grande voga entre escritores deste
tema, especialmente os compiladores de artigos enciclopédicos; de qualquer
modo esta é uma posição mais tolerante do que a tradicional rinha milagreira,
que novamente foi ressuscitada em toda sua antiga estreiteza por Newman,
que só usa Apolônio como pretexto para uma dissertação sobre os milagres
ortodoxos, aos quais devota dezoito das vinte e cinco páginas de seu tratado.
Noack também acompanha Baur, e em alguma medida Pettersch, ainda que
trabalhe o tema no terreno da filosofia; enquanto que Möckeberg, pastor de S.
Nicolai em Hamburgo, ainda que tente ser justo com Apolônio, termina sua
prolixa dissertação com uma erupção de louvores ortodoxos a Jesus, louvores
que de modo nenhum criticamos, mas que estão totalmente deslocados neste
assunto.
Flávio Filóstrato, o escritor da única Vida de Apolônio que chegou até nós
(consistindo de oito livros escritos em grego sob o título geral Τα ες τον Τυανεα
Απολλωνιον), era um distinguido homem de letras que viveu no último quartel
do século II e na primeira metade do século III (c. 175 – 245 d.C.). Ele era um
no círculo de escritores famosos e pensadores que se formou em torno da
Imperatriz filósofa (η θιλοιφος, vide o artigo Filóstrato, no Dicionário de
Biografias Gregas e Latinas, de Smith; Londres, 1870; iii. 327 b.) Julia Domna,
que foi o espírito dirigente do Império durante os reinados de seu marido
Septímio Severo e seu filho Caracala. Todos os três membros da família
imperial eram estudantes da ciência oculta, e era eminentemente uma época
em que as artes ocultas, boas ou más, eram uma paixão. Assim o cético
Gibbon, em seu esboço de Severo e sua famosa consorte, escreve:
Que Filóstrato era o melhor homem a ser encarregado de tão importante tarefa,
não há dúvida. É verdade que ele era um habilidoso estilista e versado homem
de letras, um crítico de arte e aficcionado antiqüário, como podemos ver por
seus outros livros; mas ele era um sofista antes que um filósofo, e mesmo
sendo um entusiástico admirador de Pitágoras e sua escola, o era à distância,
considerando-os mais através de uma adorável e maravilhosa atmosfera de
curiosidade e dos embelezamentos de uma imaginação vivaz do que de um
conhecimento pessoal de sua disciplina, ou de um conhecimento prático das
forças ocultas da alma com que lidavam seus adeptos. Temos, portanto, que
esperar um esboço da aparência de uma coisa desde fora, antes que uma
exposição da coisa em si desde dentro.
Abaixo damos uma listagem das fontes de onde derivaram suas informações a
respeito de Apolônio (uso inteiramente as edições do texto de Kayser de 1846
e 1870):
“Coletei meu material em parte das cidades que o amaram, em parte dos
templos cujos ritos e regras ele restaurou de seu antigo estado de negligência,
e em parte de suas próprias cartas [uma coleção destas cartas – mas não de
todas – esteve em posse do Imperador Adriano (117 – 138 d.C.), e foi
depositada em seu palácio de Âncio (viii, 20). Isto prova a grande fama que
Apolônio desfrutava logo depois de seu desaparecimento da história, e
enquanto sua memória ainda era viva. Deve ser notado que Adriano era um
governante esclarecido, um grande viajante, um amante da religião, e um
iniciado nos Mistérios de Elêusis – NA]. Informações mais detalhadas eu
procurei do seguinte modo. Damis foi um homem de alguma educação que
antes costumava viver na antiga cidade de Ninus [Nínive – NA]. Tornou-se um
discípulo de Apolônio e registrou suas viagens, nas quais ele diz que também
tomou parte, e também as concepções, ditos e predições de seu mestre. Um
membro da família de Damis trouxe à Imperatriz Julia seu livro de notas [τας
δελτους, tabuletas de escrever. Isto sugere que o relato de Damis não poderia
ser muito volumoso, ainda que Filóstrato mais adiante assegure sua natureza
detalhada (i, 19) - NA] contendo estas memórias, que até então não eram
conhecidas. Como eu era um do círculo da princesa, que era uma amante e
patrona de todas as produções literárias, ela me ordenou que reescrevesse
estes esboços e melhorasse sua forma de expressão, pois o ninivita
expressou-se claramente, mas seu estilo estava longe de ser correto. Também
tive acesso a um livro de Máximo de Egue [um dos secretários imperiais da
época, famoso por sua eloqüência, e tutor de Apolônio - NA], que continha
todos os feitos de Apolônio em Egue [uma cidade não longe de Tarso – NA].
Também há um testamento escrito por Apolônio, onde podemos conhecer
como ele quase desdenha a filosofia ως υποφεαζων την φσλοσφιαν εγενετο. O
termo υποφεαζων ocorre só nesta passagem, e não estou bem seguro de seu
significado – NA]. Quanto aos quatro livros de Merágenes [esta Vida, de
Merágenes, é casualmente mencionada por Orígenes, Contra Celsum, vi, 41;
ed. Lommatzsch; Berlin, 1841; ii, 373 – NA] sobre Apolônio, não merecem
atenção, pois ele não sabe nada sobre a maioria dos fatos de sua vida” (i, 2,3).
A estas fontes é que Filóstrato deve sua informação, fontes que infelizmente já
não existem, exceto talvez umas poucas cartas. Tampouco Filóstrato poupou
quaisquer esforços para reunir mais informações sobre o assunto, pois em
suas palavras finais (viii, 31), ele nos conta que ele próprio viajou para muitas
partes do “mundo” e em toda parte deparou-se com os “ditos inspirados”
(λογοις δαιμονιος) de Apolônio, e que ele conhecia especialmente bem o
templo dedicado à memória de nosso filósofo de Tíana e fundado às expensas
imperiais (“pois os imperadores não o julgaram indigno de honras semelhantes
às devidas a eles mesmos”), cujos sacerdotes, presume-se, tinham reunido
toda informação que podiam a respeito de Apolônio.
Mas ainda que devamos estar agudamente atentos para a importância de uma
atitude inteiramente crítica onde fatos históricos definidos estão envolvidos,
deveríamos estar em guarda da mesma maneira contra o julgamento de tudo a
partir do ponto de vista dos preconceitos modernos. Há somente uma literatura
da antigüidade que foi tratada sempre com real simpatia no ocidente, e é a
Judeu-Cristã; só nela as pessoas foram treinadas para se sentirem à vontade,
e tudo na antigüidade que trata da religião de um modo diverso do Judeu ou do
Cristão, é sentido como estranho, e, se obscuro ou extraordinário, como
repulsivo. Os ditos e feitos dos profetas Judeus, ou de Jesus, e dos Apóstolos,
são relatados com reverência, embelezados com as maiores formosuras de
fraseado, e iluminados com o melhor pensamento da época; enquanto que os
ditos e feitos de outros profetas e instrutores têm sido em sua maior parte
sujeitos à crítica mais antipática, na qual não é feita nenhuma tentativa de
entender seus pontos de vista. Tivesse um julgamento benevolente sido
concedido em toda a volta, o mundo hoje seria muito mais rico em
entendimento, em liberalidade de mente, em compreensão da natureza, da
humanidade e de Deus, em resumo, em experiência da alma.
Quando Euxeno perguntou-lhe como ele iniciaria seu novo modo de vida ele
respondeu: “Como o doutor purga seus pacientes”. Daí em diante ele recusou
tocar qualquer coisa que tivesse tido vida animal, considerando que isso
densifica a mente e a torna impura. Ele considerava que a única forma de
alimentação pura era a produzida pela terra: frutas e vegetais. Também se
abstinha do vinho, pois mesmo sendo feito de frutas, “tornava o éter túrbido
[presumivelmente a substância mental – NA] na alma”, e “destruía a
compostura da mente”. Mais ainda, andava descalço, deixou seu cabelo
crescer livremente, e vestia-se somente com tecidos de linho. Agora vivia no
templo, para a admiração dos sacerdotes e com a aprovação expressa de
Esculápio (isto é, presumivelmente ele foi encorajado em seus esforços por
aqueles auxiliares invisíveis do templo através de quem as curas eram
indicadas através de sonhos, e ajuda era dada de modo psíquico e mesmérico)
e rapidamente se tornou tão famoso por seu ascetismo e vida pia, que uma
frase dos cilícios sobre ele (“Para onde estão correndo? Apressam-se para ver
o jovem?”) se tornou um provérbio (i, 8).
Com a idade de vinte anos seu pai morreu (sua mãe havia morrido alguns anos
antes), deixando considerável fortuna, que Apolônio dividiria com seu irmão
mais velho, um jovem selvagem e dissoluto de 23 anos. Sendo ainda menor,
Apolônio continuou a morar em Egue, onde o templo de Esculápio havia se
tornado um movimentado centro de estudos, e reverberava de um extremo a
outro ao som dos elevados discursos filosóficos. Chegando à maioridade,
voltou a Tíana para tentar salvar seu irmão de sua vida viciosa. Seu irmão
aparentemente já havia dissipado sua parte da herança, e Apolônio
imediatamente deu metade de sua própria parte para ele, e através de seus
conselhos gentis devolveu-o à humanidade. De fato parece ter devotado este
tempo para colocar em ordem os assuntos da família, pois então distribuiu o
restante de seu patrimônio entre alguns parentes, mantendo para si apenas
uma mínima parte; precisava de pouco, dizia, e jamais casaria (i, 13).
Então fez um voto de silêncio por cinco anos, pois determinou-se que não
escreveria sobre filosofia antes de ter passado por toda sua disciplina. Estes
cinco anos foram passados na Panfília e na Cilícia, e ainda que passasse muito
tempo em estudo, não emparedou-se numa comunidade ou mosteiro, mas
manteve-se em movimento nas proximidades e viajava de cidade em cidade.
As tentações de quebrar seu voto auto-imposto foram enormes. Sua estranha
aparência chamava a atenção de todos, e o populacho amante do chiste fez o
silencioso filósofo o alvo de sua verve inescrupulosa, e toda a proteção que
tinha contra suas insolências e mal-entendidos era a dignidade de seu
semblante e o olhar de seus olhos que agora podiam ver o passado e o futuro.
Muitas vezes esteve a ponto de imprecar contra algum excepcional insulto ou
falatório mentiroso, mas sempre se conteve com as palavras: “Coração, sê
paciente, e tu, língua, fica quieta” (compare com a Odisséia, xx, 18) (i, 14).
Mesmo esta férrea repressão da fala comum não o impedia de fazer o bem. Já
nesta idade juvenil ele havia começado a corrigir abusos. Com olhos e mãos e
movimentos da cabeça, fazia-se entender, e em uma ocasião, em Aspendo, na
Panfília, evitou um grave furto de grãos silenciando a turba com seus gestos
imperiosos e então escrevendo o que queria dizer sobre uma tabuleta (i, 15).
Mas onde quer que fosse, sempre observava uma divisão regular do dia. Ao
nascer do sol praticava certos exercícios religiosos sozinho, cuja natureza ele
só transmitia a quem passasse a disciplina dos “quatro anos” (cinco anos?) de
silêncio. Então palestrava com os sacerdotes do templo ou os líderes das
comunidades, conforme estava em um templo grego ou não-grego com ritos
públicos, ou em uma comunidade com uma disciplina peculiar à parte do culto
público (ιδιοτοπα).
“Depois destas coisas”, diz Filóstrato, tão vagamente como o escritor de uma
narrativa evangélica, Apolônio determinou-se a visitar os Brachmanes e
Sarmanes (isto é, os Brâmanes e Budistas. sarman é a corruptela grega do
sânscrito shramana e do páli samano, o termo técnico para um asceta ou
monge Budista. A ignorância dos copistas mudou sarmanes primeiro para
germanes e depois para hircanianos!). O que induziu nosso filósofo a fazer tão
longa e perigosa jornada não é esclarecido por Filóstrato, que diz
simplesmente que Apolônio imaginou ser uma boa coisa para um jovem viajar
(isto mostra que Apolônio ainda era jovem, e não entre 40 e 50, como alguns
têm afirmado. Tredwell, p. 70, data as viagens indianas em 41-54 d.C.). É mais
que evidente, contudo, que Apolônio jamais viajou meramente por amor da
viagem. O que ele faz, faz com um propósito específico. E seus guias nesta
ocasião, como assevera a seus discípulos que tentavam dissuadí-lo de seu
projeto e recusaram acompanhá-lo, foram a sabedoria e seu orientador interno
(daimon). “Já que sois fracos de coração”, diz o peregrino solitário, “dou-vos
meu adeus. Pois eu mesmo devo ir onde quer que a sabedoria e meu eu
interior me levarem. Os Deuses são meus conselheiros e não posso fiar-me
senão em suas direções” (i, 18).
E assim Apolônio parte de Antióquia e viaja para Ninus, relíquia da uma vez
grande Nina ou Nínive. Lá encontra com Damis, que se torna seu companheiro
constante e fiel discípulo. “Vamos juntos”, diz Damis em palavras que nos
lembram algo das de Rute, “tu seguindo Deus e eu a ti!” (i, 19)
De Ninus (i, 19) Apolônio passa para Babilônia (i, 21), onde permanece um ano
e oito meses (i, 40), e visita as cidades vizinhas de Ecbatana, a capital da
Média (i, 39); de Babilônia até a fronteira da Índia nenhum nome é mencionado;
a Ìndia foi atingida provavelmente através do Passo Khaibar (ii, 6) (aqui de
qualquer forma eles vislumbram as gigantescas montanhas do Imaus, ou
Himavat, ou Cordilheira do Himalaia, onde estava o grande monte Meros, ou
Meru. O nome do Olimpo hindu, mudado para Meros em grego, desde o tempo
da expedição de Alexandre, deu margem ao mito de que Baco nascera da coxa
– meros - de Zeus – presumivelmente um dos fatos que levaram o Prof. Max
Müller a estigmatizar toda a mitologia como uma “doença da linguagem”), pois
a primeira cidade que é mencionada é Taxila (Attock) (ii, 20); e assim seguem
caminho através dos tributários do Indo (ii, 43) até o vale do Ganges (iii, 5), e
finalmente chegam ao “mosteiro dos sábios” (iii, 10), onde Apolônio passa
quatro meses (iii, 50).
Tenho poucas dúvidas que Filóstrato não poderia conceber nada da geografia
da Índia a partir dos nomes no diário de Damis; todos lhe são desconhecidos,
de modo que tão logo esgota os poucos nomes gregos conhecidos por ele a
partir dos relatos da expedição de Alexandre, perde-se ele “nos confins da
Terra”, e nada pode fazer até que encontre novamente nossos viajantes já a
caminho de volta na embocadura do Indo. O fato saliente de que Apolônio
estava estabelecendo uma certa comunidade, o que era seu objetivo
específico, impressionou tanto a imaginação de Filóstrato (e provavelmente a
de Damis antes dele) que ele a descreveu como sendo a única em seu gênero
na Índia. Apolônio foi à Índia com um propósito e voltou de lá com uma missão
diferente (referindo-se aos seus instrutores ele diz: “Sempre me lembro de
meus mestres e viajo por todo o mundo ensinando o que aprendi deles”; vi, 18);
e talvez suas incessantes indagações a respeito daqueles “sábios” que ele
procurava, induziram Damis a imaginar que só eles fossem os “Gimnosofistas”,
os “filósofos nus” (se formos tomar a palavra ao pé da letra) da popular lenda
grega, que ignorantemente atribuía a todos os ascetas hindus as mais
extraordinárias peculiaridades que na verdade pertenciam só a um reduzido
grupo. Mas voltemos ao nosso itinerário.
Filóstrato embeleza o relato da viagem do Indo até a foz do Eufrates (iii, 52-58)
com as lendas de viajantes e nomes de ilhas e cidades que ele apanhou nos
livros de histórias da Índia que lhe eram acessíveis, e assim novamente
voltamos à Babilônia e à geografia familiar seguindo este itinerário: Babilônia,
Ninus, Antióquia, Selêucia, Chipre; e então a Jônia (iii, 58), onde ele passa um
tempo na Ásia Menor, especialmente em Éfeso (iv, 1), Esmirna (iv, 5), Pérgamo
(iv, 9), e Tróia (iv, 11. Daí Apolônio cruza para Lesbos (iv, 13), e
subseqüentemente embarca para Atenas, onde passa alguns anos na Grécia
(iv, 17-33), visitando os templos da Hélade, reformando seus ritos e instruindo
os sacerdotes (iv, 25). A seguir o encontramos em Creta (iv, 34) e depois em
Roma no tempo de Nero (iv, 36-46).
Do Pireu nosso filósofo embarca para Quios (v, 21), depois para Rodes e então
para Alexandria (v, 24). Em Alexandria ele passa algum tempo, e tem vários
encontros com o futuro Imperador Vespasiano (v, 27-41), e então empreende
uma longa viagem Nilo acima até a Etiópia, além das cataratas, onde ele visita
uma interessante comunidade de ascetas chamados vagamente de
Gimnosofistas (vi, 1-27).
Em seu retorno a Alexandria (vi, 28), ele foi convidado por Tito, recém coroado
Imperador, para encontrá-lo em Tarso. Depois deste encontro ele parece ter
retornado ao Egito, pois Filóstrato fala vagamente de ele ter passado algum
tempo no Baixo Egito, e sobre visitas aos fenícios, cilícios, jônios, aqueus, e
também à Itália (vi, 35).
Mais tarde o chefe dos sábios indianos faz um discurso sobre Esculápio e sua
arte curativa (iii, 44), onde toda a medicina é dita depender do diagnóstico
psíquico e da presciência (μαντεια).
Finalmente pode ser percebido que era costume invariável dos pacientes
recordar o fato de sua recuperação com uma tabuleta de ex-voto no templo,
precisamente como ainda hoje é feito em países Católicos Romanos (para o
mais recente estudo sobre Esculápio em inglês vide The Cult of Asclepios, de
Alice Walton, Ph.D, em Cornell Studies in Classical Philology – Estudos da
Universidade de Cornell sobre Filologia Clássica, n° III, Ithaca, NY, 1894).
Em sua viagem à Índia Apolônio viu muitos Magos na Babilônia. Ele costumava
visitá-los ao meio-dia e à meia-noite, mas o que transpirava disto Damis não
sabia, pois Apolônio não teria permitido acompanhá-lo, e ao responder à sua
pergunta direta diria somente: “Eles são sábios, mas não em todas as coisas”
(i, 26).
“Eu vim a vós por terra e vós me destes o mar; não, antes, dividindo comigo
vossa sabedoria vós me concedestes o poder de viajar pelos céus. Estas
coisas eu trarei de volta à mente dos gregos, e conversarei convosco como se
estivésseis presentes, se eu não tiver bebido da taça de Tântalo em vão”.
É evidente, por estas sentenças crípticas, que o “mar” e a “taça de Tântalo” são
idênticos à “sabedoria” que foi concedida a Apolônio – a sabedoria que ele uma
vez mais traria de volta à memória dos gregos. Ele assim assume claramente
que voltava da Índia com uma missão específica e com os meios de levá-la a
cabo, pois não apenas ele de seus lábios tinha bebido do oceano da sabedoria
no qual aprendeu a Brahma-vidyâ, mas também aprendeu como conversar
com eles estando seu corpo da Grécia e o deles na Índia.
Mas um significado assim tão óbvio – óbvio pelo menos para todo estudante da
natureza oculta – estava além do entendimento de Damis ou da compreensão
de Filóstrato. E também sem dúvida é a menção à “taça de Tãntalo” (Tântalo é
descrito na fábula como tendo roubado a taça do néctar dos deuses; era a
amrita dos indianos, o oceano da imortalidade e sabedoria) nesta carta o que
sugere o eternamente adorável episódio da taça em iii, 32, e sua conexão com
as fontes místicas de Baco. Damis usa isso para “explicar” a última frase de
Apolônio sobre os sábios, qual seja, aquela de eles “não possuírem nada
exceto o que todos possuem” – que, entretanto, aparece em outro ponto de
outra forma, como “não possuindo nada, eles têm as posses de todos os
homens” (iii, 15) (as palavras ουδεν κεκτημενος ν τα παντων, que Filóstrato cita
duas vezes assim, certamente não podem ser mudadas para μηδεν κεκτημενος
τα παντων εχειν, sem praticar uma violência contra seu significado).
Em Tróia, nos contam, Apolônio passou uma noite sozinho junto ao túmulo de
Aquiles, antigamente um dos locais popularmente mais sagrados da Grécia (iv,
II). Não transpira o motivo de ele ter feito isso, pois a fantástica conversa com a
sombra do herói contada por Filóstrato parece desprovida de todo elemento de
verossimilhança. Mas como, contudo, Apolônio logo depois visitou a Tessália
expressamente para incitar os tessálios a renovar os antigos ritos tradicionais
ao herói (iv, 13), podemos supor que isso formou parte de seu grande esforço
para restaurar e purificar a antiga instituição da Hélade, para que, sendo os
canais tradicionais liberados, a vida pudesse fluir mais saudavelmente no corpo
da nação.
Mas isto seria um tópico de escasso interesse, se não houvesse mais menção
a Palámedes em outro lugar da narrativa de Filóstrato. O que tudo isso significa
é difícil de dizer com um Damis e um Filóstrato como intérpretes entre nós e o
silente e enigmático Apolônio. Palámedes foi um dos heróis perante Tróia, e
que a lenda diz ter sido o inventor das letras, ou quem completou o alfabeto de
Cadmo (Berwick, Life of Apollonius, p. 200 n.)
Agora, de duas sentenças obscuras (iv, 13, 33), percebemos que nosso filósofo
via Palámedes como o herói-filósofo do período Troiano, ainda que Homero
quase não o mencione.
Foi esta a razão, pois, para Apolônio ficar tão ansioso por restaurar sua
estátua? Nada disso; parece ter havido uma razão mais direta. Damis pensou
que Apolônio encontrara Palámedes na Índia; que ele estava no mosteiro; que
Iarchas havia um dia indicado um jovem asceta que podia “escrever sem nunca
ter aprendido as letras”; e que este jovem tinha sido ninguém senão Palámedes
em uma de suas vidas pregressas. Sem dúvida o cético dirá: “Claro! Pitágoras
era uma reencarnação do herói Eufórbio que lutou em Tróia, de acordo com a
superstição popular; portanto, naturalmente, o jovem indiano era a
reencarnação do herói Palámedes! Uma lenda simplesmente engendra a
outra”. Mas de acordo com este princípio, para sermos consistentes,
esperaríamos descobrir que foi o próprio Apolônio, e não um desconhecido
asceta hindu, quem uma vez foi Palámedes.
Pode ser possível que a atenção que Apolônio deu às tumbas e monumentos
funerários dos poderosos mortos da Grécia pode ter sido inspirada pelo círculo
de idéias que conduziram à ereção de inumeráveis dâgobas e stûpas nas
terras Budistas, originalmente sobre as relíquias do Buda, e à preservação
subseqüente de relíquias de arhats e grandes instrutores?
Em Lesbos Apolônio visitou o antigo templo dos mistérios Órficos, que em dias
antigos havia sido um grande centro de profecia e divinação. Aqui também lhe
foi concedido o privilégio de entrar no santuário interno ou adytum (iv, 14).
Talvez possa surpreender o leitor ouvir que Apolônio, que já havia sido iniciado
em privilégios maiores do que Elêusis poderia proporcionar, se apresentasse
ele mesmo à iniciação. Mas as razões não precisam ser procuradas longe; os
Eleusinia constituíam uma das organizações intermediárias entre os cultos
populares e os genuínos círculos internos de instrução. Eles preservavam uma
das tradições do caminho interior, mesmo se seus oficiais naquela época
houvessem esquecido o que seus predecessores conheciam. Para restaurar
estes antigos ritos à sua pureza, ou para usá-los para seus fins originais, era
necessário entrar nos recintos da instituição; nada poderia ser feito de fora. A
coisa em si era boa, e Apolônio desejava apoiar a instituição dando o exemplo
público de procurar a iniciação ali; não que ele tivesse algo a ganhar
pessoalmente.
Quando entrava nos adyta destes templos com o intuito de “restaurar” os ritos,
era acompanhado somente pelos sacerdotes, e certos discípulos imediatos
(γνωριμοι). Isto sugere uma ampliação do significado do termo “restauração” ou
“reforma”, e quando lemos em outras partes sobre os muitos locais
consagrados por Apolônio, não podemos pensar senão que parte de sua obra
era a reconsagração, e com isso a purificação psíquica, de muitos destes
centros antigos. Seu principal trabalho externo, contudo, foi instruir, e, como
Filóstrato retoricamente parafraseia, “taças de suas palavras foram colocadas
em todas as partes para o sedento delas beber” (iv, 24).
Mas não somente nosso filósofo restaurou os ritos antigos da religião; também
prestou muita atenção às antigas constituições e instruções. Assim o
encontramos instando os espartanos a retornarem ao seu antigo modo de vida,
a seus exercícios atléticos, sua vida frugal, e à disciplina da antiga tradição
dórica (iv, 27, 31-34); acima de tudo, ele louvou especialmente a instituição dos
Jogos Olímpicos, cujo elevado padrão ainda era mantido (iv, 29), enquanto que
reconvocou o antigo Conselho Anfictiônico ao seu dever (iv, 23), e corrigiu os
abusos da assembléia Pan-jônica (iv, 5).
Na primavera de 66 d.C., ele deixou a Grécia indo a Creta, onde parece ter
passado a maior parte de seu tempo nos santuários do Monte Ida e no templo
de Esculápio em Lêbene (“pois como toda a Ásia visita Pérgamo, toda Creta
visita Lêbene”); mas mui curiosamente recusou-se a visitar o famoso Labirinto
em Cnossos, cujas ruínas haviam sido recém descobertas para uma geração
cética, mais provavelmente porque (é lícito especular) uma vez foi centro de
sacrifícios humanos, e assim pertencia a um dos antigos cultos da mão
esquerda.
Retornando à Grécia via África e Sicília (onde passou algum tempo e visitou
Etna), ele passou o inverno (de 67 d.C.?) em Elêusis, vivendo no templo, e na
primavera do ano seguinte embarcou para Alexandria, onde passou algum
tempo, a caminho de Rodes. A cidade da filosofia e do ecletismo por excelência
recebeu-o de braços abertos como a um velho amigo. Mas reformar os cultos
públicos do Egito foi um trabalho muito mais difícil do que qualquer outro que
ele tentou antes. Sua presença no templo (de Serápis?) inspirou respeito
universal, tudo sobre ele e cada palavra que pronunciava parecia emanar uma
atmosfera de sabedoria e de “algo divino”. O sumo-sacerdote do templo
considerou com orgulhoso desdém: “Quem é sábio o suficiente”, perguntou
irônico, “para reformar a religião dos egípcios?” – somente para deparar-se
com a resposta confiante de Apolônio: “Qualquer sábio que venha da parte dos
indianos”. Aqui, como em toda parte, Apolônio opôs-se ao sacrifício sangrento,
e tentou substituí-lo, como o fizera noutros lugares, pela oferenda de incenso
modelado na forma da vítima (v, 25). Tentou reformar muitos abusos nos
modos dos alexandritas, mas sobre nenhum deles foi mais severo do que
sobre sua selvática excitação com as corridas de cavalos, que freqüentemente
acabava com efusão de sangue (v, 26).
Apolônio parece ter passado a maior parte dos vinte anos restantes de sua vida
no Egito, mas por Filóstrato não podemos saber nada do que ele fez nos
secretos santuários daquela terra de mistério, exceto que na prolongada
jornada até a Etiópia Nilo acima nenhuma cidade ou templo ou comunidade
deixou de ser visitado, e em todo lugar havia um intercâmbio de conselhos e
instrução nas coisas sagradas (v, 43)
Portanto, é só quando Apolônio se adianta para executar algum ato público que
podemos obter algum traço histórico preciso dele; em todos os outros casos ele
passa para dentro do santuário de um templo ou penetra na privacidade de
uma comunidade e é perdido de vista.
Pode talvez nos surpreender que Apolônio, depois de sacrificar sua fortuna
pessoal, pudesse empreender viagens tão longas e caras, mas parece que ele
ocasionalmente era provido dos fundos necessários pelos tesouros dos
templos (cf. viii, 17), e que em toda parte lhe era livremente oferecida a
hospitalidade do templo ou comunidade do local onde calhava de ele estar.
Vespasiano, Tito e Nerva eram todos, antes de sua elevação à púrpura, amigos
e admiradores de Apolônio, enquanto que Nero e Domiciano olhavam o filósofo
com temor.
De modo que embora Apolônio tenha apoiado Vespasiano enquanto ele tentou
realizar dignamente seu ideal, imediatamente censurou-o pessoalmente
quando ele privou as cidades gregas de seus privilégios. “Vós escravizastes a
Grécia”, ele escreveu. “Vós reduzistes um povo livre à escravidão” (v, 41). De
qualquer maneira, a despeito de sua censura, Vespasiano, em sua última carta
a seu filho Tito, confessou que eles eram o que eram exclusivamente por
virtude do bom conselho de Apolônio (v, 30).
De igual modo ele viajou a Roma para encontrar Domiciano face a face, e
mesmo que tenha sido posto em julgamento e todos os esforços tenham sido
feitos para prová-lo culpado de complot traidor com Nerva, ele não pôde ser
indiciado por nada de natureza política. Nerva era um bom homem, disse ao
Imperador, e não um traidor. Não que Domiciano tivesse realmente alguma
suspeita de que Apolônio estivesse pessoalmente intrigando contra ele; ele o
colocou na prisão somente na esperança de que poderia induzir o filósofo a
revelar as confidências de Nerva e outros homens eminentes que lhe eram
objetos de suspeita, e que ele imaginava que tinham consultado Apolônio sobre
suas chances de sucesso.
Os negócios de Apolônio não eram com a política, mas com “os príncipes que
lhe pediam conselho sobre a virtude” (vi, 43).
Agora voltaremos nossa atenção por um breve momento àquele lado da vida
de Apolônio que o tornou objeto de invencível preconceito. Apolônio não foi
somente um filósofo, no sentido de ser um especulador teórico ou de ser o
seguidor de um modo de vida organizado escolado na disciplina da renúncia;
ele foi também um filósofo no sentido Pitagórico original do termo – um
conhecedor dos segredos da Natureza, que assim podia falar como alguém
que tinha autoridade.
Ele conhecia o lado oculto das coisas da Natureza por experiência e não por
ouvir dizer; para ele a senda da filosofia era uma vida por onde o próprio
homem se tornava um instrumento do conhecimento. A religião, para Apolônio,
não era somente uma fé, era uma ciência. Para ele o espetáculo das coisas
eram aparências sempre mutantes; cultos e ritos, religiões e crenças, para ele
eram todos um só, considerando o espírito correto que jazia por trás deles. O
Tianeu não via diferenças de raça ou credo; tais estreitas limitações não eram
para nosso filósofo.
Acima de todos os outros ele deve ter rido ante a palavra “milagre” aplicada
aos seu feitos. “Milagre”, em seu sentido teológico Cristão, era um termo
desconhecido da antigüidade, e é um vestígio de superstição hoje. Pois ainda
que muitos acreditem que seja possível para a alma efetuar uma multidão de
coisas além das possibilidades de uma ciência que está confinada inteiramente
à investigação das forças físicas, ninguém além daquele que não pensa
acredita que pode haver alguma interferência na operação das leis que a
Deidade imprimiu na Natureza. – o credo dos Miraculistas.
Ainda jovem, no templo de Egue, Apolônio deu sinais da posse dos rudimentos
desta percepção psíquica; não só sentiu corretamente a natureza do passado
sombrio de um rico mas indigno suplicante que desejava a restauração de sua
visão, mas previu, ainda que obscuramente, o mau fim de um que havia
atentado contra sua inocência (i, 12).
Ao encontrar Damis, seu futuro fiel criado ofereceu seus serviços para a longa
jornada à Índia considerando que conhecia as línguas dos diversos países por
onde teriam que passar. “Mas eu entendo-os todos, mesmo que jamais tenha-
lhes aprendido a língua”, respondeu Apolônio, em sua maneira enigmática
usual, e acrescentou: “Não vos admireis que eu saiba as línguas dos homens,
pois eu conheço até o que eles não nunca dizem” (i, 19). E com isso ele queria
dizer simplesmente que podia ler os pensamentos das pessoas, não que ele
pudesse falar todas as línguas. Mas Damis e Filóstrato não podiam entender
um fato tão simples da experiência psíquica; eles devem ter pensado que ele
sabia não apenas as línguas de todos os homens, mas também as dos
pássaros e feras (i,20).
Era meio-dia, para citarmos o vívido relato de Filóstrato, e Apolônio estava num
dos pequenos parques ou jardins dos subúrbios, ocupado em dar uma preleção
sobre algum absorvente tópico filosófico. “Primeiro ele baixou sua voz como se
fosse tomado de alguma apreensão; contudo, continuou sua exposição, mas
vacilante, e com muito menos força do que antes, como um homem que tem
outra coisa em sua mente além daquela sobre que está falando; finalmente ele
cessou de todo de falar como se não pudesse encontrar as palavras. Então,
olhando fixamente para o chão, deu três ou quatro passos para diante,
gritando: ‘Matem o tirano, matem!’ E isto, não como um homem que vê uma
imagem num espelho, mas como um que tem a própria cena diante de seus
olhos, como se ele mesmo estivesse tomando parte nela”.
Voltando-se para sua atônita audiência, ele lhes disse o que vira. Mas ainda
que eles esperassem que fosse verdade, recusaram-se a acreditá-lo, como se
Apolônio estivesse fora de si. Mas o filósofo gentilmente respondeu: “Vós, de
vossa parte, estais certos em adiar vosso regozijo até que as notícias sejam
trazidas a vós do modo usual; mas quanto a mim, agradecerei aos Deuses pelo
que eu mesmo vi” (viii, 26).
Por outro lado, o registro de Apolônio “restituindo à vida” uma jovem de berço
nobre em Roma, é contado com grande moderação. Nosso filósofo parece ter
encontrado o féretro por acaso; então ele subitamente aproximou-se do leito, e
depois de fazer alguns passes sobre a donzela, e dizer algumas palavras
inaudíveis, “despertou-a de sua morte aparente”. Mas, diz Damis, “se Apolônio
notou que a centelha da alma ainda vivia, o que seus amigos deixaram de
perceber – segundo consta estava chovendo levemente e se via um tênue
vapor em seu rosto – ou se ele fez a vida nela aquecer-se novamente e assim
restaurando-a”, nem ele nem ninguém presente poderia dizer (iv, 45).
“Pois sabei, jovem senhor, que não tenho encantos; minha taça está até a
borda cheia de fadigas. Abrace qualquer um meu modo de vida, e deve
resolver-se a banir de sua mesa todo alimento que uma vez teve vida, deve
perder a lembrança do vinho, e assim não mais poluir a taça da sabedoria – a
taça que realmente consiste de almas não manchadas pelo vinho. Nem a lã irá
aquecê-lo, nem nada feito de animais. Dou a meus servos sapatos de fibra, e
nela eles podem dormir. E se os encontro entretidos nos deleites amorosos,
logo lhes trago aquela justiça que segue os passos da sabedoria, para resgatá-
los e corrigí-los; em verdade, sou tão rigorosa com aqueles que escolhem meu
caminho, que mesmo em suas línguas ponho um ferrolho. Agora ouve de mim
quais coisas ganharás, se perseverares. Um senso inato de prontidão e de
correção, e jamais sentir que o quinhão de outrem é melhor que o próprio;
eliminar pelo medo os tiranos antes que ser um temeroso escravo da tirania; ter
tuas pobres ofertas mais abençoadas pelos Deuses do que aqueles que lhes
apresentam o sangue dos touros. Se és puro, conceder-te-ei como saber as
coisas que virão, e encherei tanto teus olhos de luz que poderás reconhecer os
Deuses, os heróis, e provar e dominar as formas sombrias que assumem a
forma de homens” (vi, II).
Toda a vida de Apolônio demonstra que ele tentou seguir consistentemente
esta regra de vida, e as repetidas declarações de que ele jamais se juntaria aos
sacrifícios sangrentos dos cultos populares (vide especialmente i, 24, 31; iv, 11;
v, 25), mas os condenava abertamente, mostram não só que a escola
Pitagórica tinha sempre dado o exemplo do modo mais elevado de sacrificar
puramente, mas que eles não só não foram condenados e perseguidos como
heréticos por causa disso, mas foram antes considerados como sendo de
especial santidade, e como seguindo uma vida superior do que os mortais
comuns.
E não só isso, mas Apolônio mesmo dissuade o Rajá Fraotes, seu primeiro
hospedeiro na Índia, que desejava seguir sua observância estrita, de fazê-lo,
porque isso o afastaria muito de seus súditos (ii, 37).
Três vezes por dia Apolônio orava e meditava; no alvorecer (vi, 10, 18; vii, 31),
no meio-dia (vii, 10), e no ocaso (viii, 13). Isto parece ter sido seu costume
invariável; não importa onde ele estivesse, parece ter devotado pelo menos uns
poucos momentos para meditação silenciosa nestes momentos. O objeto de
seu culto é sempre dito ter sido o “Sol”, isto é, o Senhor de nosso mundo e
seus mundos irmãos, cujo símbolo encantador é o orbe do dia.
Vimos no breve esboço devotado aos seus “Primeiros Anos” como ele dividia o
dia e repartia seu tempo entre as diferentes classes de seus ouvintes e
inquiridores. Seu estilo de ensino e prédica era o oposto do orador retórico ou
profissional. Não havia arte alguma em suas sentenças, nenhuma busca de
efeito, nenhuma afetação. Mas ele falava “como se de uma trípode” [a trípode
era um banco de três pés onde sentavam-se as Pitonisas ao proferir seus
oráculos – NT], com palavras como “Eu sei”, “Parece-me”, “Por que vós”,
“Sabei”. Suas frases eram curtas e compactas, e suas palavras carregavam
convicção com elas e adequavam-se aos fatos. Sua obra, dizia, não era
procurar e questionar como havia feito em sua juventude, mas ensinar o que
sabia (i, 17). Ele não empregava a dialética da escola Socrática, mas fazia
seus ouvintes afastar-se de tudo o mais e dar ouvidos somente à voz interior
da filosofia (iv, 2). Ele tirava suas ilustrações de qualquer incidente casual ou
acontecimento doméstico (iv, 3; vi, 3, 38), e usava tudo para o melhoramento
de seus ouvintes.
Quando foi a julgamento, não fez preparação alguma para sua defesa. Ele
tinha vivido sua vida como ela se apresentava cotidianamente, preparado para
a morte, e assim continuaria (viii, 30). Acima de tudo agora era sua escolha
deliberada desafiar a morte pela causa das filosofia. E diante das repetidas
solicitações de seu velho amigo para que preparasse sua defesa, replicou:
“Damis, pareces ter perdido teu entendimento diante da morte, ainda que
tenhas estado tanto tempo comigo e eu tenha amado a filosofia desde mesmo
minha juventude (leia-se θιλοσοφω por θιλοσοφων), imaginei que estarias tu
mesmo preparado para a morte e igualmente conhecias bem meu generalato
nisto. Pois como os guerreiros no campo de batalha necessitam não só de boa
coragem mas também daquele generalato que os avisa quando lutar, assim
devem os que amam a sabedoria fazer um cuidadoso estudo das boas épocas
de morrer, para que possam escolher a melhor e não encontrar a morte todos
despreparados. Que eu escolhi e agarrei o momento que segundo a sabedoria
era o melhor para a contenda mortal – isto é, se há alguém que deseje matar-
me – eu provei a outros amigos quando estavas perto, tampouco cessei de
ensinar-te isto em privado” (vii, 31).
Isto foram algumas poucas indicações de como nosso filósofo vivia, nada
temendo exceto a deslealdade a seu alto ideal. Agora faremos menção a
alguns de seus traços mais pessoais, e a alguns dos nomes de seus
seguidores.
Diz-se que Apolônio tinha formosissima aparência (i, 7, 12; iv, 1) (Rathgeberger
[G] em seu Grossgriechenland und Pythagoras – A Magna Grécia e Pitágoras;
Gotha, 1866; uma obra de maravilhosa indústria bibliográfica, refere-se a três
supostos retratos de Apolônio [p. 621]. Um no Campidoglio Museum of the
Vatican, Indicazione delle Sculture – Catálogo de Esculturas; Roma, 1840; p.
68, n° 75, 76 e 77; outro no Museu Real Boubon, descrito por Michel B.;
Nápoles, 1837; p. 79, n° 363; e outro a réplica de uma contorniate, de Visconti.
Não consegui encontrar sua primeira referência, mas em um Guia do Museu
Real Bourbon, traduzido por C.J.J.; Nápoles, 1831; eu encontrei na p. 152 que
o n° 363 é um busto de Apolônio, cerca de 90 cm de altura, cuidadosamente
executado, com uma cabeça semelhante a um Zeus, com barba e longa
cabeleira descendo sobre seus ombros, presos por uma larga faixa. O busto
parece ser antigo. Contudo, não pude obter uma reprodução dele. E.Q.
Visconti, no atlas de sua Iconographic Grecque; Paris, 1808; dá a reprodução
de uma contorniate, ou medalha com uma borda circular, cujo um dos lados
tem uma cabeça de Apolônio e a legenda APOLLONIVS TEANEVS. Esta
também representa nosso filósofo com barba e cabelos compridos; a cabeça é
coroada, e a parte superior do corpo coberta com uma túnica e o manto do
filósofo. A medalha, porém, é de artesania muito inferior, e o retrato não é
agradável de modo algum. Visconti em seu folheto devota um raivoso e
ofensivo parágrafo a Apolônio, “ce trop célèbre imposteur”, como o chama,
basado em De Tillemont) mas além disto não temos nenhuma indicação muito
precisa de sua pessoa. Seus modos eram sempre doces e gentis (i, 36; ii, 22) e
modestos (iv, 31; viii, 15), e nisto, diz Damis, ele parecia mais um indiano do
que um grego (iii, 36); mas ocasionalmente ele impreca indignado contra
alguma barbaridade especial (iv, 30). Seu temperamento era freqüentemente
pensativo (i, 34), e quando não estava falando mergulhava longamente em
profundos pensamentos, durante o que seus olhos ficavam fixos no chão (i, 10
et al.).
Ainda que, como vimos, fosse ferrenhamente inflexível consigo mesmo, estava
sempre pronto para desculpar os outros; se, de um lado, aplaudia a coragem
dos poucos que permaneceram com ele em Roma, de outro recusou acusar de
covardia os muitos que haviam fugido (iv, 38). Tampouco sua gentileza era
demonstrada simplesmente pela abstenção de acusar, ele era sempre ativo em
atos positivos de compaixão (cf. vi, 39).
Em segundo lugar, mesmo que não devamos supor que estamos lendo as
palavras reais de Apolônio, de qualquer modo estamos cônscios de estar em
contato imediato com a atmosfera interna do melhor pensamento religioso da
mente grega, e temos diante de nossos olhos a imagem de uma fermentação
mística e espiritual que influenciou todos os níveis da sociedade no primeiro
século de nossa era.
“Já que os Deuses conhecem todas as coisas, imagino que alguém que entre
no templo com uma consciência correta em si rezaria assim: ‘Dai-me, oh
Deuses, o que me cabe!’ “ (i, II)
E assim também ele rezou, em sua longa jornada à Índia, na Babilônia: “Deus
do Sol, envia-me sobre a Terra até onde for bom para Ti e para mim; e que eu
possa conhecer o bem, e jamais conhecer o mal ou ser conhecido por ele” (i,
31).
Uma de suas preces mais comuns era, segundo Damis, assim: “Concedei, oh
Deuses, que eu tenha pouco e não precise de nada” (i, 34).
“Quando entrais nos templos, pelo que rezais?”, perguntou para nosso filósofo
o Pontífice Máximo Telesino. “Eu rezo”, disse Apolônio, “para que a retidão
possa imperar, para que as leis permaneçam intactas, para que o sábio seja
pobre e os outros, ricos, mas honestamente” (iv 40).
A fé de nosso filósofo no grande ideal de nada ter e ainda assim possuir todas
as coisas, é exemplificada em sua réplica ao oficial que demandava como ele
pretendia entrar nos domínios da Babilônia sem permissão. “Toda a Terra”,
disse Apolônio, “é minha, e me é dado que eu a percorra” (i, 21).
Também sua resposta a um jovem Creso [Creso, rei da Lídia, ficou famoso por
sua enorme riqueza – NT] da época é tão irônica quanto sábia; “Jovem
senhor”, disse ele, “penso que não sois vós que possuís vossa casa, mas que
vossa casa vos possui” (v, 22).
“Sim”, disse Apolônio, “pois ele era Hércules. Mas vós, que virtude tendes, oh
montanha de gordura? A única coisa que chama a atenção em vós é a
possibilidade de explodirdes” (iv, 23).
Mas voltemos a momentos mais sérios. Em resposta à ardente súplica de
Vespasiano, “ensina-me o que deveria fazer um bom rei”, Apolônio diz-se que
respondeu algo nestes termos:
“Vós me pedis o que não pode ser ensinado. Pois a realeza é a maior coisa ao
alcance do mortal; e não é ensinada. Mas vos direi o que, se fizésseis, faríeis
bem. Não considereis a riqueza que é acumulada – em que ela é superior à
areia reunida casualmente? Nem aquela que provém de pesadas taxações que
oprimem os homens – pois o ouro que vem das lágrimas é vil e negro.
Empregareis melhor do que qualquer rei a riqueza, se atenderdes às
necessidades dos desfavorecidos e garantirdes a riqueza dos que possuem
muito. Temei o poder de fazer o que vos aprouver, assim o usareis com maior
prudência. Não apareis as espigas que sobressaem dentre as outras – pois
Aristóteles não é justo neste ponto (vide Chassang, op. cit., p. 458, para uma
crítica desta declaração) – mas antes separai sua animosidade como o joio
dentre o grão, e intimidai os agitadores em disputa não dizendo ‘Eu vos puno’,
mas ‘Irei fazê-lo’. Submetei-vos à lei, oh Príncipe, pois fareis leis mais sábias
se vós mesmos não desprezardes a lei. Sê mais reverente do que nunca aos
Deuses; grandes são as dádivas que recebestes deles, e orai por grandes
coisas (Isto foi antes de Vespasiano tornar-se Imperador). No que tange ao
estado, agi como rei; no que tange a vós mesmos, agi como um homem
comum” (v, 36).
“O que foi? Certamente não podeis dizer que foi algo além de mera imitação!”
A imaginação, diz Apolônio, é uma das mais poderosas faculdades, pois nos
habilita a chegar mais perto das realidades. Geralmente se supõe que a
escultura grega era meramente uma glorificação da beleza física, e bastante
desespiritual em si mesma. Era uma idealização das formas e feições,
membros e músculos, uma glorificação vazia do físico com nada é claro
correspondendo a ela realmente na natureza das coisas. Mas Apolônio
declarou que ela traz-nos para mais perto do real, como Pitágoras e Platão
disseram antes dele, e como todos os sábios ensinaram. Ele queria dizer isto
literalmente, e não vaga e fantasticamente. Ele declarou que os protótipos e
idéias das coisas são as únicas realidades. Ele queria dizer que entre a
imperfeição terrena e o mais excelso arquétipo divino de todas as coisas
existiam graus de crescente perfeição. Queria dizer que dentro de cada homem
existe uma forma da perfeição, embora é claro que ainda não absolutamente
perfeita; que o anjo no homem, seu daimon, era de uma beleza divinal, o
resumo de todos os mais finos traços que apresentou em suas muitas vidas na
Terra. Os Deuses também pertencem ao mundo dos arquétipos, dos modelos,
das perfeições, o mundo celeste. Os escultores gregos conseguiram entrar em
contato com este mundo, e a faculdade que usaram foi a imaginação.
A isto Tespésion replicou que os egípcios não pretendiam dar nenhuma forma
específica aos Deuses; eles lhes atribuíam meramente símbolos aos quais era
associado um significado oculto.
“Sim”, replicou Apolônio, “ele não era tolo. Ele jurava por eles não como sendo
Deuses, mas para evitar de jurar pelos Deuses” (iv, 19).
“A lei”, disse Apolônio, “nos obriga a morrer pela liberdade, e a natureza ordena
que morramos por nossos pais, nossos amigos, ou nossos filhos. Todos os
homens estão ligados por estes deveres. Mas um dever superior é imposto
sobre o sábio; ele deve morrer por seus princípios e a verdade que defende
mais cara que a vida. Não é a lei que lhe impõe a escolha, não é a natureza; é
a força e coragem de sua própria alma. Mesmo que o fogo e a espada lhe
aflijam, não sobrepujarão sua resolução ou o obrigarão à menor falsidade; mas
ele guardará os segredos das vidas alheias e tudo o que lhe for confiado à
honra tão religiosamente como os segredos da iniciação. E eu sei mais que os
outros homens, pois sei que de tudo o que sei, algumas coisas são para o bom,
outras para o sábio, outras para mim mesmo, outras para os Deuses, mas
nada para os tiranos.
“Além disso, penso que um homem sábio não faz nada sozinho ou por si
mesmo, e nenhum pensamento seu é secreto, pois ele mesmo é sua
testemunha. E se o ditado famoso ‘conhece-te a ti mesmo’ é de Apolo ou de
algum sábio que aprendeu a conhecer-se e proclamou-o como um bem para
todos, penso que o homem sábio que conhece a si mesmo e traz seu espírito
em constante camaradagem, para lutar à sua destra, não temerá o que o vulgo
teme, nem condescenderá em fazer o que a maioria dos homens faz sem a
menor vergonha” (vii, 15).
Para que o leitor possa ser capaz de apreciar o estilo de Apolônio anexamos
um ou dois espécimens destas cartas, ou antes notas, pois são tão curtas que
não merecem o nome de epístolas. Eis uma aos magistrados de Esparta:
“É possível para os homens não cometer erros, mas requer-se homens nobres
para reconhecer que os cometeram”
“Boa recompensa se reserva para vós por vossos bons pensamentos; o que
está reservado para mim é um que espera seu julgamento e prova sua
inocência. Adeus.”
“Sócrates recusou ser livre da prisão por seus amigos e compareceu perante
os juizes. Foi condenado à morte. Adeus”
Sócrates foi condenado à morte porque não preparou sua defesa. Farei o
mesmo. Adeus!”
Eis uma nota ao Cínico Demétrio, um dos mais devotados amigos de nosso
filósofo:
Aqui damos uma amostra de uma ou duas destas cartas. Escrevendo para
Eufrates, seu grande inimigo, isto é, o campeão da pura ética racionalista
contra a ciência das coisas sagradas, ele diz:
17. “Os persas chamam de Magos aqueles que possuem faculdades divinas
(ou são divinos). Um Mago, então, é um que é um ministro dos Deuses, ou um
que tem por natureza a faculdade divina. Vós não sois nenhum Mago, mas
rejeitais os Deuses (isto é, é ateu)”.
23. “Pitágoras disse que a arte mais divina era a da cura. E se a arte da cura é
a mais divina, deve ocupar-se tanto da alma como do corpo; pois nenhuma
criatura pode estar bem enquanto a parte superior em si está doente”.
27. “Heráclito era um sábio, mas mesmo ele (isto é, um filósofo de 600 anos
antes) jamais aconselhou as pessoas de Éfeso a limparem a sujeira com
sujeira” (isto é, expiar a culpa de sangue com sacrifício sangrento).
Ainda, àqueles que diziam ser seus seguidores, os que “se consideravam
sábios”, escreve em reprovação:
43. “Se alguém disser que é meu discípulo, então que acrescente que se
mantém à parte das termas, que não mata nada vivo, não come carne, é livre
de inveja, malícia, ódio, calúnia e sentimentos hostis, mas tem seu nome
inscrito entre a raça dos que alcançaram sua liberdade”.
Mas por que esta falsa noção (de nascimento e morte) permaneceu tanto
tempo sem refutação? Alguns pensam que o que lhes sucede foi produzido por
eles mesmos. São ignorantes de que o indivíduo é trazido ao nascimento
através dos pais, e não pelos pais, assim como uma coisa produzida através
da Terra não é produzida dela. A mudança que sobrevém ao indivíduo não é
nada que seja causado pelo seu ambiente visível, mas é antes uma mudança
na única coisa que existe em cada um.
“E que outro nome pode ser dado a isso exceto o de ser primevo? A única
coisa que age e sofre se tornando tudo por tudo através de tudo, eterna
deidade, privada e afastada de seu próprio ser [self, no original – NT] por
nomes e formas. Mas isso é menos sério do que um homem lamentar-se
quando passa de homem a Deus pela mudança de estado e não pela
destruição de sua natureza. O fato é que longe de lamentar a morte deveríeis
honrá-la e reverenciá-la. O modo melhor e mais adequado para honrardes a
morte é agora liberar o que foi para Deus, e dispor-vos para encaminhar do
modo costumeiro os que ficaram sob vossa responsabilidade. Seria uma
desgraça para um homem como vós deixar que o tempo e não a razão se
encarregue da cura, pois o tempo faz com que até mesmo as pessoas comuns
deixem de lamentar. A maior coisa é uma regra firme, e o melhor governante é
aquele que primeiro governa a si mesmo. E como seria permissível alterar o
que sucedeu pela vontade de Deus? Se há uma lei nas coisas, e há uma lei, e
é Deus quem a dispôs, o homem justo não terá desejo de tentar mudar as
coisas boas, pois tal desejo é egoísta, e contra a lei, mas ele pensará que
todas as coisas que sucedem são boas. Eia! curai-vos, dai justiça aos
oprimidos e consolai-os; assim secareis vossas lágrimas. Não deveis colocar
vosso pesar pessoal acima de vossos deveres públicos, mas antes colocai
vossos deveres públicos antes de vosso pesar pessoal. E vêde também que
consolações ainda tendes! A nação se entristece convosco por vosso filho. Dai
algum retorno àqueles que o choram convosco; e isto fareis mais rápido se
cessardes de chorar do que se persistirdes. Não possuís amigos? Como! ainda
tendes outro filho! Não tendes mais o que partiu? Mas o tendes! – responderá
qualquer um que realmente pensa. Pois ‘aquele que é’ não cessa jamais –
melhor: é justamente pelo mesmo fato de que o será para sempre; ou então
‘não é’, mas como o poderia ser quando o que ‘é’ jamais cessa de ser?
“Mas será dito que falhais na piedade para com Deus e sois injusto. Verdade,
falhais em piedade para com Deus, falhais na justiça para com vosso menino;
pior, falhais em piedade também para comigo. Não sabeis o que é a morte?
Então matai-me e enviai-me para a companhia da morte, e se não alterais o
vestido que colocastes nisto (isto é, sua idéia da morte), tereis me tornado
nitidamente melhor do que vós mesmos” (o texto da última frase é muito
obscuro).
Mas além destas cartas Apolônio também escreveu alguns tratados, dos quais,
contudo, apenas um ou dois fragmentos foram preservados. Estes tratados
são:
“Nós homens deveríamos procurar o melhor dos seres através da melhor coisa
em nós, pois o que é bom – age através da mente, pois a mente não necessita
de coisas materiais para fazer sua oração. Assim, para Deus, o poderoso Um,
que está acima de tudo, nenhum sacrifício deveria jamais subir.”
c. A Vida de Pitágoras. Porfírio se refere a este livro, 8 (vide Noack, Porph. Vit.
Pythag., p. 15) e Jâmblico cita uma longa passagem dele (Ed. Amstelod., 1707,
cc. 254-264)
Aqui indicamos para o leitor toda a informação que existe a respeito de nosso
filósofo. Apolônio, então, foi um pilantra, um embusteiro, um charlatão, um
fanático, um entusiasta mal-orientado, ou um filósofo, um reformador, um
trabalhador consciente, um verdadeiro iniciado, um dos maiores da Terra? Isto
cada um deve decidir por si mesmo, de acordo com seu conhecimento ou sua
ignorância.
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