Sei sulla pagina 1di 12
MAS O QUE E MESMO “GRAMATICA”? ‘Vamos refletir um pouco sobre a gramdtica € s0- oensino de gramdtica. Mas seré que ainda se deve sar em gramatica no ensino do primeiro grau? Os gas professores esto, de um modo geral, muito fusos a respeito disso. E com certa razao. Tome-se, como exemplo, uma das afirmacées, hoje correntes, que podem explicar essa confusao. © objetivo fundamental da escola € o de levar a crianga a produzir textos e compreendé-los de um modo criativoeexiti- co, Assim, so mais importantes, na escola, as nogbes relativas ‘ao texto eao discurso ea anslise textual e no as nogbes grama- ticais e as andlises sintiticas. A gramatica ndo tem nada a ver nem com texto, nem com discurs0,¢ muito menos com os processos de produgdo.e com- preensio do text. Embora todas essas consideragdes contenham uma parte de verdade, clas sempre podem levar a con- clusdes equivocadas e desorientar o professor, quando jsoladas dos contextos te6ricos em que foram produ- vidas, Flas dependem muito do que se entende por “gramética”, “gramatical”, “saber gramética”, Por i850, vale a pena revert 0 que sabemos e devemos saber so- __-—i‘i e..COC(#C.w#tCUCt#éé#é#4w4....... ee 12 MAS 0 QUE E MESMO “GRAMATICAY? bre gramética ¢ procurar entender melhor como ela é praticada na atividade escolar, 1, Vamos comegar pelo estudo de um caso bem pratico: Suponhamos que devemos avaliar o conhecimen- to gramatical de nossos alunos. E queremos ver, ain- da, como esse conhecimento se manifesta nos seus proprios textos. Para isso, vamos propor para exame duas reda- goes. Trata-se de redagdes de dois alunos de uma 3¢ série do primeiro grau (que foram reescritas somente no que diz respeito & pontuacao e & acentuagdo): TEXTO1 Era uma vez um passarinho que vivia em uma érvore na frente da casa de Joao. E o Joao temtava pegalo todos os dias mas nao comsiguia, Até que um dia cle temtou muito, mas ‘mitito, que ele acabou catando o passarinho, Eele prendeu na gaiola bem na frente de uma janela, De pois que ele prendeu o passarinho, ele chamou seu irméo Marinho para ver, Jofo e seu irmio fied vendo até eangar ¢ o Marinho achava que o passarinho estava com fore. Joao foi no mercadinho do japonés comprar comida de passari- xnho. Os dois irmao vivia sempre de briga. Quando ele voltou Mario pidin(2) e foi dar aupiste pro passarinho, Mais ele colocot a comida e deehow a portinha aberta eo passarinho fugil foi dereto para a aryore denovo. — Diseupa, que foi sem queré E 0 Joao temton pegar ele denovo e conseguiui ¢ 0 Joio prendeu ele na gaiola denovo, Depois de dois dia Joo foi MAS 0 QUE € MESMO “GRAMATICA”? 13 ver se tinha comida para o passarinho e nao tinha eo Jofo, colocon(?) ¢ ai foi ele que nao fechou direito a portinha eo passarinho fugiu mas nao foi para a arvore. Seu irmio perguntou onde que estava o passarinho mas 0 Joao nem foi procurar porque o Jodo tinha certesa (de) quecle ‘io estava por perto. — Agora, vai vocé pega! TEXTO2 na fazenda do meu avo tem cavalos, galinha, pato, vaca, boi e porcos. Quando eu voulé, eu ando de cavalo e tomo leite de vaca. Os animais ostam muito de earinho e amor, En gosto muito dos animais, De noite os animais jé estavam todos dormindo, Mas men av6 teve que vender afazenda. Eu fui dizer adeus aos animais, Eu fiquei muito triste, Mas meu av falou que ele compra a fazenda de novo. Dai, no outro dia o meu avd comprou a fazenda de volta, Dai, nos fizemos uma festa para os animais e os animais ficaram muito felizes 1.1. A maioria dos professores, consultados so- bre essas redagdes, considerou a primeira redagaio, a do passarinho, um desastre e a avaliou de forma mui- to negativa. E isso por duas ravdes principais (além de letra, apresentagio etc,). Em primeiro lugar, esse aluno foi mal alfabetizado: troca ‘n’ por ‘m’ (comsiguia, temtou), ’ por ‘u’ e ‘w por ‘Y (voutou, aupiste, fugil...), ” por ‘e’ (comsiguia, pidiu, discupa...), ‘ch’ por ‘x’ (dechou), ‘s” por ‘’ (certesa), come letras (fico[u], discu[l]pa, queré), pée letras a mais (malils), separa 0 que deve unir (De pois) e une o que deve separar (pegalo, denovo). 14 WAS © QUE & MESMO “GRAMATICA"? Mas o pior: mesmo deixando as questdes de grafia, a redagdo desse aluno mostra que ele néo conhece a gramatica de sua lingua. Vejam s6 quantos eros! a) O aluno nao sabe usar corretamente as for- mas dtonas pronominais (0s cliticos). Uma vez, tsa 0 pronome atono de terceira pessoa ‘lo’, mas no o separa do verbo: Eo Jodo tentava pegalo. Outras vezes, usa em lugar dessa forma de bom portugués, 0 pronome tonico, de caso reto, na fungdo de objeto direto: E oJodio temtou pegar ele de novo e conseguine prendeu elena gaiola denovo... Ou deixa, simplesmente, 0 objeto direto em branco: [Jodo foi ver se tinha comida para o passarinho e nao tinha e Joao colocou (0 qué?), ‘b) Nao sabe concordancia verbal nem concordan- cia nominal: Joao e seu irmdo ficd vendo até cangar... (Os dois irmdo vivia sempre de briga... Depois de doisdia.. ©) Tem problemas de regéncia, pois emprega a preposido ‘em’ na expressio de lugar para onde, como em: Jodo foi no mereadinho do japonés... usa o verbo ‘ter’ como impessoal, em lugar de ‘haver’, no sentido de ‘existir’: Joo foi ver se tinka comida para o passarinho e nao tinka... MAS 0 QUE € MESMO “GRAMATICA’ 15 engole a preposigdo ‘de’ na oraedo que funciona como complemento nominal de ‘certeza’: em Jodo tinha certeza [de] que ele nao estava por perto.. ‘Ao contrério dessa, a redacdo (2) sobre “a fazen- da dos animais” nao tem nenhum erro de ortografia e, mais importante, nenhum erro de gramatica (a no ser por um pequeno deslize no emprego do verbo ‘ter’ em —“na fazenda de meu av6 tem cavalos, galinha...”). ‘Talvez valha a pena transcrever a observagao de uma professora: Esse aluno [0 aluno da redagao do passarinho] escreve como fala, Eissoa gente pode verna grafia(consiguia piu, discupa, pro) € nos seus erros de concordncia, Eu nao aceito essa onda de que nao tem mais certo e errado. A redagao fica horrivel ‘nessa linguagem vulgar, com esse “solecismos” [erros contra as tegras de sintaxe]. Ha regras e normas para tudo eas criangas tém que aprender a escrever de acordo com o que foi estabele- ido pelos bons escritores e pelos que conhecem a lingua. O aluno tem direito de conhecer as belezas da sua prépria lingua, A tedago da menina pode parecer mais pobre; mas é um texto limpinho, em bom portugués. 1.2. Vamos ao que nos interessa mais aqui: no contexto dessa avaliagao, o que significam “gramati- ca”, “regras gramat , “saber gramitica?” ‘A concepgao de gramatica que transparece nas avaliages acima dos textos das criangas est haseada em tm conjunto de pressupostos bem claros: 1°. Existem diferentes modalidades de uso da Jinguagem ou de uma lingua natural qualquer. Uma, a modalidade culta e bela; outra, as modalidades colo- feias ¢ vulgares porque em uso pelas pessoas is simples do povo. 16 MAS 0 QUE & MESMO “GRAMATICAT? 2°, Um padrao comparativo, para estabelecer as diferengas entre essas modalidades, consiste em tomar por base a pritica dos bons eseritores e dos que “sabem usar essa lingua” como os especialistas ou professores, contrapondo-a a linguagem popular ow vulgar. 3°. Com base no uso consagrado pelos bons escri- tores € 0 referendo dos especialistas e professores, sabe- se 0 que se pode e 0 que nao se pode falar ou escrever: autoriza-se o uso de algumas expressdes (as expressdes corretas, de bom portugues, por exemplo) e se desautori- zam outras (classificadas como solecismos, desvios de linguagem, erros, ou mau portugués). 4°. Falar e escrever bem, sobretudo escrever bem, uma habilidade a ser desenvolvida na escola, depen- de, pelo menos em grande parte, da obediéncia as nor- mas assim estabelecidas: do uso dessa lingua culta, tomada como padrdo de adequacio. 5°. Saber gramatica significa nao somente conhe- cer essas normas de bem falar e escrever, mas ainda usé-las ativamente na produgao dos textos. O respeito a gramdtica também é condigao de beleza do texto. E essa é a relagio fundamental entre gramitica e texto. Em resumo, a concepgio de gramética, que preside a avaliagao que se fez das redagdes até aqui, corresponde ao que se chama de gramitica normativa de uso da lingua: Gramitica é 0 conjunto sistemtico de normas parabem falare esorever, estabelecidas pelos especialistas, com base n0 uso da lingua consagrado pelos hons escritores. Dizer que alguém “sabe gramética” significa dizer que esse al- guém “conheve essas normas e as domina tanto nocionalmente quanto operacionalmente” MAS 0 QUE & MESMO “GRAMATICA”? 17 Essa concep¢ao de gramética tem raizes muito antigas. Um bom gramitico seria aquele que diz como se deve escrever, seja baseado em uma certa “Légi seja baseado no “uso “legitimado” por algum critério. A primeira forma de construir uma gramatica normativa (que certamente tem origens mais antigas) aparece nos gramaticos de Port-Royal, no século XVII, que vinculavam o bom uso da linguagem a arte de pen- sar. Esses gramaticos inspiraram, por exemplo, o nosso Soares Barbosa. Ao contririo deles, ainda antes no mesmo século, em pleno periodo da fundagao da Academia Francesa, esto graméticos como Vauigelas (em Remarques sur la langue frangaise {1647]) que evitam um ponto de partida légico e procuram “anotar”, com base no que observa, os dife- rentes usos da linguagem. Essa neutralidade, entretanto, € aparente, porque “uso da linguagem” tem, nesse contexto, um carater privilegiado e académico, Somente para exemplificar, vejamos o que diz.esse autor. Ele insistia em que, ao contrario de querer cons- tituir-se em juiz das querelas lingiiisticas, visava so- mente a manifestar seu testemunho sobre 0 que viu e ouviu. Mas, do que viu e ouviu, diferenciava um mau uso e um bom uso da linguagem, este como o “mestre, por exceléncia, da lingua”. E 0 que lhe parecia “le mativais usage” e “le bon usage”? Diz ele que “o mau uso da linguagem é formado pelo maior ntimero de pessoas”, ao contrario do “bom uso”, que corresponde a uma elite de manifestagdes verbais. Este, 0 bom uso, émaneira de falar da parte mais sadia da corte, de acordo como ‘modo de escrever da parte mais sadia dosescritores de seu tempo, compreendendo na corte também 18 MAS 0 QUE € MESMO “GRAMATICA”? as mulheres ¢ 03 homens e muitas pessoas da vila em que o principe reside, que pelo acesso as pessoas da corte, participam de sua polidez. O povo, dizia ele, nao é sendo o mestre do mau emprego da lingua, Nao ha duivida de que os gramaticos normativos partem de um fato da linguagem que todos estao dis- postos a reconhecer: o fato de que, no uso da lingua- gem, existem diferentes modalidades e dialetos, de- pendendo de condigoes regionais, de idade e sexo e, principalmente, de condig6es sociais (econdmicas e po- liticas). Mas também fica muito evidente, nessa con- cepeao, uma valorizacao nao estritamente lingiiistica dessas modalidades: existem subjacentes nela precon- ceitos de todo tipo, elitistas e académicos e de classe. Apesar das declaragdes de principio em contra- rio, essa concepgaio, matizada de diversos modos (subs- tituindo-se, por exemplo, a corte real pela corte dos doutos), ainda predomina na maioria de nossas prati- cas escolares sobre a linguagem. 1.4, Alguém poderia reclamar que a concepgio normativa de gramatica, desenhada acima, nao corres- ponde exatamente ao que se faz nas escolas em matéria gramatical. Para o aluno ver os desvios gramaticais en- contrados na reacao, o professor teria que langar mao de uma porgao de nogoes descritivas como nome, ver- bo, adjetivo, ... sujeito, predicado, adjuntos e comple- mentos, ... orages subordinadas de diferentes tipos. Para ilustrar isso, vejamos como se costuma mos- trar o diferente emprego das formas do pronome pes- soal, pata evitar erros de gramdtica como MAS 0 QUE E MESMO “GRAMATICA"? 19 Jodo tentou pegar ele e conseguiu eo Jodo prendeu ele na fio. Primeiro seria preciso que os alunos “aprendessem” oque é pronome e, dentre os pronomes, distinguissem os pronomes pessoais, Estes, por sta vez, teriam que ser subcategorizados em, pelo menos, dois grupos: 0s pronomes pessoais do caso rete —I* pessoa singula ¢ assim por diante; ‘0s pronomes pessoais do caso obliquo: 34 pessoa reflexiva —‘ e assim por diante. E também, é preciso utilizar essas diferentes cate- gorias e formas para formular regras de emprego como: a) os pronomes do caso reto se empregam todos como sujeito; os pronomes do caso reto ‘ele’, ‘eles’, ‘nds’ e ‘vds’ se empregam também como complementos de preposigdes (deles, por eles, por nés ete.); os pronomes ‘mim’ e ‘ti’ se empregam como complementos de preposicao: os pronomes ‘o’, ‘a’ ¢ suas variantes se em- pregam como objeto direto e o pronome ‘The’ como objeto indireto; e assim por diante. E de “assim por diante” em “assim por diante” se vai empurrando para os alunos toda a gramdtica. 20 MAS 0 QUE £ MESMO “GRAMATICA"? Ai sim podemos corrigir os nossos alunos ¢ mostrar por que nao se pode dizer: ‘Voupegar ele, Isso fica entre ewe vocts, Estou falando consigo [com vocés], Euestava lhe vendo, Joio eseuirmao ficou triste, e assim por diante. 1.5. Nesses simples exemplos jé podemos ver que a gramatica tradicional ndo contém somente “normas”: ela possui também um componente descritivo. Vejamos 0 que ocorre nesse novo modo de ver a Sramatica. Para construir esse componente descritivo da gramética, os estudiosos da lingua procedem mais out menos as I°. Analisam a estrutura das expressoes de uma lingua (ou mais), dividindo-a em unidades simples associando cada uma dessas unidades, por diferentes ctitérios categoriais, a diferentes classes. Numa ora- go como: Os dois irmao vivia sempre de briga, se identificam os nomes (irmao, briga), o verbo (vi- via), os determinantes — artigo e numeral (os, dois), 0 advérbio (sempre), a preposicao (de). 2°. Organizam essas diferentes classes em subclasses (nome comum, como ‘irmao’; nome Pr6prio, como ‘Joao’) ¢ em paradigmas flexionais (de caso, de género, de nti- mero, de pessoa, de tempo etc.) como as conjugacdes ¢ as declinagGes. Desse modo, por exemplo, os pronomes pes- soais foram agrupados em dois diferentes grupos — os do caso reto e os do caso obliquo. Mas 0 QUE MESMO “GRAMATICAY? an 3°, Verificam quais as relagdes (os modos de co- nexiio) que se estabelecem entre essas diferentes uni- dades e classes, possibilitando a construcao de unida- des complexas. Desse modo, relacionam como adjun- to adnominal ‘dois’ a irmao para formar ‘dois irmao’ e depois a ‘os’ para formar o sintagma nominal. Os doisin de modo semelhante, formam a locugio ‘sempre de briga’, que relacionam ao verho para formar o sintag- ma verbal “vivia [sempre de brigal” e, finalmente, pela relagao predicativa que se estabele- ce entre o nome e o verbo, forma-se uma oragéo [os doisirmao| [viva [sempre debriga] 4°, Definem os papéis especificos que essas uni- dades desempenham ao entrar nas construgdes com- plexas em que se relacionam (como as fungées de su- jeito e de predicado definidas, respectivamente, para o sintagma nominal e o sintagma verbal). 5°, Enfim, constltam como se empregam, na lin- gua considerada, as diferentes palavras, locugées, for- mas, paradigmas, construgées, fungdes, estabelecen- do a partir desse uso um conjunto de regras de boa formagao ou de bom uso das expressdes, ou seja, di- zem quais sio as expressdes autorizadas e a express6es ndo autorizadas pela gramitica da lingua. Desse modo, estabelecem, por exemplo, que —o-verbo concorda como sujeito em pessoa e niimeros —onome préprio se emprega sem artigo; 22 Mas 0 QUE & MESMO “GRAMATICA™? —o pronome do caso reto “ele” nio se emprega como objeto direto, €, com base nessas regras, exchuem do conjunto das expressdes gramaticais ou de bom uso, tanto a oragao que nos serviu aqui de exemplo, quanto — “e o Joao prendeu ele na gaiola”. 1.6, Embora tenhamos simplificado muito o pro- cesso de “construgio da gramética”, pode-se peroeber que ela constitui um sistema de nogées, de descrigdes estru- turais e de regras que permitem falar da lingua, descrevé- la, dizer como ela funciona no processo comunicativo e mostrar como é que se fala e se escreve nessa lingua, Mas agora, estamos usando o termo “gramética” de um modo bem diferente do que fizemos quando fala- mos em gramatica normativa acima. Aqui, j4 ndo se trata, somente, de um conjunto de normas para bem falar e escrever, mas de todo um processo descritivo. A nogdo de gramética corresponde, aproximadamente, a: Gramatica ¢ um sistema de nogdes mediante as quais se descre- vemos fatos de uma kingua, permitindo associar a cada expres- so dessa lingua uma descrigao estrutural e estabelecer suas regras de uso, de modo separar o que ¢ gramatical do que no é gramatical. “Saber gramética” significa, no caso, ser capaa de distinguir, nas expressées de uma lingua, as categorias, as fincdes e as relagGes que entram em sua construcdo, descrevendo com elas sua estrutura interna e avaliando sua gramaticalidade.. A gramética descritiva parece mais neutra, mais cientifica que a gramética normativa, Mas as coisas nao sao necessariamente assim, O ponto de vista normativo pode introduzir-se, sorrateiramente, na gra- matica descritiva pelo menos de dois modos. MAS 0 QUE & MESMO “GRAMATICA"? 2a Primeiro, devemos lembrar que ha fatos ¢ fatos. Quem esté descrevendo uma lingua pode, muito bem, simplesmente desconsiderar os fatos da linguagem coloquial e popular como devendo ser “a priori” rejei- tadas por vulgares. Como se clas nao existissem ou no devessem existir como fatos. E nao é assim que procede a gramética tradicional e escolar, referindo- se, exclusivamente, aos fatos e exemplos da lingua “abo- nados” por um grupo selecionado de escritores? Segundo, ao passar pelo nosso ponto 5° acima, 0 gramAtico pode reintroduzir os critérios sociais de uso para excluir como nao gramaticais todas as expres- sdes que nao correspondam a esse “uso consagrado”. Portanto, embora a gramatica descritiva nao pres- suponha necessariamente a manutengao dos mesmos preconceitos da gramatica normativa, 0 que ocorre habitualmente na pratica escolar é que ela os incorpo- ra: a gramatica descritiva se transforma em um ins- trumento para as prescrigées da gramatica normativa. O quadro que descrevemos acima é, na realida- de, bem mais complexo ¢ sofisticado; além disso, exis- tem intimeros outros modos de considerar a graméti- ca na pratica contemporanea dos professores. Pensa- mos, porém, que 0 que foi dito corresponde, de perto, a0 que mais comumente se entende por “gramatica” na escola brasileira. 2. Vamos contrapor uma nogao mais contempora- nea de gramatica as concepcies anteriores. Limitar-nos- emos aos aspectos mais consenswais, sem discutir pon- tos controvertidos, para evitar alongar-nos muito e stibme- ter os leitores a um mtimero muito grande de questoes. 24 NAS 0 QUE £ MESMO “GRaMATiCA”? Reduzindo-nos aos problemas fundamentais, perdemos em rigor o que esperamos ganhar em comunicabilidade, Todos os lingiiistas estariam, hoje, de acordo em considerar que uma perspectiva normativa ou pura- mente descritiva esta longe de dar conta da natureza da gramatica, das regras gramaticais e do modo pelo qual as criancas as dominam. Vamos comegar por le- vantar algumas das questdes mais importantes com que esses pesquisadores lidam, 2.1. A linguagem, seja pela convergéncia de fato- Tes de natureza antropoldgica, seja por forca de uma dotacao genética especifica, é um patriménio caracteris- tico de toda a humanidade. Uma propriedade do homem, independentemente de fatores sociais, de raca, de cul, tura, de situacao econdmica, de circunsténcias de nasci- mento ou de diferentes modos de insergao em sua comu- nidade. Qualquer crianca, tendo acesso a linguagem, do- mina rapidamente, logo nos primeiros anos de vida, todo um sistema de princfpios e regras que The permitem ativar ou construir inteiramente a gramética de sua lin- gua, (Pensem um pouco na hist6ria de seus filhos.) A linguagem ndo é algo que se aprende ou algo que se faz: € algo que desabrocha e se desenvolve como uma flor (na bonita metifora de Noam Chomsky), que ama- durece no curso dos anos, desde que se assegurem & crian- ga minimas condigdes de acesso &s manifestagées lingiiis- ticas de seus pais e de sua comunidade lingiiistica, ‘Tanto é assim que qualquer crianga logo compreende © produz. intimeras express6es que jamais ouviu, operan- do ela mesma sobre essas novas oragdes com os recursos Proprios do sistema “computacional” de producdo ¢ inter- Pretacao de seu cérebro (uma outra metéfora chomskyana). as © QUE € MESMO “GRAMATICA”? 25 Mesmo sem tomar partido nas questdes mais com- plexas relativas a esses mecanismos e processos inter- nos, 0 que se pode dizer, em resumo, é que todo falante, independentemente da modalidade de linguagem de que se sirva, possui uma gramatica interna (de natureza Diolégica e psicolégica) ou, pelo menos, a interioriza jé em tenra idade, a partir de suas préprias experiéncias linglifsticas. Uma conseqiténcia disso: toda crianga ja chega a escola dominando com perfeigio uma compli- cadissima gramdtica (que os lingitistas tentam descre- ver sem sucesso cabal ld mais de quarenta anos). colega professor deve estar percebendo que os termos “gramitica”, “regra gramatical”, “saber gra- matical” ganham sentidos completamente diferentes nessa nova perspectiva: Gramética corresponde ao saher lingtistioo que o falante de uma lingua desenvolve dentro de certos limites impostos pela sua propria dotagdo genética humane, em condigées apropria. das de naturena social eantropolégica. “Saber gramética” ndo depende, pois, em principio, da «escolarizagio, ou de quaisquer processos de aprendizado sistemé- tico, mas da ativagdo e amadurecimento progressivo (ou dacons- ‘rugdo progressiva) na prépriaatividade lingistica, de hipdteses, sobre o que seja a linguagem ede seus principios e regras. Se quiserem, a gramatica é uma praxis ou se de- senvolve na praxis por um processo de balizamento das possibilidades e virtualidades da manifestagao ver- bal, feitas ou aceitas pela comunidade lingiiistica de que o falante participa 2.2. Podemos voltar aos textos que nos servem de exemplo com um novo olhar. Se nao nos preocuparmos 26 MAS 0 OUE € MESMO “GRAMATICA™? exclusivamente com os ‘desvios’ de linguagem, a redagao (2) nos mostrard um razodvel grau de amadurecimento ingiiistico e textual (reconhecendo que deve prosseguit por longo tempo o processo de alfabetizacao). Vejam como o aluno é capaz de construir, por uma série de operagdes e obedecendo a intimeros prin- cipios gramaticais, expresses complexas, como, en- tre outras: o sintagma nominal assarinho que vivia em uma drvore na frente da casa de Joao”; o sintagma verbal: “prendeu na gaiola bem na frente de uma janela’. (A primeira, por exemplo, envolve a operacdo de construir a especificidade do passarinho pela modifica- do adjetiva da oragio relativa, de ser capaz de inserir esse termo em outra oragao, de reconhecer na suibordi- nada a retomada anaférica de ‘passarinho’ como sujei- to oculto de ‘vivia’, modificar sucessivamente esse predicado com os adjuntos de lugar complexos ete. etc.) Ou entao, como ele lida espertamente (e experta- mente) com diferentes relagdes entre as sentencas: “B o Joao tentava pegé-lo todos os dias, mas no conseguia. Até que, um dia, ele tentou muito, mas muito...”; consecutivas: “Até que, um dia, ele tentou muito, mas muito, que ele acabou catando © passarinho”; explicativas: “Desculpa, que foi sem querer’; completivas: “Depois de dois dias, Joao foi ver se tinha comida para o passarinho...”, “Seu irmao perguntou onde que es- tava o passarinho. MAS © QUE € MESMO “GRAMATICA”? 27 adversativas: “Mirio pediu e foi dar alpiste para 0 passarinho. Mas ele colocou a comi- dae deixou a portinha aberta..”, “Joao foi ver se tinha comida para o pas- sarinho e nao tinha”. ete. Além disso, o aluno jé manipula diferentes re- cursos expressivos, com certa habilidade estilistica, como quando assinala com énfase as tentativas de “ca- tar o passarinho”: ‘Até que wm dia ele tentou muito, mas muito, que ele acabou catando o passarinho, ou quando expressa em dois discursos diretos e abrup- tos a pequena malandragem de Mario e de Joao: —Desculpa que foi sem querer, — Agora, vai voce pegar. Nao precisamos alongar muito esta anilise para entender o que significa, neste contexto, “saber gra- matica”, dominar os principios e regras pelos quais se constroem as expressoes de sua lingua. Neste particu- Jar, o aluno da redagao (1) exibe um controle de sua lin- gua e de sua gramética muito superior ao da aluninha da redagao (2). Em parte por isso mesmo, ele também estrutura muito melhor o seu texto, amarrando bem os dois conflitos (com o passarinho e com o irmao) que ele resolve divertidamente afinal. [Isto nao significa, necessariamente, que a aluna da redagao (2) tivesse um menor dominio de sua gra- miatica, Talvez tenha sido levada a fazer uma hipotese estereotipada do que seja um “texto” e se conteve nos clichés ¢ na série de oragdezinhas justapostas. O alu- 28 MAS © QUE & MESMO “GRAMATICAN? independente ou, como nos disse sua pro- Um diabo!”]. 2.3. A concepcdo de gramética que estamos des- crevendo nao ignora, como nas anteriores concep¢ées, os problemas da variagao lingiifstica. B claro que se teconhecem as diferengas entre a modalidade culta escrita e a modalidade coloquial. H4, no entanto, de- sacordos profundos de conceituagao e de atitude. 1°. No novo ponto de vista, deve-se reconhecer a existéncia de principios e regras tanto em uma como em outra modalidade. Vamos exemplificar com as re- gras de concordancia nominal. Na gramética que determina a modalidade culta, todos sabemos que a marca de pluralidade se estende a0 micleo nominal do sintagma e a seus adjuntos-adje- tivos. Por isso dizemos e escrevemos, obedecendo a re- gra de concordancia: Os doisirmaos espertos. Na gramitica que preside a construgéio das ex- pressdes na modalidade coloquial considerada, as coi- sas se passam de outro modo, mas ndo sem regras. Vamos marcar com um asterisco as expressbes que no seriam aceitas nem pela comunidade que fala como nosso aluno escreve, para comparé-las com a expres- so de pluralidade por ele wtilizada: 2) Os dois irmao esperto b) * Odoisirmaos esperto ©) * Odoisirmio espertos 4) * Odoisirmaosespertos Observa'se que, em um sintagma nominal comple- xo, a modalidade coloquial se contenta em assinalar MAS 0 QUE E MESMO “GRAMATICA"? 29 morfologicamente a pluralidade em um s6 de seus cons- tituintes (sem considerar a pluralidade inerente de ‘dois’). Nisso ele se distingue claramente da modalidade culta. ‘Mas também se seguem “regras”; no é qualquer consti- tuinte que pode receber a marca de pluralidade; esta incide, praticamente sem excegdes, sobre 0 primeito determinante compativel com essa marca. Por isso, das quatro expressdes acima, somente (a) — ‘os dois irmao esperto’— esta autorizada pela gramatica do aluno; (b), (c) e (a) seriam nao-gramati- cais nessa mesma gramatica Estar em desacordo com a regra gramatical nao significa, pois, ser uma expressdo exchiida por nao corresponder a uma “norma-padrao”, de natureza social, mas ser exchrida pela gramética lingiiistica do falar proprio de uma comunidade. 2°. No dominio da gramética de uma outra lin- gua ou de uma modalidade de lingua diferente daque- la aque teve acesso, a crianca nao depende de um apren- dizado externo, mediante a formulagao explicita de normas e regras a serem seguidas. Ao contrdrio, de- pende, sobretudo de uma atividade lingiiistica diver- sificada, que permita a crianga ter acesso a novos mo- dos de dizer e a outros recursos expressivos equiva- lentes aos de sua linguagem. Assim, o objetivo fundamental da escola em le- var a crianga a dominar também a modalidade culta- escrita de sua lingua se realiza, principalmente, ofere- cendo-se a crianga condi¢ées, instrumentos ¢ ativida- des que a facam ter acesso as formas lingiiisticas dife- renciadas e operar sobre elas. 30 NAS 0 QUE € MESMO “GRAMATICA”? Isso € que leva a propor, para as primeiras séries do ensino fundamental, uma énfase especial em dife- rentes atividades lingiifsticas (orais, escritas, de pro- dugao ¢ leitura de textos, ou mesmo outros exercicios que a imaginagao construa) em que os principios ¢ re- gras da modalidade culta ou padrao se evidenciem e se comparem com os da modalidade coloquial. 3°. A concepgao de linguagem e gramética, que ago- Ta consideramos, tem bases fortemente humanistas: todo homem, sejam quais forem stias condigdes, nasce dotado de uma faculdade da linguagem, como parte de sua pré- pria capacidade e dignidade humanas, Mesmo que res- tem muitos pontos obscuros quanto a natureza e exten- sao dessa faculdade, isso significa que, sem distinco, todas as criancas desenvolvem uma gramitica interna. Fica excluida, assim, toda valoragao de uma lin- gua ou modalidade de lingua em relacao a outra e qual- quer forma de discriminagao preconceituosa da mo- dalidade popular, Nao faz sentido contrapor uma linguagem erudi- taa uma linguagem vulgar, nem tentar substituir uma pela outra. Trata-se de levar a crianca a dominar uma outra linguagem, por razdes culturais, sociais e politi- cas bastante justificdveis. ». Nao se pretende, adotando-se esta nova pers- pectiva, que a gramética interna se torne imediata- mente operacional. Seria ignorar o desenvolvimento temporal, répido, embora, da linguagem. Ao contrario, deve-se diagnosticar a nivel de deta- Ihe a realidade lingiiistica de nossos alunos, 0 estagio em que se encontram para levé-los a ampliar suas ex- periéncias lingiifsticas e suas hipéteses gramaticais; para WAS 0 QUE € MESMO “GRAMATICA”? at los dispor no somente de uma gramética passiva, s de uma gramatica cada vez mais rica e operativa. Queremos dizer que, além de um trabalho gra- ‘al que oferega a crianga as condigdes de dominio \odalidade culta, existe um trabalho continuo e ‘tente a ser feito para que ela amplie 0 conjunto recursos expressivos de que dispde para a produ- cdo e compreensao dos textos. Lembremos: 0 proceso de ativago ou constru- dessa gramatica é um processo de amadurecimen- Quanto se tem a fazer, por exemplo, para que a na da redagao (2) perca as inibigdes e opere com cedimentos mais complexos e diferenciados de cons- Gao de suas expressées. 2.4, Fi preciso distinguir, ainda, com muito cuida- o sentido de “gramatica interna” do sentido de “gra- itica”, construgao tedrica dos graméticos e lingitistas. Neste caso, como jd vimos antes ao falar da graméti- ca descritiva, trata-se de construir um sistema de nogdes e uma metalinguagem que permitam falar da linguagem e deserever (ou explicar) os seus princfpios de construcao. Isto 6, trata-se de um trabalho analitico e reflexivo sobre a linguagem e da construgao tedrica de um “modelo”, de uma representagao da estrutura da linguagem e de seu funcionamento. Uma atividade metalingitistica. No caso da gramatica interna, trata-se de um siste- ma de principios e regras que correspondem ao proprio saber lingiiistico do falante: ele se constrdi na atividade lingitistica e na atividade lingiiistica se desenvolve, ‘Tem razdo, pois, os que afirmam que estudar esta gramatica dos gramaticos ¢ lingiiistas néo contribui 32 MAS 0 QUE £ MESMO “GRAMATICA”? em quase nada para o amadurecimento e desenvolvi- mento da linguagem oral ou escrita de nossos alunos. ‘Talvez se pudesse pensar em um proveito indireto, em perfodos bem mais avancados de construgo do texto, quando esta se torna um trabalho de reestrutu- ragio e recomposigao. Isto nao exclui o interesse pelo aprendizado des- sa gramatica, enquanto ciéncia de um aspecto di guagem, em momentos mais avangados da escolarida- de. Como em outras dreas de investigagao e conheci- mento, pode-se antecipar ao aluno de primeiro e se- gundo graus o exercicio sobre um campo que mais tar- de escolham para sua especi Pelo menos, uma coisa é certa: os professores de- vem conhecer e muito bem esta gramatica. Nao, neces- sariamente, para ensiné-la a todo custo aos seus alunos infantes. Mas para us4-la como instrumento analitico e explicativo da linguagem de seus proprios alunos. (Pensem, por exemplo, que nao poderfamos pro- duzir sequer este texto desconhecendo a gramatica neste tiltimo sentido.) Ha, portanto, uma grande diferenga entre 0 que o professor ensina (e as atividades de linguagem e de gramatica que coordena) e 0 que ele deve saber, em matéria gramatical: — deve saber muito bem a gramética da modali- dade culta; — deve saber compreender a gramética da mo- dalidade de seus alunos (e todas as questdes telativas a variagdo lingiiistica); — deve dispor de um bom aparelho descritivo (pelo menos 0 que nos oferece a gramatica tra- WAS © QUE & MESO “GRAMATICA”? 33 dicional) para ser capaz de analisar expres- ses nessas diferentes modalidades, comparé- las, identificar os seus contrastes e, eventual- mente, discorrer sobre tudo isso. Voltamos 1m pouco para nossas questdes iniciais. Pelo que vimos, uma certa maneira de conceber “gra- mndtica”, “gramatical’, “saber gramética” tem tudo a ver com texto e com discurso. Precisamos retomar esses estudos. Sobretudo o professor. ExTO fas o que é mesmo “gramética”?” Sdo Paulo: Secretaria da Educagao/ Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagogicas ~ CENP, 1991.

Potrebbero piacerti anche