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A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D.

João, o
terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII.
O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o
Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este
tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno
que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As
figuras são as seguintes: Inês
0
FarsaPereira; sua Mãe;
de Inês Pereira, Lianor
de Gil Vaz; Pêro Marques; dous
Vicente
Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um
Ermitão; Luzia e Fernando. Finge-se que Inês
Literatura Pereira, filha de hüa molher de baixa
Portuguesa
sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta
esta cantiga: Canta Inês: Quien con veros pena 10.ºEy muere Que hará quando no os viere?
(Falando) INÊS Renego deste lavrar E do EBSprimeiro
do Cercoque o usou; Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento,
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Que cegueira, e que canseira! Eu hei-de buscar maneira D'algum outro
aviamento.Coitada, assi hei-de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que
sempre está num lugar? E assi hão-de ser logrados Dous dias amargurados, Que eu
possa durar viva? E assim hei-de estar cativa Em poder de desfiados?Antes o darei ao
Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida cansada De fazer sempre dum
cabo. Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foi
representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em
Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é
que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo
estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse:
segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo
que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são as seguintes:
Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão,
outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando. Finge-
se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está
lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga: Canta Inês:
Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere?
(Falando) INÊS Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira! Eu hei-de buscar maneira D'algum outro
aviamento.Coitada, assi hei-de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que
sempre está num lugar? E assi hão-de ser logrados Dous dias amargurados, Que eu
possa durar viva? E assim hei-de estar cativa Em poder de desfiados?Antes o darei ao
Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida canhgsada De fazer sempre dum
cabo. Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foi
representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em
Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é
que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo
estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse:
segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo
que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são as seguintes:
1

FARSA OU AUTO DE INÊS PEREIRA,


Gil Vicente

A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do
nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que
porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se
furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que
dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.

As figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um
chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando.
Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa,
e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:

Canta Inês: Quien con veros pena y muere Esta vida he mais que morta.
Que hará quando no os viere? 1 Sam eu coruja ou corujo,
Ou sam algum caramujo
(Falando) Que não sai senão à porta?
E quando me dão algum dia
INÊS Renego deste lavrar Licença, como a bugia6,
E do primeiro que o usou; Que possa estar à janela,
Ó diabo que o eu dou, É já mais que a Madanela
Que tão mau é d'aturar. Quando achou a aleluía.
Oh Jesu! que enfadamento,
E que raiva, e que tormento, Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:
Que cegueira, e que canseira!
Eu hei-de buscar maneira MÃE Logo eu adivinhei
D'algum outro aviamento2. Lá na missa onde eu estava,
Como a minha Inês lavrava
Coitada, assi hei-de estar A tarefa que lhe eu dei...
Encerrada nesta casa Acaba esse travesseiro!
Como panela sem asa, Hui! Nasceu-te algum unheiro?
Que sempre está num lugar? Ou cuidas que é dia santo?
E assi hão-de ser logrados3
Dous dias amargurados, INÊS Praza a Deos que algum quebranto7
Que eu possa durar viva? Me tire do cativeiro.
E assim hei-de estar cativa
Em poder de desfiados4? MÃE Toda tu estás aquela!
Choram-te os filhos por pão?
Antes o darei ao Diabo
Que lavrar mais nem pontada. INÊS Prouvesse a Deus!
Já tenho a vida cansada Que já é razão de eu não estar tão singela.
De fazer sempre dum cabo5.
Todas folgam, e eu não, MÃE Olhade ali o mau pesar8...
Todas vêm e todas vão Como queres tu casar
Onde querem, senão eu. Com fama de preguiçosa?
Hui! e que pecado é o meu,
Ou que dor de coração? INÊS Mas eu, mãe, sam aguçosa9
E vós dais-vos de vagar.
1
Quem com ver-vos pena e morre, que fará quando
vos não vir?
2 6
ocupação macaca
3 7
aproveitados feitiço
4 8
Travesseiros de franja Que desgraça!
5 9
De estar sempre no mesmo sítio activa
2

MÃE Ora espera assi, vejamos. Que m'achei naquele p'rigo:


– Assolverei! - não assolverás!
INÊS Quem já visse esse prazer! –Tomarei! - não tomarás!
– Jesu! homem, qu'has contigo?
MÃE Cal'-te, que poderá ser – Irmã, eu te assolverei
Que «ame a Páscoa vêm os Ramos». Co breviairo de Braga. –
Não te apresses tu, Inês. «Maior é o ano que o Que breviairo, ou que praga!
mês»: Que não quero: aqui d'el-Rei!
Quando te não precatares, – Quando viu revolta a voda,
Virão maridos a pares, Foi e esfarrapou-me toda
E filhos de três em três. O cabeção da camisa.

INÊS Quero-m'ora alevantar. MÃE Assi me fez dessa guisa


Folgo mais de falar nisso, Outro, no tempo da poda.
Assi me dê Deos o paraíso, Eu cuidei que era jogo,
Mil vezes que não lavrar Isto não sei que me faz E ele... dai-o vós ao fogo!
Tomou-me tamanho riso,
MÃE Aqui vem Lianor Vaz. Riso em todo meu siso,
E ele leixou-me logo.
INÊS E ela vem-se benzendo...
LIANOR Si, agora, eramá,
(Entra Lianor Vaz) Também eu me ria cá
Das cousas que me dizia:
LIANOR Jesu a que me eu encomendo! Chamava-me «luz do dia».
Quanta cousa que se faz! – «Nunca teu olho verá!»
– Se estivera de maneira
MÃE Lianor Vaz, que é isso? Sem ser rouca, bradar'eu;
Mas logo m'o demo deu
LIANOR Venho eu, mana, amarela? Catarrão e peitogueira,
Cócegas e cor de rir,
MÃE Mais ruiva que uma panela. E coxa pera fugir,
E fraca pera vencer:
LIANOR Não sei como tenho siso! Porém pude-me valer
Jesu! Jesu! que farei? Sem me ninguém acudir...
O demo (e não pode al ser)
Não sei se me vá a el-Rei, Se chantou12 no corpo dele.
Se me vá ao Cardeal.
MÃE Mana, conhecia-te ele?
MÃE Como? e tamanho é o mal?
LIANOR Mas queria-me conhecer!
LIANOR Tamanho? eu to direi:
Vinha agora pereli MÃE Vistes vós tamanho mal?
Ó redor da minha vinha,
E hum clérigo, mana minha, LIANOR Eu m'irei ao Cardeal,
Pardeos, lançou mão de mi; E far-lhe-ei assi mesura,
Não me podia valer E contar lhe-ei a aventura
Diz que havia de saber Que achei no meu olival.
S'era eu fêmea, se macho.
MÃE Não estás tu arranhada,
MÃE Hui! seria algum muchacho, De te carpir, nas queixadas?
Que brincava por prazer?
LIANOR Eu tenho as unhas cortadas,
LIANOR Si, muchacho sobejava E mais estou tosquiada:
Era hum zote10 tamanhouço! E mais pera que era isso?
Eu andava no retouço11, E mais pera que é o siso?
Tão rouca que não falava. E mais no meio da requesta13
Quando o vi pegar comigo, Veio hum homem de hüa besta,

10 12
idiota meteu
11 13
brincadeira luta
3

Que em vê-lo vi o p'raíso,


E soltou-me, porque vinha LIANOR Nesta carta que aqui vem
Bem contra sua vontade. Pera vós, filha, d'amores,
Porém, a falar a verdade, Veredes vós, minhas flores,
Já eu andava cansadinha: A discrição que ele tem.
Não me valia rogar
Nem me valia chamar: INÊS Mostrai-ma cá, quero ver
– «Aque de Vasco de Fois,
Acudi-me, como sois!» LIANOR Tomai. E sabedes vós ler?
E ele... senão pegar:
– Mais mansa, Lianor Vaz, MÃE Hui! e ela sabe latim
Assi Deus te faça santa. E gramática e alfaqui17
– Trama14 te dê na garganta! E tudo quanto ela quer!
Como! isto assi se faz?
– Isto não revela nada... INÊS (lê a carta) «Senhora amiga Inês Pereira,
– Tu não vês que são casada? Pêro Marquez, vosso amigo,
Que ora estou na nossa aldea,
MÃE Deras-lhe, má hora, boa, Mesmo na vossa mercea
E mordera-lo na coroa. M'encomendo.
E mais digo,
LIANOR Assi! fora excomungada. Digo que benza-vos Deos,
Não lhe dera um empuxão, Que vos fez de tão bom jeito.
Porque sou tão maviosa15, Bom prazer e bom proveito
Que é cousa maravilhosa. Veja vossa mãe de vós.
E esta é a concrusão. Ainda que eu vos vi
Leixemos isto. Est'outro dia folgar
Eu venho E não quisestes bailar,
Com grande amor que vos tenho, Nem cantar presente mi...»
Porque diz o exemplo antigo
Que a amiga e bom amigo INÊS Na voda de seu avô,
Mais aquenta que o bom lenho. Ou onde me viu ora ele?
Inês está concertada Lianor Vaz, este é ele?
Pera casar com alguém?
LIANOR Lede a carta sem dó,
MÃE Até `gora com ninguém Que inda eu são contente dele.
Não é ela embaraçada. Prossegue Inês Pereira a carta:
«Nem cantar presente mi.
LIANOR Eu vos trago um casamento Pois Deos sabe a rebentinha18
Em nome do anjo bento. Que me fizestes então.
Filha, não sei se vos praz. Ora, Inês, que hajais bênção
De vosso pai e a minha,
INÊS E quando, Lianor Vaz? Que venha isto a concrusão.
E rogo-vos como amiga,
LIANOR Eu vos trago aviamento. Que samicas vós sereis,
Que de parte me faleis
INÊS Porém, não hei-de casar Antes que outrem vo-lo diga.
Senão com homem avisado E, se não fiais de mi,
Ainda que pobre e pelado, Esteja vossa mãe aí,
Seja discreto em falar E Lianor Vaz de presente.
Veremos se sois contente
LIANOR Eu vos trago um bom marido, Que casemos na boa hora.»
Rico, honrado, conhecido.
Diz que em camisa16 vos quer INÊS Des que nasci até agora
Não vi tal vilão com'este,
INÊS Primeiro eu hei-de saber Nem tanto fora de mão!
Se é parvo, se sabido.
LIANOR Não queirais ser tão senhora.
14
Doença
15 17
Terna, meiga Ciência teológica jurídica muçulmana
16 18
Mesmo pobre (sem dote) Desejo e ciúme
4

Casa, filha, que te preste,


Não percas a ocasião. MÃE Tomai aquela cadeira.
Queres casar a prazer
No tempo d'agora, Inês? PÊRO E que val aqui uma destas?
Antes casa, em que te pês19,
Que não é tempo d'escolher. INÊS (Ó Jesu! que João das bestas!
Sempre eu ouvi dizer: Olhai aquela canseira!)
«Ou seja sapo ou sapinho, Assentou-se com as costas pera elas, e diz:
Ou marido ou maridinho,
Tenha o que houver mister.» PÊRO Eu cuido que não estou bem...
Este é o certo caminho.
MÃE Como vos chamais, amigo?
MÃE Pardeus, amiga, essa é ela!
«Mata o cavalo de sela PÊRO Eu Pêro Marques me digo,
E bom é o asno que me leva». Como meu pai que Deos tem.
Filha, «no Chão de Couce Faleceu, perdoe-lhe Deos,
Quem não puder andar choute20.» Que fora bem escusado,
E: «mais quero eu quem m'adore E ficamos dous eréos21.
Que quem faça com que chore». Porém meu é o mor gado.
Chamá-lo-ei, Inês?
MÃE De morgado é vosso estado?
INÊS Si. Venha e veja-me a mi. Isso viria dos céus.
Quero ver quando me vir
Se perderá o presumir PÊRO Mais gado tenho eu já quanto,
Logo em chegando aqui, E o mor de todo o gado,
Pera me fartar de rir. Digo maior algum tanto.
E desejo ser casado,
MÃE Touca-te, se cá vier Prouguesse ao Espírito Santo,
Pois que pera casar anda. Com Inês, que eu me espanto
INÊS Essa é boa demanda! Quem me fez seu namorado.
Cerimónias há mister Parece moça de bem,
Homem que tal carta manda? E eu de bem, er também.
Eu o estou cá pintando: Ora vós er ide vendo
Sabeis, mãe, que eu adivinho? Se lhe vem milhor ninguém,
Deve ser um vilãozinho A segundo o que eu entendo.
Ei-lo, se vem penteando: Cuido que lhe trago aqui
Será com algum ancinho? Pêras da minha pereira...
Aqui vem Pêro Marques, vestido como filho de Hão-de estar na derradeira.
lavrador rico, Tende ora, Inês, per i.
com um gabão azul deitado ao ombro,
com o capelo por diante, e vem dizendo: INÊS E isso hei-de ter na mão?

PÊRO Homem que vai aonde eu vou PÊRO Deitae as peas22 no chão.
Não se deve de correr
Ria embora quem quiser INÊS As perlas pera enfiar..
Que eu em meu siso estou. Três chocalhos e um novelo...
Não sei onde mora aqui... E as peias no capelo...
Olhai que m'esquece a mi! E as pêras? Onde estão?
Eu creo que nesta rua...
E esta parreira é sua. PÊRO Nunca tal me aconteceu!
Já conheço que é aqui. Algum rapaz m'as comeu...
Chega Pêro Marques aonde elas estão, e diz: Que as meti no capelo,
Digo que esteis muito embora. E ficou aqui o novelo,
Folguei ora de vir cá... E o pente não se perdeu.
Eu vos escrevi de lá Pois trazia-as de boa mente...
Üa cartinha, senhora...
E assi que de maneira... INÊS Fresco vinha aí o presente

19 21
Ainda que te custe herdeiaros
20 22
trote cordas
5

Com folhinhas borrifadas! PÊRO Inda não tendes candea?


Ponho per cajo que alguém
PÊRO Não, que elas vinham chentadas23 Vem como eu vim agora,
Cá em fundo no mais quente. E vos acha só a tal hora:
Vossa mãe foi-se? Ora bem... Parece-vos que será bem?
Sós nos leixou ela assi?... Ficai-vos ora com Deos:
Cant'eu quero-me ir daqui, Çarrai a porta sobre vós
Não diga algum demo alguém... Com vossa candeazinha.
E sicais25 sereis vós minha,
INÊS Vós que me havíeis de fazer? Entonces veremos nós...
Nem ninguém que há-de dizer?
(O galante despejado!). (Vai - s e P êro M arq ue s e d iz I nê s P er eir a:)

PÊRO Se eu fora já casado, INÊS Pessoa conheço eu


D'outra arte havia de ser Que levara outro caminho...
Como homem de bom recado. Casai lá com um vilãozinho,
Mais covarde que um judeu!
INÊS (Quão desviado este está! Se fora outro homem agora,
Todos andam por caçar E me topara a tal hora,
Suas damas sem casar Estando assi às escuras,
E este... tomade-o lá!). Dissera-me mil doçuras,
Ainda que mais não fora...
PÊRO Vossa mãe é lá no muro?
(Vem a Mãe e diz:)
INÊS Minha mãe eu vos seguro
Que ela venha cá dormir MÃE Pêro Marques foi-se já?

PÊRO Pois, senhora, eu quero-me ir INÊS E pera que era ele aqui?
Antes que venha o escuro.
MÃE E não t'agrada ele a ti?
INÊS E não cureis mais de vir.
INÊS Vá-se muitieramá26!
PÊRO Virá cá Lianor Vaz, Que sempre disse e direi:
Veremos que lhe dizeis... Mãe, eu me não casarei
Senão com homem discreto,
INÊS Homem, não aporfieis, E assi vo-lo prometo
Que não quero, nem me apraz. Ou antes o leixarei.
Ide casar a Cascais. Que seja homem mal feito,
Feio, pobre, sem feição,
PÊRO Não vos anojarei mais, Como tiver discrição,
Ainda que saiba estalar; Não lhe quero mais proveito.
E prometo não casar E saiba tanger viola,
Até que vós não queirais. E coma eu pão e cebola.
Siquer uma cantiguinha!
(Pêro vai-se, dizendo:) Estas vos são elas a vós: Discreto, feito em farinha27,
Porque isto me degola28.
Anda homem a gastar calçado,
E quando cuida que é aviado, MÃE Sempre tu hás-de bailar
Escarnefucham24 de vós! E sempre ele há-de tanger?
Creo que lá fica a pea... Pardeus! Bô ia eu à aldeia! Se não tiveres que comer
O tanger te há-de fartar?
(Voltando atrás)
INÊS Cada louco com sua teima.
Senhora, cá fica o fato? Com uma borda de boleima29

INÊS Olhai se o levou o gato...


25
Se porventura
26
Em má hora
27
meigo
23 28
metidas agrada
24 29
escarnecem bolo
6

E uma vez d'água fria, Que foste, que fomos, que ias
Não quero mais cada dia. Buscá-lo, esgravatá-lo...

MÃE Como às vezes isso queima! VIDAL Vós, amor, quereis marido
E que é desses escudeiros? Mui discreto, e de viola?

INÊS Eu falei ontem ali LATÃO Esta moça não é tola,


Que passaram por aqui Que quer casar per sentido...
Os judeos casamenteiros
E hão-de vir agora aqui. VIDAL Judeu, queres-me leixar?

Aq ui e ntr a m o s J ud e u s c a sa me n te iro s, LATÃO Leixo, não quero falar


u m, La tão , e o utr o , V id a l e d iz
VIDAL Buscámo-lo...
Latão : u de cá!
LATÃO Demo foi logo!
INÊS Quem está lá? Crede que o vosso rogo
Vencerá o Tejo e o mar
VIDAL Nome del Deu, aqui somos! Eu cuido que falo e calo...
Calo eu agora ou não?
LATÃO Não sabeis quão longe fomos! Ou falo se vem à mão?
Não digas que não te falo.
VIDAL Corremos a iramá. Este e eu.
INÊS Jesu! Guarde-me ora Deus!
LATÃO Eu, e este... Não falará um de vós?
Já queria saber isso...
VIDAL Pola lama e polo pó,
Que era pera haver dó, MÃE Que siso, Inês, que siso
Com chuva, sol e Nordeste. Tens debaixo desses véus...
Foi a coisa de maneira,
Tal friúra e tal canseira, INÊS Diz o exemplo da velha:
Que trago as tripas maçadas. «O que não haveis de comer
Assi me fadem boas fadas Leixai-o a outrem mexer».
Que me saltou caganeira!
Pera vossa mercê ver MÃE Eu não sei quem t'aconselha...
O que nos encomendou.
INÊS Enfim, que novas trazeis?
LATÃO O que nos encomendou
Será o que hoiver de ser VIDAL O marido que quereis,
Todo este mundo é fadiga De viola e dessa sorte,
Vós dixestes, fiiha amiga, Não no há senão na corte
Que vos buscássemos logo... Que cá não no achareis.
Falámos a Badajoz,
VIDAL E logo pujemos fogo... Músico, discreto, solteiro.
Este fora o verdadeiro,
LATÃO Cala-te! Mas soltou-se-nos da noz.
Fomos a Vilhacastim
VIDAL Não queres que diga? E falou-nos em latim: - «Vinde cá daqui a uma
Não fui eu também contigo? hora,
Tu e eu não somos eu? E trazei-me essa senhora».
Tu judeu e eu judeu,
Não somos massa dum trigo? INÊS Assi que é tudo nada enfim!

LATÃO Leixa-me falar. VIDAL Esperai, aguardai ora!


Soubemos dum escudeiro
VIDAL Já calo. De feição d'atafoneiro30
Senhora, fomos... agora falo, Que virá logo essora,
Ou falas tu? Que fala... e com' ora fala!

LATÃO Dize, que dizias?


30
Muito ocupado
7

Estrugirá31 esta sala. Faze-o por amor de mi.


E tange... e com' ora tange!
E alcança quanto abrange, MOÇO Porém, senhor digo eu
E se preza bem da gala. Que mau calçado é o meu
Ve m o Es c ud ei r o , Pera estas vistas assi.
co m s e u Mo ço ,
q ue l he tr a z u ma vio la, ESCUDEIRO Que farei, que o sapateiro
e d iz, fa la nd o só : Não tem solas nem tem pele?

ESCUDEIRO Se esta senhora é tal MOÇO Sapatos me daria ele,


Como os Judeus ma gabaram, Se me vós désseis dinheiro...
Certo os anjos a pintaram,
E não pode ser i al. ESCUDEIRO Eu o haverei agora.
Diz que os olhos com que via E mais calças te prometo.
Foram de Santa Luzia,
Cabelos, da Madanela... MOÇO (Homem que não tem nem preto,
Se fosse moça tão bela, Casa muito na má hora.)
Como donzela seria?
Moça de vila será ela Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e
Com sinalzinho postiço, levantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o
E sarnosa no toutiço, Escudeiro:
Como burra de Castela.
Eu, assi como chegar ESCUDEIRO Antes que mais diga agora,
Cumpre-me bem atentar Deus vos salve, fresca rosa,
Se é garrida, se honesta, E vos dê por minha esposa,
Porque o milhor da festa Por mulher e por senhora;
É achar siso e calar. Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
(Falando para Inês:) Mui graciosa donzela,
MÃE Se este escudeiro há-de vir Que vós sois, minha alma, aquela
E é homem de discrição, Que eu busco e que desejo.
Hás-te de pôr em feição, Obrou bem a Natureza
De falar pouco e não rir Em vos dar tal condição
E mais, Inês, não muito olhar Que amais a discrição
E muito chão o menear Muito mais que a riqueza.
Por que te julguem por muda, Bem parece
Porque a moça sesuda Que a discrição merece
É uma perla pera amar. Gozar vossa fermosura,
Que é tal que, de ventura,
(Falando para o criado:) Outra tal não se acontece.
ESCUDEIRO Olha cá, Fernando, eu vou Senhora, eu me contento
Ver a com que hei-de casar. Receber vos como estais:
Avisa-te, que hás-de estar Se vós vos não contentais,
Sem barrete onde eu estou. O vosso contentamento
Pode falecer no mais.
MOÇO (Como a rei! Corpo de mi!
Mui bem vai isso assi...) LATÃO (Como fala!

ESCUDEIRO E, se cuspir, pola ventura, VIDAL E ela como se cala!


Põe-lhe o pé e faz mesura. Tem atento o ouvido...
Este há-de ser seu marido,
MOÇO (Ainda eu isso não vi!) Segundo a coisa s'abala.)

ESCUDEIRO E se me vires mentir ESCUDEIRO Eu não tenho mais de meu,


Gabando-me de privado, Somente ser comprador
Está tu dissimulado, Do Marichal meu senhor
Ou sai-te pera fora a rir E são escudeiro seu.
Isto te aviso daqui, Sei bem ler
E muito bem escrever
E bom jogador de bola,
31
atroará
8

E quanto a tanger viola,


Logo me vereis tanger MOÇO Vós sempre zombais assi.
Moço, que estais lá olhando?
ESCUDEIRO Oh que boas vozes tem
MOÇO Que manda Esta viola aqui
Vossa Mercê? Leixa-me casar a mi,
Depois eu te farei bem.
ESCUDEIRO Que venhais cá.
MÃE Agora vos digo eu
MOÇO Pera quê? Que Inês está no Paraíso!

ESCUDEIRO Por que faças o que eu mando! INÊS Que tendes de ver co isso?
Todo o mal há-de ser meu.
MOÇO Logo vou.
(O Diabo me tomou: MÃE Quanta doudice!
Sair me de João Montês
Por servir um tavanês32 INÊS Oh! como é seca a velhice!
Mor doudo que Deus criou!) Leixai-me ouvir e folgar,
Que não me hei-de contentar
ESCUDEIRO Fui despedir um rapaz De casar com parvoíce.
Que valia Perpinhão33, Pode ser maior riqueza
Por tomar este ladrão. Moço! Que um homem avisado37?

MOÇO Que vos praz? MÃE Muitas vezes, mal pecado,


é milhor boa simpreza.
ESCUDEIRO A viola.
LATÃO Ora oivi, e oivireis.
MOÇO (Oh! como ficará tola Escudeiro, cantareis
Se não fosse casar ante Alguma boa cantadela.
Co mais cafeo34 bargante35 Namorai esta donzela
Que coma pão e cebola!). E esta cantiga direis:
Ei-la aqui bem temperada,
Não tendes que temperar Canta o Judeu
«Canas do amor, canas, canas do amor
ESCUDEIRO Faria bem de ta quebrar Polo longo dum rio Canavial vi florido,
Na cabeça bem migada36! Canas do amo.»

MOÇO E se ela é emprestada, Canta o Escudeiro o romance «Mal me quieren en


Quem na havia de pagar? Castilla» e diz Vidal:
Meu amo, eu quero m'ir.
VIDAL Latão, já o sono é comigo
ESCUDEIRO E quando queres partir? Como oivo cantar guaiado38,
Que não vai esfandegado39...
MOÇO Ante que venha o Inverno,
Porque vós não dais governo LATÃO Esse é o Demo que eu digo!
Pera vos ninguém servir Viste cantar Dona Sol:
Pelo mar voy a vela,
ESCUDEIRO Não dormes tu que te farte? Vela vay pelo mar?

MOÇO No chão, VIDAL Filha Inês, assi vivais


e o telhado por manta... Que tomeis esse senhor
E çarra-se m'a garganta Com fome. Escudeiro cantador
E caçador de pardais,
ESCUDEIRO Isso tem arte... Sabedor revolvedor
Falador gracejador
Afoitado pela mão,
32
estouvado
33
Raro, precioso
34 37
reles sabido
35 38
Homem sem vergonha lamentoso
36 39
Feita em pedaços desafinado
9

E sabe de gavião... Inês Pereira, recebo a vós,


Tomai-o por meu amor. Sem mais preço nem demanda
Podeis topar um rabugento, Como sancta Igreja manda
Desmazelado, baboso, A Brás da Mata,
Descancarado40, brigoso,
Medroso, carapatento41. Ahi somos nós.
Este escudeiro, aosadas42,
Onde se derem pancadas, VIDAL
Ele as há-de levar Alça manim, ó dona, ha45!
Boas, senão apanhar.. Arreia espeçulá46.
Nele tendes boas fadas. Bento o Deu de Jacob,
Bento o Deu que a Faraó
MÃE Quero rir com toda a mágoa
Destes teus casamenteiros! MÃE Espantou e espantará.
Nunca vi Judeus ferreiros Bento o Deu de Abraão,
Aturar tão bem a fragoa43. Benta a terra de Canão.
Não te é milhor mal por mal, Para bem sejais casados!
Inês, um bom oficial, Dai-nos cá senhos47 ducados.
Que te ganhe nessa praça,
Que é um escravo de graça, MÃE Amenhã vo-los darão.
E mais casas com teu igual? Pois assi é, bem será
Que não passe isto assi.
LATÃO Senhora, perdei cuidado: Eu quero chegar ali
O que há-de ser há-de ser; Chamar meus amigos cá,
E ninguém pode tolher E cantarão de terreiro.
O que está determinado.
ESCUDEIRO Oh! quem me fora solteiro!
VIDAL Assi diz Rabi Zarão.
INÊS Já vós vos arrependeis?
MÃE Inês, guar'-te de rascão44!
Escudeiro queres tu? ESCUDEIRO Ó esposa, não faleis,
Que casar é cativeiro.
INÊS Jesu, nome de Jesu!
Quão fora sois de feição! Aq ui ve m a M ãe co m cert as mo ça s e
Já minha mãe adivinha... ma n ceb o s p er a faz ere m a fes ta, e d iz u ma
Folgastes vós na verdade d ela s, p er no me Lu z ia:
Casar à vossa vontade?
Eu quero casar à minha. Luz. Inês, por teu bem te seja!
Oh! que esposo e que alegria!
MÃE Casa, filha, muit'embora.
INÊS Venhas embora, Luzia,
ESCUDEIRO Dai-me essa mão, senhora. E cedo t'eu assi veja.

INÊS Senhor de mui boa mente. MÃE Ora vae tu ali, Inês,
E bailareis três por três.
ESCUDEIRO Per palavras de presente
Vos recebo desd'agora. FERNANDO Tu connosco, Luzia, aqui,
Nome de Deus, assi seja! E a desposada ali,
Eu, Brás da Mata, Escudeiro, Ora vede qual direis.
Recebo a vós, Inês Pereira Cantam todos a cantiga que se segue:
Por mulher e por parceira «Mal herida va la garça Enamorada,
Como manda a Santa Igreja. Sola va y gritos dava.
A las orillas de um rio
INÊS Eu, aqui diante Deus, La garça tenia el nido;
Ballestero la ha herido
En el alma;
40
descarado
41
hipócrita
42 45
certamente Levanta as mãos e agradece
43 46
forja Arranja o cabelo
44 47
Vadio, desordeiro distribuídos
10

Sola va y gritos dava.»


ESCUDEIRO Será bem que vos caleis.
E, acabando de cantar e bailar diz Fernando: E mais, sereis avisada
Que não me respondais nada,
FERNANDO Ora, senhores honrados, Em que ponha fogo a tudo,
Ficai com vossa mercê, Porque o homem sesudo
E nosso Senhor vos dê Traz a mulher sopeada49.
Com que vivais descansados. Vós não haveis de falar
Isto foi assi agora, Com homem nem mulher que seja;
Mas melhor será outr'hora. Nem somente ir à igreja
Perdoai pelo presente: Não vos quero eu leixar
Foi pouco e de boa mente. Já vos preguei as janelas,
Com vossa mercê, Senhora... Por que não vos ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada
Luz. Ficai com Deus, desposados, Nesta casa, tão fechada
Com prazer e com saúde, Como freira d'Oudivelas.
E sempre Ele vos ajude
Com que sejais bem logrados. INÊS Que pecado foi o meu?
Porque me dais tal prisão?
MÃE Ficai com Deus, filha minha,
Não virei cá tão asinha48. ESCUDEIRO Vós buscastes discrição,
A minha bênção hajais. Que culpa vos tenho eu?
Esta casa em que ficais Pode ser maior aviso,
Vos dou, e vou-me à casinha. Maior discrição e siso
Senhor filho e senhor meu, Que guardar o meu tisouro?
Pois que já Inês é vossa, Não sois vós, mulher meu ouro?
Vossa mulher e esposa, Que mal faço em guardar isso?
Encomendo-vo-la eu. Vós não haveis de mandar
E, pois que des que naceu Em casa somente um pêlo.
A outrem não conheceu, Se eu disser:
Senão a vós, por senhor - isto é novelo
Que lhe tenhais muito amor - Havei-lo de confirmar
Que amado sejais no céu. E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta- E cousa que vós digais
se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga: Não vos há-de valer mais
Que aquilo que eu quiser.
INÊS Si no os huviera mirado (para o criado)
No penara,
Pero tampoco os mirara. Moço, às Partes d'Além Me vou fazer cavaleiro.
O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui
agastado lhe diz: MOÇO (Se vós tivésseis dinheiro
Não seria senão bem...)
ESCUDEIRO Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas m'andáveis vós? ESCUDEIRO Tu hás-de ficar aqui.
Juro ao corpo de Deus Olha, por amor de mi,
Que esta seja a derradeira! O que faz tua senhora:
Se vos eu vejo cantar Fechá-la-ás sempre de fora.
Eu vos farei assoviar..
(para Inês)
INÊS Bofé, senhor meu marido,
Se vós disso sois servido, Vós lavrai, ficai per i.
Bem o posso eu escusar.
MOÇO Co dinheiro que leixais
ESCUDEIRO Mas é bem que o escuseis, Não comerei eu galinhas...
E outras cousas que não digo!
ESCUDEIRO Vae-te tu por essas vinhas,
INÊS Porque bradais vós comigo? Que diabo queres mais?

48 49
depressa Humilhada, dominada
11

Nunca mata drago53 em vale


MOÇO Olhai, olhai, como rima! Nem mouro que chamem
E depois de ida a vindima?
Ale: E assi deve de ser.
ESCUDEIRO Apanha desse rabisco50. Juro em todo meu sentido
Que se solteira me vejo,
MOÇO Pesar ora de São Pisco! Assi como eu desejo,
Convidarei minha prima... Que eu saiba escolher marido,
E o rabisco acabado, À boa fé, sem mau engano,
Ir me-ei espojar às eiras? Pacífico todo o ano,
ESCUDEIRO Vai-te per essas figueiras, E que ande a meu mandar
E farta-te, desmazelado! Havia m'eu de vingar
Deste mal e deste dano!
MOÇO Assi?
Luz. Inês, por teu bem te seja!
ESCUDEIRO Pois que cuidavas? Oh! que esposo e que alegria!
E depois virão as favas.
Conheces túbaras da terra? INÊS Venhas embora, Luzia, E cedo t'eu assi veja.

MOÇO I-vos vós, embora, à guerra, MÃE Ora vae tu ali, Inês,
Que eu vos guardarei oitavas51... E bailareis três por três.

Ido o Escudeiro, diz o Moço: FERNANDO Tu connosco,


Luzia, aqui,
MOÇO Senhora, o que ele mandou E a desposada ali,
Não posso menos fazer. Ora vede qual direis.

INÊS Pois que te dá de comer Cantam todos a cantiga que se segue:


Faze o que t'encomendou.
«Mal herida va la garça Enamorada,
MOÇO Vós fartai-vos de lavrar Sola va y gritos dava.
Eu me vou desenfadar A las orillas de um rio
Com essas moças lá fora: La garça tenia el nido;
Vós perdoai-me, senhora, Ballestero la ha herido
Porque vos hei-de fechar. En el alma;
Sola va y gritos dava.»
Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e
cantando esta cantiga: E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:

INÊS «Quem bem tem e mal escolhe FERNANDO


Por mal que lhe venha não s'anoje.» Ora, senhores honrados,
Renego da discrição Ficai com vossa mercê,
Comendo ò demo o aviso, E nosso Senhor vos dê
Que sempre cuidei que nisso Com que vivais descansados.
Estava a boa condição. Isto foi assi agora,
Cuidei que fossem cavaleiros Mas melhor será outr'hora.
Fidalgos e escudeiros, Perdoai pelo presente:
Não cheios de desvarios, Foi pouco e de boa mente.
E em suas casas macios, Com vossa mercê, Senhora...
E na guerra lastimeiros52.
Vede que cavalarias, Luzia. Ficai com Deus, desposados,
Vede que já mouros mata Com prazer e com saúde,
Quem sua mulher maltrata E sempre Ele vos ajude
Sem lhe dar de paz um dia! Com que sejais bem logrados.
Sempre eu ouvi dizer
Que o homem que isto fizer MÃE Ficai com Deus, filha minha,
Não virei cá tão asinha.
50
rebusco
51 53
rendimentos Dragão
52
cruéis
12

A minha bênção hajais. Pode ser maior aviso,


Esta casa em que ficais Maior discrição e siso
Vos dou, e vou-me à casinha. Que guardar o meu tisouro?
Senhor filho e senhor meu, Não sois vós, mulher meu ouro?
Pois que já Inês é vossa, Que mal faço em guardar isso?
Vossa mulher e esposa, Vós não haveis de mandar
Encomendo-vo-la eu. Em casa somente um pêlo.
E, pois que des que naceu Se eu disser: - isto é novelo –
A outrem não conheceu, Havei-lo de confirmar
Senão a vós, por senhor E mais quando eu vier
Que lhe tenhais muito amor De fora, haveis de tremer;
Que amado sejais no céu. E cousa que vós digais
Não vos há-de valer mais
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta- Que aquilo que eu quiser.
se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga: (para o criado)

INÊS Si no os huviera mirado Moço, às Partes d'Além


No penara, Me vou fazer cavaleiro.
Pero tampoco os mirara.
MOÇO (Se vós tivésseis dinheiro
O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui Não seria senão bem...)
agastado lhe diz:
ESCUDEIRO Tu hás-de ficar aqui.
ESCUDEIRO Vós cantais, Inês Pereira? Olha, por amor de mi,
Em vodas m'andáveis vós? O que faz tua senhora:
Juro ao corpo de Deus Fechá-la-ás sempre de fora.
Que esta seja a derradeira! (para Inês)
Se vos eu vejo cantar Vós lavrai, ficai per i.
Eu vos farei assoviar..
MOÇO Co dinheiro que leixais
INÊS Bofé, senhor meu marido, Não comerei eu galinhas...
Se vós disso sois servido, ESCUDEIRO
Bem o posso eu escusar. Vae-te tu por essas vinhas, Que diabo queres mais?
MOÇO
ESCUDEIRO Mas é bem que o escuseis, Olhai, olhai, como rima! E depois de ida a vindima?
E outras cousas que não digo! ESCUDEIRO
Apanha desse rabisco.
INÊS Porque bradais vós comigo? MOÇO
Pesar ora de São Pisco! Convidarei minha prima...
ESCUDEIRO Será bem que vos caleis. E o rabisco acabado, Ir me-ei espojar54 às eiras?
E mais, sereis avisada ESCUDEIRO
Que não me respondais nada, Vai-te per essas figueiras, E farta-te, desmazelado!
Em que ponha fogo a tudo, MOÇO
Porque o homem sesudo Assi?
Traz a mulher sopeada. ESCUDEIRO
Vós não haveis de falar Pois que cuidavas? E depois virão as favas.
Com homem nem mulher que seja; Conheces túbaras da terra?
Nem somente ir à igreja MOÇO
Não vos quero eu leixar I-vos vós, embora, à guerra, Que eu vos guardarei
Já vos preguei as janelas, oitavas...
Por que não vos ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada Ido o Escudeiro, diz o Moço:
Nesta casa, tão fechada
Como freira d'Oudivelas. MOÇO Senhora, o que ele mandou
Não posso menos fazer.
INÊS Que pecado foi o meu?
Porque me dais tal prisão? INÊS Pois que te dá de comer
Faze o que t'encomendou.
ESCUDEIRO Vós buscastes discrição,
Que culpa vos tenho eu?
54
rebolar
13

Se lhe vai bem, ou que faz.


MOÇO Vós fartai-vos de lavrar
Eu me vou desenfadar MOÇO Bem pequena é a carta assaz!
Com essas moças lá fora:
Vós perdoai-me, senhora, INÊS Carta de homem avisado.
Porque vos hei-de fechar.
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e
cantando esta cantiga: «Muito honrada irmã,
Esforçai o coração
INÊS «Quem bem tem e mal escolhe E tomai por devação
Por mal que lhe venha não s'anoje.» De querer o que Deus quiser.»
Renego da discrição E isto que quer dizer?
Comendo ò demo o aviso, «E não vos maravilheis
Que sempre cuidei que nisso De cousa que o mundo faça,
Estava a boa condição. Que sempre nos embaraça
Cuidei que fossem cavaleiros Com cousas. Sabei que indo
Fidalgos e escudeiros, Vosso marido fugindo
Não cheios de desvarios, Da batalha pera a vila,
E em suas casas macios, A meia légua de Arzila,
E na guerra lastimeiros. O matou um mouro pastor.»
Vede que cavalarias,
Vede que já mouros mata MOÇO Ó meu amo e meu senhor!
Quem sua mulher maltrata
Sem lhe dar de paz um dia! INÊS Dai-me vós cá essa chave
Sempre eu ouvi dizer E i buscar vossa vida.
Que o homem que isto fizer
Nunca mata drago em vale MOÇO
Nem mouro que chamem Ale: Oh que triste despedida!
E assi deve de ser. INÊS
Juro em todo meu sentido Mas que nova tão suave!
Que se solteira me vejo, Desatado é o nó.
Assi como eu desejo, Se eu por ele ponho dó,
Que eu saiba escolher marido, O Diabo me arrebente!
À boa fé, sem mau engano, Pera mim era valente,
Pacífico todo o ano, E matou-o um mouro só!
E que ande a meu mandar Guardar de cavaleirão,
Havia m'eu de vingar Barbudo, repetenado55,
Deste mal e deste dano! Que em figura de avisado
É malino e sotrancão56.
MOÇO Esta carta vem d'Além Agora quero tomar
Creio que é de meu senhor. Pera boa vida gozar,
Um muito manso marido.
INÊS Mostrai cá, meu guarda-mor Não no quero já sabido,
E veremos o que i vem. Pois tão caro há de custar.

Lê o sobrescrito: Aq ui v e m Lia no r V a z, e fi n g e I nê s
«À mui prezada senhora Inês Pereira da Grã, P ereira e star c ho ra nd o , e d iz Li a no r :
À senhora minha irmã.»
De meu irmão...Venha embora! LIANOR Como estais, Inês Pereira?

MOÇO Vosso irmão está em Arzila? INÊS Muito triste, Lianor Vaz.
Eu apostarei que i vem
Nova de meu senhor também. LIANOR Que fareis ao que Deus faz?

INÊS Já ele partiu de Tavila? INÊS Casei por minha canseira.

MOÇO Há três meses que é passado.


55
INÊS Aqui virá logo recado insolente
56
hipócrita
14

LIANOR Se ficaste prenhe basta. INÊS (Não lhe quero mais saber
Já me quero contentar..).
INÊS Bem quisera eu dele casta57,
Mas não quis minha ventura. LIANOR Ora dai-me essa mão cá.
Sabeis as palavras, si?
LIANOR Filha, não tomeis tristura,
Que a morte a todos gasta. PÊRO Ensinaram-mas a mi,
O que havedes de fazer? Porém esquecem-me já...
Casade-vos, filha minha.
LIANOR Ora dizei como digo.
INÊS Jesu! Jesu!
Tão asinha! PÊRO E tendes vós aqui trigo
Isso me haveis de dizer? Pera nos jeitar por riba?
Quem perdeu um tal marido,
Tão discreto e tão sabido, LIANOR Inda é cedo... Como rima!
E tão amigo de minha vida?
PÊRO
LIANOR Dai isso por esquecido, Soma, vós casais comigo,
E buscai outra guarida. E eu com vosco, pardelhas59!
Pêro Marques tem, que herdou, Não cumpre aqui mais falar
Fazenda de mil cruzados. E quando vos eu negar
Mas vós quereis avisados... Que me cortem as orelhas.

INÊS Não! já esse tempo passou. LIANOR Vou-me, ficai-vos embora.


Sobre quantos mestres são
Experiência dá lição. INÊS Marido, sairei eu agora,
Que há muito que não saí?
LIANOR
Pois tendes esse saber PÊRO Si, mulher saí-vos i,
Querei ora a quem vos quer Qu'eu me irei pera fora.
Dai ò demo a opinião.
INÊS Marido, não digo isso.
Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês
Pereira só, dizendo: PÊRO Pois que dizeis vós, mulher?

INÊS Andar! Pêro Marques seja. INÊS Ir folgar onde eu quiser


Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso PÊRO I onde quiserdes ir,
De cada vez que me veja. Vinde quando quiserdes vir
Por usar de siso mero, Estai onde quiserdes estar.
Asno que me leve quero, Com que podeis vós folgar
E não cavalo folão. Qu'eu não deva consentir?
Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero. u m Er mi t ão a p ed ir e s m o la, q u e e m mo ço
lh e q ui s b e m, e d i z:
Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor
Vaz: Soledad. Pues su siervo soy nacido.
Por ejemplo, Me meti en su santo templo
LIANOR Nô mais cerimónias agora; Ermitaño en pobre ermita,
Abraçai Inês Pereira Fabricada de infinita Tristeza en que contemplo,
Por mulher e por parceira. Adonde rezo mis horas
Y mis dias y mis años,
PÊRO Há homem empacho58, Mis servicios y mis daños,
má-hora, Cant'a dizer abraçar.. Donde tu, mi alma, Iloras
El fin de tantos engaños.
Depois que a eu usar Entonces poderá ser: Y acabando Las horas, todas llorando,
Tomo las cuentas una y una,
Con que tomo a la fortuna
57
descendência
58 59
atrapalhado Par Deus (por Deus)
15

Cuenta del mal en que ando, No se cuente por perdido.


Sin esperar paga alguna.
Y ansi sin esperanza INÊS Padre, mui bem vos entendo
De cobrar lo merecido, Ó demo vos encomendo,
Sirvo alli mis dias Que bem sabeis vós pedir!
Cupido Eu determino lá d'ir
Con tanto amor sin mudanza, À ermida, Deus querendo.
Que soy su santo escogido.
Ó señores, Los que bien os va d'amores, ERMITÃO E quando?
Dad limosna al sin holgura,
Que habita en sierra oscura, INÊS I-vos, meu santo,
Uno de los amadores Que eu irei um dia destes
Que tuvo menos ventura. Muito cedo, muito prestes.
Y rogaré al Dios de mi,
En quien mis sentìdos traigo, ERMITÃO Señora, yo me voy en tanto.
Que recibais mejor pago
De lo que yo recebi (Inês torna para Pêro Marques):
En esta vida que hago.
Y rezaré Com gran devocion y fé, INÊS Em tudo é boa a concrusão.
Que Dios os libre d'engaño, Marido, aquele ermitão
Que esso me hizo ermitaño, É um anjinho de Deus...
Y pera siempre seré,
Pues pera siempre es mi daño. PÊRO Corregê vós esses véus
E ponde-vos em feição.
INÊS Olhai cá, marido amigo,
Eu tenho por devação INÊS Sabeis vós o que eu queria?
Dar esmola a um ermitão.
\E não vades vós comigo PÊRO Que quereis, minha mulher?

PÊRO I-vos embora, mulher INÊS Que houvésseis por prazer


Não tenho lá que fazer De irmos lá em romaria.
(Inês fala a sós com o Ermitão):
PÊRO Seja logo, sem deter
INÊS Tomai a esmola, padre, lá,
Pois que Deus vos trouxe aqui. INÊS Este caminho é comprido...
Contai uma história, marido.
ERMITÃO Sea por amor de mi
Vuesa buena caridad. PÊRO Bofá que me praz, mulher
Deo gratias, mi señora!
La limosna mata el pecado, INÊS Passemos primeiro o rio.
Pero vos teneis cuidado Descalçai-vos.
De matar-me cada hora.
Deveis saber Para merced me hacer PÊRO E pois como?
Que por vos soy ermitaño.
Y aun más os desengaño: INÊS E levar me-eis no ombro,
Que esperanças de os ver Não me corte a madre o frio.
Me hizieron vestir tal paño.
Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:
INÊS Jesu, Jesu! manas minhas!
Sois vós aquele que um dia INÊS Marido, assi me levade.
Em casa de minha tia
Me mandastes camarinhas, PÊRO Ides à vossa vontade?
E quando aprendia a lavrar
Mandáveis-me tanta cousinha? INÊS Como estar no Paraíso!
Eu era ainda Inesinha,
Não vos queria falar. PÊRO Muito folgo eu com isso.

ERMITÃO Señora, tengo-os servido INÊS


Y vos a mi despreciado; Esperade ora, esperade!
Haced que el tiempo pasado Olhai que lousas aquelas,
16

Pera poer as talhas nelas!

PÊRO
Quereis que as leve?

INÊS Si. Uma aqui e outra aqui.


Oh como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?

PÊRO
Eu não saberei entoar..

INÊS Pois eu hei só de cantar


E vós me respondereis
Cada vez que eu acabar:
«Pois assi se fazem as cousas».

Canta Inês Pereira:

INÊS «Marido cuco me levades


E mais duas lousas.»

PÊRO «Pois assi se fazem as cousas.»

INÊS
«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo.
Sempre fostes percebido60
Pera gamo.
Carregado ides, noss'amo,
Com duas lousas.»

PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas»

INÊS
«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero.
Sempre fostes percebido
Pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.»

PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»
E assi se vão, e se acaba o dito Auto.

60
Sempre tivestes predisposição, destinado.
17

QUESTIONÁRIO

1. Delimite as várias partes deste auto fazendo um breve resumo de cada uma delas.

2. De que se queixa Inês Pereira? Justifique.

3. Há um conflito de gerações entre Inês e a Mãe. Explicite-o.

4. Explique o conflito no primeiro diálogo de Inês Pereira com a Mãe.

5. Caracterize a personagem Inês Pereira tendo em conta as três fases diferentes da sua vida amorosa.

6. Que papel desempenha a Lianor Vaz?

7. Lianor Vaz conta um caso que teve com um clérigo. Resuma-o.

8. Que dizia a carta remetida por Pêro Marques?

9. Comente os conselhos que a Mãe dá à Inês.

10. Explique o significado da seguinte fala da Mãe: «toucar-te, se cá vier».

11. Compare o discurso de apresentação de Pêro Marques com o do Escudeiro.

12. Que pensou Inês Pereira de Pêro Marques?

13. Dê exemplos de cómico de situação nas cenas em que entra o Pêro Marques.

14. Que tipos sociais são criticados no Escudeiro, na Lianor Vaz e nos Judeus casamenteiros?
Justifique.

15. Por que razão é que Inês Pereira preferiu inicialmente o Escudeiro a Pêro Marques?

16. Há uma antinomia entre o comportamento inicial do Escudeiro e o comportamento posterior ao


casamento. Refira-a.

17. Comente a situação económica do Escudeiro.

18. Que função desempenha o Moço no auto?

19. Que acontecimento leva Inês Pereira a libertar-se do compromisso assumido com o Escudeiro?

20. Explicite as concessões de Pêro Marques da cena final face às exigências de Inês Pereira.

21. Explique o significado das seguintes expressões: «panela sem asa» e «sam coruja ou corujo».

22. Explique o significado da seguinte expressão: «A Madanela quando achou a aleluía».

23. Explique as seguintes palavras da Mãe, tendo em conta as razões que estão na génese desta farsa:
«Mata o cavalo de sela e bom é o asno que me leva».

24. Que relação tinha o Ermitão com Inês Pereira?


18

25. Como reage Inês às palavras do Ermitão?

26. O que é que se prevê que suceda depois que Inês Pereira aceitou Pêro Marques?

27. Será Inês Pereira fiel ao novo marido? Justifique a sua resposta com expressões do texto.

28. Desenvolva, numa composição cuidada, o tema da mulher e do casamento na época dos
Descobrimentos, tendo em conta a dicotomia idealismo / realidade.

MINHA SENHORA DE QUÊ

dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas deslumbrantes folhas
nem eu me projectei
se os versos apressados
me nascem sempre urgentes:
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada
dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção
se sentidos diversos ocultados
nem do oculto nascem
(poética do Hades quem me dera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos

(Ana Luísa Amaral)

O poema de Ana Luísa Amaral questiona o papel da mulher na actualidade – aquela a quem
dói a consciência – por não se conseguir dar resposta às várias solicitações (tarefas domésticas,
profissão e o seu próprio prazer). Este poema dista cerca de 500 anos da Farsa de Inês Pereira,
contudo, o desejo de ser “dona de si” e do seu tempo mantém-se. A partir dos dados fornecidos,
elabora, um comentário ao poema. (extensão entre cento e cinquenta a duzentas palavras).
19

A Farsa de Inês Pereira é uma peça de teatro escrita por Gil Vicente, na qual retrata a
ambição de uma criada da classe média portuguesa do século XVI. Desafiado por aqueles que
duvidavam do seu talento, Gil Vicente concorda em escrever uma peça que comprove o
provérbio "Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube". A peça foi apresentada
pela primeira vez a D. João III no Convento de Cristo, Tomar, em 1523. Tecnicamente, é a
mais perfeita obra vicentina, pela unidade de acção que apresenta.

Esta peça pode ser dividida em quatro partes principais, ou quadros, ou em oito cenas. No
entanto não há uma divisão explícita, pelo autor, em actos.

Toda a peça gira à volta da personagem principal Inês Pereira que nunca sai de cena. As
didascálias são escassas, não há mudança de cenário, e a mudança de cena é só pautada pela
entrada ou saída de personagens.

SINOPSE

Inês Pereira, moça simples e casadoira mas com grande ambição procura marido que
seja astuto, sedutor, “que saiba tanger viola, e eu coma cebola.” A mãe de Inês, preocupada
com a sua filha, sua educação e casamento, incita-a a casar com Pêro Marques, pretendente
arranjado pela alcoviteira
Leonor Vaz, no entanto Inês Pereira não se apraz do filho do lavrador, por este ser
ignorante e inculto.Entretanto entram em peça dois “casamenteiros judeus” que também
cuidavam de arranjar marido para Inês, e se bem procuraram melhor acharam e Inês casa com
um escudeiro, de sua graça Brás da Mata.
Este casamento depressa se revela desastroso para Inês, que por tanto procurar um
marido astuto acaba por casar com um que antes de sair em missão para África, dá ordens ao
seu moço que fique a vigiar Inês e que a tranque em casa de cada vez que sair à rua. Brás da
Mata, era um escudeiro falido que casou com Inês de forma a poder aproveitar-se do seu dote.
Três meses após a sua partida, Inês recebe a agradável notícia de que o seu marido foi
morto por um mouro. Não tarda em querer casar de novo, e é nesse mesmo dia que Leonor
Vaz lhe traz a notícia que Pêro Marques, continua casadoiro, de resto como este tinha
prometido a Inês aquando do primeiro encontro destes. Inês casa com ele logo ali, e já no fim
da história aparece um falso monge que se torna amante da protagonista.
O ditado “mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, não podia ser
melhor representado do que na última cena da obra quando o marido a carrega em ombros até
ao amante, e ainda canta com ela “assim são as coisas”.

Personagens:

Inês: representa a moça casadoira, fútil, muito preguiçosa e interesseira, se casa duas vezes,
apenas para se livrar do tédio da vida de solteira. Não conseguindo casar-se na primeira
tentativa, garante-se na segunda, com o marido ingénuo. Apesar de seu comportamento
impróprio, consegue até mesmo a simpatia do público pela inteligência com que planeja seus
passos.
Leonor Vaz: é a alcoviteira, mulher na época assim chamada que arrumava casamentos,
revelando que a base da família está corrompida.
Mãe: apesar de dar conselhos à filha, acha importante que ela não fique solteira e se torna
cúmplice das atitudes dela.
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Pero Marques: é o marido bobo. Apesar de ser ridicularizado por Inês, ele se casa como
ela e deixa que ela o maltrate e o traia.
Escudeiro: Preocupado em arrumar uma esposa, finge, e engana, criando uma imagem de
"bom moço" que depois se revela um tirano, e deixa Inês presa em sua casa mas ele é morto
por um pastor.
Moço: era um amigo do primeiro marido de Ines que o ajuda a mentir para se casar
com ela.
Ermitão: era apaixonado por Inês e depois torna-se um padre.
Latão e Vidal: judeus casamenteiros.

A temática da peça está profundamente ligada à realidade vivida pela sociedade


portuguesa da época de Gil Vicente: o desejo de ascensão social da pequena burguesia,
que vê no casamento numa forma de consegui-la, o oportunismo, o desprezo pela vida
camponesa e o prestígio das maneiras cortesãs, a ignorância do rústico, embora rico
camponês e sua ingenuidade, a falta de escrúpulos (núcleo da peça). O desenvolvimento do
capitalismo reforçou o poder do monarca e provocou a decadência da nobreza feudal. A
riqueza vinda do comércio ultramarino tendia a ser grande base do prestígio social. A
aristocracia dependia dessa riqueza e procurou diminuir sua importância desprezando-a e
valorizando a origem de sangue, a educação, a fineza, as boas maneiras, a honra e a coragem,
enfim os ideais cavaleirescos. E como a nobreza mesmo decadente, ainda conservava grande
prestígio social, acabou por impor o estereótipo do cavaleiro como modelo a que deviam
aspirar todos aqueles que queriam pertencer à classe superior. A burguesia (comércio e
finanças) procurou imitar esse figurino com desejo de ascensão social. Passaram então a
imitar os nobres sonhando subir na escala social, mas isso tornou-se cómico e ridículo.

É mais ou menos o que acontece em Inês Pereira. Inês, jovem cansada de trabalhar,
quer casar. Lianor Vaz lhe arranja um noivo, Pêro Marques, que ela recusa por ser falastrão
(quer um marido discreto, mesmo que pobre). Então Latão e Vidal, dois judeus casamenteiros,
lhe arranjam o escudeiro Brás da Mata, com quem se casa. Brás é caloteiro e nunca paga seu
moço, Fernando. Logo após o casamento Brás vai para o Norte da África tornar-se cavaleiro,
mas é morto por um pastor mouro ao fugir da batalha. Livre deste casamento Inês se casa com
Pêro Marques.

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