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PERCURSOS PERVERSOS DA LOUCURA

© Celeste Duque, Junho 1995


Copiando a forma redonda do universo
confinaram as suas revoluções divinas a um
corpo esférico ! a cabeça, como hoje lhe
chamamos ! e que é a parte mais divina de todos
nós e domina tudo o resto. (in Timeu, Platão)

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objectivo divulgar uma pesquisa pessoal sobre o conceito de
Loucura, mais precisamente, o Percurso do Conceito de Loucura desde o séc. XIV até ao
presente. Para tal, houve necessidade de recorrer a uma extensa revisão de literatura após o
que se elegeram os livros e autores considerados como mais influentes e fidedignos.
O aprofundar da perspectiva epistemológica do conceito de loucura levou ao estudo de
“águas mais profundas”, algo desconhecidas da autora, tais como origem do conceito de
loucura, frenologia, e mapas frenológicos, remando a contra-relógio, conseguiu-se alcançar a
modernidade e chegar a Damásio (1995), fica, no entanto, bem expressa, a certeza de que,
seguramente, muito mais haveria a explorar, não fora o tempo escasso e o sentido de
realidade demasiado presente.
Aos poucos e à medida que o trabalho ganhava forma levantou-se a questão da compreensão
da violação/violador inserida numa abordagem conceptual da loucura versus perversidade.
Pelo caminho “cruzaram-se” autores, que embora não totalmente desconhecidos tinham até
aqui passado despercebidos. A título de exemplo refira-se: Foucault, Damásio e Lanteri-
Laura.
Na hora de se fazer o balanço, este só pode, de facto ser, extremamente positivo, até porque
se redescobriram os caminhos sinuosos por que passou a loucura, algumas vezes num estilo
de escrita tão agradável, muito próxima da linguagem artístico-literária; abordaram-se áreas
de pesquisa aparentemente distantes da Psicologia como foi o caso da criminologia, o estudo
da contribuição da Justiça/Direito, ao actuar em problemáticas do foro da Psicopatologia,
obviamente, este último, foi apenas levemente aflorado, fica no entanto o desejo de lá voltar,
quem sabe num futuro mais ou menos próximo.
Por fim, quando se deu por terminada esta caminhada pairava no ar (quase que, tactilmente
detectável) o grato prazer de verificar que, para além das muitas horas “gastas”, mas
igualmente ganhas, abriu-se o vertex (Bion) de conhecimento.

HORIZONTES DA LOUCURA

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O desaparecimento da lepra ! que levou à exclusão dos indivíduos afectados, através,
nomeadamente, do internamento em leprosários criados expressamente para o efeito, entre a
alta Idade Média até ao final da Era das Cruzadas ! vai ressurgir uma exclusão, algo
diferente, dois ou três séculos mais tarde, entre os séc. XIV e o séc. XVIII. Os pobres,
vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” vão assumir o papel de abandonado e
lazarento, cujo único objectivo consiste na procura, através desta medida, da sua salvação e
daqueles que os excluem.
Com um significado inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, esta forma de
exclusão social, irá resistir às mudanças culturais e subsistir, colando-se, perversamente, à
noção de bem-público e de reintegração espiritual.
A lepra foi, num primeiro momento, substituída pelas doenças venéreas, no final do séc. XV,
elas sucedem-lhe como se de um direito de herança se tratasse. De facto, à semelhança da
lepra também as doenças venéreas se expandem rapidamente e, mau grado, os médicos vêm-
se obrigados a receber, estes novos doentes, nos hospitais. A gravidade da situação atingiu
repercussões tais que, no decorrer do séc. XVI, a doença venérea foi incluída na ordem das
doenças que exigem tratamento.
Curiosamente, a doença venérea, sob a influência do modo de internamento, tal como se
institui no séc. XVII, esta isolou-se, de algum modo, do seu contexto médico, para se
integrar, lado a lado com a loucura, num espaço moral de exclusão. A herança deste
fenómeno bastante complexo e perverso, só muito tempo depois poderá ser devolvido ao
domínio da Medicina.
Fala-se, obviamente, do fenómeno da loucura! Será necessário um longo período de
latência/inactividade, de quase dois séculos, para que esse novo “alvo”, que se constitui
como o substituto da lepra, faça reviver os medos seculares do contágio, e
consequentemente, reacções de divisão, de exclusão e de purificação, que lhe são
apresentadas de uma forma bem evidente.
A loucura esteve, obstinadamente, ligada a todas as experiências maiores da Renascença,
antes de ser reclassificada, por volta do séc. XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor,
velhos ritos.
A famosa “Nau dos Loucos” teve uma existência bem real. Esses barcos levavam a sua carga
“insana” de uma cidade para a outra. Os loucos tinham uma existência, facilitadamente,
errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos
campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Este era
um hábito comum, particularmente na Alemanha, na primeira metade do séc. XV.
Era, igualmente, frequente que os marinheiros fossem encarregados de “livrar a cidade” de
um louco que por ela passeava nu. No entanto, dadas as contrapartidas, os loucos eram,
muitas vezes, deixados pelos marinheiros, em locais bem mais próximos do local de partida,
do que o combinado.

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Ao longo de toda a Idade Média e Renascença, existiu, na maior parte das cidades da
Europa, um lugar de detenção reservado aos insanos, o que leva a supor que nem todos os
loucos eram escorraçados da cidade, e que provavelmente, apenas os estrangeiros, estariam
sujeitos a isso, aceitando cada cidade tomar conta dos seus cidadãos e dos seus “loucos”.
Há um elevado grau de probabilidade, que as “naus de loucos”, que ensombraram toda a
primeira parte da Renascença, tivessem começado por ser naus de peregrinação, navios com
um grande valor simbólico ! “insanos em busca da razão”.
Esta circulação de loucos, o gesto que os escorraça, a partida e o desembarque, não visam a
utilidade social ou a segurança dos cidadãos. Outros significados, sem dúvida mais próximas
do rito, estão também aí presentes. Aliás, ainda é possível decifrar alguns dos seus vestígios
senão, considere-se o seguinte exemplo: o acesso às igrejas é proibido aos loucos, no
entanto, o direito eclesiástico não lhes proíbe o uso dos sacramentos!
Naquela época conturbada, era algo vulgar presenciar-se ao seguinte espectáculo: assistir ao
chicotear, em público, alguns loucos e, como se fizesse parte do jogo, eram, de seguida,
perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade às bastonadas. Este constitui
outro dos signos de que a partida dos loucos se inscrevia entre os exílios rituais.
Assim, confiar o louco aos marinheiros é, concerteza, evitar que ele ficasse vagando
indefinidamente entre os muros da cidade; é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo
prisioneiro da sua própria partida. E, por outro lado, a água salgada acrescenta a massa
obscura dos seus valores: ela leva embora, mas faz mais do que isso, ela purifica!
Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado
ao seu próprio destino, e todo o embarque é potencialmente o último. Fechado no navio, o
louco, é um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: apesar disso,
solidamente acorrentado a uma infinita encruzilhada.
Soerguida subitamente no horizonte da cultura europeia, por volta do fim da Idade Média, a
loucura simboliza toda uma inquietude. A água e a loucura irão estar ligadas e farão parte do
imaginário e dos sonhos do homem europeu, por longo tempo (séculos).
Ao nível da literatura encontram-se, com alguma facilidade, exemplos, onde se pode
identificar o misticismo atribuído à loucura. Nas “farsas” e “sotias” a personagem do louco,
o simplório ou o Bobo toma lugar no centro do teatro como detentor da verdade !
desempenhando ali o papel complementar e inverso ao que assume a loucura nos “contos de
sátiras”.
A loucura ao ser objecto de discursos leva a que se sustentem discursos sobre si mesma: é
denunciada e quando isso sucede ela defende-se, reivindica para si mesma o estar mais
próximo da felicidade e da verdade, do que a razão, e, vai mais longe, ao ponto de afirmar
estar mais próxima da razão do que a própria razão.
A partir do séc. XV, a face da loucura assombra a imaginação do homem ocidental. Até à

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segunda metade do séc. XV, ou mesmo um pouco depois, o tema da morte impera sozinho: é
o fim do homem, o fim dos tempos que assume diferentes rostos, nomeadamente, as pestes e
as guerras. O que domina o homem é este fim e esta ordem à qual ninguém escapa, do qual a
Igreja retira todos os proventos que pode. Mas, nos últimos anos do século, esta grande
inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a
acompanha. A loucura é a personificação da morte; neste sentido a loucura é uma
continuação rigorosa da lepra.
Não é o fim dos tempos e do mundo que mostrará retrospectivamente que os homens eram
uns loucos por não se preocuparem com isso; é a ascensão da loucura, e a sua surda invasão
que indica que o mundo está próximo de sua derradeira catástrofe; é a demência dos homens
que a invoca e a torna necessária.
Enquanto o racional e sábio só percebe do saber tão inacessível e temível, algumas figuras
fragmentárias ! e por isso mesmo mais inquietantes !, como Louco, são capazes de carregar,
numa esfera intacta, e por inteiro: essa bola de cristal, que para todos está vazia, mas que a
seus olhos se enche de um saber invisível.
Por esse facto, naquela época as pessoas são levadas a crer que este saber dos loucos anuncia
e prediz, ao mesmo tempo, o reino de satã e o fim do mundo, a última felicidade e o castigo
supremo, o todo-poder sobre a terra e a queda infernal, e isto porque é, sem dúvida, um saber
proibido.
Em todos os lados, a loucura fascina o homem. As imagens fantásticas que ela faz surgir não
são aparências fugidias que logo desaparecem da superfície das coisas. Por estranho
paradoxo, aquilo que nasce do mais singular delírio já estava oculto, como um segredo,
como uma inacessível verdade, nas entranhas da terra.
A Idade Média atribui um lugar à Loucura, na hierarquia dos vícios. A partir do séc. XIII ela
participa das doze dualidades que dividem entre si a soberania da alma humana: Fé/Idolatria;
Esperança/Desespero; Caridade/Avareza; Castidade/Luxúria; Prudência/Loucura;
Paciência/Cólera; Suavidade/Dureza; Concórdia/Discórdia; Obediência/Rebelião;
Perseverança/Inconstância.
Na Renascença, a loucura abandona esse modesto lugar, passando a ocupar o lugar de maior
destaque, é ela que conduz o alegre coro de todas as fraquezas humanas. Tem o privilégio
absoluto de reinar sobre tudo o que há de mau no homem. De facto, a loucura atrai mas não
fascina. Ela governa tudo o que há de fácil, de alegre, de ligeiro no mundo, tudo nela é uma
superfície translúcida: não há enigmas ocultos. Sem dúvida ela tem algo a ver com os
estranhos caminhos do saber.
É frequente aparecer ligada não ao mundo mas ao homem, às suas fraquezas, aos seus
sonhos e às suas ilusões. O símbolo da loucura será o espelho que, nada reflectindo de real,
reflectiria secretamente, para aquele que nele se contempla, o sonho da sua presunção. O que
leva, inevitavelmente, a que se chegue a um universo inteiramente moral. O mal não é o

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castigo ou o fim dos tempos mas, apenas, erro e defeito.
No domínio da expressão da literatura e da filosofia, a experiência da loucura, no séc. XV,
assume sobretudo o aspecto de uma sátira moral. A consciência crítica vê-se, cada vez mais,
posta sob uma luz mais forte, enquanto penetravam progressivamente na penumbra suas
figuras trágicas. Em breve estas serão inteiramente afastadas e irá ser difícil encontrar
vestígios delas durante muito tempo. Obscuramente essa experiência trágica subsiste nas
noites do pensamento e dos sonhos, e aquilo que se teve no séc. XVI foi, não uma destruição
radical, mas apenas uma ocultação.
A experiência da loucura que se entende do séc. XVI até hoje deve sua figura particular, e a
origem de seu sentido, a essa ausência, a essa noite e a tudo o que a ocupa.
Para melhor se compreender a experiência que o classicismo teve da loucura temos que ter
em atenção:
1. A loucura constitui-se numa forma relativa da razão, ou melhor, a loucura e a razão
entram numa relação eternamente reversível que faz com que “toda a loucura tenha
sua razão” que a julga e controla, e “toda a razão sua loucura” na qual encontra sua verdade
irrisória. Cada uma é a medida da outra, e nesse movimento de referência recíproca elas se
recusam, mas uma fundamenta a outra.
Não há nada que não esteja mergulhado na imediata contradição, nada que não incite o
homem a aderir, por vontade própria, a sua própria loucura; comparada com a verdade das
essências e de Deus, toda a ordem humana é apenas uma loucura.
Em relação à Sabedoria, a razão do homem não passava de uma loucura; em relação à
estreita sabedoria dos homens, a Razão de Deus é considerada no movimento essencial da
loucura. Em grande escala, tudo não passa de Loucura; em pequena escala, o próprio Todo é
Loucura. Isto é, a loucura só existe em relação à razão, mas toda a verdade desta consiste em
fazer aparecer, por um instante, a loucura que ela recusa, a fim de se perder, por sua vez,
numa loucura que a dissipa.
Sob a influência maior do pensamento cristão, encontrava-se conjurado o grande perigo que
o séc. XV tinha visto crescer. A loucura não é um poder abafado, que faz explodir o mundo
revelando fantásticos prestígios; ela não revela, no crepúsculo dos tempos, as violências da
bestialidade, ou a grande luta entre o Saber e a Proibição.
2. A loucura transforma-se numa das formas da razão; só tem sentido e valor no próprio campo
da razão.

E a pior loucura do homem é não reconhecer a “miséria em que está encerrado”, a “fraqueza
que o impede de se aproximar do verdadeiro” e do bom; não saber qual é a sua parte de
loucura.
Como distinguir, numa acção prudente, se ela foi cometida por um louco, e como distinguir,
na mais insensata das loucuras, se ela pertence a um homem normalmente prudente e
comedido?
Pascal afirmava que: “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco
significaria ser louco de um outro tipo de loucura”.

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A verdade da loucura é ser interior à razão, ser uma de suas figuras, uma força e como que
uma necessidade momentânea a fim de melhor se certificar de si mesma. Talvez seja esse o
segredo de sua múltipla presença na literatura no fim do séc. XVI e no começo do XVII,
uma arte que, em seu esforço por dominar a razão que se procura, a cerca sobre si mesma
para finalmente, triunfar. Enfim, jogos de uma época barroca!
É ao mundo moral que pertence a loucura do justo castigo. Ela pune, através das desordens
do espírito ou das desordens do coração. A justiça desta loucura consiste no facto de que é
verídica.
Em Cervantes ou Shakespeare, a loucura irá sempre ocupar um lugar extremo, no sentido em
que não tem qualquer possibilidade de recurso. Nada a traz de volta à verdade ou à razão.
Mas a loucura logo abandona essas regiões últimas em que Cervantes e Shakespeare a
tinham situado. E na literatura do começo do séc. XVII ela ocupa, preferencialmente, um
lugar intermediário: constitui, deste modo, antes o nó, que o desenrolar; antes a peripécia,
que a derradeira iminência. Deslocada na economia das estruturas romanescas e dramáticas,
ela autoriza a manifestação da verdade e o retorno apaziguado da razão. Deixa de ser
considerada na sua vertente de realidade trágica, no absoluto dilacerar que a abre para um
outro mundo, e é encarada, apenas na ironia de suas ilusões.
A loucura, cujas vozes, a Renascença acaba de libertar, cuja violência porém ela já dominou,
vai ser reduzida ao silêncio pela Era Clássica através de um estranho golpe de força.
Há informação que refere no séc. XVII criou inúmeras casas de internamento; no entanto, já
não é tão divulgado, que nessa época, mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris
se viu encerrado numa delas, por alguns meses. É, igualmente, sabido que o poder absoluto
fez uso das cartas régias e de medidas de prisão arbitrárias; é menos sabido qual a lei ou
consciência jurídica que estaria por trás de tais práticas.
A partir de Pinel, Turke, Wagnitz, sabe-se que os loucos, durante século e meio, foram
colocados sob o regime desse internamento, e que um dia foram descobertos nas salas do
Hospital Geral, nas celas das “casas de força”. No entanto, nunca ficou claramente
esclarecido qual o seu estatuto, nem qual o significado de uma estranha vizinhança, que
parecia atribuir um mesmo valor, uma mesma pátria aos pobres, aos desempregados, às
prostitutas, aos criminosos e aos insanos.
É, então, nestas condições, entre os muros do internamento, que Pinel, e a psiquiatria do séc.
XIX, se irá deparar com esta estranha realidade dos loucos.
A partir da metade do séc. XVII, a loucura esteve ligada ao território dos internamentos, bem
como ao gesto que lhes designava essa territorialidade como seu local natural.
Só, em 1656, é que vai ser elaborado o decreto da fundação, em Paris, do Hospital Geral. À
primeira vista trata-se apenas de uma reforma, em que diversos estabelecimentos já
existentes são, agrupados sob uma administração única: a Salpêtrière e Bicêtre.

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Trata-se de recolher, alojar alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou
aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária.
O Hospital Geral não é um estabelecimento médico. Constitui-se como uma estrutura semi-
jurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já instituídos, e
além dos tribunais, decide, julga e executa.
Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual nada
pode prevalecer ! o Hospital Geral é um estranho poder que o rei (Luis XIII) estabelece
entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão. Os alienados
que Pinel encontrou em Bicêtre e na Salpêtrière pertenciam a esse universo.
No começo do séc. XVII, em Inglaterra, verifica-se uma reorganização geral: multa de 5
libras a todo o juiz de paz que não tiver preparado uma casa de correcção nos limites de sua
jurisdição; obrigação de instalar profissões, ateliers, manufacturas (moinho, fiação,
tecelagem) que auxiliem na manutenção das casas e assegurem trabalho aos seus
pensionistas, cabendo ao juiz decidir quem merece ser para lá enviado ! princípio perverso
da reabilitação!
Em 50 anos, o internamento tornou-se uma amálgama abusiva de elementos heterogéneos.
Poucos anos após a sua fundação, o único Hospital Geral de Paris agrupava 6000 pessoas, ou
seja, cerca de 1% da população.
Durante muito tempo é nos antigos conventos que se estabelecerão os grandes asilos na
Alemanha e Inglaterra: um dos primeiros hospitais que um país luterano destinou aos loucos
foi estabelecido em 1533, num antigo convento dos cistercienses, secularizado uma dezena
de anos antes. As cidades e os Estados substituem a Igreja nas tarefas da assistência. São
instaurados impostos, fazem-se colectas, favorecem-se as doações, e suscitam-se doações
testamentárias.
Colocando sob os seus cuidados toda essa população de “pobres incapazes”, o Estado ou a
cidade (na Reforma) preparam uma forma nova de “sensibilidade à miséria”! A bem da
verdade, iria nascer uma experiência do patético, em que cessa a glorificação da dor, e da
salvação comum à “pobreza” e à “caridade”, levando o homem a ocupar-se dos seus deveres
para com a sociedade e mostrando no miserável, ao mesmo tempo, um “efeito da desordem”
e um “obstáculo à ordem”. Isto é, não se trata mais de mostrar a miséria e o gesto que a
alivia mas, simplesmente, de uma forma de a suprimir de uma vez por todas (escondendo-a
do olhar, do comum dos mortais, atrás dos muros do internamento).
A Era Clássica utiliza o internamento de uma forma equívoca, e como tal este irá representar
um duplo papel: reabsorver o desemprego ou, pelo menos ocultar seus efeitos sociais mais
visíveis, e controlar os preços quando estes ficam elevados.
Não se esperou o séc. XVII para “fechar” os loucos, mas foi nessa época que se começou a
“interná-los”, misturando-os a toda uma população com a qual se lhes reconhecia algum

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parentesco. Até à Renascença a sensibilidade à loucura estava ligada à presença de
transcendências imaginárias. A partir da Era Clássica, e pela primeira vez, a loucura é
percebida através de uma condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida
pela comunidade de trabalho.
Na história do destino, o internamento designa um evento decisivo: o momento em que a
loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da
impossibilidade de se integrar no grupo.
Ao se internarem os indivíduos (em, 1657, a centésima parte da população de Paris foi
internada) não se isolavam estranhos, desconhecidos, durante muito tempo evitados por
hábito; criava-os alterando rostos familiares, na paisagem social a fim de fazer deles figuras
bizarras que ninguém reconhecia mais. Rompia a trama, desfazia familiaridades. Resumindo,
pode-se afirmar que esse gesto foi criador de “alienação”.
No séc. XIX o conflito entre o indivíduo e a sua família torna-se assunto particular, e
assumirá o aspecto de um problema psicológico. Esta época privilegia a estrutura familiar e
todo aquele que ousasse desafiá-la como castigo era levado ao internamento sendo despojado
de todos os seus direitos e bens pessoais (riqueza). Este poder, abusivo, encontrava-se
legitimado pela comunidade, tendo-se tornado um direito consuetudinário.
Entre a loucura e a impiedade, a diferença torna-se imperceptível, de qualquer forma pode-se
sempre estabelecer uma equivalência prática que justifique o internamento.
Actualmente, existe a consciência que, sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as
inadaptações sociais corre uma espécie de experiência comum da angústia.
Talvez, que, também, para o mundo clássico existisse uma economia do mal, uma
experiência geral do desatino. E, nessas circunstâncias, seria ela que sustentaria o horizonte
para aquilo que foi a loucura durante os cento e cinquenta anos que separam o “Grande
internamento” da “Libertação” de Pinel e Tuke.
Entre os diversos aspectos da sensibilidade à loucura, a consciência médica, não é
inexistente, no séc. XIX, mas não é autónoma. Encontra-se localizada em certas práticas da
hospitalização e também ocorre no interior da análise Jurídica da alienação.
O desatino, o rosto concreto e indefinidamente cúmplice da loucura, vai ser reajustado do
ponto de vista ético e surge então uma nova realidade em que o que está em jogo é o sentido
da sexualidade, a divisão do amor, a profanação e os limites do sagrado, da pertinência da
verdade à moral.
E são todas estas experiências, de horizontes tão diversos, que irão compor, em sua
profundidade, o gesto relativamente simples do internamento.
Como se pode ler, na legenda da imagem, esta é a cadeira utilizada por Benjamin Rusch
(1746-1813), médico, patriota que elaborou a sua própria versão da psicofisiologia, e
que, em 1786, proferiu uma palestra sobre “Procurando a Influência das Causas

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Físicas na Capacidade Moral”,. Desenhou e desenvolveu uma “confortável” cadeira
na qual os pacientes eram sentados e manietados para poderem ser tranquilizados,
este é um dos muitos exemplos de como os loucos eram
tratados, apesar de tudo uma das formas mais suaves,
dado que as outras passavam por electrochoques. Rusch
considera que “a capacidade moral é um poder da mente
humana que permite distinguir e escolher o bem ou o
mal”. Este autor distinguiu ainda entre acção moral e
opinião moral ou consciência, e chegou à conclusão,
através de uma enorme série de analogias do poder
intelectual, que causas físicas, tais como, tamanho do
cérebro, hereditariedade, doença, febre, clima, dieta
alimentar, bebida e medicamentos, entre outros, podem
afectar o exercício da capacidade moral.
Quase cinquenta anos antes, de Joseph Parrish (1779-
1840) introduzir o termo de “insanidade moral” (1835),
Rusch propõe os termos “micronomia” e “anomia” para a
acção parcial ou mais fraca e total ausência da capacidade
moral, respectivamente.

EXPLICAÇÕES: LOCALIZAÇÕES CEREBRAIS

a) Clássicos gregos
A palavra cérebro aparece pela primeira vez num papiro egípcio do séc. XVII a.C. (Tratado
de Cirurgia).
Encontra-se a primeira lista de 48 casos de feridas na cabeça e pescoço, apresentados de
forma concisa e sistemática tendo como título “Exame, diagnóstico e tratamento”.
Associavam sintomas de traumatismo cerebral a determinados comportamentos, por
exemplo, pode-se ler sobre afasia o seguinte:
“Se tu encontrares um homem que tu chamas e não te responde e que tem as têmporas
afundadas, este homem perdeu a linguagem”.
Referindo-se ainda à perda do controlo dos esfincteres associada à lesão cerebral.
A história das funções cerebrais começa com um deslocamento que persiste ainda hoje:
interpretação objectiva versus sensações subjectivas, que deriva do dualismo mente e corpo.
Pode-se afirmar que os primeiros passos para identificar a patologia “anormal” do ponto de
vista neuropsicológico se verificaram a partir do séc. III a.C. Com Herófilo e Erasistrato, o
conhecimento sobre o cérebro progrediu de modo decisivo. Abandona-se a analogia animal.

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Fazem-se as dissecações do corpo humano. Encontram-se, aliás, referências directas às
dissecações na obra de Celso que refere: “Os Reis mandaram retirar órgãos dos corpos dos
prisioneiros enquanto ainda respiravam para os examinar”.
Sabe-se hoje que Herófilo e Erasistrato dissecaram milhares de corpos. E que esta
experiência permitiu distinguir o cerebelo, do cérebro e da espinal-medula. Para além disso,
mostraram também que o cérebro contém cavidades ou ventrículos e que na sua superfície
existem circunvalações; e, ainda, que os nervos se distinguem dos vasos sanguíneos e têm
origem na medula (no cérebro) e não no coração como antes pensava Aristóteles.
Distinguiram: os nervos do movimento (motores) e nervos do sentimento (sensoriais).
Descobriram que o cérebro humano tem maior número de circunvalações do que os dos
animais. Contudo, e apesar disso, a opinião cardiocentrista de Aristóteles sobreviveu até ao
séc. XVIII.
Considerava-se que o homem era formado pela alma e pelo corpo ! e, curiosamente,
verifica-se que de autor para autor, de cultura para cultura, o significado da palavra alma, vai
variando. Esta controvérsia só se começa a clarificar com o progresso da Biologia. A
persistência da alma após a morte física é, como se sabe, uma afirmação praticamente
universal das religiões e filosofias. Esta ideia persiste ainda nos dias de hoje.
Esta será, basicamente, uma formulação cultural inevitável, mais do que uma expressão de
egoísmo do homem, do requisito mais básico e essencial de qualquer ser vivo ! o desejo de
sobreviver, no fundo de se “tornar imortal”.

b) Galeno
Um dos maiores médicos da antiguidade, Galeno (119 d.C.) desenvolveu a noção de um
“pneuma psíquico” dizendo que os ventrículos produziam e armazenavam o “órgão da
alma”. O pneuma circulava dentro dos nervos e fazia assim a relação do cérebro com os
órgãos dos sentidos e os órgãos motores. Galeno questionava-se, se o pneuma seria o órgão
da alma, ou se seria também substância da alma, ou a alma ela mesma?
Os livros de Galeno foram textos de estudo obrigatório nas universidades medievais, esta
obra estava, no entanto, muito embrenhada num cultura do místico ! cultura dominante na
época em que este autor viveu.
Hesito, advertido pelo pensamento de Moise, recusa-se claramemte a confundir (como
Galeno) a loucura e a possessão do demónio e aconselha: “não vão consultar os deuses para
descobrir, por adivinhação, a alma directora, mas instruam-se com um anatomista”.
Galeno prosseguiu à decomposição da alma em várias funções, subdividiu-a em faculdades:
motora, sensível (os cinco sentidos), racional (é um complexo de funções ! imaginação,
razão e memória)
Galeno dissecou apenas animais (porcos, ursos, cães, etc...). Como não tinha dados precisos

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não assinalou no cérebro as suas localizações distintas.
Sem trazer observações novas, a Igreja primitiva, séc. IV e V da nossa era, tomou posições
acerca das localizações; tendo assinalado três funções da razão nos ventrículos: anterior
(imaginação); médio (razão) e posterior (memória). Esta visão simplista demonstra o
interesse de marcar as regiões do cérebro e as funções especializadas. Constitui o primeiro
modelo de localizações cerebrais.
Com a Renascença foi retomada a dissecação de cadáveres, aparecem os desenhos e as
descrições da morfologia cerebral. Desenhos realistas de Vésai e Da Vinci.

c) René Descartes
René Descartes (1596-1650) fala de um espírito mais racional do que anatomista. Prende-se
à glândula pineal dizendo que tem a virtude de ser a única porque as outras partes do cérebro
humano são duplas e afirma: “... nós só temos um pensamento acerca de uma coisa ao
mesmo tempo...”. Este autor considerava que alma se unia ao corpo através da glândula
pineal. De facto, a contribuição especial de Descartes não foi empírica mas conceptual. Tal
como Platão, duvidava da infalibilidade dos seus sentidos e propôs, em 1637, que o único
método admissível para a definição do conhecimento consistia em desprezar todas as
convicções sobre as quais se tinha alguma dúvida. A primeira coisa que pensou não poder
pôr em causa foi a sua própria experiência enquanto ser pensante: “Cogito ergo sum”.
Foi a partir da necessidade de se atribuírem funções específicas a localizações específicas
que levaram à criação de uma ciência a Frenologia: eram medidas as zonas do cérebro com
um compasso, achava-se que as faculdades humanas estavam sediadas em áreas cerebrais,
particular e estritamente localizadas.

d) Frenologia
Frenologia é o estudo da estrutura do crânio de modo a determinar o carácter da pessoa e a
sua capacidade mental.
Esta pseudociência baseia-se na falsa ideia de que as faculdades mentais estão localizadas
em “órgãos” cerebrais na superfície do cérebro que podem ser detectados por inspecção
visual e táctil do crânio.
O fisico (médico) vienense Franz-Joseph Gall
(1758-1828) afirmou existirem 26 “órgãos”, na
superfície do cérebro que afectam o contorno do
crânio, incluindo um “órgão da morte” presente
em assassinos. Gall defendia o seguinte princípio
“use-o ou deixe-o” o que equivale à máxima, bem
conhecida de todos nós, “o uso faz o órgão”. Pelo
que seguindo a lógica anterior se pode afirmar

11
que: “os órgãos do cérebro que são usados tornam-se maiores e os não usados encolhemm, o
que leva a que o crânio vá criando protuberânicas (quando sobem – convexas; quando
descem – côncavas) em harmonia com o desenvolvimento do órgão. Estes altos e baixos
reflectiriam, assim, e ainda, segundo Gall, áreas específicas do cérebro que iriam
determinam as funções emocionais e intelectuais do indivíduo.
Gall chamou a este estudo “cranioscopia”. Outros como Johann Kaspar Spurzheim (1776-
1832) que espalhou a palavra nos Estados Unidos da América e George Combe (1788-1858)
que fundou a Edinburgh Phrenological Society, prosseguiram com ainda mais divisões e
designações do cérebro e do crânio, como o “espírito metafísico”.
Thomas Foster foi quem, em 1815, baptizou o trabalho de Gall e Spurzheim de “frenologia”,
em que phrenos é o termo grego que designa mente, e o nome pegou.
Os entusiastas da frenologia defenderam a noção de que o cérebro humano é o lugar do
carácter, percepção, emoção, intelecto, etc., e que as diferentes partes do cérebro são
responsáveis por diferentes funções mentais. E nisso eles estavam correctos.
No entanto, como naquela época apenas era possível o estudo do cérebro de mortos, os
seguidores da frenologia limitavam-se a associar as diferentes estruturas dos órgãos que
suponham funções mentais, as quais eram associadas ao contorno do crânio. Raramente se
estudava o cérebro das pessoas com problemas neurológicos conhecidos, o que, a ser feito,
podia ter ajudado verdadeiramente no processo de estabelecimento de localização das partes
do cérebro responsáveis por um tipo específico funcionamento neurológico. Pelo contrário, a
localização das faculdades mentais era seleccionada arbitrariamente.
Os primeiros trabalhos de Gall foi com criminosos e doentes, os seus “órgãos” reflectem
esse interesse. Spurzheim livrou-se de coisas como o “órgão do roubo” e o “órgão da morte”,
e mapeou o cérebro com áreas como “benevolência” e “auto-estima”.
Apesar da frenologia ter sido desacreditada e de não lhe ser, como tal, reconhecido qualquer
mérito científico, ainda tem defensores. Foi alvo de grande popularidade, especialmente nos
Estados Unidos, ao longo do século XIX e está na origem de outras caracterologias
pseudocientíficas como a craniometria e a antropometria.
A frenologia foi defendida por indivíduos como Ralph Waldo Emerson, Horace Mann e a
Boston Medical Society quando Spurzheim chegou em 1832 para The American Tour.
Fowler Brothers e Samuel Wells publicaram o American Phrenological Journal and Life
Illustrated que foi editado desde 1838 a 1911. Em Edinburgh, o jornal de Combe,
Phrenological Journal, foi publicado entre 1823 e 1847. Outra indicação da popularidade da
frenologia no século XIX é que o livro de Combe, The Constitution of Man, o qual vendeu
mais de 300.000 cópias entre 1828 e 1868.
A Frenologia é então definida como o: sistema fisiológico que considera a conformação e as
protuberâncias do cérebro como indicativas das diversas faculdades ou disposições inatas do

12
indivíduo.
É também conhecida como “teoria das bossas”. Os comportamentos podem ser comparados
com a doença, mas estas devem ser tomadas como doença mental.
Gall vai renovar a anatomia do cérebro, mostrando que o córtex cerebral é o centro mais
importante, é a parte mais elevada do cérebro e coloca-a no primeiro plano, não se interessa
pela predominância dos lóbulos.
Visitou lares para crianças, prisões e asilos de loucos, procurando pessoas com cabeças fora
do normal, e elaborou um enorme e disparatado (à luz dos conhecimentos actuais) catálogo
das relações entre certas características mentais e as saliências do crânio.
Munido deste índice das saliências do crânio, Gall concebeu a teoria da frenologia.
Argumentou que todas as faculdades da mente, incluindo as morais e intelectuais, são
herdadas em cada pessoa, o que foi bem recebido, e com grande simpatia, na época – inícios
da sociedade Victoriana. Mais ainda, cada característica seria controlada por um “órgão”
separado, localizado de modo inato, no interior dos grandes hemisférios cerebrais,
imediatamente abaixo do crânio.
A frenologia originou a invenção do psicógrafo por Lavery and White, uma máquina que
podia fazer uma leitura frenológica completa e imprimir o resultado. Há quem afirme que
esta máquina rendeu aos seus inventores, em 1934, cerca de 200 000 dólares, na Exposição
Mundial de Chicago. As leituras frenológicas não devem ser muito diferentes das leituras
astrológicas e muitos dos indivíduos que as fizeram, como Charlotte Brontë, ficaram
satisfeitos com o resultado.
Esta pseudociência era filha da união entre uma anatomia incipiente e o movimento
romântico, com o seu fascínio pela análise do carácter.
O primeiro sistema de classificação baseado nas saliências do crânio era bastante
incompleto. O próprio Gall nomeou vinte e sete “órgãos” e o seu entusiasta colega, Johann
Caspar Spurzheim (1776-1832), também um competente dissecador, acrescentou mais oito
faculdades localizadas.
Baseado na anatomia comparada (entre os vários animais) é o garante de que a fisiologia é
que leva aos comportamentos não havendo grandes diferenças entre comportamento humano
e de alguns animais.

{
Matar
As tendências para: estariam associadas a zonas específicas do cérebro.
Roubar

A Cranioscopia tornou-se nesta época muito importante, porque bastava tactear o crânio
(observando-se, pelo tacto se era convexo ou côncavo) para se saber se o indivíduo

13
observado era ou não criminoso.
Assim, a tendência para matar deveria estar associada ao próprio desenvolvimento do crânio.
Broussais: Tendo tido grande poder político (hostil à religião) instala-se na frenologia – que
era ao mesmo tempo uma prática e um discurso.
“As tendências não se podem estabelecer apenas a partir da cranioscopia. Qualquer que
seja a dimensão das cavidades há sempre a vontade do sujeito se sujeitar ou não à vontade
de matar”. Teria que se estabelecer quais as circunstâncias e tendências que estariam por trás
do acto.
Daí retirava-se que pode haver comportamentos que estão relacionados com as
circunstâncias e há os comportamentos que estão relacionados com as tendências (de matar,
roubar, violar, etc.) – o que remete para o conceito de prevenção. Gall encara esta
possibilidade quer a nível teórico como a nível prático.
A Frenologia é, então, colocada ao serviço da Justiça, e vai intervir facilitando-lhe o
trabalho, durante a instauração e levantamento do caso e no estabelecimento da pena.
e) Neurologia
Quase desde o início que a frenologia foi objecto de uma campanha de ridicularização entre
os cientistas (à semelhança do que sucedera com a teoria da selecção natural). Em meados do
séc. XVIII constituía um tema muito popular de anedotas e caricaturas.
Surgem inúmeras máquinas, bizarras como o
“céfalografo” desenhado por Herbert Spencer (1820-
1903) cujo objectivo é estabelecer o diagnóstico do
carácter/personalidade do indivíduo, a partir da medida
das dimensões do crânio.
De qualquer modo, deslocou o paradigma científico,
preparou o caminho para os estudos dos grandes
neurologistas londrinos e parisienses. Estes observaram
os sintomas de doentes que tinham sofrido danos em
zonas dos hemisférios cerebrais e sugeriram que o
controlo do movimento, as sensações e mesmo a
capacidade de falar tinham uma localização exacta no
interior do cérebro.
O caso Phineas Gage, capataz na construção de linhas de caminho de ferro, teve um acidente
aos 25 anos, ao preparar-se para dinamitar uma rocha bateu com o ferro que compactava a
pólvora o que provocou uma explosão que, como consequência, lhe projectou o ferro e lhe
atravessou o crânio, saindo por um orifício na parte superior da cabeça. Este caso cimentou
esta nova frenologia. Mesmo os elementos imponderáveis da mente, a responsabilidade, a
personalidade e a compaixão pelos outros deviam corresponder a uma maquinaria própria no

14
cérebro – nos lobos frontais que tinham sido destruídos pela barra de ferro. Pois após o
acidente verificou-se uma completa modificação do indivíduo de simpático, afável,
trabalhador passou a ser infantil, agressivo, mal disposto...
Não generalizando, pode-se afirmar que o estudo neuropsicológico que é feito presentemente
pode vir a exercer a mesma função que a frenologia na sua época; obviamente que esta
afirmação não pretende de modo algum comparar um ramo científico (como é a
neuropsicologia) com aquilo que já sobejamente foi provadamente tratar-se de uma
pseudociência (frenologia).
Em termos de Justiça, também se verificaram transformações importantes, as grandes
diferenças colocam-se ao nível do enfoque que subjaz ao levantamento do caso:
- No séc. XIX – Condenam-se os actos – examinam-se e condenam-se os actos.
- No séc. XX – Interessam-se pelo sujeito, começa a interessar-se, por exemplo, pela vítima.
Estas são duas lógicas com pontos fulcrais diferentes.

e) Importância do córtex
Não devemos esquecer que o grande privilégio de Gall foi o estabelecer um método, tal
como não podemos deixar de ter em atenção que a Frenologia constitui um evento ou facto
manifesto do qual há a sublinhar: o absurdo da cranioscopia parece-nos bem secundário, em
relação aos factos seguintes.
Notemos que Gall, foi com efeito o primeiro a estabelecer a importância da proeminência do
córtex cerebral e o papel do encéfalo, revelou a sua embriologia e a sua anatomia
comparada, desde a lampreia até à espécie humana, os seus sucessores imediatos não tiveram
o menor papel no imenso progresso que fez a anatomia cerebral entre 1830 e 1890.
Nenhum de entre eles contribuiu para os estudos de medida e ponderais que introduziram as
medidas absolutas e relativas neste campo, nem é esta elaboração das divisões regulares do
córtex e da sua nomenclatura que de F. Leuret e P. Gratiolet até P. Broca, chegarão à síntese
de J. Dèjerine.
Os livros de F. Braunstei (1986) e de J. Chazaude (1992) mostraram um e outro, com
bastante pertinência, que se toda uma parte da obra de Broussais se refere à de Gall, é sem
grande precisão e de um modo geral, trata-se de uma referência muito mais polémica do que
se poderia encontrar de materialismo na frenologia concebida, mais como uma causa a
abraçar do que uma teoria adaptada com rigor. A frenologia pode tomar rapidamente este
aspecto, na cultura científica da época, o que revela que a sua importância era mais
emblemática do que como corpo de conhecimentos, e isto, pouco tempo após o
desaparecimento do seu fundador.
Broussais (1836) relata o exemplo do marquês Mascardi, secretário de Estado da Justiça, no
reino de Naples, no meio do séc. XVIII este alto funcionário, entre 1778 e 1782 tinha entre
outros papéis o da administração do Direito. Assim, quando um acusado era condenado

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sem ter confessado este chamava-o ao seu gabinete e como discípulo de J. B. Porta olhava o
seu rosto, apalpava o seu crânio e decidia então, segundo os resultados do seu exame, manter
ou não a pena capital, ou perdoava, se achava que o homem era recuperável, se pensasse que
o castigo tinha possibilidades de modificar a sua natureza ou ainda se o crime dependia das
circunstâncias e não de uma pré-disposição quase fatal. Tratava-se de saber se o sujeito tinha
ou não disposições inatas para a perpetuação do crime e determinar se os seus pensamentos
podiam ou não ser corrigidos. Este é um problema médico-legal, essencial com o qual ainda
hoje os especialistas se podem confrontar.
Um dos muitos resultados valiosos do movimento frenológico foi o interesse crescente, entre
os anatomistas, pelo córtex cerebral. Antes do século passado o córtex (hoje considerado
como sede da maior parte das funções “superiores” do cérebro) raramente era apresentado
com rigor nas ilustrações anatómicas.
A anatomia do crânio no séc. XVIII descreve um objecto que é do domínio da osteologia,
mas que é também visto como um dos modos privilegiados de fazer corresponder a forma do
corpo às disposições morais: os ossos das bossas tornaram-se sinais que reenviam para além
de si próprios e por razões assaz díspares, desde a tradição aristotélica, à estatuária antiga até
aos traços de carácter animal e de observação médica.
Trata-se de uma especificação singular da fisionomia, susceptível de vários campos de
aplicação. Mas, na mesma época o crânio serve também a um tipo de pesquisas muito
diferente, que inaugura o emprego das medidas (mensurações) e da goniometria em
anatomia.
O aparecimento de métodos sofisticados de corte e tratamento de finas camadas do cérebro,
em finais do século passado, conduziu a uma classificação das áreas corticais a partir das
diferenças (por vezes bastante subtis) entre a aparência microscópica daquelas. Korbinian
Brodmann (1868-1918) foi talvez o mais conhecido praticante da “cito-arquitectura”.
F. Chaussier (1938) professor de anatomia na Escola de Medicina de Paris, médico da corte
de Louis XVI, ensinava os seus alunos a observar a anatomia da cabeça como a fonte de
informação da personalidade dos doentes, se bem que em inspecção e palpação do crânio,
serviam para conhecer também o estado das bossas e da subjacente singularidade do homem.
O mais significativo é que Chaussier considerava o exame do crânio relacionado com a
personalidade. Em paralelo com este costume médico existia um emprego judicial muito
singular o que nos mostra que o exame do crâneo era tido como um meio sério de conhecer o
homem na sua singularidade.
O que restou desta doutrina?
Pouca coisa. Sabe-se actualmente que as meninges e o líquido céfalo-raquidiano impedem a
configuração do cérebro sobre a face interna da caixa craniana. Por outro lado das 27 “forças
fundamentais, pensamentos e sentimentos” aos quais a cranioscopia determinava uma

16
localização óssea, só dois de entre eles – a memória das palavras e o centro da linguagem –
se situavam, em Gall, na proximidade da sua localização hoje conhecida.
Sorte ou intuição? Ignora-se a resposta, mas são inumeráveis as teorias erróneas que ao
longo da história das ciências geraram progresso.
A este título, Francis Joseph Gall contribui, não de um modo negligenciável, a fazer avançar
o conhecimento das localizações cerebrais.
À concepção de Gall juntou-se a do fisionomista Lavater, cuja personalidade foi também
curiosíssima. Lombroso havia de retomar a senda aberta por estes homens, e aplicar os
mesmos métodos, transformados e sistematizados, ao estudo dos loucos e dos criminosos,
criando a Antropologia Criminal.
Em honra de Gall cunharam-se moedas, criaram-se sociedades secretas científicas
frenológicas, jornais especiais etc.
A doutrina de Gall modificada e aperfeiçoada por outros como Broussais, estabeleceu
princípios de um materialismo muito grosseiro e de um indubitável fatalismo. Virtudes
e vícios dependeriam, apenas da fatal forma craniana. Todavia Gall por si mesmo, não
admitia tal fatalismo e materialismo.

VOYEURISMO, IMAGERIE ACTUAL

A tendência de explicar a localização e função tem, actualmente, uma expressão através dos
novos meios de diagnóstico nomeadamente: Electroencefalograma (E.E.G.), Tumografia
Axial Computadorizada (T.A.C.), Ressonância Magnética (R.M.), Tomografia por emissão
de positrões (P.E.T.), Tomografia por emissão de fotões (T.E.F.), os quais têm a sua
aplicação prática ao nível da medicina para despiste e diagnóstico de patologias orgânicas,
mas também se utilizam ao nível da investigação. Esta última tem-se desenvolvido cada vez
mais, numa tentativa de superação das próprias limitações humanas.

Foi necessário decorrerem dois séculos para que a perspectiva moderna acabasse por vingar.
Pode-se agora afirmar com segurança que não existem centros individuais para a visão, para
a linguagem ou ainda para a razão ou comportamento social.

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O que na realidade existe são sistemas formados por várias unidades cerebrais interligadas.
Anatomicamente, mas não funcionalmente, essas unidades cerebrais são nada mais nada
menos que os velhos centros resultantes da teoria de base da frenologia.
É também verdade que as unidades cerebrais individuais, em virtude da posição relativa em
que se encontram no sistema, contribuem com diferentes componentes para a operação do
sistema e por isso não são permutáveis. E este é um ponto muito importante.
O que determina a contribuição de uma determinada unidade cerebral para a operação do
sistema em que está inserida, não é apenas a estrutura da unidade em si mas também o seu
lugar no sistema (Damásio, 1995).
A frenologia manteve um lugar indiscutível em todos os estudos relativos à evolução e
conhecimento sobre a estrutura, o funcionamento e a patologia do cérebro sob a perspectiva
dos laços e rupturas entre o fim do séc. XVIII e a do séc. XX.
As emoções e os sentimentos, juntamente com a oculta maquinaria fisiológica que lhes está
subjacente, auxiliam-nos na assustadora tarefa de fazer precisões relativamente a um futuro
incerto e planear as nossas acções de acordo com essas previsões.
A razão humana está dependente não de um único centro cerebral mas de vários sistemas
cerebrais que funcionam de forma concertada ao longo de muitos níveis de organização
neuronal. Tanto as regiões cerebrais de “alto-nível” como as de “baixo-nível”, desde os
córtices pré-frontais até ao hipotálamo e ao tronco cerebral, cooperam umas com as outras na
feitura da razão.
Os níveis mais baixos do edifício neurológico da razão são os mesmos que regulam o
processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para
a sobrevivência do organismo. Por sua vez, estes níveis mais baixos mantêm relações
directas e mútuas com praticamente todos os órgãos do corpo, colocando assim o corpo
directamente na cadeia de operações que dá origem aos desempenhos de mais alto nível da
razão, da tomada de decisão e, por extensão, do comportamento social e da capacidade
criadora. Todos estes aspectos, emoção, sentimento e regulação biológica, desempenham um
papel na razão humana. As ordens de nível inferior do nosso organismo fazem parte do
mesmo circuito que assegura o nível superior de razão.
O facto de agir de acordo com um dado princípio ético requerer a participação de circuitos
modestos no cerne do cérebro não empobrece esse princípio ético. O edifício da ética não
desaba, a moralidade não está ameaçada e, num indivíduo normal, a vontade continua a ser
vontade. O que pode mudar é a nossa perspectiva acerca da maneira como a biologia tem
contribuído para a origem de certos princípios éticos que emergem num determinado
contexto social, quando muitos indivíduos com uma propensão biológica semelhante
interagem em determinadas circunstâncias.
Segundo Damásio (1995) o amor, o ódio e a angústia, as qualidades de bondade e crueldade,
a solução planificada de um problema científico ou a criação de um novo artefacto, todos

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eles têm por base acontecimentos neurais que ocorrem dentro de um cérebro, desde que esse
cérebro tenha estado e esteja nesse momento a interagir com o seu corpo. A alma respira
através do corpo, e o sofrimento, quer comece no corpo ou numa imagem mental acontece
na carne.

PSIQUÂNTICO

Ultimamente têm surgido tentativas de formularem modelos que sirvam para a abordagem da
fenomenologia “paranormal”. Entretanto os resultados desses modelos têm sido praticamente
nulos. As tentativas de criar tais modelos têm-se inclinado mais para o sentido da elaboração
de estruturas matemáticas e não modelos geométricos, ou melhor, mecânicos como o de
Bohr para o átomo da matéria.
Noventa anos após a aparição da Física Quântica, os seus aspectos abstractos continuam a
ser um completo mistério para a maioria das pessoas.
Contudo se compreendermos o significado da descoberta dos neuropéptidos, estamos a um
passo da compreensão do quantum.
O neuropéptido não é um pensamento, mas movimenta-se através dele, servindo de ponto de
transformação. O quantum faz precisamente a mesma coisa só que o corpo em questão é o
Universo, ou a Natureza, como um todo.
Um neuropéptido nasce por um simples toque do pensamento, mas onde é que este nasce?
Um pensamento de medo e o neuropéptido em que ele se transforma estão de certo modo
ligados num processo oculto, uma transformação de não matéria em matéria.
O mesmo acontece por toda a natureza só que nós, a isso, não chamamos pensamento.
Ao nível dos átomos, a paisagem não é feita de objectos sólidos que rodopiam à volta uns
dos outros. As partículas sub-atómicas estão separadas por enormes intervalos, o que faz
com que 99,999% do átomo seja um espaço vazio.
Por consequência, tudo aquilo que é sólido, incluindo o nosso corpo, é proporcionalmente
tão vazio como o espaço inter-galáctico.
Existe uma transformação oculta qualquer que faz com que um pensamento se transforme
numa molécula. Essa transformação não leva tempo algum, nem ocorre em lado nenhum ! é
simplesmente levada a efeito pela presença de um impulso do Sistema Nervoso. Basta que
um pensamento surja, de súbito localizado no tempo e no espaço, para que todas as células
cerebrais se alterem em sincronia.
A planta arquitectónica da realidade é um conceito importante: cada impulso do S. N., dá
origem a um pensamento ou molécula, que passa um certo tempo num mundo relativo ! o
mundo dos sentidos ! até que se produza o impulso seguinte.

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Nesse sentido, cada pensamento é como uma peça do futuro quando se cria, uma peça do
presente quando se sente e uma peça do passado quando desaparece.

ÁGUAS TURVAS DA PERVERSIDADE

Entre os muros do internamento encontravam-se misturados os doentes venéreos, devassos,


“pretensas feiticeiras”, alquimistas, libertinos ! e também, como já vimos, os insanos.
Parentescos se formam, comunicações se estabelecem.
Da culpabilidade e do patético de cunho sexual, aos velhos ritos obsediantes da invocação da
magia, aos prestígios e aos delírios da lei do coração, estabelece-se uma rede subterrânea que
esboça como que as funções secretas da nossa experiência moderna da loucura.
Até à Renascença o mundo ético, além da divisão entre o Bem e o Mal, assegurava seu
equilíbrio numa unidade trágica que era a do desatino ou da previdência e predilecção
divina. Esta unidade desaparece, dissociada pela divisão decisiva entre a razão e o destino.
Começa uma crise do mundo ético, que duplica a grande luta entre o Bem e o Mal com o
conflito irreconciliável entre a razão e o desatino, multiplicando assim as figuras do
dilaceramento: Sade e Nietzsche, pelo menos são testemunhos disso.
Toda uma metade do mundo ético desagua assim no domínio do desatino, atribuindo-lhe um
imenso conteúdo concreto de erotismo, profanações, ritos e magias, saberes iluminados
secretamente investidos pelas leis do coração.
Internar alguém dizendo que é “furioso”, sem especificar se é doente ou criminoso era um
dos poderes que a razão clássica atribuía a si mesma, na experiência que teve da loucura.
Esse poder tem um sentido positivo: quando os séc. XVII e XVIII internam a loucura pela
mesma razão que a devassidão ou a libertinagem; o essencial não é que ela seja
desconhecida como doença, mas que seja percebida sob outra perspectiva.
Em suas Questões Médico-Legais, redigidas entre 1624 e 1650, Zacchias levantava o
balanço exacto de toda a jurisprudência cristã referente à loucura. Em relação a todas as
causas de dementia et rationais laesine et morbis omnibus qui rationem laedunt, Zacchias é
formal: apenas o médico é competente para julgar se um indivíduo está louco, e que grau de
capacidade lhe permite sua doença.
Após o estudo dos antecedentes pessoais e familiares, do meio em que se insere, é necessário
determinar quais são as faculdades atingidas (memória, imaginação ou razão), de que forma
é diminuída na fatuitas1; é pervertida superficialmente nas paixões e profundamente no
frenesi e na melancolia. Enfim, a mania, o furor e todas as formas mórbidas do sono abolem-
na completamente.

1
Este é o termo que Zacchias utiliza para designar imbecilidade.

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Já nas formulações da jurisprudência do séc. XVII vêem-se emergir algumas das estruturas
apuradas da psicopatologia.
Transformado, em razão do desenvolvimento das perícias judiciárias ao longo de todo o séc.
XIX, num bem legítimo e inconteste da medicina, ainda que esta tivesse que partilhar o seu
usufruto com os juízes de instrução e, posteriormente, com os do tribunal, o estudo
supostamente científico dos comportamentos comummente tidos por perversos passou a
ocupar um lugar discreto, a princípio, e depois um lugar extenso na patologia; inicialmente
uma patologia geral e posteriormente definitivamente psiquiátrica. Pode-se considerar que o
momento mais importante para este estudo se situa por volta de 1905, altura em que Freud
publicou os Três Ensaios para uma teoria da sexualidade, tendo ousado desafiar os tabus da
época, rompeu deste modo com todas as teorias anteriores ou contemporâneas.
Segundo Lanteri-Laura (1994) todo o discurso científico relativo às perversões, seja ele
freudiano ou não, busca sempre duas funções, diferentes e intrincadas, que é preciso separar
bem numa teorização rigorosa. Este discurso científico trata explicitamente de uma certa
verdade relativa às perversões e pertence, nesse aspecto, à ordem da episteme, porém, por
isso mesmo, constitui uma opinião a mais sobre as perversões, que aliás as julga e rejeita;
mas, ao afastá-las, coloca a si mesma no registo da doxa. Deste modo, o discurso científico
funciona ao mesmo tempo como um fragmento da episteme sobre as perversões e como essa
outra episteme que trata da doxa das perversões. Assim, o discurso científico tanto é
conhecimento dos fenómenos quanto conhecimento das opiniões sobre esses fenómenos.
Em relação às perversões pode-se afirmar que é a doxa que delimita o campo de fenómenos
de que a episteme irá tratar: a opinião vem indicar o campo dos comportamentos perversos, e
o conhecimento, em relação a ele, permanece tributário da opinião, ainda que modifique, ao
longo do trajecto, a extensão desse campo.
Para se “perceberem” as perversões é necessário, antes de mais, um profundo conhecimento
das teorias psicopatológicas das perversões e além disso compreender quais as suas relações
com as representações sociais que ajudam a nossa cultura a se conformar com a existência
das perversões e com a presença dos perversos.
Posto isto, pensamos ser interessante tentar perceber como é que autores tão diversificados,
que vão desde Freud, pioneiro a todos os níveis, passando por Klein, Bion, e mais
recentemente Lanteri-Laura, Pereira e Amaral Dias encaram esta questão tão problemática
que é a perversão.
Consideramos que por muito diferentes que sejam as suas opiniões elas não divergem,
convergem e complementam-se. Até porque cada caso é sempre único uma só explicação
não pode explicar todos os casos ! esta diversidade permite um alargar dos horizontes e,
eventualmente uma melhor compreensão do problema.
De referir, ainda, que não foi procurada, à semelhança do que sucedeu nas outras partes que
subdividem este trabalho, uma exaustividade, pelo que muitos são os autores e muitas são as

21
perspectivas que não foram sequer afloradas.
Ao explorar o tema da violação somos levados à noção de perversidade, dado que só se pode
considerar que haja violação quando o indivíduo violado se debater e se tentar libertar (não
se tratando de uma relação sado-masoquista), e quando o violador apenas consiga chegar ao
orgasmo porque a vítima demonstra sofrimento, e tenta com todas as suas forças libertar-se.
Não havendo oposição por parte da vítima e mesmo assim o “violador” consiga alcançar o
orgasmo estamos perante outro tipo diferente de patologia.
Podemos definir perversão como sendo: o desvio em relação ao acto sexual “normal”; sendo
este definido como: coito que visa a obtenção do orgasmo por penetração genital, com uma
pessoa do sexo oposto.
Freud atribui as causas do aparecimento das perversões a distúrbios ocorridos durante o
desenvolvimento sexual da criança.
Trata-se, segundo este, de uma fixação da líbido em estados vividos anteriores e que por se
afastarem da finalidade sexual definida, são designados como perversões (in Tratado de
Psicanálise).
Adler considera que: “as tendências pervertidas dos homens apresentam-se como esforços
compensatórios que são introduzidos como soluções para o sentimento de inferioridade,
frente ao poder sobrestimado da mulher. As perversões da mulher são, do mesmo modo,
tentativas de compensação para compensar o sentimento de inferioridade feminina face ao
homem sentido como mais forte...”
Segundo este autor todos os perversos demonstram uma limitação psíquica. Referindo-se
ainda a uma estreiteza, não só na vida amorosa, mas, frente a todas as tarefas e experiências
da vida para as quais não estão preparados.
Sob o nome de perversões sexuais descrevem-se comportamentos sexuais regressivos que
substituem com predilecção e por vezes com exclusividade as condições normais do
orgasmo ou às condutas que a ele se ligam.
M. Klein considera as perversões sexuais como meios de defesa contra a angústia primitiva,
e não apenas como uma pura e simples regressão a um nível antigo da conduta e do desejo.
A abordagem científica dos problemas sexuais é relativamente recente (fins séc. XIX). A
descoberta da sexualidade infantil e do papel que ela continua a desempenhar na vida do
adulto, ao nível dos fantasmas inconscientes, permitiu a Freud aprofundar o
condicionamento psicossocial das perversões, considerando-as como condutas infantis
anacronicamente fixadas ! e foi a partir daqui que Freud concebeu a “neurose como o
negativo da perversão”.
Em 1946, Klein utiliza a identificação projectiva como mecanismo de controlo das partes
más (terríficas) do self, no interior do objecto de relação. O controlo omnipotente e a
desidentificação controladora vão ser valorizados por esta autora. Em 1950, Klein irá

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sublinhar os aspectos comunicativos “positivos” da identificação projectiva.
O sujeito ao colocar partes de si (do self, afectos, objectos internos) no interior do outro
espera ser compreendido no que realmente sentiu. Winnicot defende que: “a experiência da
comunicação é a experiência de ser compreendido”. A identificação projectiva, está pois na
base da compreensão mais superficial, quer individual, quer colectiva – simpatia – ou da
compreensão mais profunda – empatia.
A identificação projectiva pode também servir como mecanismo patológico cujo o exemplo
típico é o esquizofrénico paranóide, que afirma, por exemplo, “dizem que sou homossexual”.
Deste modo as partes homossexuais intoleráveis no interior do sujeito são postas no exterior,
deixando em consequência o indivíduo de as reconhecer como suas. J. Lacan designa-as por
identificação alienante, sublinhando esta alienação do sujeito de partes de si mesmo.
Amaral Dias defende que esta modalidade de identificação se deveria designar por
desidentificação projectiva ou projecção evacuatória.
A identificação projectiva permite passar de uma linguagem ainda psicopatológica (Ps " D)
a uma teoria de interacção, onde a alternância dinâmica de Ps # D (Bion) é substituída pelas
(dis)posições propostas (Amaral Dias, 1988).
Pode-se concluir que o perverso patológico é um ser limitado pelas suas formas primitivas de
pulsões (prazeres e interdições da fase pré-genital, ou primeiras relações de objecto e
complexo da fase Edipiana ou fase da escolha de objecto).
No que diz respeito à génese das perservões a psicanálise insiste na fixação a certas formas
de condutas e de relações de objecto.
M. Klein, e a sua escola, defendem que existiriam desde a fase pré-genital experiências de
defesa contra a angústia provocada pela interdição dos prazeres primários, já como uma luta
entre o Eu primitivo e o Super-Eu, luta esta que geraria a ambivalência face aos primeiros
sistemas pulsionais.
Seja como for, verificam-se dificuldades sentidas no desenvolvimento libidinal, uma série de
situações fantasmáticas onde a líbido se satisfaz em sistemas simbólicos de equilíbrio e de
compromisso.
As perversões podem aparecer nas diversas estruturas (neurótica/psicótica) ou ainda nas
organizações limite (border-line).
Os pacientes limite podem apresentar as seguintes manifestações: angústia difusa e flutuante,
poli-sintomatologia do tipo neurótico, reacções dissociativas ou de despersonalização,
tendências paranóides e hipocôndriacas, além destas, por vezes, dá-se também a coexistência
de manifestações perversas, como por exemplo a homossexualidade em coexistência com a
heterossexualidade e acompanhadas de exibicionismo, sadismo, ou de fantasias perversas
mais raras (necrofilia). (Pereira, 1994)

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A relação de objecto precoce caracteriza-se essencialmente pela assimetria da função
continente (objecto maternal) na interacção mãe-bebé.
A identificação projectiva, em certas situações psicopatológicas (psicose maníaco-
depressiva, por exemplo) (Amaral Dias, 1985, 1988), pode fazer-se em direcção a um
objecto interno – identificação projectiva aos objectos internos (Amaral Dias, 1988).
A identificação projectiva serve fins manipulatórios destinados, por exemplo, a gerir a
distância face ao objecto que contém o objecto interno edipiano amado ou odiado,
diminuindo (histeria) ou aumentando a distância (obsessão) conforme predominam os
aspectos libidinais ou agressivos.
Na psicose a identificação projectiva assume uma função anti-comunicante, anti-empática
evacuadora de ódio, desintegradora; é ainda alienante de uma parte do self em relação ao self
total, ou absorvente do self por um objecto nuclear.
O psicótico desconhece-se para sobreviver ao ódio incurável, desintegrador e explosivo. O
neurótico desconhece-se por temer as consequências de se conhecer (confrontar-se com o
enigma da Esfinge) e de se reconhecer. (Amaral Dias, 1988)
As perversões colocam-se do lado da esterilidade do prazer e da patologia, conjugando a
morte, o gozo e a doença numa posição radical à sexualidade normal, onde devem encontrar-
se a saúde, um quantum módico de prazer e reprodução. (Lanteri-Laura, 1994)
Segundo Lanteri-Laura a violação não é, de uma forma geral, considerada do quadro da
perversão, excepto se o violador não conseguir atingir o orgasmo que aquando da violação.
Nos finais do séc XIX surge a ideia de que os violadores eram movidos por perturbações
endocrinianas – déficit endócrino. Assim, os violadores teriam demasiada testosterona – os
testículos funcionariam depressa de mais logo o mais fácil seria castrá-los. Como era
impraticável vai-se-lhes dar hormonas femininas.
As primeira reflexões criminológicas remontam a 1764. No entanto, os verdadeiros
fundamentos desta nova ciência só foram de facto estabelecidos em 1875.
Ao nível da aplicação do código penal levantam-se algumas questões como sejam:
O que é que legitima a pena? O que é uma pena? Qual o direito de se punir?
No caso concreto da violação, em França, acredita-se que o risco de reincidência possa ser
prevenido se se tratar o indivíduo com uma medicação adequada, que seria, como já vimos, à
base de tranquilizantes e hormonas femininas. Vai-se-lhes propor um acordo, velado, porque
não é feito de uma forma aberta e formal, onde se lhes apresenta a hipótese ou cumprem uma
pena longa de prisão (entre 8 e 15 anos prisão) ou se sujeitam a uma intervenção terapêutica.
Há aqui uma castração química ou uma castração cirúrgica que se pode assemelhar à
guilhotina e à injecção de um produto tóxico.

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Coloca-se, então, a questão da necessidade de prevenção.
Se a sociedade tivesse os meios disponíveis, até que ponto é que se poderiam evitar algumas
situações de crime, de delinquência?... A criminologia procura sempre chegar a conclusões
sem que o sujeito esteja envolvido, por exemplo, quando pensa na aplicação de um produto
químico para evitar que o violador volte a praticar o acto...
De certo modo Marie Bonnaparte tem razão quando afirma que: “o crime é a solução para
uma situação de angústia insolúvel”.
Para que a justiça se possa fazer, frente a um caso de violação têm que se ouvir ambas as
partes, na barra do tribunal, quando se chega ao veredicto de que houve de facto violação o
indivíduo que cometeu tal acto vai ser punido com uma pena de prisão que, em Portugal,
pode ir de 2 a 8 anos. (Castro Caldas, 1994)

PARA QUÊ TANTO SABER?

Como conclusão podemos dizer que é de facto extremamente importante perceber como
surgiram e se desenvolveram os conceitos teóricos das problemáticas psicopatológicas pois,
só assim, se consegue um enquadramento dos casos clínicos acompanhados.
De facto, para perceber porque é que a psiquiatria/psicologia é chamada a expressar a sua
opinião ao nível da criminologia, é necessário o efectivo conhecimento da história do seu
aparecimento.
Assim, nos dias de hoje, um indivíduo que viole alguém deve ser, antes de mais observado
por um técnico de saúde mental (psiquiatra ou psicólogo) que tem como função compreender
a patologia/perversidade deste acto. Decorrendo daí a atribuição de culpabilidade e
perigosidade que remete para o foro jurídico. É com base em todos estes dados, que o juiz irá
deliberar a pena a imputar.
Aproximando-se o fim deste trabalho chegámos afinal à conclusão que se inicia aqui uma
nova caminhada epistemológica.
As interrogações crescem na medida em que o “saber” aumenta, sentindo a angústia da
impossibilidade de um dia chegar lá.
A velocidade (assustadora) do conhecimento científico faz-nos sentir cristalizados no nosso
pequeno-“imenso” saber...
Como psis a necessidade de compreender o outro faz-nos continuar... numa tentiva, que
jamais tem fim, de descentração de nós mesmos e colocação no sentir a dor do outro.

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Outras publicações:
Comprendre la Matière. Sciences et Avenir, 99. Décembre 1994-95.
Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira, Vol. II. Lisboa, Rio Janeiro: Ed. Enciclopédia.

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