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O documento discute três aspectos de ser uma mulher árabe hoje em dia. Primeiro, significa dominar a "arte da esquizofrenia" e viver dividida entre o que realmente se quer e o que é permitido publicamente. Segundo, significa fazer parte de um rebanho e renunciar à individualidade. Terceiro, embora existam estereótipos negativos, muitas mulheres árabes são independentes e similares às mulheres ocidentais. A autora critica os obscurantistas que impõem restrições e tenta desmistificar estereótipos
O documento discute três aspectos de ser uma mulher árabe hoje em dia. Primeiro, significa dominar a "arte da esquizofrenia" e viver dividida entre o que realmente se quer e o que é permitido publicamente. Segundo, significa fazer parte de um rebanho e renunciar à individualidade. Terceiro, embora existam estereótipos negativos, muitas mulheres árabes são independentes e similares às mulheres ocidentais. A autora critica os obscurantistas que impõem restrições e tenta desmistificar estereótipos
O documento discute três aspectos de ser uma mulher árabe hoje em dia. Primeiro, significa dominar a "arte da esquizofrenia" e viver dividida entre o que realmente se quer e o que é permitido publicamente. Segundo, significa fazer parte de um rebanho e renunciar à individualidade. Terceiro, embora existam estereótipos negativos, muitas mulheres árabes são independentes e similares às mulheres ocidentais. A autora critica os obscurantistas que impõem restrições e tenta desmistificar estereótipos
esquizofrenia e outras pseudocalamidades Cara ocidental, Gostaria de avisar desde o incio: no sou conhecida por fa- cilitar a vida de ningum. Portanto, se voc est aqui procu- rando verdades que supe j saber e provas que acredita j ter; se tem esperana de que as vises orientais de mundo a reconfortem, ou de ser tranquilizada em seus preconceitos antirabes; se espera ouvir a cantilena interminvel do cho- que de civilizaes, melhor parar por aqui. Porque, neste livro, vou fazer tudo o que puder para decepcion-la. Vou tentar desiludi-la, desencant-la e priv-la das quimeras e opinies pr-fabricadas. Como? Bom, simplesmente lhe di- zendo o seguinte: embora eu seja a chamada mulher rabe, eu e muitas outras como eu uso o que tenho vontade de usar, vou aonde tenho vontade de ir e digo o que tenho vontade de dizer; embora eu seja a chamada mulher rabe, eu e mui- tas outras como eu no uso vu, no fui subjugada, no sou analfabeta, nem oprimida e certamente no sou submissa; embora eu seja a chamada mulher rabe, nenhum homem me probe como no probe a muitas outras como eu de dirigir um carro, nem de andar de motocicle- Sherazade.indd 13 2/3/11 6:03:39 PM 14 Joumana Haddad ta, nem de estar ao volante de um caminho (alis, nem de um avio!); embora eu seja a chamada mulher rabe, eu e muitas outras como eu tenho grau de instruo superior, uma vida prossional ativssima e uma renda maior que a de muitos homens rabes (e ocidentais) que conheo; embora eu seja a chamada mulher rabe, eu e muitas outras como eu no moro numa tenda, no ando de camelo e no pratico a dana do ventre (no que ofendi- da se pertencer ao campo esclarecido: ainda h quem tenha essa imagem de ns, apesar do mundo sabidamente globali- zado do sculo XXI); e, por m, embora eu seja a chamada mulher rabe, eu e muitas outras como eu sou muito parecida com... VOC! Sim, parecemos muito com voc, e nossa vida no assim to diferente da sua. Alm disso, se voc se olhar no espelho por bastante tempo, tenho quase certeza de que vai ver nossos olhos faiscando em seu rosto. Parecemos muito com voc e, apesar disso, somos di- ferentes. No porque voc do Ocidente e ns, do Orien- te. No porque voc ocidental e ns somos orientais. No porque voc escreve da esquerda para a direita, e ns, da di- reita para a esquerda. Somos diferentes porque todos os se- res humanos na face da Terra so diferentes entre si. Somos diferentes, tanto quanto voc diferente de sua vizinha. E isso que torna a vida interessante. No fosse assim, todos ns morreramos de tdio. Ao menos eu morreria. Sherazade.indd 14 2/3/11 6:03:39 PM Eu matei Sherazade 15 Portanto, no se deixe encantar por mim, nem por este livro, pelos motivos errados: no sou interessante por ser rabe. No sou interessante por ser uma mulher rabe. E certa- mente no sou interessante por ser uma escritora rabe. (Que classicao desastrosa, principalmente para algum como eu, que detesta rtulos). O nico bom motivo para ler este livro, o nico bom motivo para eu ser interessante para voc, o nico bom motivo para qualquer ser humano despertar qualquer interesse por ser ele mesmo, e no apenas a emba- lagem cintilante e atraente que usa como fachada. Portanto, em vez de se render imediatamente a uma determinada imagem que foi criada por outra pessoa em seu nome, tente perguntar a si mesma: Anal de contas, o que uma mulher rabe? Este livro uma tentativa singela de reetir sobre esse tema. Ele no pretende dar respostas s questes apresenta- das, nem solues aos problemas expostos, nem lies ou receitas para viver bem. Sua maior aspirao divulgar um depoimento e uma reexo sobre o que signica e sobre o que pode signicar ser uma mulher rabe hoje. Sua segunda aspirao realizar a primeira, mas sem a secura monto- na do discurso retrico, sem o egocentrismo estreito de uma autobiograa sistemtica e sem as alegorias escapistas de um romance. Sim, minha cara ocidental, no se deixe enganar pelo fato de ser a destinatria bvia deste livro: ele no foi escrito s para voc, mas e, s vezes, principalmente para minhas con- terrneas rabes. Ele , por conseguinte, em grande medida, um esforo de autocrtica. E, embora tente mostrar onde se Sherazade.indd 15 2/3/11 6:03:39 PM 16 Joumana Haddad encontra hoje a esperana das mulheres rabes, ele tambm vai expor suas fraquezas, os desaos que elas esto enfrentan- do e os problemas que esto encarando/causando/ignorando. De vez em quando, o movimento entre a descrio e a con- denao da nossa dura realidade e a tentativa de provar que h uma luz l fora realmente do a impresso de eu estar me contradizendo; pois como algum pode defender uma viso de mundo ao mesmo tempo que recrimina suas origens? Mas esse efeito pura iluso, e resultado direto de integridade cr- tica. Nenhum esforo de autodefesa merece ser levado a srio se no se zer acompanhar do esforo de autocrtica e se no tiver seu apoio. Se exponho nossos defeitos implacavelmente, para melhor destacar a exceo inegvel a eles. E vice-versa.
As histrias s acontecem com quem capaz de cont-las
(Paul Auster). Mas, para conseguir contar algumas de minhas histrias, e reetir sobre o que realmente signica ser uma mulher rabe hoje em dia, primeiro tenho de resumir algu- mas das coisas que signicam ser rabe. Atualmente, ser rabe , em primeirssimo lugar mes- mo sem generalizar dominar a arte da esquizofrenia. Por qu? Porque ser rabe hoje em dia signica que voc tem de ser hipcrita. Signica que no pode viver o que realmente quer viver, nem pensar de maneira hones- ta, espontnea e inocente. Signica que voc est dividido, proibido de falar a verdade nua e crua (e a verdade crua; esse seu papel, e a que est a sua fora), porque a maioria Sherazade.indd 16 2/3/11 6:03:39 PM Eu matei Sherazade 17 rabe depende de uma teia de mentiras e iluses reconfor- tantes. Signica que sua vida e suas histrias tm de ser abafadas, tolhidas e codicadas; reescritas para agradar os guardies vestais da castidade rabe, para que estes possam car sossegados em relao ao fato de o delicado hmen rabe estar protegido do pecado, da vergonha, da desonra ou da mancha. Os obscurantistas esto se multiplicando em nossa cul- tura rabe como cogumelos no vero e nos deparamos com sua sombra em toda parte, em toda questo. Sua inteligncia parasitria, como tambm seu corao, sua alma e seu cor- po. S conseguem sobreviver como os carrapatos. Sua funo distorcer e esmagar tudo o que livre, criativo ou belo e que escapou de sua hipocrisia e supercialidade. Onde quer que a liberdade, a criatividade e a beleza consigam mostrar seu brilho, para l eles enviam ondas e ondas de hostilidade e ressentimento; lanam campanhas de distoro e inverdades para destruir o que escapou de sua mediocridade. Repito: os obscurantistas esto se multiplicando em nossa cultura como cogumelos, e esto gerando montanhas de ameaas, agresses, demagogia, charlatanismo e a proli- ferao de dois cdigos morais duplos, um para o homem, outro para a mulher. Esses soldados da castidade defendem a tica, embora a nica coisa que a tica possa fazer seja la- var as mos depois de qualquer contato com eles. Fazem de conta que protegem valores, embora os valores verdadeira- mente humanos no tenham nada a ver com eles. Armam defender, com sua mente doente e distorcida, aquilo que se atrevem a chamar de honra, f, dignidade e moralidade, vo- ciferando ao falar da necessidade de salvar nossa religio, Sherazade.indd 17 2/3/11 6:03:39 PM 18 Joumana Haddad nossos costumes, nossas tradies e nossos jovens, enquanto ignoram o tempo todo o que est se passando nas telas da televiso, na internet, atrs de portas fechadas e at em locais de culto. S entendem a pontinha do iceberg da honra e da moralidade e s registram o supercial. Esses ladres nos roubaram a vida pessoal; rouba- ram nossas liberdades individuais e nossas liberdades civis (o direito de viver em liberdade, o direito de exercer o livre- arbtrio, o direito liberdade de expresso). Apropriaram- se fraudulentamente de nossa cultura, dessacralizaram-na e assassinaram-na: o mesmo que zeram com nosso futuro, com nossa civilizao, com nossa herana rabe iluminista. E a lista de seu vandalismo no para por aqui. Esses obscurantistas retrgrados so ladres. So pro- fanadores. So assassinos. E, para coroar, so burros. E esse talvez seja o golpe mais cruel contra nossa identidade rabe contempornea.
Em segundo lugar, ser rabe hoje em dia signica fazer parte
de um rebanho, signica renunciar por completo sua indi- vidualidade e acreditar cegamente num lder, numa causa ou num slogan. As naes so construdas pelas massas, diz o princpio rabe. Talvez seja isso que tenha alimentado meu ceticismo em relao a grupos, ideologias e lutas coletivas at mesmo aqueles que defendem causas nobres e o apego minha individualidade; uma individualidade humanista que respeita, reconhece e leva em conta a existncia e as ne- Sherazade.indd 18 2/3/11 6:03:40 PM Eu matei Sherazade 19 cessidades do outro, mas que se posiciona rmemente contra quaisquer tendncias homogeneizantes. Claro, o esprito do rebanho no estrita e exclusiva- mente um problema rabe, no em particular nessa era po- pulista. Infelizmente, vimos muitas naes at mesmo nos chamados pases desenvolvidos carem na armadilha de seguir o chefe, mesmo que ele seja um jumento: de que ou- tra maneira explicar o George W. Bush dos Estados Unidos, para citar apenas um exemplo entre muitos outros? Mas, no mundo rabe (ao menos no mundo rabe contemporneo, para fazer jus nossa herana maravilhosa), essa doena no s um episdio sombrio da histria, mas uma situao per- manente. Pois este mundo est cego para o fato de todos os grupos serem a soma de seus membros e para o fato de que, se esses grupos no forem construdos em harmonia com o ser humano que cada membro , seja homem ou mulher, em pensamento, atos, sentimentos, corpo, esprito e emoes, eles vo se destruir a si mesmos e car mais parecidos com rebanhos dominados pelo instinto e pela fora bruta, incons- cientes de sua prpria vontade, de acordo com a lgica da predominncia do grupo sobre o indivduo. Sei exatamente o que frases como a predominncia do grupo sobre o indivduo signicam, em nossas sombrias realidades polticas, sociais e culturais rabes. Com esse pre- texto, as massas so organizadas e controladas, mantidas em rebanhos diferentes que erradicam por completo qualquer aspecto pessoal, seja ele opinio, opo, sentimento, explo- so de sentimentos, compreenso, expresso, ambio ou qualquer manifestao de vida. O indivduo desaparece em faces baseadas em tendncias sociais, religiosas e polticas Sherazade.indd 19 2/3/11 6:03:40 PM 20 Joumana Haddad genricas, domesticado e privado pelas autoridades de sua singularidade. Na prtica, isso leva dissoluo de todo ta- lento individual sob a onda da entidade coletiva esmagadora e homogeneizante. Os indivduos derretem-se na fornalha, veem seu ego apagado, proibido de desempenhar qualquer papel criativo, o que contribui para promover os clichs atuais sobre os rabes e sua imagem estereotipada. Quanto mais nos organizamos para fazer nossa voz ser ouvida, tanto mais nosso discurso mal-entendido. Voc est se dando conta da perversidade desse crculo vicioso? Mas que sentido tem a vida, e que dignidade tem qualquer grupo, qualquer que seja a sua causa, se o eu esmagado pelas patas do rebanho? No me entenda mal: no estou defendendo aqui aquele individualismo antiqua- do. No estou defendendo uma abordagem darwinista, baseada na ideologia do homo homini lupus, que produziu basicamente uma sociedade egosta, injusta e destrutiva, na qual no h lugar para os fracos, nem para os pobres, na qual no h conscincia comunitria, nem conscincia ambiental. Esse modelo to ruim e pernicioso quanto o modelo socialista fracassado que, em nome de belas ideias igualitrias, esmagou indivduos, suas liberdades, seus so- nhos, sua vida. Estou falando aqui de descobrir o equilbrio do meio-termo; um equilbrio que tanta gente est tentando al- canar, ou pelo qual est lutando e que deveria ser o produto eciente e nobre de uma competio eciente e nobre entre o capitalismo e o comunismo. Um equilbrio bem parecido com o que alguns pases da Europa setentrional conseguiram encontrar, ao menos em grande medida. Sherazade.indd 20 2/3/11 6:03:40 PM Eu matei Sherazade 21 Libert, galit, Fraternit: mais de 220 anos se pas- saram e ainda no chegamos l... Mas ainda parece a melhor opo, voc no acha?
Em terceiro lugar, ser rabe hoje em dia signica e essa
a ltima declarao que tenho a fazer sobre esse assunto aqui enfrentar uma srie de impasses: o impasse do to- talitarismo; o impasse da corrupo poltica; o impasse do favoritismo; o impasse do desemprego; o impasse da pobre- za; o impasse da discriminao de classe; o impasse do se- xismo; o impasse do analfabetismo; o impasse dos regimes ditatoriais; o impasse do extremismo religioso; o impasse da misoginia, da poligamia e da homofobia; o impasse da fraude nanceira; o impasse do desespero, do vazio e da falta de sentido; o impasse do conito do Oriente Mdio; o impasse da tragdia palestina; o impasse da parcialidade do Ocidente; o impasse da hostilidade, do medo, da arro- gncia, da desconana, do sentimento de superioridade do Ocidente... etc. Sabe, ser rabe e viver no mundo rabe hoje em dia como dar murro em ponta de faca, uma faca fabricada com o ao das diculdades polticas, sociais e existenciais. Voc esmurra e esmurra, mas no muda nada. S muda o nmero de feridas na carne. Mas voc tem de continuar dando mur- ros nessa faca com a energia que vem do seu ntimo. a sua nica esperana. Pois no possvel destruir essa faca com nada que venha de fora. Sherazade.indd 21 2/3/11 6:03:40 PM 22 Joumana Haddad E, sobretudo, no possvel destruir essa faca com gen- te de fora. A mudana no um produto importvel.
O ser humano rabe est sofrendo de esquizofrenia; uma
esquizofrenia coletiva que todos ns vivemos, divididos entre o que nos disseram para acreditar e aquilo em que realmente acreditamos, entre o que nos disseram para fazer e aquilo que realmente fazemos. Mas chegou a hora de comear a chamar as coisas por seu nome verdadeiro e de assumir a responsa- bilidade por elas, escreveu a atriz de teatro e escritora tuni- siana Jalila Bakkar. Depois de tentar resumir o que signica ser rabe no presente momento (a esquizofrenia, a sndro- me do rebanho, o impasse: trs realidades sombrias vividas igualmente por homens e mulheres), vou tentar agora e ao longo de todo este livro hbrido , por um lado, explicar o que ser uma mulher rabe (isto , todos os preconcei- tos tacanhos e equivocados que as pessoas associam a essa condio, bem como as verdades comuns a todas que tm essa identidade problemtica) e, por outro lado, que tipo de responsabilidade isso implica, e qual pode ser seu verdadeiro signicado (isto , o potencial de uma realidade positiva singular ou plural, que pode se concretizar apesar dos proble- mas e dos desaos existentes). Antes de tentar denir o que uma mulher rabe, necessrio fazer uma pergunta: como uma mulher rabe tpica vista pelos que no so rabes? No uma viso for- mada basicamente na conscincia coletiva do Ocidente por uma mirade de frmulas e generalizaes, nascidas de uma Sherazade.indd 22 2/3/11 6:03:40 PM Eu matei Sherazade 23 perspectiva orientalista persistente at agora, ou de uma vi- so hostil ps-11 de Setembro, nascida do ressentimento, do medo ou de sentimentos de superioridade? Essa no a mulher que costuma ser vista como uma pobre coitada, condenada do bero ao tmulo a obedecer incondicionalmente aos homens da famlia, pai, irmo, ma- rido, lho etc.? Como uma pobre alma sem qualquer tipo de controle sobre seu destino? Como um corpo indefeso ao qual dizem quando deve viver, quando deve morrer, quando deve se reproduzir, quando deve se esconder, quando deve murchar? Como um rosto invisvel, mascarado por diversas camadas de medo, vulnerabilidade e ignorncia, completa- mente escondido pelo hijab islmico? Pior ainda: pela burca sunita e pelo xador xiita? Uma mulher que no tem permis- so de pensar, falar ou trabalhar por conta prpria; que s pode falar quando recebe ordens para tal e que costuma ser humilhada e ignorada quando abre a boca; em resumo, uma mulher que no tem lugar nem dignidade entre os seres hu- manos. Claro, nem todos os clichs so equivocados. Nem todos os trusmos so totalmente falsos. Essa mulher rabe realmente existe. No s existe; para ser franca e cientica- mente exata, infelizmente tenho de reconhecer que, hoje em dia, ela cada vez mais o modelo predominante das mulheres rabes. Onde quer que voc v, do Imen ao Egito, da Arbia Saudi- ta a Bahrain, vai ver que as foras religiosas, os sistemas po- lticos indiferentes, corruptos e/ou cmplices, as sociedades patriarcais e at a prpria mulher rabe (pois ela mesma sua Sherazade.indd 23 2/3/11 6:03:40 PM 24 Joumana Haddad maior inimiga, muitas vezes uma cmplice da conspirao contra seu gnero) so excelentes quando se trata de gerar novas formas de humilhar a mulher, de frustr-la e de anular sua identidade e seus papis. Mas nem o reconhecimento desse fato torna menos escandaloso, triste e injusto que quase nenhuma outra ima- gem da mulher rabe esteja presente no olhar e na percepo habitual do Ocidente. Repetindo: no estou generalizando ao dizer essas coisas. Muito pelo contrrio: sei perfeitamente bem que o ocidental consciente da natureza caleidoscpica, complexa e heterognea de nossas sociedades e culturas rabes existe de fato. O problema que ele a exceo que conrma a regra. Quantas vezes nesse terceiro milnio, por exemplo, tive de explicar a um pblico ocidental surpreso que, sim, muitas mulheres rabes usam roupas sem mangas e at minissaia em vez de lenos, abaias (mantos) e niqabs; e que, no, o deserto no tem absolutamente inuncia alguma sobre minha ex- presso potica, pelo simples fato de no haver deserto algum no Lbano. Uma srie interminvel de mal-entendidos e simpli- caes exageradas, reforada pelo medo generalizado do famoso terrorista rabe, ou pela ignorncia e falta de curio- sidade pura e simples em relao a ns, ou pelo fascnio da mdia com o lado supercial/sensacionalista de qualquer no- tcia (como a histria de Noujoud, a menina de 10 anos ca- sada fora pelos pais, ou pela histria de Lubna, a jornalista sudanesa presa e chicoteada por usar calas compridas). Diz um famoso provrbio que a queda de uma rvore faz mais barulho que o crescimento de toda uma oresta. Sherazade.indd 24 2/3/11 6:03:40 PM Eu matei Sherazade 25 Quando ser que vamos comear a prestar ateno ao sussur- ro de uma rvore crescendo? No h dvida de que a migrao dos pases rabes do Terceiro Mundo para a Europa tambm desempenhou um papel importante na difuso dos mal-entendidos ci- tados, por causa da reao pelo vu, isto , do nmero crescente de mulheres de origem rabe/muulmana que agora est adotando o vu como atitude defensiva/ofensiva hostilidade ocidental contra o islamismo pelo menos aparente na era ps-11 de Setembro. Essa reao visvel est fadada a obscurecer, ou a eclipsar por completo, a ou- tra mulher rabe que vive no Ocidente, isto , aquela que no usa vu e que no pode ser distinguida das mulheres ocidentais s por sua aparncia. Por causa disso, o nico modelo perceptvel que resta, o nico modelo evidente de mulher rabe, acaba sendo o da mulher velada, com todas as conotaes negativas que esse modelo (justa ou injusta- mente) transmite. Mas preciso fazer justia: o Ocidente no a nica parte responsvel por essas vises distorcidas. Ns, rabes, somos igualmente culpados pela distoro de nossa ima- gem. Presos num crculo vicioso de defesa/ataque, zemos, e continuamos fazendo, quase tudo o que podemos para incentivar a intolerncia em relao a ns e para promover as imagens falsas e os clichs a respeito de nossas sociedades e culturas. Em resumo: temos talento quando se trata de sermos nosso pior inimigo.
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26 Joumana Haddad Durante a maior parte da histria, o Annimo foi uma mu- lher (Virginia Woolf ), e isso certamente verdade sobre a mulher rabe. Apesar disso, a mulher rabe que no anni- ma no um mito; a outra, a mulher rabe atpica, rebelde, independente, moderna, livre-pensadora, no convencional, com grau elevado de instruo, autossuciente, tambm exis- te. Alm disso, no to rara quanto voc supe. E a est a chave desse depoimento, que no passa de um pequeno elo de uma longa cadeia de obras e ensaios j escritos sobre esse tpico. Seu objetivo no provar que a imagem da mulher rabe tpica que prevalece inteiramente equivocada, e sim que incompleta. E tambm colocar a seu lado a outra imagem, de modo que esta ltima se torne parte intrnseca da viso comum que o Ocidente (e o mundo rabe em geral) tem da mulher rabe. Sim, a outra mulher rabe certamente existe. Precisa ser notada. Merece ser reconhecida. E estou aqui para contar sua histria, ou ao menos uma de suas muitas histrias: a minha. Sherazade.indd 26 2/3/11 6:03:40 PM