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NACIONAL com o número 242.475 L 430 Fl


135 em 15 de outubro de 2001.

Áurea Barbosa

1
A prendizes

2
M altus é um mago poderoso
que viveu séculos atrás e
que, para conseguir a longevidade, fez um
pacto com o Diabo. Para conseguir reaver
sua alma, ele precisa encontrar um
aprendiz de alma pura, que não se deixe
corromper.
O escolhido é Ângelo, um jovem
ajudante de bar , cujo maior sonho é
conquistar a menina mais cobiçada do
bairro: a intratável Vilminha.
Ângelo aceita o desafio de aprender
os segredos da magia para libertar o
amigo e mestre, e então começam para
ele duras provações: além do amor
frustrado ,ainda torna-se o alvo do próprio
Anjo Caído que, para desvirtuá-lo, toma
forma humana e vem à terra em seu
encalço.

1
Há também Carlinho, chefe de um
grupo de delinqüentes, que tem sua vida
mudada ao conhecer o pai que o
abandonara, o policial Paulo. Sua
relutância em aceitá-lo e as constantes
brigas com Ângelo e Maltus são uma
história à parte.
Esses e mais Elleta, outra
personagem de um longínquo passado,
são os “aprendizes” do título. Todos eles
têm que abrir mão de planos traçados e
seguir por um caminho novo e assustador.

2
A
o glorioso Arcanjo Miguel
General dos exércitos de Deus
Príncipe dos Anjos
Guardião dos Portais Sagrados

3
CAPÍTULO I

E
le chegou num dia nublado e abafadiço e todos daquela rua
admiraram-se de sua figura.
Era um homem que aparentava pouco mais de cinqüenta anos,
barba branca e cerrada, e uma expressão nos olhos negros que
intimidava. Vestia sobre os trajes um sobretudo negro, já surrado, e escondendo os
cabelos grisalhos, que lhe chegavam um pouco acima dos ombros, um chapéu
também negro, de abas largas. Cruzada nos ombros, trazia uma velha bolsa de
couro onde repousava sua mão direita. Seu talhe esguio movia-se a passos largos,
com a decisão de quem sabe onde quer chegar.
Indiferente à curiosidade que despertou nos moradores e aos olhares
furtivos que lançavam em sua direção, dirigiu-se a um barzinho onde, à sombra
generosa de uma velha amendoeira, os homens espalhavam-se em mesas
abarrotadas de garrafas e tentavam entender-se em meio à confusão alegre de
vozes, risos e música.
Ao notarem sua presença, mediram-no de alto a baixo, com a
arrogância costumeira com que sempre eram ali recebidos os tipos estranhos:
__Cada coisa que aparece! – disse um deles, provocando risadas nos
demais.
Sem alterar a fisionomia, falou ao dono do bar, em sujeito baixo e
robusto:
__Sabe se o casarão do alto do morro está vazio?
O outro se espantou com a voz profunda e clara. Respondeu-lhe
enquanto limpava o balcão, sem encará-lo:
__É abandonado, moço. Mas se está pensando em ficar por lá, não é
boa idéia, não!
__Por quê?
O dono do bar chegou o rosto próximo ao estranho e disse, num tom
reservado:
__É o esconderijo dos malandros!
__Obrigado.
O homem atrás do balcão viu o recém-chegado sair com a mesma
impassibilidade com que entrara, e para seu espanto e dos demais, que tomava o
rumo do velho casarão.
__Esse dura pouco! – profetizou um dos fregueses, enquanto enchia o
copo.
À medida que escalava lentamente o morro, o estranho sentia que se
aproximava de seu destino. Era ali, naquele casarão em estilo colonial, já
devastado pelo tempo e com o mato a invadir-lhe que deveria terminar a batalha.
Sabia que lá embaixo tinha deixado muitas perguntas. Quem seria
aquele homem de aparência tão suspeita que não tinha medo de ocupar o
esconderijo de bandidos? O que estaria pretendendo ali? Com o tempo viriam
outras perguntas, novas suspeitas e – como sempre havia acontecido _
hostilização.
Mas se para a gente daquele lugar ele era um ponto de interrogação,
nenhum mistério, ao contrário, lhe representavam essas mesmas pessoas. Nada do
que se passava em suas mentes era-lhe desconhecido. Não que pudesse essa
figura singular ler pensamentos ou coisa parecida, mas durante o tempo em que
viajara pelo mundo, através dos séculos, nunca encontrara um povo que se
distinguisse do outro de forma significativa. Eram as mesmas perguntas, os
mesmos olhares, as mesmas reações. Um estranho nunca era bem vindo. Melhor
assim, afinal, para a vida que levava quanto mais distanciamento das outras
pessoas, melhor.
Chegando ao topo parou e, atentamente, observou o lugar: a grama
estendia-se como um tapete até onde a vista alcançava. Ao longe, se podiam ver

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as pipas dos meninos dançando no ar, como pontos coloridos. Não havia por perto
nenhuma outra casa. O que era ótimo, pois não precisava de vizinhos.
Olhou para o casarão. Era circundado por árvores frondosas, o que lhe
amenizava o ar abandonado. Notou que dali teria uma boa visão de toda a rua
principal e também das vizinhas. Sim, estava satisfeito. Parecia que este refúgio
era ermo o bastante para que tivesse alguma privacidade, essencial ao seu
trabalho.
Caminhou até a porta, mas antes que as vozes juvenis lhe chegassem
aos ouvidos, sentiu a presença deles. Entrou sem hesitação. Já ouvira do dono do
bar que o casarão tinha moradores. Bem, precisariam desocupá-lo.
Ao vê-lo um deles gritou, enfurecido:
__Se manda, velho! Não tá vendo que o lugar já tem dono?
Eram quatro. Estavam sentados no chão, em círculo, e fumavam. Um
deles trazia uma arma junto ao corpo, por dentro da bermuda. A despeito de sua
pouca idade, um ódio antigo brilhava-lhe nos olhos gateados e era mais denso que
a fumaça que o envolvia.
Maltus adiantou-se, avançou em direção a eles e, com tranqüilidade,
depôs sobre um caixote a bolsa que trazia consigo.
Disse-lhes:
__Vocês não podem ficar , meninos. Vão ter que procurar outro
esconderijo.
O invasor não precisou esperar muito pela reação a suas palavras
temerárias: ela veio embalada pelos palavrões do que parecia ser o chefe do
bando. Era o mesmo que trazia a arma e que agora apontava para o homem
imperturbável a sua frente.
__Tu só pode ser maluco! Ou então burro! – disse o rapaz antes de
apertar o gatilho.
Disparou uma, duas, três vezes, e ... nada! O alvo, inexplicavelmente,
continuava ali, imóvel, como se fosse inatingível.
A mesma expressão de incredulidade do rosto do rapaz que atirara se
repetia nos seus companheiros. Como podia ser tal coisa? O que se adiantara tinha
ótima pontaria e aquele velho a sua frente não podia ser feito de outro material
senão carne.
Maltus estendeu a mão e lentamente abriu-a: ali estavam as três balas,
ainda fumegantes. Os quatro arregalaram os olhos, incrédulos.
Então, quando já iam respirar, algo ainda mais surpreendente lhes
estancou novamente o ar nos pulmões. O homem a sua frente começou a mudar de
forma: a pele escureceu rapidamente, nasceram-lhe garras e presas; os olhos
tornaram-se amarelados e oblíquos. Logo, um urro selvagem lhes gelou as
entranhas e como se já não estivessem acordados, viram que aquele velho perdera
o aspecto humano e era agora uma gigantesca pantera, mais negra que suas
almas.
As patas possantes, então, flexionaram-se, armando o salto fatal na
direção dos rapazes. Estes, como um raio, precipitaram-se porta a fora, aos
encontrões, liberando aos berros o medo que antes lhes congelara a ação.
Ficando sozinho, Maltus voltou a sua antiga forma. Não gostava desse
tipo de demonstração nada sutil, mas para aquelas inteligências abrutalhadas e
impressionáveis essa era ainda a melhor resposta.

CAPÍTULO II

Ângelo fora o único a ver. Por que aqueles malandros haviam descido o morro
do casarão daquele jeito tão desesperado? Parecia até que toda a polícia do

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mundo estava atrás deles. Mas sabia que polícia não poderia ser: ela nunca
chegavam em silêncio, sempre se faziam anunciar primeiro, e os moradores, que
não eram bobos, corriam e se trancavam dentro de casa. Mas, então, o que mais –
ou quem – poderia tê-los deixado daquele jeito?
Bem, de qualquer forma, não era da sua conta. Estava indo encontrar-
se com a garota mais bonita da rua – ou da cidade – e não iria perder tempo com
aqueles vagabundos. Eles que danassem!
Sorriu intimamente ao lembrar-se de todos seus esforços para conseguir
o encontro daquele dia. Ela não era só a menina mais cobiçada dali, era também a
mais difícil. Por isso gastara horas se vestindo – como uma noiva, lhe dissera a
mãe – e também todo o perfume do frasco.
Vilminha estava esperando por ele próximo a igreja, o que era ótimo,
pois era esse o lugar por onde todos passavam e assim todos testemunhariam sua
vitória.
Era verdade que todos falavam do conhecido gênio da sua quase
namorada. Era uma fera! Mas isso não o assustava. Muito pelo contrário! Achava
que assim era até mais emocionante! Agora só precisa lembrar-se de não tentar
agarrá-la no primeiro encontro. “Juízo, Ângelo!”, pensava. Primeiro, iria deixá-la
assombrada com sua inteligência e boa educação. E aí, quando ela estivesse
caidinha – esfregou as mãos – acabava com aquele orgulho.
Olhou o relógio e apressou o passo. Droga! Estava atrasado!
Ao lado da igreja, Vilminha batia os pés de impaciência e olhava
repetidamente o relógio, incrédula. Ângelo devia ter chegado há dois minutos! E
quando já ia desistir de esperar o pretenso namorado, indignada, avistou-lhe a
figura, que agora vinha correndo enquanto acenava-lhe.
Chegou onde ela estava, ofegante:
__Oi, Vilminha! Demorei?
__Nós marcamos duas horas, e já são duas e dois! – disse, zangada.
__Perdão, é que eu estava me arrumando para você!
Deu uma volta, braços abertos, exibindo a camisa multicolorida. O
perfume que ele usava pronunciou-se com mais força e envolveu a moça numa
nuvem nauseante.
Vilminha olhou-o de alto a baixo com uma careta. No que fora se meter?
Com a doce voz cheia de ironia, disse ao rapaz:
__Você está... lindo!
Ângelo sorriu satisfeito. Depois, timidamente, segurou-lhe a mão.
__Vamos, então?
Vilminha soltou-se dele sem cerimônia. Perguntou:
__Que filme vamos assistir?
__“Débi e Lóide”. Meus amigos já viram e adoraram! – respondeu,
enquanto passava o braço em torno do ombro da moça.
__Imagino! – tirou o braço do rapaz de seus ombros com uma careta –
Será que não dava para usar um perfume menos forte?
__Ah, qualé Vilminha? Perfume de homem tem que ser forte mesmo!
A moça suspirou e estendeu o braço para o ônibus que chegava,
arrastando seu véu de poeira.
Eram pouco mais de sete horas da noite quando Ângelo, cabeça baixa,
voltava para casa. Enquanto chutava uma lata de refrigerante, relembrava o
fracasso de seu encontro. A Vilminha não era fácil, mesmo! Reclamou de tudo: sua
roupa, seu perfume, do filme e até da pipoca! Tentou beijá-la várias vezes, mas a
danada desviava o rosto, dizia que ele estava fedendo! E quando ele,
inocentemente, grudou um chiclete embaixo da cadeira e, sem querer__ sem
querer mesmo!__ passou a mão em sua perna? O barulho do tapa fez tudo mundo
no cinema tirar os olhos da tela. Ainda bem que naquela escuridão não puderam
saber quem era o infeliz que apanhava da namorada. Ainda teve que se segurar
para não acertar o babaca do lado que rolava de tanto rir. Droga de noite!

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Parou diante do muro sem pintura. Antes de chegar a porta, enxotou
com o pé o cachorro que o saudava com a alegria desinteressada dos cães.
Bateu e logo ouviu os passos da mãe e o girar da chave.
__E então – quis saber D. Alzira – Como foi o encontro?
__Esquece, mãe! Esquece!

CAPÍTULO III

Maltus estava exausto. Havia trabalhado muito nos últimos dias e era
preciso recuperar-se. Seus sentidos precisavam estar atentos para não perderem
nenhum sinal. Sabia que alem dos espíritos aliados que o acompanhavam,
havia também o outro que aguardava pacientemente por mais um erro seu.
Como poderia descrever seu oponente e ser exato na descrição? Que
palavra poderia nomeá-lo? Os homens deram-lhe, ao longo dos séculos,
nomes incontáveis. Cada um deles dizia um pouco a respeito de sua natureza,
mas nenhum deles foi capaz de resumi-la.
Uma de suas vantagens era o domínio das palavras. Palavras são
caixas cheias de dualidades, e isso lhe servia bem.Podia, por isso, defender com
maestria o pior dos atos, justificar a mais hedionda das barbáries, lançar
dúvidas sobre a mais nobre das intenções.
Foram muitas as batalhas travadas, mas mesmo que ele, Maltus,
estivesse pleno de razão nunca conseguiria arrancar-lhe a última palavra.
O outro sabia bem ao que pretendia: obstinado em seus objetivos,
perseguia a presa com paixão de caçador. Sabia da crônica fragilidade humana,
de como suas mentes oscilavam entre o bem e o mal, entre a prudência e a
loucura. Aproveitava-se disso: lançava-lhes nos espíritos a fagulha da dúvida e
enquanto a vítima debatia-se para apagá-la, lançava outras e mais outras, até
que o contendor, exaurido, se deixava arrastar.
Era, na verdade, tudo o que tinha a fazer: semear e esperar o tempo da
colheita. A terra era fértil e ele tinha toda a eternidade para esperar pelos frutos
mais relutantes.
Maltus tinha muitos aliados no mundo espiritual que o seguiam sempre,
mas também havia aqueles espíritos que eram aliados de Desafiador, seus servos.
Por isso, antes de se estabelecer ali, deveria conhecer suas companhias espirituais
naquele lugar.
Sentou-se no chão sobre os joelhos e pôs-se a murmurar antigas
preces, numa língua há muito esquecida. Esteve assim alheio a realidade física por
alguns minutos, e quando por fim levantou-se, já sabia com que forças arcanas
teria de se relacionar.
Abriu a bolsa que trazia consigo e retirou alguns pequenos frascos nos
quais havia líquidos de diferentes cores. Abriu um deles e logo o líquido vermelho
transmutou-se em fumaça da mesma cor que, lentamente, envolveu toda a casa.

***********************
__Ô, Ângelo, olha a freguesa! Parece uma tartaruga!
__Já vai Seu Agenor! Já vai!
Por mais que tentasse, Ângelo não conseguia tirar o homem do casarão
– era assim que o chamavam agora – da cabeça. Quando ele chegara ali na rua não
dera a menor atenção – era só mais um maluco bêbado – ficara apenas um pouco
admirado com seu jeito já que era bastante diferente dos outros bêbados que

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conhecia , nada mais. Então lembrara-se do encontro com Vilminha e tudo perdeu
o sentido: a rua lamacenta só visitada pelos políticos em época de eleição, os
vagabundos que viviam pegando no seu pé, a rabugice de Seu Agenor, o salário
miserável... O mundo todo era só Vilminha.
Depois do fracasso _ que ficara a noite toda remoendo _ os sentidos
voltaram a funcionar. Foi então que lembrara-se de que Seu Agenor havia
comentado sobre o estranho, de como estivera no bar perguntando pelo casarão, e
que, mesmo sabendo do perigo, dirigira-se para lá. O que havia acontecido depois?
Não sabia. Mas vira, algum tempo depois, quando já ia se encontrar com a ingrata,
Carlinho e seu bando de dementes descendo o morro do casarão como se o próprio
Diabo estivesse atrás deles. Claro, na hora não havia ligado os dois fatos, mas
agora, pensando com mais calma...
__Aqui seu refrigerante, Dona Neusa.
Tudo se encaixava! O velho tinha botado todo mundo para correr!
Sorriu, divertindo-se com a possibilidade de Carlinho ter sido expulso de seu
esconderijo preferido.
Mas como isso poderia ter acontecido? Carlinho raramente era visto sem
uma arma. De que forma aquele homem sozinho, conseguiria expulsar os quatro do
casarão? Era muito coragem pois conhecia bem os outros rapazes – assassinos
feitos, apesar da pouca idade – eles não deixariam aquilo barato. Mesmo que o
invasor fosse da mesma laia deles , o que era mais provável.
__Cuidado com os copos, Ângelo!
Ninguém mais devia ter visto, senão, àquela hora, todo mundo já
estaria comentando o fato. Viram o velho entrar no Casarão, não o viram sair e
concluíram que ele estava lá por que era conhecido dos malandros. Mas agora
Ângelo sabia que não era bem assim.
E os outros onde estariam? Não os tinha visto ainda, o que era muito
raro. Bom, se o que pensava estava correto deviam estar doidos da vida, entocados
em algum lugar e planejando a vingança.
Acordou de seus pensamentos com o impacto de um taco de sinuca na
cabeça:
__Ai, Seu Agenor! Isso dói!
__Se não doesse eu não perdia meu tempo, sua lesma! Não tá vendo
aquele freguês ali, te fazendo sinal?
__Já vai, moço!
Foi até o freguês massageando a cabeça e esbarrando nas mesas que se
amontoavam no espaço pequeno.
Agenor olhava-o e balançava a cabeça, conformado. Às vezes tinha
vontade de demiti-lo por sua distração, mas não poderia. Tinha de admitir: o bar
do Agenor não era o mesmo sem ele. Até os fregueses mais carrancudos não
conseguiam segurar o riso quando ele, sem nenhuma cerimônia, imitava algum
morador. Era uma risada geral! Imitava o jeito de falar e andar de qualquer um
com tanta perfeição que nem o próprio imitado ficava sério. Era um artista para
aquela coisas, o safado! E apesar de quase sempre chegar atrasado e quebrar seus
copos, não havia outro como ele. Seu jeito despachado, meio moleque, conquistava
logo simpatias.
Alguns estabelecimentos comerciais mais afortunados podiam contratar
artista para atrair a freguesia. Ele tinha o Ângelo.
__Seu Agenor, posso falar um segundo com o senhor?
__Estou ocupado, Ângelo.
__É só uma perguntinha – falava baixo, enquanto tirava cervejas do
freezer – o senhor ouviu falar mais alguma coisa sobre aquele homem que chegou
aqui ontem?
__O esquisitão? Nada! – fritava coxinhas, o rosto suado e corado pelo
calor __Tá entocado lá desde ontem, no casarão. Isso, se o Carlinho já não deu um
jeito nele. Nesse caso, tá esticado em algum lugar. Por quê?
__Só curiosidade.

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__Sei! Melhor não se meter com essa gente! Sabe-se lá quem é, de
onde veio?

O bar fechava às oito, mas Ângelo tinha conseguido, a muito


custo, que Seu Agenor o liberasse às seis. Ia até uma escola pública noturna onde
cursava o segundo ano do Ensino Médio. Não pretendia ser ajudante de bar a vida
toda.
Naquela noite, andando a passos rápidos, passou pelo casarão e notou
as janelas fracamente iluminadas. Nenhum ruído. Será o velho, pensou, ou turma
do Carlinho que voltou? Eles não apareceram no bar aquele dia, o que era de se
admirar. Onde estariam? Sempre aprontavam arruaças, cometiam pequenos furtos,
andavam de lá para cá, tirando o sossego de quem encontravam pela frente, ou
quando estavam cansados das velhas brincadeiras, iam até o Bar do Agenor,
espantavam os fregueses, comiam e bebiam à vontade deixando o dono do bar à
beira de ataque de nervos.
Já eram, enfim, parte da paisagem, por isso a estranheza de Ângelo
com seu sumiço.
Estava pensando nisso quando, sem mais nem menos, uma vontade
doida de subir o morro do casarão e dar uma olhada pela janela assaltou-o. Sabia o
tamanho do risco que isso representava e balançava a cabeça, reprovando aquele
pensamento. A vontade, no entanto, não o deixava. Então, como saída, tentou
argumentar com sua insensatez: “Já pensou, seu idiota, subir o morro do casarão a
essa hora? E se você topa com a besta do Carlinho apagando o velho maluco? E aí?
Aí, você fica sendo testemunha e, pra não abrir a boca, eles te enchem de bala
também. Já pensou, você jogado numa vala, sua mãezinha chorando, a Vilminha
fazendo cara de nojo?”
Ângelo dava a si mesmo razões as mais sensatas possíveis para
continuar no seu caminho, mas algumas idéias entram na cabeça e dominam nossa
vontade, desdenhando qualquer argumento. E foi assim que, vencido, ele começou
a escalar o morro lentamente, arrastando-se por entre os arbustos para não ser
visto.
Aos poucos, `a medida em que avançava, as paredes do casarão
cresciam diante de seus olhos. Levantou-se bem rente à parede enegrecida e
aproximou o rosto da janela, sempre olhando para os lados. Seu coração batia tão
desesperado, que chegou a pensar que lhe escaparia do peito.
Quando, olhando pela janela, pode distinguir alguma coisa, precisou
tapar a própria boca para conter uma exclamação de surpresa: o casarão, antes
vazio, estava agora completamente mobiliado. Estantes , mesas, cadeiras,
estranhos objetos que só vira em filmes, e livros, muitos livros.
Em uma das parede, um enorme escudo dourado atraiu sua atenção:
havia duas espadas que se cruzavam logo abaixo dele. Espalhados pela mesa de
madeira escura, papeis amarelados e alguma coisa que lhe parecia ser um mapa.
A um canto, para seu horror, estava o velho. A seu lado e um imenso
caldeirão fumegava. O estranho jogava dentro deles algumas plantas e dizia algo
que não conseguia ouvir.
Uma mão fria em seu ombro quase o fez entregar a alma ao Todo
Poderoso. Ângelo virou-se e lá estava Carlinho, os olhos gateados brilhando e, em
torno dele, como uma matilha, seus amigos inseparáveis: Bira, Branco e Rato,
como eram conhecidos na rua.
__Olha só quem tá aqui! O palhaço do bar!
__E-eu só tava passando e...
__Cala a boca! A gente veio aqui para acertar as contas com aquele
velho macumbeiro. Quero ver ele fazer mágica com isso aqui – Carlinho
apontou a pistola que trazia para a cabeça de Ângelo – e como tu tá bisbilhotando,
vai entrar no samba também!

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Quando Ângelo já encomendava a alma, a figura assustadora de Maltus
parou diante deles. Era a primeira vez que Ângelo o via de perto. Quanto aos
outros, voltar a vê-lo deixou-os atemorizados, pois a lembrança de seu último
encontro estava ainda bem viva. Mas, confiantes em suas novas armas –
conseguidas graças ao prestígio de Carlinho junto aos chefões – não demonstraram
espanto.
Maltus fitou-os por alguns instantes em silêncio e então disse com sua
voz inconfundível:
__Deixem o rapaz ir!
__Nada disso, velho desgraçado! Você enganou a gente ontem, mas
hoje não!
Carlinho e os outros apontaram as armas em direção de Maltus mas
não puderam dispará-las: com um único gesto de braço, num movimento brusco
ascendente, ele lançou longe as armas sem tocá-las. Diante dessa nova
demonstração de poder, os companheiros de Carlinho não esperaram por mais:
convencidos, debandaram morro abaixo, esquecidos do companheiro.
Carlinho, perturbado, não se decidia entre seguir os amigos ou ficar.
Ângelo continuava colado `a parede, os olhos arregalados pelo assombro do que
vira Maltus fazer.
__É melhor você seguir seus amigos.– Maltus dirigia-se a Carlinho que
ainda não se decidira, meio paralisado.
Conseguiu enfim, falar. A voz saiu-lhe dessa vez estranhamente calma,
pela primeira vez despida da arrogância costumeira:
__Como você faz isso?
__Se eu lhe explicasse você não entenderia.
Não sabendo mais o que dizer ou fazer, contrariado e envergonhado,
Carlinho desceu lentamente o morro, a cabeça pendendo sobre o peito nu.
__E quanto a você... – Maltus falava agora a Ângelo que a tudo assistira
na mesma posição, com a respiração suspensa.
__E-eu? Olha, eu só tava passando, e aí...
__E aí resolveu dar uma olhadinha. A curiosidade tem sido, através dos
tempos, a responsável por muitas tragédias.
Ângelo via aquele homem – aquele bruxo! – vir em sua direção e
tentava desesperadamente lembrar-se das orações de exorcismo que sua tia havia
tentado, durante anos, lhe ensinar.
__Desculpa! Eu não queria ficar olhando, mas ... Eu não estava com
aqueles caras!
__Eu sei, não precisa ter medo de mim. Entre comigo um momento.
Preciso falar-lhe.
Maltus pôs a mão levemente sobre o ombro do rapaz e caminhou em
direção à porta. Ângelo desesperou-se:
__Não! Espera, aí! Eu não posso entrar, tenho aula agora, desculpa, tá?
Quem sabe outro dia?
Ângelo tentava se soltar da mão que o conduzia para dentro do casarão
mas não teve sucesso. “Meu Deus”, pensava, “Agora ele vai me jogar dentro
daquele caldeirão pra fazer alguma poção de bruxo! Pensa rápido Ângelo!”
__Sua aula já acabou há muito tempo. E não fique impressionado com o
que viu pela janela, as aparências enganam, sabia?
Por um momento eles apenas se olharam. Ângelo tentando vencer sua
curiosidade suicida, Maltus apenas aguardando que ele, mais uma vez, se deixasse
vencer.
__Tá legal! Mas eu não posso demorar – sabia que não adiantava lutar
contra a natureza, e a sua era extremamente curiosa.
Maltus sorriu. Foi mais rápido do que esperava. Tomou a frente do
rapaz e pediu que o seguisse. Temeroso, achando que alguma coisa terrível lhe
aconteceria tão logo entrasse, Ângelo, assim mesmo, obedeceu.
__Eu pensei que o casarão estivesse vazio.

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__E estava. Até eu chegar.
__Mas... como você trouxe todas essas coisas até aqui sem que
ninguém notasse?
__Da mesma forma que eu desarmei os meninos lá fora.
__Mágica?
__Conhecimento.
Ângelo viu Maltus pegar um dos livros da estante e caminhar para ele.
Apontou para a cadeira de encosto alto.
__Sente-se.
O rapaz sentou-se onde lhe fora indicado e Maltus numa cadeira a sua
frente. Olhando-o fixamente, disse:
__O conhecimento dá poder. Um grande poder. Mas também cobra algo
em troca. O que você viu tem um preço, que não é baixo. Aqui – bateu na capa do
livro – há resposta para muita coisa, mas não tudo. Algumas coisas é preciso que
se descubra sozinho.
Ângelo coçou a cabeça, confuso. Por que ele estava lhe dizendo tudo
aquilo? Tomando coragem disse-lhe o que passava na cabeça:
__Nós começamos a conversar e eu nem sei seu nome ainda. Não é
estranho?
__É verdade. Meu nome é Maltus. Você é muito esperto, Ângelo. Acho
que vamos ser amigos.
__Você já sabia meu nome. Mas uma coisa estranha para minha lista.
__Digamos que eu já esperava você. O que você chama de estranho é
apenas algo que você desconhece. Tudo que não conhecemos é assustador, porque
não sabemos como nos comportar diante do desconhecido.
__Hum... já vi que você não vai responder a nenhuma das minhas
perguntas... pelo menos não na minha língua.
__Tenha paciência. Ainda vamos conversar muito. Agora já é tarde. É
melhor você voltar.
__Está bem... e obrigado por salvar minha vida. Você me deixou tão
tonto com seu “conhecimento” que até ia me esquecendo de agradecer.
__Ângelo levantou-se e , meio sem jeito, estendeu a mão para
Maltus que a segurou firmemente.
__Gostaria de voltar amanhã?
__Eu posso?
__Eu estarei esperando. Amanhã, à mesma hora.
__Legal! Até amanhã, então.
Ângelo caminhou até a porta e Maltus o acompanhou. Olhou para trás
antes de iniciar a lenta descida e levou consigo a imagem do mago envolta em
sombras, os olhos que o acompanharam até que desaparecesse na escuridão da
noite. Não sabia nada sobre ele, mas sua presença era tão cativante, seu modo de
falar de tal forma o atingira, que não tinha dúvida que estaria ali no dia seguinte
para ouvi-lo novamente, e estaria de volta sempre que o convidasse porque
simplesmente não tinha como evitar.

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CAPÍTULO IV

M
altus sabia que agora só restava esperar. Tinha decifrado o
enigma, esperado o momento certo e feito o primeiro contato.
Agora que jogara a rede, só precisava puxar lentamente e
torcer para que a linha não se partisse. Era preciso cativá-lo, e
o mais difícil: educá-lo. Essa parte dependia mais do rapaz do que dele próprio.
Ângelo tinha o espírito certo, mas também a imaturidade que poderia lhe trazer a
derrota mais uma vez – só que definitivamente.
Iria ele resistir ao Outro? Estaria pronto para o combate invisível?
Perceberia a importância de sua missão?
Maltus de repente, ficou alerta. Percebeu uma energia poderosa se
aproximando. Seria...?
O ar ao seu redor parecia ter ficado mais denso, quase material.
Ouviam-se vozes confusas de milhares de seres irem aumentando de intensidade
até que, o que começou como sussurros, transformou-se em ovação estridente, de
tal modo poderosa, que chegou a abalar a estrutura da velha casa. Era como se ali
houvesse uma platéia invisível que delirava ante a aproximação de um ídolo. Maltus
sabia que suas chegadas eram sempre precedidas de algum estardalhaço. Fazia
parte de sua natureza impressionar.
O mago reuniu todo seu autocontrole e aguardou.
Então, insinuando-se por entre uma fenda aberta no próprio ar, sua
figura vestida de trevas encarnou-se diante dos olhos de mago. Por mais que já
tivesse presenciado inúmeras dessas apresentações, ele nunca conseguira evitar
um certo pavor humano em contemplá-lo. Seus olhos nunca se acostumariam
àquela aparição. Por mais bela que fosse.
Estava o Outro agora na pele de um jovem muito claro, cabelos longos
que, revoltos, pairavam acima de seu crânio como um halo negro, movimentando-
se como serpentes finíssimas. Os olhos líquidos e oblíquos tinham a força e atração
de um abismo: não se podia fitá-los impunemente.
Parou diante de Maltus, o rosto erguido em desafio, os lábios vermelhos
emoldurando presas brancas, enfileiradas num riso cínico.
Maltus o olhava fixamente sem aparente comoção:
__Você peca por excesso.
__Só faço isso para pessoas importantes, Maltus. Não me ofenda com
sua indiferença – sua voz era como o veludo: macia e envolvente, como convinha a
um sedutor.
__O que fiz agora para merecer sua atenção?
__Você parece não ter jeito! Acha mesmo que aquele ser terá sucesso
onde outros melhores falharam? Está perdendo o faro, Maltus!
__Então por que se preocupar? Por que vir até mim?
__O tédio, o amaldiçoado tédio, o que mais? Mas, vai mesmo levar isso
adiante? Escute: vim propor-lhe um trato que o poupará de mais uma frustração, e
se você for ainda tão sagaz quanto antes, saberá aproveitá-lo.
__É espantoso que quem se considera vencedor venha oferecer opções
ao vencido. Você está curiosamente benevolente. Estou curioso mesmo assim. Do
que se trata?
O visitante deslizou até onde estava Maltus e pousou-lhe no ombro a
mão que, apesar do aspecto suave, tinha o peso de sua alma caída. Quando
aproximou do mago o rosto encantador, Maltus pode sentir o hálito quente e a
respiração feroz do predador que de fato era:
__Entregue a mim sua alma e asseguro-lhe uma morte sem grandes
tormentos e um eternidade...tolerável. garanto não dar maior importância àquele
que escolheu como novo aprendiz. Não lhe parece uma proposta justa?
Tentando mascarar o desconforto que sentia com sua proximidade,
Maltus respondeu-lhe com voz serena:

12
__O que pretende? Acha mesmo que depois de tantos anos de
resistência vou simplesmente entregar-lhe o troféu antes de terminado o jogo?
Não! Terá que aguardar até o fim para merecê-lo. Disfarce melhor sua impaciência.
E lembre-se: eu, ao contrário de você, aprendo com meus erros.
__É o que quer? Então, vamos ao jogo!
Afastou-se com fúria de Maltus e, com um gesto majestoso, levou dali
sua perturbadora presença e a escuridão abissal que arrastava consigo, como a um
manto.
Maltus suspirou de alívio, embora soubesse ser um alívio
passageiro. O pior estava apenas começando. Precisava trazer o rapaz para o seu
lado o quanto antes.

Carlinho não procurara pelos amigos. Precisava ficar um pouco só e


pensar.
Nunca, em sua curta existência, havia encontrado alguém como aquele
velho. O que poderia lhe dar tanto poder? Não acreditava em bruxaria: sempre
achara que era tudo enrolação, só mais um jeito de enganar trouxa. Mas agora ...
como explicar o que vira senão como bruxaria, coisa do demônio, como diziam?
O rapaz não conseguia achar uma resposta para suas indagações, mas
de uma coisa não tinha dúvida: aquele poder era real e se aquele velho não era um
demônio, então tinha um segredo para a sua força. Faria qualquer coisa para fazer
o mesmo que aquele estranho fazia, venderia a própria alma, se achasse que tina
uma.
Mas agora havia outra coisa que precisava resolver primeiro. Não
admitia a humilhação que sofrera: fosse quem fosse aquele velho, ele, Carlinho iria
dar seu jeito para se desforrar, mesmo que isso lhe custasse a vida. E quanto a
Ângelo aquele era outro que não poderia ficar livre, rindo as suas custas.

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CAPÍTULO V

ngelo levantou-se cedo aquela manhã e, como de costume, dirigiu-se ao bar


A onde trabalhava.
Achava que depois do susto da noite passada demoraria a ver
Carlinho, mas se enganara: mal andou cem metros, avistou-o sobre o muro
de uma velha fábrica, a espreita como um gato, modelando com um canivete um
pedaço de madeira. Ângelo não desviou de seu caminho , apesar do olhar pouco
amistoso que o outro lançava-lhe de propósito. Tinha seu orgulho.
Ao passar pelo muro da fábrica, Carlinho saltou agilmente a sua frente e
o encarou, apontando-lhe o canivete:
__Quero levar um papo contigo!
__Estou indo trabalhar. – disse Ângelo, encarando-o também.
__Não te perguntei nada! Só vim te avisar que o que eu te prometi
ontem ainda tá de pé. Te cuida!
__Obrigado pelo aviso!
Ângelo passou pelo outro rapaz e seguiu tranqüilamente até o bar. Mas
apesar da aparente serenidade ele sabia que tinha motivos para se preocupar:
Carlinho não estava brincando. Não o perdoaria por presenciar sua derrota para
Maltus.
Pela primeira vez aquela semana não chegou atrasado ao trabalho.
Agenor ao vê-lo tão cedo, assustou-se.
Disse-lhe sorridente:
__Que milagre é esse? Viu fantasma pra levantar tão cedo?
O ajudante não respondeu. Pôs o avental e começou a arrumar as
cadeiras em torno das mesas. Agenor estranhou o comportamento. Nunca o vira
assim, tão sério. Tinha sempre a expressão risonha, uma piada para cada
momento. Seria alguma coisa com a saúde de D. Alzira ou rabo de saia?
__Que cara é essa? Parece que veio de um velório!
__Nada, não, Seu Agenor, só estou cansado.
__Pois é bom se animar, hoje tem muito trabalho!
Durante o dia, Ângelo quebrou vários copos, discutiu com os fregueses,
deixou queimar os salgados e para arrematar, quase derrama óleo quente sobre o
patrão que, defensivamente, saltou para trás pisando o gato e recebendo em troca
uma mordida e vários arranhões que lhe marcaram a perna.
Agenor, num justificado acesso de raiva, empurrou porta a fora o
alucinado ajudante, enquanto gritava-lhe maldições terríveis e o ameaçava de
demissão sumária.
Ângelo, então, pela primeira vez, teve que admitir que o patrão não
estava de todo errado. Aquela conversa com Carlinho tinha mesmo mexido com
ele.
Saiu ouvindo às suas costas a gritaria de Agenor: que não voltasse
nunca mais, que já bastava o prejuízo que tinha com os vagabundos, que teria que
comprar mais copos e que mataria o amaldiçoado gato e ele junto assim que
tivesse chance.
Tudo conversa! Sorria Ângelo, já acostumado às explosões do patrão.
Não era a primeira vez que saia do bar aos pontapés e na manhã seguinte voltava
como se anda tivesse acontecido. Agenor resmungava, dizia que era um santo por
aceitá-lo de volta, que só deixava que ele continuasse trabalhando ali por

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consideração a sua mãe, que não tinha culpa de ter um filho tão preguiçoso e
desatento. E continuava a falar por todo o dia quase o levando à loucura. Até que
dizia alguma besteira engraçada e Agenor esquecia tudo, em meio às risadas que
lhe deixavam o rosto vermelho.
Apesar de tudo já havia se acostumado às rabugices do dono do bar e
sabia que, lá no fundo, já conquistara seu afeto.
Ângelo agora andava sem rumo, meio aborrecido com o que acontecera.
Quando chegou próximo ao campinho ouviu vozes conhecidas. Uma
delas era de seu amor frustrado e a outra daquele “doce e nobre rapaz”, Carlinho.
Dobrou a esquina com o coração aos pulos e então, parou.
Vilminha tentava soltar-se da mão que lhe segurava o braço e, com
violência inútil tentava arranhar seu agressor. Carlinho tentava segurar-lhe as
mãos, enquanto aproximava-se mais da moça. Parecia mais alterado que de
costume, os olhos estavam vermelhos e o rosto marcado por arranhões.
__Deixa de se fazer de difícil! Tu tá a fim, que eu sei!
A moça debatia-se, xingava, cuspia-o quando ele aproximava o rosto do
seu, mas o rapaz parecia mais disposto em seu intento e não cedia.
Passada a surpresa, Ângelo, num impulso de raiva, avançou sobre
Carlinho e o derrubou com um soco. Vilminha, ao ver-se finalmente livre, teve uma
reação que confirmava seu conhecido gênio: chutou com toda a força o rosto do
rapaz caído, ferindo-o com um corte superficial, mas que o fez encolher-se de dor,
o rosto já ensangüentado.
Diante disso, Ângelo esqueceu-se por uns instantes do algoz e olhou
para a moça boquiaberto. Aquela menina, definitivamente, não fazia o gênero
“donzela desprotegida”.
Sem olhar para Ângelo, a moça apanhou a bolsa caída a um canto e
arrumou o cabelo com um gesto altivo. Então, virou-se e continuou seu caminho
como se nada houvesse acontecido e sem dedicar a seu salvador a menor palavra
de gratidão.
__Ô, metida! Sabia que a palavra “obrigada” já foi inventada? – gritou-
lhe indignado.
Vilminha não se abalou com a cobrança e sequer voltou-lhe o rosto. O
rapaz estava tão revoltado com a indiferença da moça que esquecera-se de
Carlinho que, apoiando-se ao muro, ainda tonto, procurava pelo canivete no bolso
da calça.
Ângelo virou-se bem a tempo de desviar-se do golpe com que o outro,
numa agilidade surpreendente, tentara acertá-lo. Carlinho olhava-o fixamente e,
mais uma vez, lançou-se contra Ângelo. Encurralado contra o muro, desta vez não
teve o rapaz o espaço para desviar-se e ambos rolaram pelo chão. Ângelo
segurava firmemente o pulso do outro, num esforço tremendo para impedir que a
lâmina lhe varasse a barriga. Com um impulso, num gesto em que precisou
concentrar o que lhe restava de fôlego, conseguiu erguer o tronco e, sem largar os
pulsos de Carlinho, derrubá-lo no chão. Enfrentaram-se novamente corpo a corpo,
até que Carlinho, com um gemido abafado, contraiu o rosto; as veias do pescoço
saltaram-lhe, o corpo imobilizou-se. Ângelo viu-o segurar o canivete com ambas as
mãos e, lenta e penosamente, arrancá-lo da própria cintura. O sangue agora fluía
livre e ele, numa tentativa de amenizar a dor, pressionava inutilmente o ferimento.
Ângelo ajoelhou-se ao seu lado, pálido de espanto, tentando lembrar-se
do momento em que aquilo havia acontecido. Passou do assombro à preocupação:
o que faria agora? Carlinho estava ali, sangrando, tentando articular alguma
palavra. Teria que pedir ajuda a alguém, mas quem seria? Os moradores fariam até
festa se Carlinho passasse desta para uma pior – como costumava se referir à
morte de alguém pouco querido no bairro_ seus amigos, se os conseguisse
encontrar, iriam querer primeiro sua cabeça. Teria que pensar em outra solução.
Tirou a camisa, dobrou-a e pôs sobre o ferimento do outro.
__Segura firme!

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Nem sabia se Carlinho podia ouvi-lo, ele parecia estar semi–
inconsciente, apenas movia a cabeça de um lado para outro, atormentado pela dor
e murmurava algo, que parecia ser o nome de alguém; mesmo assim, fez o que
Ângelo lhe pedira; logo, a camisa estava ensopada.
Em meio a confusão de sua cabeça, teve num relampejar uma idéia que
mesmo parecendo –lhe absurda num primeiro momento, logo se impôs: tinha que
procurar Maltus! Aquele homem que vira apenas uma vez, não sabia por quê,
inspirava-lhe confiança, e era o único a quem poderia pedir ajuda. Esse
pensamento foi refutado por algo que nele era sensato e ponderado – e que temia
aquele homem estranho que fazia objetos voarem e tinha um caldeirão – mas
decidiu-se quando viu que Carlinho não mais se movia.
Estremeceu ante a possibilidade do outro estar morto. Nem nos seus
momentos de maior revolta contra ele havia pensado em lhe tirar a vida. E mesmo
que quisesse, a morte de Carlinho poderia lhe causar muitas complicações.
Àquela hora não havia ninguém ali – só a molecada ainda passava pelo
local, para jogar bola, pois era deserto, longe das casas e cercado por um denso
matagal.
Preocupado, tomou o pulso do rapaz inconsciente, mas para seu alívio
ele ainda estava vivo. Suspirou – dos males, o menor!
Então, com alguma dificuldade, ergueu Carlinho sobre os ombros, depois
de amarrar a camisa em torno de sua cintura. Sabia que era uma medida de pouca
utilidade, mas pelo menos evitava o contato direto do ferimento com seu corpo, o
que poderia agravá-lo. Carregando o desafeto, passou pelo campinho – àquela
hora, abandonado – e seguiu por um atalho que levava ao casarão. A subida por ali
era mais íngreme, mas o capim alto servir-lhe-ia de cobertura.
Enquanto escalava vagarosamente o morro, com o corpo inerte do outro
fazendo ainda mais penosa a subida , olhava ao seu redor, temendo ser visto.
Como pesava o safado! Sentia-se um idiota passando por aquilo, quando fora ele
que começara tudo e quase lhe havia atravessado a barriga. Devia era tê-lo largado
lá embaixo e deixado que se afogasse no próprio sangue ruim.
Enquanto brigava com sua própria natureza, tentava equilibrar-se,
segurando-se nos arbustos. O sangue do outro lhe escorria pelo ombro.
Quando finalmente chegou ao casarão, mal conseguia manter-se de pé,
as pernas ameaçavam ceder e a respiração pesada fazia doer-lhe as costelas.
Felizmente, o restante de suas forças foi suficiente para que chegasse até a porta.
Sua ansiedade dava-lhe mais coragem para encarar o bruxo.
Deixou Carlinho sobre a grama e bateu com força. A porta abriu-se
como impelida por uma brusca rajada de vento, e ele ouviu, de dentro da casa a
voz de Maltus, fria, lhe retumbar nos ouvidos:
__Traga o outro rapaz para dentro e feche a porta.
Ângelo ia lhe perguntar como sabia que não estava só, mas desistiu.
Não ia se preocupar com isso agora. Arrastou Carlinho para dentro e fechou a
porta, como lhe disse o bruxo.
Maltus estava sentado em uma cadeira de encosto alto, com um livro
que parecera a Ângelo imenso. Não demonstrou surpresa com a visita, nem lhe fez
qualquer pergunta. Foi Ângelo quem se sentiu ansioso para dar-lhe alguma
satisfação:
__Desculpe. Eu não sabia a quem procurar.
__Fez bem em vir. O que houve?
__A gente brigou por causa de uma garota, mas isto_ apontou para a
fonte do sangramento – foi um acidente. Eu nem sei como aconteceu!
Maltus levantou-se e caminhou até o rapaz desacordado. Carlinho
voltava da inconsciência, entreabriu os olhos, mas não conseguia reconhecer
Maltus. Instintivamente, levou uma das mãos ao ferimento. Sentia muito frio,
embora a ferida queimasse numa dor latejante. Sentiu que alguém o tocava; fez
um esforço imenso para levantar-se, mas a pessoa o impediu, manteve-o contra o
chão frio.

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Maltus examinou-o por alguns segundos. Então, disse:
__É preciso estancar logo o sangue.
Isso Ângelo já sabia. Tinha medo que não houvesse mais nada que
Maltus pudesse fazer.
Perguntou-lhe, temeroso da resposta:
__Você acha que pode fazer alguma coisa?
__Talvez.
Não era uma resposta muito confortante, mas viu que Maltus levantava
Carlinho nos braços, sem nenhum esforço, apesar de sua altura e peso
consideráveis, e o deitava sobre a mesa. Pediu a Ângelo que retirasse os livros
mapas e outras coisas que estava sobre ele, menos sua velha bolsa, que usou para
apoiar a cabeça de Carlinho. Em seguida, foi até a estante e de lá retirou um
pequeno baú. Abriu-o e pegou um pequeno frasco onde um líquido escuro que
borbulhava como se tivesse vida própria.
Ângelo observava-o atenciosamente e notou que ele derramava uma
única gota sobre o corte. Em contato com o sangue, o conteúdo do pequeno frasco
entrou em imediata ebulição, e ele teve de correr para ajudá-lo a segurar Carlinho,
que ao sentir o remédio penetrar-lhe nas entranhas, contraiu os músculos, num
espasmo de dor. O choque fez com que despertasse totalmente e, enfim, pôde
reconhecer as pessoas ao seu redor. Tentou dizer-lhes algo, mas Maltus fez-lhe um
gesto de silêncio e tranqüilizou-o com o olhar que das outras vezes tanto o
assustara.
Vendo que a hemorragia estancara, Ângelo olhou Maltus admirado:
__Você entende de medicina?
__Não da convencional.
Carlinho pôde finalmente falar, a memória voltara de repente. Voltou a
cabeça para Ângelo e disse com mais força que conseguiu:
__Agora me lembrei! Tu me furou, seu...!
A raiva que as lembranças despertaram agitou-lhe o corpo e ele
dobrou-se todo, tomado por uma onda de dor que vinha da ferida recém-fechada.
Ângelo balançou a cabeça: ainda tivera medo de que o animal morresse!
Pelo visto ele já estava bem disposto. Maltus tinha entrado num outro cômodo
mais escuro do que aquele em que se encontravam. Voltava agora, trazendo uma
bacia que depôs sobre a mesa, ao lado de Carlinho. Havia dentro dela várias raízes
mergulhadas em água morna. O cheiro era forte, mas não desagradável. O rapaz
olhou-o e permaneceu mudo, mas o rancor concentrara-se em seus olhos claros.
Maltus ignorou a ofensa silenciosa e, com um pano umedecido na mistura que
preparara, pôs-se a limpá-lo do sangue em seu rosto e corpo. Carlinho desviou os
olhos e fixou-os na parede, permanecendo imóvel durante o tempo em que o mago
cuidava dele.
Quando Maltus acabou, entrou novamente no quarto e deixou Carlinho e
Ângelo sós. Encararam-se por alguns segundos, até que Carlinho, com mais
cuidado, disse-lhe:
__Por que me trouxe pra cá?
__O que você queria que eu fizesse? – respondeu Ângelo, irritado –
Esqueceu quem começou tudo isso?
__Não interessa! Quando eu sair daqui não vai ficar barato, tá ouvindo?
__Eu devia era ter te deixado lá, sangrando até morrer!
__E não deixou por quê? Se fosse eu...
Nesse momento, Maltus voltou com um pequeno cálice e ambos
calaram-se. Viram-no misturar ao líquido vermelho um pó escuro. Depois foi até
Carlinho e ajudou-o a sentar-se para, em seguida, estender-lhe a bebida, agora
escura e levemente borbulhante:
__Beba.
Carlinho retraiu-se, assustado:
__De jeito nenhum! Eu nem sei o que é isso, cara!

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__Nada que lhe faça mal. Você perdeu muito sangue, isso vai lhe
ajudar.
__Muito abrigado, mas eu tô ótimo!
Carlinho afastou bruscamente a mão que lhe estendia a taça e levantou-
se da mesa num ímpeto.
No entanto, ao tentar o primeiro passo em direção à porta, tudo oscilou
e ele precisou agarrar-se à borda da mesa para não desabar.
__Cabeça oca! __disse Ângelo, fazendo-o deitar-se novamente.
__Me larga!
__Pode deixar, Ângelo.
Maltus aproximou novamente a taça de Carlinho e olhou-o com uma
severidade que não dava lugar para contestação:
__Beba por sua vontade, ou contra ela. Você escolhe.
O rapaz não duvidou sabia do que o outro era capaz. Tomou a taça com
ambas as mãos, olhou-a, hesitante, e então bebeu-lhe o conteúdo amargo de uma
só vez. Depois, encarou o mago sem medo, devolveu-lhe o olhar hostil:
__Posso ir agora? Ou tem mais veneno aí que você quer testar?
Maltus sorriu. Apreciava a disposição do rapaz.
__Quando você acordar estará pronto para ir.
Carlinho ia replicar, dizer que não pretendia dormir ali de jeito nenhum,
mas seu corpo prostrou-se numa dormência repentina e logo sua consciência foi
arrastada por um sono profundo.
Ângelo olhou o outro que dormia. Disse a Maltus:
__Desculpa pelo incômodo, mas eu não podia deixar ele lá...Se bem que
deu vontade!
__Fez bem em me procurar. Agora, venha comigo, preciso lhe falar
sobre um assunto muito sério.
O rapaz ficou intrigado, o que Maltus teria para falar-lhe ? Mal se
conheciam.
O mago levou-o até uma pequena sala onde havia um quadro que
tomava quase toda uma parede. No quadro, um homem de grandes barbas, vestido
de vermelho, segurava em suas mãos um grande livro de capa dourada. Ao seu
lado ,um escudo de ouro. Maltus apontou-lhe uma cadeira e sentou-se na outra em
frente.
__E o Carlinho ?__perguntou Ângelo
__Ele não vai acordar tão cedo.
Com o rosto mais sombrio que o de costume, continuou:
__Sei que nosso primeiro encontro foi muito brusco e não pudemos
conversar melhor. Também sei que não compreende porque o chamei para
conversarmos. Há muita coisa que preciso contar-lhe a meu respeito...
__Por que para mim?
__porque o único motivo de eu Ter vindo até aqui foi para encontrá-lo.
Mas só vai conseguir entender isso, e também as coisas que já viu, depois que eu
lhe contar minha história. Para começar, é preciso que saiba que nasci em 1314.
__O quê?! Isso é...Impossível! __ia acrescentar “você é louco!” mas
reprimiu-se a tempo.
__Não, não é.
__Mas uma pessoa não pode viver tanto! Como você pode ainda estar
vivo?
__Ouça tudo primeiro. Talvez, depois disso, não ache tão incrível assim.
Nasci numa pequena aldeia, na Europa, numa época em que chegar vivo aos trinta
anos era uma proeza. Ainda muito jovem , em meio a toda miséria que me
cercava, eu apaixonei-me perdidamente pela magia. Sabia que esse era um
assunto proibido, punido com a morte na fogueira, mas tamanho era meu encanto,
meu entusiasmo, que não tomava conhecimento do perigo. Meu único cuidado foi
evitar que alguém em minha aldeia percebesse essa minha inclinação, e à noite,

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secretamente, me aventurava nas florestas à procura dos bruxos e bruxas que lá
viviam , degredados, mas sempre por perto.
Quando fiz dezesseis anos, soube que um grande bruxo, muito temido ,
estava a procura de um aprendiz. Entusiasmado pela perspectiva de ter acesso a
conhecimentos mais consistentes, fugi tão logo tive chance, para encontrá-lo.
No caminho, passei por grandes perigos e provações. O refúgio do
feiticeiro era além das florestas mais sombrias e, para encontrá-lo, peregrinei
durante meses, passei por lugares quase nunca visitados.
Encontrei-o finalmente, e tanto insisti, tanto o cerquei com minha ânsia
de saber, que ele acabou cedendo e aceitou-me como aprendiz. Para tanto,
trabalhei arduamente, da manhã à noite, para conseguir dele algumas migalhas do
seu conhecimento.
Na verdade, com isso ele queria apenas me desestimular , julgando ser
apenas leviandade de jovem o que me levara até ali. Quando, no entanto, percebeu
que eu não desistiria até que tivesse o que viera buscar, ele permitiu que eu
acompanhasse a uma de suas experiências . Assisti a tudo deslumbrado. Ali estava
o maior prêmio que a vida poderia me conceder.
“Depois de alguns meses auxiliando-o com suas poções, mas sendo-me
ainda negado o direito a perguntas, meu mestre, por minha grande aplicação,
julgou-me digno de ser iniciado nos verdadeiros segredos da magia.
“Aprendi tudo que podia, retirei dele até a última gota de compreensão
das coisas e das pessoas, até que ele nada mais tinha a oferecer-me . Mas eu
continuava ansiando por mais. Sabia que o que tinha aprendido era apenas o
começo. Despedimo-nos. Meu mestre recomendou-me cuidado, advertiu-me sobre
o excesso de curiosidade que , em mim, beirava a morbidez. Ofertou-me alguns
livros e moedas e eu parti.
Agora queria apenas conhecer o mundo e testar o que havia aprendido,
para saber mais e mais. Estabeleci-me em uma cidade da Itália, Florença, a serviço
de um rei. Através dos serviços que lhe prestava tornei-me respeitado e gozava de
grande liberdade. Mas é claro que tudo não passava de um disfarce para que eu
pudesse dedicar-me a minha ocupação preferida, e ainda conhecer outros mestres
em magia que também vivessem misturados às pessoas comuns. Durante muito
tempo, reunia-me a muitos outros magos em lugares secretos para trocarmos
experiências e deliberarmos sobre muitas questões, políticas, religiosas e em tudo
mais que nos afetasse.
Maltus avaliou por alguns segundos a expressão de Ângelo à procura de
algum sinal de descrédito, mas tudo que viu foi expectativa.
Ângelo aproveitou a pausa para respirar. Perguntou ao mago:
__Ninguém nunca descobriu que você era bruxo?
__Eu nunca ficava num mesmo lugar por muito tempo. Viajei o mundo
todo, conheci muitos outros magos. Era uma vida excitante, cheia de descobertas,
de experiências fantásticas. Era como viver à parte num mundo dominado pelo
fanatismo e pela limitação intelectual. Passei ao largo das tragédias humanas,
limitando-me ao papel de observador.
Ao contrário de alguns colegas , eu não me interessava por poder ou
riquezas, queria apenas aprender tudo que houvesse para ser aprendido. Nunca
envolvi-me sentimentalmente a ninguém, ligava-me apenas àqueles que tinham
algo a me elucidar .Quanto às mulheres, preferia a companhia daquelas que eram
liberais o bastante para nada me cobrarem no dia seguinte.
Assim vivia, até que uma idéia nova ocupou meus pensamentos: eu, a
despeito de todo saber acumulado, um dia morreria. Esse possibilidade me
aterrorizou. Não fazia sentido buscar tanto algo que não seria meu por muito
tempo. E quanto aos tempos que viriam, às novas descobertas? Não me
conformava em ser deixado para trás enquanto o tempo avançava ,indiferente.
Procurei de todas as formas descobrir uma poção que me assegurasse
vida eterna, mas não tive sucesso. Desesperei-me. E foi aí que cometi o maior de
todos os meus erros: apelei para a magia negra. Fui até o fundo desses

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conhecimentos profanos sem qualquer tipo de remorso. Fracassei, porém, em todas
as minhas tentativas de fazer um pacto com espíritos malignos , e quando já ia
desistir, julgando sem nenhum fundamento essas práticas, ele veio até mim.
__Ele?
__Sim, o pior de todos os demônios. Ele apareceu-me sem disfarce, sem
meias palavras. Fiquei atordoado, mas também eufórico. Era o que eu tanto havia
esperado. Sua presença, entretanto, era tão perturbadora que eu, apesar de quase
não me chocar com coisa alguma, cheguei a duvidar da validade do que havia feito.
Mas ele soube persuadir-me. Conhecia todas as artimanhas das palavras, da arte
do argumento e logo o pacto estava selado: diante das estrelas eu renunciei a
minha alma para ter o direito de acompanhar a aventura humana até quando esse
planeta resistisse. Ele me advertiu de que eu nunca deveria interferir nos destinos
humanos, foi-me proibido qualquer gesto de compaixão, por menor que fosse, por
qualquer ser que respirasse. Se quebrasse esse acordo, perderia o direito à
longevidade e teria que partir com esse anjo deposto para compartilhar de sua
perdição eterna.
__Peraí! Se eu entendi direito... Você vendeu a alma ao Diabo?!
__Eu não julgava que isso fosse algo assim tão terrível. A limitação que
ele me impôs não era uma dificuldade para mim ,pois jamais havia sentido o
impulso de envolver-me em qualquer causa que não fosse a minha própria.
Mas com o passar dos anos, isso mudou. Conheci um monge, homem de
grande virtude e fé. Afeiçoei-me a ele como a um irmão. Era um homem muito
esclarecido para sua época, e sua bondade, sua doação às pessoas, quaisquer que
fossem elas, me contagiaram.. Tínhamos longas conversas e nossa amizade se
fortalecia dia a dia.
__Ele sabia quem você era de verdade?
__Não. Só veio saber muito tempo mais tarde. A ele eu devo o fato de
estar hoje aqui.
O que mudou tudo, entretanto, foi a doença incurável que ele contraiu.
Eu não podia suportar a idéia de que ele morreria, não naquele momento em que
eu estava fazendo tantas descobertas novas, graças a ele. Então, depois de
procurar exaustivamente, encontrei uma poção que poderia curá-lo, como de fato o
curou.
__Mas isso não foi bom para você...
__Não. Quando o demônio soube que eu havia gastado noites
procurando desesperadamente a cura para aquele homem que, por sua natureza,
era um inimigo odiado, sua fúria veio sobre mim com toda a intensidade. Foi
terrível contemplá-lo na sua forma mais bestial, exigindo reparação.
Eu sabia que não teria como escapar ao meu destino. Pela janela do
mosteiro, onde velava pela recuperação de meu amigo, despedi-me da vida. No
entanto, sem que eu esperasse, ele apareceu. Trazia no rosto as marcas da longa
reclusão a que a doença o obrigara, mas se podia ver que não havia quebrado seu
espírito. Ele encarou o demônio sem melindres, como se aquela visão não fosse
aterradora. Encarou-o com serenidade e até com certa compaixão. Depois, inquiriu-
me o significado de tudo aquilo. Aniquilado, contei-lhe em breves palavras.
O outro tinha pressa em arrastar-me com ele e para intimidar o monge
usou de tudo que sabia, de pressão psicológica à física, mas tudo em vão: a força
daquele espírito moldado na simplicidade e na renúncia não se abalou. Ele se
interpôs entre mim e a perdição eterna e a vontade do ser maligno não prevaleceu.
Mas as coisas não seriam assim tão simples: para o tamanho do meu
erro, só o que poderia livrar-me definitivamente do jugo do mal seria uma
expiação, e isso só eu podia fazer. Dessa vez , o acordo foi refeito tendo meu
amigo por testemunha . Eu deveria procurar um aprendiz que não se deixasse
corromper. Deveria ensinar-lhe o que sabia, mas esse conhecimento deveria ser
totalmente voltado para o bem, sem nunca ser maculado.

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Ironicamente, agora meu destino estava nas mãos de outra pessoa, eu
que nunca dependera de ninguém. Teria direito a três tentativas e ,se falhasse em
todas, ninguém poderia impedir que se cumprisse o acordo.
Depois disso, o demônio retirou-se. A vitória não lhe tinha sido
totalmente tirada, mas sua frustração por não ter o que queria de imediato se fez
sentir em alguns anos: a peste dizimou milhões de pessoas, a terra apodrecia pelo
sangue derramado em guerras que nunca acabavam. Ele teve seu banquete de
desforra.
__Nossa! Que história!
__Ainda não acabou. Eu falhei nas minhas duas primeiras tentativas.
Meus aprendizes, apesar de muito promissores, não conseguiram resistir às antigas
tentações da riqueza e do poder. Eu os perdi, e com eles ,duas de minhas chances
de reaver minha alma.
__Então quer dizer que agora você só tem mais chance?
__Isso mesmo! Você, Ângelo.
O rapaz deu um salto da cadeira, pálido:
__Eu?!

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