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Resumo: Definir “fronteiras raciais” no Brasil parece ser um
problema mais profundo do que em qualquer outro país, porque
uma marca identificatória brasileira é - precisamente - a forte
miscigenação, que pelo tamanho e diversidade da população só
pode ser comparado aos Estados Unidos da América, dois casos
com poucos precedentes na história. Segundo pesquisas, um
“brasileiro branco” é uma pessoa que “parece branco” e é
socialmente aceito como “branco”, independentemente da
ascendência, especialmente em razão da sua situação econômica.
Uma das formas de implementação das denominadas
“Políticas de igualdade” no Brasil nos últimos anos tem sido
por meio de ações políticas denominadas Ações afirmativas,
medidas positivas tomadas para aumentar a representação
das minorias nas áreas do emprego e da educação. Como essas
ações envolvem seleção preferencial com base em raça, gênero
ou etnia, a ação afirmativa pode, no entanto, gerar intensa
polêmica. O caso brasileiro se torna mais relevante com a
recente chegada de consumidores das camadas economicamente
excluídas da população brasileira às universidades
e ao mercado mais amplo de consumo o que parece ter
acentuado a intolerância em relação às diferenças étnicas
e sociais, especialmente detectada nas redes sociais. Freud
abordou os mecanismos de segregação existentes na cultura
para explicar como humanos vivendo em sociedades teriam
propensão à agressão uns contra os outros. Para isso, diz
ele, haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro
com pequenas diferenças que construiriam o estranhamento
deste outro e a segregação nos grupos.
Titolo originale
AQUARELA DA INTOLERÂNCIA: RACIALIZAÇÃO E POLÍTICAS DE IGUALDADE NO BRASIL. In Revista Leitura Flutuante. PUCSP. 2012
Resumo: Definir “fronteiras raciais” no Brasil parece ser um
problema mais profundo do que em qualquer outro país, porque
uma marca identificatória brasileira é - precisamente - a forte
miscigenação, que pelo tamanho e diversidade da população só
pode ser comparado aos Estados Unidos da América, dois casos
com poucos precedentes na história. Segundo pesquisas, um
“brasileiro branco” é uma pessoa que “parece branco” e é
socialmente aceito como “branco”, independentemente da
ascendência, especialmente em razão da sua situação econômica.
Uma das formas de implementação das denominadas
“Políticas de igualdade” no Brasil nos últimos anos tem sido
por meio de ações políticas denominadas Ações afirmativas,
medidas positivas tomadas para aumentar a representação
das minorias nas áreas do emprego e da educação. Como essas
ações envolvem seleção preferencial com base em raça, gênero
ou etnia, a ação afirmativa pode, no entanto, gerar intensa
polêmica. O caso brasileiro se torna mais relevante com a
recente chegada de consumidores das camadas economicamente
excluídas da população brasileira às universidades
e ao mercado mais amplo de consumo o que parece ter
acentuado a intolerância em relação às diferenças étnicas
e sociais, especialmente detectada nas redes sociais. Freud
abordou os mecanismos de segregação existentes na cultura
para explicar como humanos vivendo em sociedades teriam
propensão à agressão uns contra os outros. Para isso, diz
ele, haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro
com pequenas diferenças que construiriam o estranhamento
deste outro e a segregação nos grupos.
Resumo: Definir “fronteiras raciais” no Brasil parece ser um
problema mais profundo do que em qualquer outro país, porque
uma marca identificatória brasileira é - precisamente - a forte
miscigenação, que pelo tamanho e diversidade da população só
pode ser comparado aos Estados Unidos da América, dois casos
com poucos precedentes na história. Segundo pesquisas, um
“brasileiro branco” é uma pessoa que “parece branco” e é
socialmente aceito como “branco”, independentemente da
ascendência, especialmente em razão da sua situação econômica.
Uma das formas de implementação das denominadas
“Políticas de igualdade” no Brasil nos últimos anos tem sido
por meio de ações políticas denominadas Ações afirmativas,
medidas positivas tomadas para aumentar a representação
das minorias nas áreas do emprego e da educação. Como essas
ações envolvem seleção preferencial com base em raça, gênero
ou etnia, a ação afirmativa pode, no entanto, gerar intensa
polêmica. O caso brasileiro se torna mais relevante com a
recente chegada de consumidores das camadas economicamente
excluídas da população brasileira às universidades
e ao mercado mais amplo de consumo o que parece ter
acentuado a intolerância em relação às diferenças étnicas
e sociais, especialmente detectada nas redes sociais. Freud
abordou os mecanismos de segregação existentes na cultura
para explicar como humanos vivendo em sociedades teriam
propensão à agressão uns contra os outros. Para isso, diz
ele, haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro
com pequenas diferenças que construiriam o estranhamento
deste outro e a segregação nos grupos.
Joo Angelo Fantini* Resumo: Defnir fronteiras raciais no Brasil parece ser um problema mais profundo do que em qualquer outro pas, porque uma marca identifcatria brasileira - precisamente - a forte miscigenao, que pelo tamanho e diversidade da populao s pode ser comparado aos Estados Unidos da Amrica, dois casos com poucos precedentes na histria. Segundo pesquisas, um brasileiro branco uma pessoa que parece branco e socialmente aceito como branco, independentemente da ascendncia, especialmente em razo da sua situao eco- nmica. Uma das formas de implementao das denominadas Polticas de igualdade no Brasil nos ltimos anos tem sido por meio de aes polticas denominadas Aes afrmativas, medidas positivas tomadas para aumentar a representao das minorias nas reas do emprego e da educao. Como essas aes envolvem seleo preferencial com base em raa, gne- ro ou etnia, a ao afrmativa pode, no entanto, gerar intensa polmica. O caso brasileiro se torna mais relevante com a recente chegada de consumidores das camadas economica- mente excludas da populao brasileira s universidades e ao mercado mais amplo de consumo o que parece ter acentuado a intolerncia em relao s diferenas tnicas e sociais, especialmente detectada nas redes sociais. Freud abordou os mecanismos de segregao existentes na cultura para explicar como humanos vivendo em sociedades teriam propenso agresso uns contra os outros. Para isso, diz 60 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. ele, haveria um processo no sentido de estigmatizar o outro com pequenas diferenas que construiriam o estranhamento deste outro e a segregao nos grupos. Palavras-chave: intolerncia, aoes afrmativas, polticas de igualdade; racismo; psicanlise. Defnir fronteiras raciais no Brasil parece ser um problema mais profundo do que em qualquer outro pas, porque uma marca identifcatria brasileira - precisamen- te - a forte miscigenao, que pelo tamanho e diversidade da populao s pode ser comparado aos Estados Unidos da Amrica, dois casos com poucos precedentes na histria. No entanto, ao contrrio dos Estados Unidos, raa no Bra- sil refere-se principalmente cor da pele ou a aparncia fsica ao invs de ancestralidade. Por exemplo, no Brasil as pessoas que se declaram pardos so 43,1% da populao, contra 47,7% brancos e 7,6% de negros (Censo 2010), isto , se juntarmos pardos e negros na populao brasileira predominante no-branca: para as aes afrmativas gover- namentais, essa a populao alvo para este aes 2 . Segundo Telles (2004) e outros pesquisadores 3 , um brasileiro branco uma pessoa que parece branco e socialmente aceito como branco, especialmente em razo da sua situao econmica e independentemente da 61 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. ascendncia. Estudos comprovaram o que percebido pelo senso comum no Brasil, que quando mestios (pardos) se tornam mais ricos eles comeam a ser percebidos como brancos por outros, que normalmente no associam uma pessoa rica com no-brancos, mas apenas pardos quando fcam mais ricos podem tornar-se brancos, enquanto aqueles com fentipo de pele escura em relao a outros grupos raciais, segundo o estudo, sempre sero percebidas como negros, no importa o quo rico eles fcam 4 . Ideias e conceitos como cordialidade brasileira e democracia racial esto sendo postos prova no momen- to em que as pessoas esto tendo que decidir posies de uma forma incomum no Brasil. Christian Dunker, retomando as ideias do clssico Razes do Brasil de Srgio Buarque de Holanda, relembra que: Nossa sociabilidade est condensada na fgura do homem cordial (a personalidade que, instintivamente, opera atravs de laos afetivos e do tipo de irrestrita emotividade ligada masculinidade no contexto agrrio e patriarcal a partir do qual o Brasil moderno cresceu), em outras palavras, polidez sem ritual , reverncia sem estranhamento, fraternidade sem compromisso. (Dunker, 2008:4) Em outras palavras, o enfrentamento de uma diviso racial interna explicitou uma das facetas atribudas identida- de brasileira, qual seja, a manuteno de uma ambiguidade e cinismo em relao a lei, que se estende s relaes raciais em 62 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. sociedade, onde a uma empregada domstica, por exemplo, retratada como parte da famlia, mas no senta com essa famlia mesa para jantar 5 . O caso brasileiro se torna mais relevante com a recen- te chegada de consumidores das camadas economicamente excludas da populao brasileira s universidades e ao mer- cado mais amplo de consumo o que parece ter acentuado a intolerncia em relao s diferenas tnicas e sociais. Neste sentido, conhecer e avaliar a experincia de outros pases poderia seu uma forma de interlocuo experincia brasileira, permitindo avaliar nossa historia recente sobre a questo, assim como utilizar essas experincias para pensar novas possibilidades de efetivao destas polticas a partir de uma espectro maior de interesses. O caso brasileiro se torna mais relevante com a recen- te chegada de consumidores das camadas economicamente excludas da populao brasileira s universidades e ao mer- cado mais amplo de consumo o que parece ter acentuado a intolerncia em relao s diferenas tnicas e sociais. Neste sentido, conhecer e avaliar a experincia de outros pases poderia seu uma forma de interlocuo experincia brasileira, permitindo avaliar nossa historia recente sobre a 63 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. questo, assim como utilizar essas experincias para pensar novas possibilidades de efetivao destas polticas a partir de uma espectro maior de interesses. Para tentar entender a complexidade envolvida quando se trata de questes relativas intolerncia, muitos pesqui- sadores tem defendido que deveramos pensar para alm das circunstncias econmicas, polticas e sociais que justifcam as paixes das naes, grupos tnicos e religiosos, classes so- ciais e indivduos e abarcar a especifcidade de cada confito, inclusive as fantasias que cada grupo provoca no outro com os quais tem contato e disputa espaos polticos, ampliando o debate acerca do tema para um patamar que ultrapasse os posicionamentos dualistas de avaliao das prticas em an- damento e outras aes possveis na reduo dos problemas. Polticas brasileiras de Igualdade A existncia ou no de intolerncias veladas nas relaes sociais no Brasil um dos objetos abordados em nossa linha de pesquisa denominada: Estudos sobre a intolerncia - etnocen- trismo, racismo, xenofobia, homofobia, preconceito religioso e social, que tem produzido trabalhos acerca das crescentes ondas de intolerncia em relao a raa, origem, sexualidades e outros preconceitos, abordando inclusive os refexos destes problemas nas mdias tradicionais e nas novas mdias. Nestas 64 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. pesquisas, o foco tem sido em grande parte a anlise do processo de agenciamento a que so submetidos os sujeitos nas relaes de poder e as possibilidades de se pensar esse poder em diferentes sentidos, como se pode observar no trabalho com grupos marginalizados onde se, de um lado, temos a reprodu- o das posies identifcatrias dos opressores, de outro h a produo incessante de discursos contra hegemnicos. (Frosh, 2003). Os movimentos de defesa e contestao das aes afrmativas em grande parte do mundo, prosseguiu quase sempre ao longo de dois caminhos. Um deles foi o meio jur- dico e administrativo, como os tribunais, legislaturas e rgos executivos governamentais que fzeram ser aplicadas regras. como exigem as chamadas Aes Afrmativas. O outro meio tem sido o caminho do debate pblico, onde a prtica do tratamento preferencial gerou uma vasta literatura de prs e contras. Muitas vezes, os dois caminhos no conseguiram fazer uma interlocuo adequada, com as discusses pbli- cas nem sempre bem ancoradas nas bases jurdicas ou nas prticas sociais. Uma das formas de implementao das denominadas Polticas de igualdade no Brasil nos ltimos anos tem sido por meio de aes polticas denominadas Aes afrmativas, medidas positivas tomadas para aumentar a representao 65 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. das minorias nas reas do emprego e da educao. Como essas aes envolvem seleo preferencial com base em raa, gnero ou etnia, a ao afrmativa pode, no entanto, gerar intensa polmica. Isto deveria implicar, nos parece, que se ampliasse o conhecimento das populaes envolvidas para alm das pesquisas que se assemelham a levantamentos de opinio, favorveis ou no a estas aes. Para pensadores como Foucault (1979), onde o poder atua, a resistncia no apenas uma forma de resposta habi- tual, mas uma forma de existir, como processo de socializao. Assim, por exemplo, pode ser pensada na perspectiva da psicanlise, a submisso linguagem: sem essa submisso no podemos nos tornar humanos, pois esta submisso propicia a comunicao com o outro e as trocas simblicas que sustentam, mas que tambm modifcam, as relaes de poder: nas formas de falar e entender, lidamos com a linguagem como um produto que restringe o que pode ser dito, mas permite um espao para sujeitos exercerem controle sobre ela (Frosh, 2003:9). Outro aspecto que parece importante na discusso da intolerncia pode ser encontrado nas abordagens de al- gumas psicologias que pensam a questo partir de uma oposio entre dentro/fora. Neste sentido, a psicanlise em Freud e Lacan oferece uma sada ao deter seu inte- 66 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. resse nas dualidades (dentro/fora, individuo, sociedade, sujeito/objeto etc) especifcamente nos momentos em que a subjetividade eclode dentro das condies objetivas da ordem social (Frosh&Baraitser, 2008: 347). A concepo lacaniana de Fantasia nos oferece a possibilidade de pensar como poderamos apreender o sub- jetivo e o social como algo que funciona como um sistema de interfaces que realiza no apenas a mediao entre o sujeito e a realidade, mas que implica diretamente sobre as condies objetivas, direcionando atividades, defnindo signifcados, agendando aes polticas (Frosh, 2003; Zizek, 1994). Um efcaz estudo das questes ligadas a intolerncia, parece, no poderia hoje negligenciar a colaborao oferecida pelos estudos culturais, a crtica ps-colonial e a teoria social contempornea, como por exemplo, as noes de performati- vidade, mimetismo, hibridismo e habitus, assim como a srie de discusses recentes sobre multiculturalismo ps-imperial e do humanismo cosmopolita (Hook, Howarth, 2011). Derek Hook, por exemplo, confronta os discursos existentes na psicologia social sobre o racismo com a possibilidade de que a psicanlise poderia nos ajudar a pensar questes relati- vas a uma espcie de racismo pr-discursivo, de forma a entender estas questes ligadas a intolerncia em uma 67 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. dimenso corporal, afetiva e pr-simblica 6 . (Hook,2006). No entanto para Zizek (2002), na discusso acerca das questes ligadas a intolerncia, preciso evitar o que algumas vezes os estudos denominados ps-coloniais fazem, ao reduzir o problema uma narrativa de vitimizao dos colonizados e dos mecanismos de represso do poder. Este modelo pode induzir a uma espcie de pseudo-psicanlise, onde a intolerncia aparece substancializada na forma de um estranho interno, resultante da incapacidade dos sujeitos de lidarem com contedos reprimidos, evitando os aspectos econmicos e polticos que fazem parte destes eventos, como se tudo se reduzisse a um drama subjetivo. A intolerncia ao vizinho Freud elaborou sua teoria do Narcisismo entre outras preocupaes, para entender os mecanismos de segregao existentes na cultura, e tentar explicar como humanos viven- do em sociedades teriam propenso agresso uns contra os outros. Em O tabu da virgindade, publicado em 1917 Freud cunhou a frase narcisismo das pequenas diferenas refe- rindo-se ao trabalho anterior do antroplogo britnico Ernest Crawley, que havia dito que reservamos nossas emoes mais virulentas (agresso, dio, inveja) para aqueles que mais nos lembram e nos ameaam por essa semelhana, muito mais do 68 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. que aqueles com quem temos pouca coisa em comum. Para isso, diz ele, haveria um processo no sentido de estigma- tizar o outro com pequenas diferenas que construiriam o estranhamento deste outro e a segregao nos grupos. Como disciplina, a psicanlise pode nos ajudar a entender como na intolerncia h um alm, um gozo que funciona no cerne deste processo evocando um circuito que ultrapassa os entendimentos racionais sobre o sentido destes comportamentos. Nesta via, este outro racializado (Dyer, 1997; Frosh, 2008; Hook,2008) funciona como uma pon- te que incorpora algo percebido como estranho ao sujeito intolerante, expresso corporifcada de um vazio que implica, ao fnal, uma posio tica onde o outro diferente - esse no eu- mais do que provocar distrbios na iluso de autonomia, condio estruturante do que chamamos nosso eu. Para Frosh (2002, 2008), escrever sobre intolerncia deveria levar a algo verdadeiramente multidimensional, mais do que simplesmente multidisciplinar da perspectiva aca- dmica. Desta perspectiva, a psicanlise lembra que as mais estranhas manifestaes de intolerncia so reservadas, por exemplo, s pessoas estranhas que tentar agir e falar como aqueles que se julgam cidados natos. Quanto mais estes estranhos tentam emular e imitar, isto , quanto mais eles tentam pertencer, mais feroz aparece a rejeio. 69 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. O uso da psicanalise poderia ainda ser defendido como uma espcie de contraponto a tradio emprica que vem dominando a psicologia e que parece oriunda de pro- cessos semelhantes que vem acontecendo em vrios pases. Resultado de uma defesa poltica da tentativa de inserir a disciplina no domnio da cincia, encontramos com frequn- cia em muitas psicologias uma viso de progresso atravs da modernizao tecnolgica (Frosh, 2003) onde um modelo de cincia neutra se encontra com um discurso despolitizado sobre as consequncias e alcances desta cincia. Neutralidade cientifca e despolitizao parecem oferecer, por assim dizer, uma sedutora possibilidade de controle e poder de interven- o, semelhante ao discurso da indstria farmacutica que, de diversos modos, tem dirigido o discurso de grande parte da psicologia e de quase toda a psiquiatria. A tentativa de se utilizar dos mtodos das chamadas cincias naturais no tratamento das questes humanas tem produzido, alm da popularizao superfcial do conceito de neutralidade cientifca, uma diviso acentuada nos estudos sobre o indivduo e social, produzindo discursos que simplifcam ao grande pblico questes complexas, mas oferecem explicaes que reduzem um ao outro e vi- ce-versa, onde por exemplo o social pode ser visto apenas como uma forma de interao livre entre indivduos, ou o 70 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. indivduo visto como constitudo unicamente em razo de sua classe social, gnero ou raa (Frosh, 2003). Os estudos psicossociais tem sofrido com estes modelos, o que tem levado ao paradoxo de que estes estudos, por exemplo, tem progressivamente sido realizados em outros espaos acadmicos como os estudos culturais, que se oferecem para o exerccio de uma psicologia crtica, funcionado por vezes como uma espcie de oposio ao discurso dominan- te na psicologia. Em minha pesquisa utilizo a palavra Intolerncia em vez de tolerncia por uma razo terica e tica: tolerncia impli- ca algo que as pessoas no aprovam, mas no podem evitar, ou seja, tolerncia implica um tipo de narcisismo inconsciente, centralismo cultural, impotncia benevolente. Intolerncia, em contrapartida, aponta que o ponto de partida para reconhecer o outro sempre negativo. O negativo central na psicanlise freudiana (a comparao entre a escultura e pintura) e aponta para a alteridade, aquilo que impe ao mesmo tempo, o outro e a falta, outro que, nesse sentido, a incorporao da falta / negativo / castrao. As palavras so importantes aqui porque, no limite, palavras carregam crenas, ideologias, etc como a prtica clnica em psicanlise mostra. Intolerncia, talvez possa ser pensada como algo que aponta para a impossibilidade 71 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. no mesmo nvel que Freud colocou a educao, poltica e psicanlise: impossibilidade, mas no imobilidade. Impossi- bilidade signifca uma situao em que devemos esquecer as metas de obter sucesso. O sucesso, neste caso, signifcar a aniquilao do outro, ou seja, a possibilidade de que o outro tornou-se totalmente como eu, como na distopia descrita nos flmes de fco cientfca catastrfcos 8 . Multiculturalismo & Liberalismo Uma das caractersticas que defnem as aes polticas, aps o colapso das grandes narrativas de progresso, que mui- tos autores parecem transformar a poltica em uma variedade de questes de identidade (Zizek, 2011), resultando em lutas especfcas, ao invs de um projeto global. Neste sentido, o multiculturalismo funciona como uma forma de antirracismo, que ao mesmo tempo promove a mudana da diferena tnica para uma etnicizao estreita da sociedade, evitando as dife- renas historicamente construdas. Ao proporcionar a criao de um outro no-nacional (um a-histrico modelo liberal / multiculturalista) este modelo favorece tanto a diferena (com a fantasia nacionalista), como o patolgico. Em ter- mos polticos, os resultados podem ser vistos na tendncia crescente na poltica de identidade dos grupos separatistas. Em termos psicanalticos, esta etnicizao ou racializao, 72 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. funciona como demanda universal que provoca a patologia da angstia por inadequao. Em outros termos, essa forma de universalidade funciona hoje, de acordo com Zizek (2007), no como um conjunto de valores bsicos, mas como experincia de negatividade e inadequao de cada um, isto , o sujeito se torna consciente de que ele no coincide com a sua forma particular de existncia. Olhando o passado, possvel confgurar uma linha do tempo entre o politicamente correto como parte do multiculturalismo, que por sua vez parte do projeto do liberalismo, multiculturalismo criado, entre outras razes, para fugir do impasse das lutas entre catlicos e protestan- tes (Guerra dos Trinta Anos :1618-1648) e que se espalhou por todo o mundo, especialmente ps-Berlim 89. O politi- camente correto exatamente a fase em que o Brasil tem atravessado nos ltimos anos, onde a justia ameaa fcar saturada de processos e onde as empresas criam regras e ma- nuais sobre comportamentos no trabalho. Quando os crticos dizem ironicamente que o Brasil fez a escolha americana no modelo de ao afrmativa implementada, devemos nos perguntar: o Brasil realmente tinha escolha? Poder o Brasil incorporar o projeto liberal-multiculturalista-ocidental, que troca a melhora das condies econmicas pela igualdade de direitos? 73 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. Multiculturalismo como prtica ideolgica trabalha, neste sentido, como uma forma de injuno superegica, como por exemplo na demanda britnica: seja como ns, torne-se britnico, tornada pblica por chefes de estado e polticos em geral. Poderamos pensar que esta racializao do outro serve principalmente para uma necessidade poltica. No caso britnico parece evidente que poderamos dizer que o projeto multiculturalista est em pleno vigor, como uma forma de transformao da cultura em poltica e vice-versa, resultado para Zizek, do recuo e fracasso das solues polticas diretas, do estado de bem-estar, dos projetos socialistas, etc (Zizek, 2007:1). Estas questes levam a pensar por que o Brasil deveria perder a chance de (tentar) ser original, no sentido de suas particularidades histricas, como por exemplo, nosso pro- cesso de sincretismo cultural. Claro, no se trata de insistir na folclorizao do brasileiro ou na defesa da democracia racial como o vu para esconder a desigualdade social ou negar a associao injusta entre pobres e a cor da pele, mas lembrar que a questo poltica e econmica tambm: isto , o que nos faz negros passa necessariamente pela explorao econmica, defnida na abjeta expresso ser tratado como negro, o que infelizmente observado no processo de branqueamento dos pardos no Brasil. 74 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. Racializando o outro Lacan, no fnal dos 60 , falando sobre campos de concentrao fez um alerta de que a reorganizao dos agrupamentos sociais pela cincia e o constituio dos mercados comuns (agora chamado globalizao), seriam compensados por um progressivo endurecimento do processo de segregao 9 . Algum tempo depois, ele se posicionou con- tra o universalismo como esperana para a homogeneizao das diferenas: Eu acho que, em nossa poca, o trao, a cicatriz deixada pela evaporao do pai 10 o que podemos colo- car sob o rtulo geral de segregao. Ns pensamos que o universalismo, que a comunicao das nossas civilizaes, homogeneza a conexo entre os homens. Pelo contrrio, acredito que o que caracteriza o nosso tempo - e isso no pode nos escapar - uma segregao ramifcada e reforada que produz intersees em todos os nveis e que apenas multiplica os obstculos 11 . Por sua vez, a descoberta freudiana foi exatamente que o ser humano compelido por algo que estranho para ele, que quase sempre negativamente associado com algo assustador, coisa que tenta ser assimilada, porque no pode ser removida. Aqui, o conceito de narcisismo oferece uma 75 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. chave para a compreenso, para que possamos entender como esse mal do mundo que resulta em intolerncia pode ser pensado na dimenso do sujeito: Nos modos complexos de identifcao o outro pode ser presente e estrangeiro, e em reconhecimento desta pos- sibilidade que ns aprendemos a olhar a Coisa de frente, en- to podemos comear a ver o que est l (Frosh, 2008.: 13) Ao dizer que o ser humano mantm uma relao com seu vizinho numa lgica que envolve dio, Lacan retomou a lio freudiana de que a humanidade comea com um trao inicial de excluso. Neste sentido, a humanidade no def- nida por seus atributos, mas por uma rejeio inicial - cujo nome a segregao, que a prpria lgica do racismo. A globalizao e o crescente movimento dos trabalha- dores provenientes dos vrios pases modifcam o estatuto do vizinho que vive em outro lugar geogrfco para o que Lacan chamou extim , a exterioridade ntima. Se o sintoma a res- posta de cada sujeito exigncia de seu tempo, quanto mais o discurso cientfco promove a uniformidade (especialmente pela reduo biologia), provavelmente mais o disforme tende a se manifestar. Se aceitarmos essa ideia, pode-nos dizer que o processo de intolerncia conduzida hoje no mais por termos morais, mas pelo discurso cientfco? 76 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. Slavoj Zizek (2006) no concorda com as tentativas atuais de aproximar-se do outro para melhor compreend-lo e assim reduzir a intolerncia. Para ele, a questo fundamental e tica abandonar a auto-posio de subjetividade absoluta e reco- nhecer a prpria exposio de sermos o tempo todo lanados na alteridade. Esta limitao, ele diz, que funda a tolerncia, isto , a minha prpria no transparncia em frente ao outro e a conscientizao sobre a impossibilidade de defnir o outro (e eu mesmo), o que deveria ser nosso lugar tico. Concluso O estudo das aes afrmativas no Brasil a partir de outras metodologias de pesquisa visando estudar formas de intolerncia, pode propiciar, alm de novas formas de in- vestigao, subsdios para novas aes, algumas delas j em curso neste momento no pas. O desenvolvimento de novas metodologias de avaliao do impacto destas aes pode ser aprimorado a partir das experincias de outros pases, como, por exemplo, os estudos realizados sobre o desenvol- vimento e integrao de populaes que viveram como col- nias de pases centrais (Hook, 2011). Parece vital que estas aes sejam pensadas no escopo de estudos qualitativos que orientem de forma mais abrangente, incluindo a experincia 77 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. de outros pases, com as possveis medidas educacionais ou preventivas que transformem estas aes em uma poltica efetiva de oportunidades. A maior difculdade no entanto vai alm das difculdades tericas ou prticas para empreender estes estudos. Trata-se, de um lado, de avanar para alm de um imobilismo subsidiado por um modelo liberal que prega o universalismo e igualdade de oportunidades para todos cidados, mas que muitas vezes nega as evidncias estatsticas sobre os as diferenas raciais em questes como ensino ou trabalho, e que, nos casos mais extremos, se escora no discurso do medo da propagao de confitos sociais. De outro lado, as evidncias crescentes de que este modelo de poltica pblica obtm resultados positi- vos na diminuio da desigualdade entre grupos racializados, aponta para um modelo de diferenciao patrocinado pelo estado que, para muitos, poderia sugerir a dissoluo do lao social em torno de ideias como nao, identidade nacional ou repblica, por exemplo, ou mesmo postergar indefnidamente a necessidade de que nossos governos ofeream qualidade de ensino indistintamente. Mais que isso, parece crescente a difculdade de debater o tema sem que sejamos j no pri- meiro momento limitados pelos interesses que se traduzem no posicionamento rasteiro do contra ou a favor e que 78 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. impedem que se avance a discusso no sentido de entender os compromissos sociais e individuais que implicam uma efetiva mudana. Neste sentido, poderamos pensar que o refexo destes estudos tendem a ser expandidos pelas mdias tradicionais e tambm pelas novas mdias, produzindo uma reverberao destas ideias que, com o tempo, tendem a promover a circu- lao dos discursos sobre o tema e oferecer alternativas ao dualismo que tem agendado as discusses. Isto no signifca que devemos enquanto isso nos imobilizar ou descrer das aes que promovam maior igualdade de condio s pessoas e grupos que historicamente tem sido prejudicadas em razo da sua cor de pele ou condio social. A inteno de desenvolver uma topologia adequada, que possa trazer maior interlocuo com outros campos do saber, deveria ao que parece, ser uma das metas da pesquisa em psicologia e talvez tambm da psicanlise. Abordar a questo a partir de uma perspectiva crtica, capaz de descrever a complexidade de determinados problemas, deve nos servir no futuro para analisar, compreen- der e classifcar a interao de certas variveis nos processos dinmicos vividos por grupos sociais em relao a aspectos re- primidos que retornam sintomaticamente nas relaes sociais, no caso, na forma de intolerncias. 79 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. Notas * Joo Angelo Fantini professor do curso de Psicologia da Universidade Federal de So Carlos com Ps-doutorado pela University of London (Birkbeck College) e orientador no curso de Semitica Psicanaltica da Pontifcia Universidade de So Paulo. Psiclogo e Psicanalista, pesquisa sobre a produo de subjetividade e os sintomas na clnica psicanaltica hoje. Publicaes relacionadas aos estudos audivisuais, como au- tor e coautor: Imagens do Pai no Cinema: Clnica da Cultura Contempornea (Edufscar, 2009), O Feitio do Cinema. So Paulo. Ed. Arx/Saraiva. 2009; Estudos de Comunicao (Sulina, 2003); Interao e Sentidos no Ciberespao e na Sociedade (EDI- PUCRS, 2001); alm de artigos em jornais e revistas acadmicas. 1 Trabalho apresentado sobre pesquisa ps-doutoral em anda- mento no Congresso: Psychoanalysis,Culture and Society na Middlesex University, London, Reino Unido em Julho/2012. 2 Em termos estatsticos, o Brasil tem a maior populao no mundo, depois da Nigria, de indivduos de ascendncia pelo menos parcialmente Africana, mas o Brasil tem tambm a ter- ceira maior populao branca do mundo, depois dos Estados Unidos e Rssia. 80 Joo Angelo Fantini Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. 3 TELLES, E. E. (2004), Racial Classifcation, Race in Ano- ther America: the signifcance of skin colour in Brazil, Prin- ceton University Press. 4 A celebrao da morenidade no Brasil mostra que alguns tipos de mistura so preferidos, criando graus de brancura: a medida de brancura no entanto no defnido pela cor da pele, mas exige uma maior economia de signos. Pinho, P. S.White but Not Quite: Tones and Overtones of Whiteness in Brazil. Small Axe July 2009 13(2):39-56. 5 A etmologia da palavra aponta para a raiz cor, cordis, que signifca corao, o que supe o homem cordial no uma pessoa gentil, mas aquele que age movido pela emoo, para o bem ou para o mal. 6 Derek Hook (2006) utiliza o conceito de Abjeo (Kristeva, 1982) como uma forma de fronteira da angstia, uma resposta que surge para separar o eu daquilo que percebido como algo que ameaa o prprio processo diferencial que suporta este Eu: abjeo funciona assim como uma tentativa de reafrmar um ego-coerente, resultado de um afeto que refete a uregencia de separao eu-outro. 7 On Psychotherapy. Freud, S. 1905a, Standard Ed. 7, p. 260 8 THX 1138 (1971, Dir.George Lucas) por exemplo. 81 Aquarela da Intolerncia Leitura Flutuante, n. 4, pp. 59-84, 2012. 9 Lacan, J. Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de lEcole, Autres Ecrits, Paris, Le Seuil, 2001. 10 Minhas consideraes sobre o declnio da imago paterna e sua relao com os sintomas sociais atuais (especialmente a violncia) esto em Imagens do Pai no Cinema: Clnica da Cultura Contempornea (cf. biblio) 11 Nota sul padre e luniversalismo, La Psicoanalisi 33, Studi internazionali del campo freudiano, Astrolabio, 2003. Referncias DUNKER, C. I. L. Psychology and Psychoanalysis in Brazil: From Cultural Syncretism to the Collapse of Liberal Individualism. Theory & Psychology. , v.18, p.223 - 236, 2008. DYER, R., (1997). White. New York : Routledge. FANTINI, J. A. The racialized other: Intolerance and Political Equality in Brazil and theUnited Kingdom. Anais do Congresso: Psychoanalysis,Culture and Society na Middlesex University, London, Reino Unido. (no prelo) FANTINI, J. A. (2009) Imagens do Pai no Cinema: Clnica da Cultura Contempornea. 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