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PRÓLOGO

TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

1
USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FFLCH

FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,


LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
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CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS


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DISCURSO EDITORIAL
Direção Editorial: Prof. Dr. Caetano Ernesto Plastino
Coordenação: Floriano Jonas César

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http://www.discurso.com.br
Jacques Fontanille
&
Claude Zilberberg

TENSÃO E SIGNIFICAÇÃO

Tradução

Ivã Carlos Lopes


Luiz Tatit
Waldir Beividas
Copyright  by Pierre Mardaga, Éditeur, 1998
Título original em francês: Tension et signification
Copyright  da tradução brasileira: Discurso Editorial, 2001

TÍTULO:Nenhuma
ESPAÇOS DA LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO
parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem a autorização prévia da editora.

Direção editorial: Milton Meira do Nascimento


Coordenação editorial: Floriano Jonas Cesar e
Maria Helena G. Rodrigues
Projeto gráfico e editoração: Walquir da silva
Capa: Camila Mesquita
Revisão: Ivã Carlos Lopes, Kátia Rocini, Luiz Tatit
e Waldir Beividas
Tiragem: 1.000 exemplares

Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi – CRB 3608

F76 Fontanille, Jacques


Tensão e significação/Jacques Fontanille, Claude Zilber-
berg; tradução de Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir
Beividas. – São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/
FFLCH/USP,2001.
331 p.

Tradução de: Tension et signification.

ISBN 85-86590-21-5

1. Semiótica 2. Lingüística I. Zilberberg, Claude II.


Lopes, Ivã Carlos III. Tatit, Luiz IV. Beividas, Waldir
V. Título
CDD 401.41

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SUMÁRIO
Prólogo ........................................................................................................... 09
1 Recensão ............................................................................................... 10
2 Definições ........................................................................................... 11
3 Confrontações ................................................................................... 12
4 Notas e referências bibliográficas ................................................... 14

Capítulo 1 – Valência .................................................................................... 15


1 Recensão ............................................................................................. 15
2 Definições ........................................................................................... 16
2.1 Definições paradigmáticas ............................................................... 17
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................. 26
2.2.1 Definições sintagmáticas amplas ...................................................... 26
2.2.2 Definições sintagmáticas restritas ................................................... 28
3 Confrontações ................................................................................... 30

Capítulo 2 – Valor .......................................................................................... 39


1 Recensão ............................................................................................. 39
2 Definições ........................................................................................... 40
2.1 Definições paradigmáticas ............................................................... 40
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................. 47
3 Confrontações .................................................................................... 52

Capítulo 3 – Categoria – Quadrado semiótico .......................................... 61


Preliminar ........................................................................................... 61
1 Recensão ............................................................................................. 63
2 Definições ........................................................................................... 65
2.1 Definições paradigmáticas ................................................................ 65
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................. 71
3 Confrontações .................................................................................... 81
PRÓLOGO

Capítulo 4 – Esquema .................................................................................... 97


1 Recensão ............................................................................................. 97
2 Definições ............................................................................................ 100
2.1 Definições paradigmáticas ............................................................... 100
2.1.1 Definições paradigmáticas amplas .................................................. 101
2.1.2 Definições paradigmáticas restritas ................................................ 109
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................. 112
3 Confrontações .................................................................................... 117

Capítulo 5 – Presença .................................................................................... 123


1 Recensão ............................................................................................ 123
2 Definições ........................................................................................... 123
2.1 Definições paradigmáticas ............................................................... 124
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................. 134
2.2.1 Definições sintagmáticas amplas ...................................................... 135
2.2.2 Definições sintagmáticas restritas ................................................... 141
3 Confrontações ................................................................................... 147

Capítulo 6 – Devir .......................................................................................... 153


1 Recensão .............................................................................................. 153
2 Definições ........................................................................................... 154
2.1 Definições paradigmáticas ................................................................ 154
2.2 Definições sintagmáticas ................................................................... 159
2.2.1 Definições sintagmáticas amplas ...................................................... 159
2.2.2 Definições sintagmáticas restritas .................................................... 162
3 Confrontações .................................................................................... 163

Capítulo 7 – Práxis enunciativa ................................................................... 171


1 Recensão ............................................................................................. 171
2 Definições ........................................................................................... 173
2.1 Definições paradigmáticas ............................................................... 173

6
PRÓLOGO

2.1.1 Definições paradigmáticas amplas ................................................... 173


2.1.2 Definições paradigmáticas restritas ................................................. 177
2.2 Definições sintagmáticas ................................................................... 180
2.2.1 Definições sintagmáticas amplas ...................................................... 180
2.2.2 Definições sintagmáticas restritas .................................................... 185
3 Confrontações ..................................................................................... 188

Capítulo 8 – Forma de vida .......................................................................... 203


1 Recensão .............................................................................................. 203
2 Definições ............................................................................................. 205
2.1 Definições paradigmáticas ................................................................. 205
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................... 210
3 Confrontações ...................................................................................... 214

Capítulo 9 – Modalidade ................................................................................ 227


1 Recensão .............................................................................................. 227
2 Definições ............................................................................................ 230
2.1 Definições paradigmáticas ................................................................. 230
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................... 235
2.2.1 Definições sintagmáticas restritas .................................................... 235
2.2.2 Definições sintagmáticas amplas ....................................................... 240
3 Confrontações ..................................................................................... 246

Capítulo 10 – Fidúcia ...................................................................................... 263


1 Recensão .............................................................................................. 263
2 Definições ............................................................................................ 264
2.1 Definições paradigmáticas ................................................................ 264
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................... 268
2.2.1 Definições sintagmáticas da confiança ............................................. 268
2.2.2 Definições sintagmáticas da crença .................................................. 269

7
PRÓLOGO

2.2.3 Definições sintagmáticas da crença e da confiança ...................... 270


3 Confrontações .................................................................................... 273

Capítulo 11 – Emoção ................................................................................... 279


1 Recensão .............................................................................................. 279
2 Definições ............................................................................................ 281
2.1 Definições paradigmáticas ................................................................ 282
2.2 Definições sintagmáticas ................................................................... 285
2.2.1 Definições sintagmáticas amplas ...................................................... 286
2.2.2 Definições sintagmáticas restritas .................................................... 289
3 Confrontações ..................................................................................... 292

Capítulo 12 – Paixão ....................................................................................... 293


1 Recensão .............................................................................................. 293
2 Definições ............................................................................................. 297
2.1 Definições paradigmáticas ................................................................. 297
2.1.1 Definições paradigmáticas amplas .................................................... 297
2.1.2 Definições paradigmáticas restritas ................................................. 300
2.2 Definições sintagmáticas .................................................................... 303
2.2.1 Definições sintagmáticas amplas ...................................................... 303
2.2.2 Definições sintagmáticas restritas .................................................... 308
3 Confrontações ..................................................................................... 313

Bibliografia ..................................................................................................... 321

Índice remissivo ............................................................................................ 329

8
PRÓLOGO

PRÓLOGO

E STE LIVRO tenta comparar certas propostas teóricas e me-


todológicas ligadas de perto ou de longe à semiótica
tensiva, à semiótica das paixões e à semiótica do contínuo. Por
conseguinte, compreende algumas escolhas iniciais que definem
um ponto de vista: ponto de vista da complexidade, da tensivida-
de, da afetividade, da percepção. Nesse particular, não pretende
substituir a semiótica “clássica”, de onde provém, e cujos “estan-
dartes” são o quadrado semiótico e o esquema narrativo canônico:
debateremos longa e freqüentemente acerca de ambos. Mas este
trabalho procura situá-la, ao mesmo tempo em que se situa a si
próprio: situá-la e situar-se como uma das semióticas possíveis,
no seio de uma semiótica geral ainda por construir.
Revelar uma escolha é preservar-se da ilusão que consiste
em querer escrever a história de uma disciplina quando se está
dentro dela, e em decretar, por exemplo, que este ou aquele
paradigma anterior está ultrapassado, e que o futuro está do lado
daquele que se está propondo. Revelar uma escolha é, em suma,
reivindicar a pertinência validável e falsificável do ponto de vista
defendido, e a coerência do método decorrente. E quando esse
ponto de vista e essa coerência compreendem a possibilidade de
se pôr em perspectiva entre os outros pontos de vista e as outras
coerências possíveis, então é uma outra maneira de fazer semiótica
que se desenha, mais do que um outro “paradigma”.
A pertinência de um ponto de vista teórico mede-se, entre
outras coisas, por sua capacidade de isolar categorias simples e
generalizáveis, e procedimentos reproduzíveis e operatórios. No
que respeita às categorias, notaremos particularmente o papel
atribuído à intensidade e à extensão (ou “extensidade”), por um
lado, e aos modos de existência (ou modalidades existenciais),
por outro. Quanto aos procedimentos, ressaltaremos, entre ou-
tros, o princípio das correlações conversas1 ou inversas entre gra-
dientes, a distinção entre a predicação implicativa e a predicação
concessiva, ou ainda a sintaxe existencial. 9
PRÓLOGO

Se o valor heurístico de um ponto de vista teórico é função


da variedade dos discursos que ele é capaz de explicar, e dos
campos de investigação que ele abre, então defenderemos aqui a
diversidade dos domínios abordados; do discurso poético ao dis-
curso científico, do mítico ao político, da lingüística francesa à
lingüística comparada, da antropologia à retórica: abrindo-se
amplamente, a reflexão semiótica recompõe de fato o seu elo
com as origens transdisciplinares.
Concebido inicialmente como um dicionário, este livro foi
se transformando pouco a pouco numa espécie de tratado a ex-
por sistematicamente uma posição teórica: o número de verbetes
reduziu-se consideravelmente, seu volume respectivo ampliou-
se, os verbetes converteram-se em capítulos; passamos, então, a
ver a ordem alfabética como uma simplificação demasiadamente
cômoda e uma progressão temática impôs-se. Mas o produto fi-
nal conserva um traço do projeto original. Todos os capítulos,
construídos sob o mesmo modelo, moldam-se como os
verbetes de dicionário: definições, correlatos, sinônimos e antô-
nimos; enfim, exemplos. Gostaríamos de comentar rapidamente
essa arquitetura, concebida como um “manual de uso” dos con-
ceitos examinados.

1 RECENSÃO

Nessa seção, evocaremos, sem mais, aqueles autores que


trataram de um ou outro conceito. Essa menção é necessaria-
mente superficial, dado que o tratamento diacrônico de uma con-
figuração significante supõe uma semiótica geral que já estivesse
de posse da tipologia dos possíveis. Vamos nos contentar em
“acolher” discursos anteriores que examinaram, com suas preo-
cupações específicas, as noções que ora abordamos.

1
[N. dos T.]: Termo da oposição inverso/converso, a ser definido posteriormente.

10
PRÓLOGO

De resto, sabemos muito bem que as potencialidades dos dis-


cursos anteriores são filtradas pela teoria receptora, no estado em
que esta se encontra no momento em que as explora: esta é uma das
leis da intertextualidade. Por pouco que se admita que a teoria
receptora tenha evoluído, já é prudente reexaminar as “fontes”, para
dar livre curso a suas potencialidades adormecidas.

2 DEFINIÇÕES

A definição é um enunciado problemático, e essa incerteza


tem tudo para durar. De fato, a definição é um gênero que subsume
várias espécies: definição distintiva de Aristóteles a Littré; defini-
ção construtiva dos matemáticos; definição analítica de Hjelmslev;
este último acrescenta mais uma distinção, um tanto obscura,
entre definições “formais” e definições “operacionais”, que Greimas
e Courtés (Dicionário de semiótica, p. 102) reproduzem, sem mai-
ores esclarecimentos.
O critério de pertinência não basta para decidir sobre a jus-
teza de uma definição. Uma definição pertence, queira ou não, a
um conjunto de definições controlado por duas exigências muito
fortes: a hierarquia e a homogeneidade. No que toca à homoge-
neidade, a definição supõe a presença de um invariante definicio-
nal, manifesto ou catalisado, na maioria das vezes imanente. Mas,
para a semiótica, essa confiança cega na imanência parece ilusó-
ria: a semiótica dos anos 90 não é nem exatamente a mesma,
nem completamente outra, quando comparada à dos anos 70.
Uma seria mais binarista, logicista, acrônica, mal concedendo um
lugar ao sensível; a outra, mais uma semiótica das paixões, da
intensidade, preferindo a dependência e a complexidade às dife-
renças meramente binárias.
Distinguiremos dois tipos de definições: definições paradig-
máticas e definições sintagmáticas. Ademais, somos levados a dis-
tinguir entre definições que se aplicam ao discurso como um todo

11
PRÓLOGO

(definições sintagmáticas amplas) e definições que se reportam a ape-


nas um ou vários segmentos (definições sintagmáticas restritas).
Teremos de nos defrontar, inevitavelmente, com a comple-
xidade das relações entre o eixo paradigmático e o eixo sintag-
mático. A tradição lingüística, principalmente com Jakobson, quis
ver aí relações puras e exclusivas: disjuntivas e distintivas para o
paradigma, conjuntivas e associativas para o sintagma. Mas, para
além do fato de essa distribuição exclusiva ter ratificado um incô-
modo hiato entre morfologia, semântica e sintaxe, a opção pela
“complexidade” de algum modo volta a questioná-la: a depen-
dência está no princípio mesmo da diferença paradigmática, e a
diferença dos modos de existência continua a operar na profundi-
dade da sintaxe do discurso. Assim, as tensões sintáxicas, cujos
efeitos sensíveis são inegavelmente de ordem sintagmática, ori-
ginam-se na concorrência entre as figuras de um mesmo paradig-
ma. Essa “complexidade” é, efetivamente, uma manifestação da
tensividade.

3 CONFRONTAÇÕES

Cada conceito mantém relações – mais ou menos conflituais


– de vizinhança, de proximidade, até mesmo de analogia à dis-
tância, com outros, o que acarreta confrontações, quando não
desemboca numa problematização.
Uma grandeza semiótica só estará corretamente definida
se levarmos em conta toda a rede dessas associações e oposi-
ções. A grandeza examinada é coextensiva ao discurso ou ape-
nas imanente a uma parte desse discurso? Em que outras gran-
dezas ela se prolonga? Com que outras grandezas ela pode as-
sociar-se ou opor-se estruturalmente?
A confrontação abre de certo modo o campo dos possíveis
discursivos e preserva o futuro: com efeito, o discurso não se con-
tenta em acolher os “produtos acabados” do percurso gerativo;

12
PRÓLOGO

sabemos que, paralelamente ao princípio da conversão, a tradição


semiótica admitia, desde os anos 70, que as grandezas mais abs-
tratas podiam ser manifestadas diretamente em discurso, como se
a enunciação do discurso fosse em grande parte independente de
sua geração! Além disso, outros modos de associação e de
rearticulação das grandezas semióticas estão entrando em cena, e
serão examinados no presente estudo: as “formas de vida”, por
exemplo, ou, mais surpreendente talvez, as “paixões” e as “emo-
ções”. A semiótica do discurso tem que se haver com “conglome-
rados”, dispositivos que associam grandezas heterogêneas, cuja
coerência não é fornecida pelo percurso gerativo. A práxis enuncia-
tiva que ela tenta apreender vincula-se mais a uma “bricolagem”
(cf. Jean-Marie Floch, Identités visuelles, que toma a noção de Lévi-
Strauss para aplicar à enunciação) do que a um algoritmo de
engendramento universal.
Por outro lado, será que a semiótica é suficientemente aguer-
rida para fazer frente a outros empreendimentos hermenêuticos?
Só a própria confrontação poderá fornecer a resposta. Em primei-
ro lugar, trata-se de esclarecer, na medida do possível, as relações
entre a semiótica e o campo das ciências humanas e sociais, rela-
ções muito freqüentemente reduzidas a “reformulação” e a “inte-
gração”, quando não a exclusão. Como exemplo, podemos aludir
às relações, constantes mas desiguais, entre a semiótica e a
fenomenologia e, singularmente, à obra de Merleau-Ponty, rela-
ções declaradas no artigo de Greimas intitulado “Le saussurisme
aujourd’hui” (1956).
Como conduzir pacificamente essas confrontações? O mais
simples seria admitir que os conceitos diretores da semiótica
estão longe de apresentar o mesmo grau de elaboração e, a
partir dessa constatação, perguntar se tais conceitos, apenas
esboçados, não poderiam ser fortalecidos, enriquecidos, apro-
fundados por aproximações efetuadas com pleno conhecimen-
to de causa.

13
PRÓLOGO

Por princípio e mesmo de acordo com o seu projeto científi-


co, a semiótica está sujeita a essas confrontações, com as quais só
tem a ganhar, tanto na condição de metalinguagem, como na de
linguagem-objeto. Como metalinguagem, e numa perspectiva oti-
mista, cabe ao percurso gerativo da significação, mas também à
estratificação no plano da expressão e no plano do conteúdo, for-
necer a prova de que constituem realmente lugares de acolhimen-
to e de compreensão e não de exclusão. Com relação a sua própria
linguagem-objeto, a semiótica está convidada a reconhecer a exis-
tência de estilos e regimes, e não somente de categorias e processos
universais, de estilos quando se trata do sistema e de regimes quan-
do se trata do processo.
Assim procedendo, a semiótica reencontraria certas preocupa-
ções que também povoam a lingüística geral. Se o objeto de fato da
lingüística é o conhecimento de uma determinada língua, seu obje-
to de direito é o conhecimento desta língua no seio de um grupo
dado de línguas e, no limite, da faculdade da linguagem.

4 NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Os princípios enunciados acima (a propósito da recensão,


das conexidades, das confrontações, principalmente) não pode-
riam ser aplicados sem um sistema de referências bibliográficas:
não se trata somente de submeter-se a um dos ritos do discurso
universitário, que é um gênero entre outros, mas de manifestar
claramente a imersão de nossas proposições na rede das aquisi-
ções anteriores, próximas ou aparentemente distantes.

Jacques Fontanille & Claude Zilberberg

14
VALÊNCIA

VALÊNCIA

1 RECENSÃO

P ARA o Littré, valência era apenas o nome de uma espé-


cie de laranja originária de Valência. Segundo o Robert,
foi preciso esperar o ano de 1875 para que aparecesse, no voca-
bulário da química, a acepção atual que designa o número de
ligações químicas que um átomo ou um íon entretêm com ou-
tros átomos ou íons. O termo foi retomado em psicologia para
caracterizar a potência de atração de um objeto. O traço cons-
tante “potência de atração” conserva uma parte do sentido
etimológico do baixo-latim valentia (“vigor”, “boa saúde”). L.
Tesnière o introduz enfim em lingüística para designar o núme-
ro de lugares actanciais ligados a cada predicado na estrutura
básica da frase1 .
Num enfoque global, a valência caracterizaria, por conse-
guinte, ao mesmo tempo o liame tensivo e o número de liames que
unem um núcleo e seus periféricos, estes definidos pela atração
que o núcleo exerce sobre eles e pela “potência de atração” do
núcleo, reconhecível pelo número de periféricos que ela é capaz
de manter reunidos sob sua dependência. A quantidade estaria,
nesse caso, sob o controle da intensidade e vice-versa; os dois
juntos caracterizariam as relações de dependência, produzindo
globalmente efeitos de coesão. De um ponto de vista totalmente
diferente, a emergência de um protótipo numa categoria semân-
tica, a partir da rede de dependências que unem as ocorrências
sensíveis que a constituem, adviria também da valência objetal,
na medida em que o protótipo sanciona uma certa forma de coe-
são sensível, a partir da qual vão se desenhar os limites e depois
as oposições constitutivas da categoria.

1
TESNIÈRE, L. Eléments de syntaxe structurale. Paris, Klincksieck, 1959, p. 105.

15
VALÊNCIA

Se a valência não figura no volume Sémiotique, I nem no


Sémiotique, II, ela é consagrada em Sémiotique des passions2 , em
que aparece no decurso de uma reflexão incidindo ao mesmo
tempo sobre o valor do valor e sobre a reorganização das
axiologias que intervêm entre o nível pressuponente e o nível
pressuposto. O termo valência foi adotado em semiótica para
dar consistência a uma constatação muitas vezes verificada na
análise dos discursos concretos: o valor dos objetos depende
tanto da intensidade, da quantidade, do aspecto ou do tempo de
circulação desses objetos como dos conteúdos semânticos e
axiológicos que fazem deles “objetos de valor”. Morfologia dos
objetos, modulações dos processos e da prática de colocá-los
em circulação: trata-se, pois, de atribuir, de fato, um correlato
ao valor propriamente dito e de controlar a distinção entre, de
um lado, os investimentos semânticos dirigidos aos objetos de
valor e, de outro, as condições tensivas e figurais que sobredeter-
minam e governam os primeiros. O que significaria que nem o
conceito de valência, nem o conceito de valor são auto-suficien-
tes: eles só adquirem sentido como partes integrantes de uma
semiose imanente em cujo interior a valência seria a manifestada
e o valor, o manifestante.

2 D EFINIÇÕES

O tratamento desta noção impõe precauções particulares,


na medida em que a introdução do conceito de “valência” deve-
ria conduzir a uma revisão da própria noção de paradigma, dado
que o paradigma é, no sentido saussuriano, uma estrutura de

2
[N. dos T.]: Cf. GREIMAS, A. J. et COURTÉS, J. Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie
du langage, I. Paris, Hachette, 1979 (Dicionário de semiótica. São Paulo, Cultrix, s.d.); id.,
Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, II. Paris, Hachette, 1986; GREIMAS,
A. J. et FONTANILLE, J. Sémiotique des passions. Des états de choses aux états d’âme. Paris,
Seuil, 1991 (Semiótica das paixões. São Paulo, Ática, 1993).

16
VALÊNCIA

acolhimento dos valores; a valência, a nosso ver, contribui, numa


medida ainda por determinar, para a significação do próprio pa-
radigma: de fato, todo paradigma pressupõe valências. Acres-
centemos que o tratamento da valência exige que a versão “dina-
marquesa” do estruturalismo se sobreponha, nas reflexões, à ver-
são “praguense”, na exata medida em que o estruturalismo “di-
namarquês” intervém propositalmente a montante das no-
ções mais consagradas, assumindo o risco de expor seus pressu-
postos constitutivos.

2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Numerosos elementos indicam que a noção de paradigma,


sobre a qual continuam se apoiando a lingüística e a semiótica,
apresenta o vício, que chega a se caracterizar como uma autên-
tica obstrução epistemológica, de propor a relação paradigmáti-
ca como ponto de partida da organização de uma categoria, ao
invés de situá-la como sua simples resultante.
À exceção da obra de V. Brøndal, à qual voltaremos, a maior
parte das teorias se satisfaz com uma solução de continuidade en-
tre paradigma e definição. Isso diz respeito efetivamente a quê?
Uma grandeza semiótica aparece como uma “passarela” entre dois
níveis de articulação: essa grandeza é, de um lado, compreendida
por um paradigma – às vezes mais, às vezes menos numeroso,
mais estabilizado ou menos – e, de outro, ela compreende sua defi-
nição, ou seja, segundo o ensinamento dos Prolegômenos3 , sua di-
visão, suas articulações internas. Portanto, o signo estabelece uma
comunicação necessária entre o paradigma a que pertence e sua
própria definição: como ele efetua esta comunicação?

3
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo, Perspectiva, 1975,
p. 74.

17
VALÊNCIA

A apreensão paradigmática da valência tem por objeto res-


tabelecer ou precisar o liame entre a definição e o paradigma. Em
outros termos, trata-se de tentar compreender como, munida de
sua definição, uma grandeza semiótica intrinsecamente comple-
xa pode inscrever-se num inventário regrado de oposições. Todas
as definições são “verdadeiras”, na medida em que elas repou-
sam sobre uma divisão, e “falsas”, pois que os objetos, mesmo os
mais comuns, estão expostos a surpreendentes flutuações defini-
cionais. Assim, para o Littré, o cão é um “quadrúpede doméstico,
o mais apegado ao homem, pois cuida de sua casa e de seu reba-
nho e ajuda-o na caça”, enquanto para o Micro-Robert ele é defini-
do como um “mamífero doméstico de que se contam numerosas
raças treinadas para cumprir certas funções junto ao homem”.
O mínimo que se pode dizer é que o “retrato” do infor-
mante, o cão, é correlativo à posição e aos interesses do obser-
vador, o redator do artigo do dicionário. Todas as definições
praticam uma divisão, instalam uma desigualdade e um confli-
to entre duas direções e cada uma dessas direções produz por si
mesma um efeito de perspectiva. No caso do cão, esse conflito
presentifica:
a) de um lado, uma escolha classemática, entre quadrúpede e “ma-
mífero”, que não pode ser considerada como uma oposição, já que
uma engloba a outra, mas sim como uma variação na profundida-
de hierárquica do gênero e das espécies: o quadrúpede “aproxima”,
porque esse classema leva em conta a aparência visível do cão,
enquanto o mamífero “distancia”, pois que o homem e a baleia são
também mamíferos; de acordo com a profundidade classemática,
o “quadrúpede” teria, portanto, pouca profundidade e o “mamífe-
ro”, uma profundidade maior;
b) de outro, um gradiente tímico em que a afetividade investida
seria forte (tônica), quando as funções domésticas fossem negli-
genciadas e fraca (átona), quando voltassem ao primeiro plano.

18
VALÊNCIA

A correlação sobre a qual recaem nossas duas definições


associa o classema próximo (“quadrúpede”) a um efeito tímico
forte e o classema distanciado (“mamífero”), a um efeito tímico
fraco: o Littré atesta a primeira articulação e o Micro-Robert, a
segunda; mas as duas definições despontam do mesmo sistema
de valências, que elas ponderam diferentemente. Essas “valências”
poderiam ser caracterizadas aqui como uma correlação entre os
gradientes respectivos da profundidade classemática e da tonici-
dade tímica.
Algumas precisões teóricas e terminológicas impõem-se des-
de já. Tentamos articular aqui uma “semântica do contínuo”, que
possa desembocar numa semiótica do contínuo e que seja susce-
tível de responder pela aparição do descontínuo. No plano da
expressão, as grandezas contínuas correspondem ao que Hjelmslev
chama de “expoentes” (acentos e entonação) e são da ordem da
intensidade e da quantidade, na medida em que o acento e a
entonação podem afetar tanto a altura e a duração dos fonemas
(sua quantidade ou sua extensão) como a energia articulatória
(sua intensidade).
Em nome do isomorfismo entre a expressão e o conteúdo,
consideramos que, com as valências, estamos diante de gradien-
tes de intensidade (por exemplo, o gradiente de intensidade afetiva)
e gradientes de extensidade (por exemplo, o gradiente da “funcio-
nalidade”, dos papéis domésticos do cão, ou da hierarquia dos
gêneros e das espécies). A intensidade e a extensidade são os
funtivos de uma função que se poderia identificar como a tonici-
dade (tônico/átono), a intensidade à maneira da “energia”, que
torna a percepção mais viva ou menos viva, e a extensidade à
maneira das “morfologias quantitativas” do mundo sensível, que
guiam ou condicionam o fluxo de atenção do sujeito da percep-
ção.
No espaço tensivo, que é seu domínio privilegiado, esses
gradientes são postos em perspectiva pelo foco ou pela apreen-

19
VALÊNCIA

são de um sujeito perceptivo. Essa orientação dos gradientes em


relação a um centro dêitico e em relação a um observador os
converte em profundidades semânticas. Trata-se, bem entendido,
de profundidades que articulam um espaço mental, às vezes mais,
às vezes menos abstrato, o espaço epistemológico da categoriza-
ção, mas isomorfo do espaço da percepção e dele diretamente
derivado: a profundidade semântica obedece de fato à mesma
definição que a profundidade figurativa; só muda o grau de abs-
tração.
Quando duas profundidades se recobrem para engendrar
um valor, serão denominadas valências, na medida em que sua
associação e a tensão que daí emana tornam-se a condição de
emergência do valor. Gradiente designa pois o modo contínuo
das grandezas consideradas; profundidade designa a orientação
na perspectiva de um observador (que focaliza ou apreende);
valência designa uma profundidade correlata a uma outra profun-
didade. Quando falamos da valência classemática “mamífero”,
estamos nos referindo, portanto, (i) de um lado, à sua condição
de pertencente a uma profundidade classemática e (ii) de outro,
ao fato de que ela é correlata a outra profundidade, qual seja a do
tímico. Globalmente, as valências definem-se, pois, por sua participa-
ção numa correlação de gradientes, orientados em função de sua
tonicidade sensível/perceptiva. Isso quer dizer que, de imediato, um
observador sensível é instalado no cerne da categorização, como
o próprio lugar das correlações entre gradientes semânticos. Em
outras palavras, a “caixa preta” da semiótica das paixões, a saber
o corpo próprio do sujeito que sente, encontra aqui uma definição
oblíqua inesperada: o corpo próprio é o lugar em que se fazem e
se sentem, de uma só vez, as correlações entre valências
perceptivas (intensidade e extensidade).
A correlação que funda a definição do “cão” pode ser apre-
sentada, seja sob a forma de um diagrama:

20
VALÊNCIA

+
mamífero
Le Robert

Profundidade
classemática

Le Littré

quadrúpede


– +
funções
funções Profundidade afetividade
tímica

seja sob a forma de rede:

Tonicidade fraca forte


Profundidades
Classemática Quadrúpede Mamífero
(Extensa)
Tímica Funcional Afetuoso
(Intensa)

na qual o cão do Littré ocupa as casas “quadrúpede + afetuo-


so”, enquanto o do Robert ocupa as casas “mamífero + funcio-
nal”.
A análise de um valor requer, por conseguinte, (i) ao me-
nos dois gradientes que, na medida em que são orientados, fun-
cionam para o sujeito de enunciação como profundidades, e (ii)
em cada uma dessas profundidades, uma variação que é prova-
velmente identificável a uma variação de intensidade ou de ex-
tensidade, ou, para manter o isomorfismo entre a expressão e o
conteúdo, a uma variação de tonicidade. Cada gradiente compor-
tará, pois, uma zona forte ou tônica e uma zona fraca ou átona.

21
VALÊNCIA

Na medida em que as valências são graduais e da ordem da


tonicidade, sua correlação é, por definição, tensiva.
Essa análise sumária do valor do objeto mostra como pode-
ríamos projetar um modo de medir suas variações graduais. O va-
lor é então a função que associa as duas valências e essas duas
valências (esses gradientes orientados e correlatos) são os funtivos
do valor. A valência pode, pois, dar margem a duas análises: de um
lado, ela é uma orientação gradual num conjunto de grandezas
tônicas ou átonas; de outro, ela varia sob o controle de uma valência,
por relação à qual é percebida como associada e dependente.
A noção de valência traz uma correção apreciável à concep-
ção semiótica do valor, na medida em que este, hoje em dia, é
chamado a responder às questões levantadas pela semântica do
protótipo: qual é a parte do gradual e do discreto na constituição
de uma categoria? Como se combinam, na definição de cada uni-
dade, os traços distintivos isotópicos e os traços de posição hie-
rárquica (hiponímia e hiperonímia)? Qual é a parte da diferença e
da dependência? Qual é, enfim, o papel do observador ao pôr os
traços em perspectiva?
Nossa abordagem ainda é muito sumária para proporcio-
nar respostas satisfatórias a todas essas questões, mas este pri-
meiro esboço mostra bem que aquém do quadrado semiótico,
ou seja, aquém da categoria estabilizada e discretizada, as
valências e suas correlações desenham o espaço teórico em que
as respostas esperadas devem se configurar:
a) A questão da fronteira das categorias é aqui reformulada em ter-
mos de “extensidade”, pois os gradientes da extensão podem rece-
ber limiares determinados com maior ou menor precisão.
b) A questão da posição hierárquica do protótipo de uma catego-
ria corresponde aqui à profundidade conhecida como “classemá-
tica”.
c) A relação entre os traços distintivos, a posição hierárquica e as
propriedades que variam de maneira contínua, é tratada como

22
VALÊNCIA

uma função hjelmsleviana: os traços distintivos do valor estão do


lado da função e as variações extensivas e intensivas da tonicidade,
do lado dos funtivos (as valências).
d) A inscrição do sujeito observador na organização da categoria,
e na seleção de seu protótipo, é aqui considerada, de imediato,
como resultante das propriedades perceptivas das valências (pro-
priedades intensivas e extensivas), já que, para nós, sua orienta-
ção em “profundidade” depende de um sujeito perceptivo que
lhes impõe sua dêixis.
De um outro ponto de vista, quando se examina a maneira
pela qual os valores tomam forma e circulam nos discursos, mas
também nas macro-semióticas que as culturas constituem, per-
cebe-se que a polarização axiológica das categorias semânticas
não é a única propriedade exigida e que, sobretudo, o caráter
atrativo ou repulsivo dos objetos e das junções não depende ape-
nas do conteúdo semântico neles investido: os universos
axiológicos devem obedecer previamente a certas condições de
composição e homogeneidade, e os valores, por mais desejáveis
que sejam, só podem ser procurados e só podem circular sob
certas condições de extensidade e intensidade, uma vez que a
conjugação das valências intensivas e extensivas modula o fluxo
das trocas comunicacionais e, notadamente, o seu andamento
temporal.
Especifiquemos, agora, o liame entre definição e paradig-
ma. Reduzindo, por comodidade, o paradigma a um par, exami-
nemos a definição de gato proposta pelo Micro-Robert:

“pequeno mamífero familiar, com pêlo macio, olhos oblongos e bri-


lhantes e orelhas triangulares, que arranha.”

Deixemos de lado a indicação de “pequeno” que, aqui,


diz respeito à profundidade classemática, para nos ater somente
ao gradiente tímico, que se projeta em profundidade propriamente

23
VALÊNCIA

afetiva e em profundidade funcional, até mesmo utilitária: o cão


é apenas “doméstico”, mas os serviços que presta são numero-
sos, enquanto o gato é promovido de “doméstico” a “familiar”,
mas não “serve” para nada (para o dicionário de Furetière, o gato
mantinha uma valência funcional como “caçador de ratos”).
Seja o diagrama:
+
funcional
o cão

Profundidade
funcional

o gato
não-funcional


– familiar+
doméstico
Profundidade
afetiva

A valência forte do gato na profundidade afetiva é controla-


da pela percepção sob o modo visual e sob o modo tátil. Seria
ainda necessário mencionar, para ser exaustivo, uma dimensão
estética, bem como uma dimensão fiduciária com a oração rela-
tiva “que arranha”, correlata, sem dúvida, da precedente, e que
deixaria entender que quanto mais atraente e sedutor for o gato,
mais será preciso desconfiar do animal.
A existência, em língua, de um liame paradigmático entre
duas grandezas pressuporia, pois, que essas partilhassem as
mesmas valências. O paradigma declina, por meio dos valores
que acolhe, as valências subjacentes que a definição associa, de
modo que se podem reencontrar entre as unidades constitutivas
de um paradigma as correlações que definem cada unidade con-
siderada isoladamente em sua definição: por exemplo, se a corre-

24
VALÊNCIA

lação entre a valência “tímica” e a valência “funcional” é perti-


nente para as definições respectivas do gato e do cão, ela deve
sê-lo também para o paradigma ao qual ambos pertencem, e
deve estar no próprio princípio de sua oposição distintiva.
Em relação à análise sêmica tradicional, surgem duas dife-
renças: (i) o valor põe em jogo duas valências ligadas entre si por
uma função, de maneira que as valências, por definição (cf. su-
pra), encontram-se, sempre, “aos pares”; em seu nível de
pertinência, é sua correlação que “faz sentido”; uma determinada
valência não poderia advir sem que sobreviesse sua contra-
valência; de fato, a tensão entre as valências é constitutiva dos
metatermos da estrutura elementar; (ii) em segundo lugar, em
razão de sua dependência em relação à interação tensiva das
valências, os traços não são somente traços de conteúdo
enumeráveis, mas também valências ligadas.
Esta última propriedade diz respeito diretamente à estru-
tura dos sememas e das configurações semânticas: de uma certa
maneira, a semiótica construiu-se inteiramente sobre a idéia de
que o semema não poderia ser um simples conglomerado (aditivo,
cumulativo) de traços distintivos; o percurso gerativo, fundado
sobre uma distribuição hierárquica, é uma das respostas possí-
veis a esta dificuldade. Mas, de um ponto de vista imediatamente
operatório, a distribuição dos semas – depreendidos pela análise
concreta por meio das operações de comutação e segmentação –
nos diferentes níveis do percurso gerativo, em função de seu grau
de abstração ou de densidade figurativa, não constitui uma res-
posta satisfatória à questão dos liames de dependência específi-
cos, que produzem um determinado efeito de sentido particular
em discurso ou um determinado semema atualizado (como, aqui
mesmo, a dependência inversa entre a funcionalidade doméstica
do gato e do cão e a afetividade investida em cada um deles). A
teoria da valência, ao contrário, poderia precisar a natureza des-
ses liames, graças às correlações de gradientes que propõe, e até

25
VALÊNCIA

mesmo futuramente permitir prever tais liames tendo como pano


de fundo as dimensões bem gerais da intensidade e da
extensidade.

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Ao tratar das definições paradigmáticas, fizemos menção


a uma função sem maior precisão. Agora, para tratar da
sintagmatização das valências, é indispensável opor a função a
si própria. Na falta de precedente sugestivo, tomamos como guia
a distinção mais simples, a saber a tensão entre a conjunção, a
relação “e... e...”, e a disjunção, a relação “ou... ou...”.
No caso da conjunção, as valências variam no mesmo sen-
tido, ou seja, menos pede sempre menos, mais pede sempre mais;
trata-se então de uma correlação conversa. No segundo caso, da
disjunção, as valências variam em razão inversa uma da outra; a
textualização resulta nos seguintes tipos de enunciados: mais
pede menos, menos pede mais; desta vez, temos uma correlação
inversa. Ambas serão assim representadas:

+ +

– –
– + – +

26
VALÊNCIA

OBS.: A forma do arco é potencialmente explorável, mas não


seria muito pertinente ao nosso propósito: se fosse preciso defi-
nir um “lugar geométrico” para cada correlação, este seria
prioritariamente de tipo estatístico e ocuparia zonas de densida-
de variável, tendo como eixo de simetria o traçado dos arcos.
A coexistência desses dois regimes funcionais libera um
espaço de acolhimento plausível para os dois grandes princípios
introduzidos pela antropologia, a saber o princípio de exclusão,
que tem como operador a disjunção, e o princípio de participa-
ção, que tem como operador a conjunção. Seria conveniente,
mediante a convocação da pressuposição recíproca, colocar esses
dois regimes funcionais na mesma classe? Na verdade, os micro-
universos discursivos parecem conjugar esses dois princípios e se
satisfazer com um modus vivendi. Isso pede uma breve explica-
ção: a valência, como tal, pertence ainda à substância: ela só che-
ga à forma quando se torna um desafio para os dois grandes
princípios da exclusão e da participação. Examinemos, a título de
ilustração sumária, a relação entre certas práticas e a procedência
sexual daqueles que as exercem: a bricolagem é reservada aos
homens, de tal modo que, ao ser praticada por uma mulher, tem
como efeito “virilizá-la”. No caso da culinária é diferente: esta,
ainda que aberta aos homens, permanece antes de tudo femini-
na; a “alta cozinha”, porém, é considerada uma tarefa dos ho-
mens; só as mulheres que mostraram sua capacidade são admiti-
das em caráter excepcional. Examinando as coisas mais de perto,
é fácil perceber que a pejoração e a melhoração funcionam como
termos médios entre os dois princípios indicados e o jogo pró-
prio das valências; o recurso da pejoração e da melhoração per-
mite, respectivamente, excluir participantes e fazer com que ex-
cluídos participem. Assim, a cozinha corriqueira tende a se abrir
e a permitir, por melhoração, a inclusão de novos participantes
masculinos; inversamente, no caso da “alta cozinha”, que exclui
num primeiro momento as mulheres, essa exclusão é, por sua vez,
abalada pela distinção dos agentes femininos mais destacados.

27
VALÊNCIA

Basta introduzir as categorias vida/morte, natureza/cultura, cen-


trais em antropologia, para entrever a motivação do mito na abor-
dagem de Lévi-Strauss: moderar os excessos, provavelmente cor-
relatos, da participação e da exclusão. Voltaremos a isso no estu-
do consagrado aos valores.
Em segundo lugar, esses dois princípios oferecem duas ima-
gens opostas da noção de limite: para o princípio de participação,
em correlação conversa, cada gradiente parece poder recuar inde-
finidamente o limite do outro, engendrando assim sempre mais
mais e sempre menos menos; para o princípio de exclusão, em
correlação inversa, o limite não está mais situado nos confins,
mas no equilíbrio das valências concorrentes. Os exemplos do
cão e do gato são, aqui, particularmente esclarecedores, na medi-
da em que estão em causa as fronteiras das categorias. Na defini-
ção do cão considerada isoladamente, o número de serviços pres-
tados é proporcional à carga afetiva, de maneira que esta correla-
ção conversa não pode fornecer indicação determinante sobre os
limites da categoria, a não ser no caso das valências nulas: um
cão que não serve para nada, um cão selvagem, poderia ser ama-
do? Será que poderia ainda ser considerado um cão? Não estaria
mais próximo do lobo? Mas, desde que se considerem conjunta-
mente as valências correlatas das definições respectivas do cão e
do gato, o limite então será claro: um cão que não serve para
nada e que é excessivamente familiar (um “poodle”, por exemplo)
começa a parecer um gato. A diferença entre categorias de frontei-
ra fluida e categorias de fronteira nítida poderia, pois, ser tratada
mediante a distinção entre correlação conversa (regime
participativo) e correlação inversa (regime exclusivo).

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Os dois regimes de valência que acabamos de examinar, o


princípio de exclusão e o princípio de participação, realizam-se

28
VALÊNCIA

localmente na cadeia convocando os valores dois a dois, e cada


um apresenta suas próprias particularidades sintagmáticas. O
regime de exclusão tem por operador a triagem e, se o proces-
so atinge seu termo, leva à confrontação contensiva do exclu-
sivo e do excluído e, para as culturas e as semióticas que são
dirigidas por esse regime, à confrontação do “puro” e do “im-
puro”. O regime de participação tem por operador a mistura e
produz a confrontação distensiva do igual e do desigual: no
caso da igualdade, as grandezas são intercambiáveis, enquan-
to no da desigualdade, as grandezas se opõem como “superi-
or” e “inferior”.
A rearticulação das valências em valores, no espaço
semionarrativo, supõe que as dependências/independências se-
jam convertidas em diferenças (contrariedade, contradição,
complementaridade) a partir das rupturas observadas na rede
de dependências, de maneira que os limiares ou limites
projetados sobre as valências tornam-se fronteiras de uma cate-
goria estabilizada e discretizável. Do mesmo modo, o sujeito
sensível, ao se tornar sujeito semionarrativo, vê seu universo
partilhar-se axiologicamente graças à polarização em euforia/
disforia, enquanto, no espaço tensivo, a foria não polarizada
caracterizava as reações de seu corpo próprio às tensões nas
quais ele estava mergulhado. Assim, surge o valor no sentido
semiótico: o valor como diferença que organiza cognitivamente
o mundo focalizado, e o valor como desafio axiológico que po-
lariza o próprio foco.
Cada um desses campos semióticos possui seu índice tensivo
e sua própria coerência: o programa de base é descontínuo numa
semiótica da triagem e tende a restringir a circulação dos bens; é
contínuo numa semiótica da mistura e favorece o “comércio” dos
valores. Nas semióticas da triagem, a circulação dos valores é,
pois, pequena, por vezes nula, e, de qualquer maneira, desacele-
rada pela solução de continuidade colocada entre o exclusivo e o

29
VALÊNCIA

excluído. Nas semióticas da mistura, o tempo4 da circulação é


mais rápido numa cultura em que a valência é difusa do que numa
outra em que a valência tende a se concentrar num número res-
trito de grandezas.
Sabe-se que, no domínio econômico, o valor de troca tanto
dos bens como da moeda depende da rapidez (inflação) ou da len-
tidão (deflação) com a qual os bens são trocados. Do mesmo modo,
Lévi-Strauss mostrou muito bem que as trocas matrimoniais eram
submetidas a uma coerção que aparece globalmente como uma
“desaceleração” ou um “distanciamento”, o segundo podendo ser
considerado como uma variedade da primeira5 . Intuitivamente,
temos o sentimento de estar igualmente diante de estruturas ele-
mentares características do “político”: à igualdade corresponderá
uma sociedade do direito; à desigualdade, uma sociedade do privi-
légio. Do lado da exclusão e da triagem, teríamos uma sociedade
do interdito, com seus intocáveis. Mas caberá às análises concretas
confirmar ou não essa sugestão de generalização.

3 CONFRONTAÇÕES

A dependência das valências em relação ao devir é literal


no conhecido texto de Baudelaire:

“Como o pai um pôde engendrar a dualidade e, enfim, metamorfose-


ar-se numa população incontável de números? Mistério! A totalidade
infinita dos números deveria ou poderia concentrar-se outra vez na
unidade original? Mistério!”6

Essas questões estão realmente ligadas, como lembra Cassirer,


ao universo do sensível, de onde emanam a foria e o devir:
4
[N. dos T.]: Toda vez que aparecer tempo (em itálico), faz-se referência ao parâmetro
andamento (variações de velocidade), de inspiração musical.
5
LÉVI-STRAUSS, Cl. Structures élémentaires de la parenté. Paris, P.U.F., 1949.
6
BAUDELAIRE, Ch. L’art romantique. Réflexions sur quelques-uns de mes contemporains, in
Œuvres complètes. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1954, p. 1090.

30
VALÊNCIA

“Pois que os conteúdos não-decompostos da percepção, enquanto


tais, não oferecem qualquer perspectiva de abordagem ou qualquer
ponto de apoio a esse pensamento. Não entram em qualquer ordem
estável e geral, não possuem, de modo algum, qualidade verdadei-
ramente unívoca e, ao serem tomados no imediatismo de seu estar-ali,
apresentam-se como um fluxo inapreensível que resiste a toda tenta-
tiva de nele distinguir ‘limites’ exatos e bem nítidos.”

O devir da intensidade, ao produzir e distribuir ápices e mo-


dulações, tomaria, de qualquer modo, a forma de um ritmo. O
devir da extensidade, ao produzir e distribuir partes e totalidades,
unidades e pluralidades, caracterizar-se-ia pela formação e defor-
mação de agenciamentos merológicos. Em relação à distinção en-
tre sujeito e objeto, notadamente no ato perceptivo, pode-se le-
vantar a hipótese de que as valências de intensidade e de tempo7
caracterizam essencialmente o devir sensível do sujeito, enquan-
to as valências de extensidade e os agenciamentos merológicos
que daí decorrem caracterizariam o devir sensível do objeto.
As valências subjetais determinam as condições do acesso ao
valor para o sujeito, assim como o valor da junção: de natureza
essencialmente “rítmica”, elas podem ser identificadas graças ao
tempo e à aspectualização da apreensão ou da troca. É assim que
o “valor para o sujeito” se configura ou se dissolve, na medida
em que este saiba, ou não, modular a velocidade do processo
que leva à junção; o generoso, por exemplo, ao adotar o tempo
justo, permite aos outros que usufruam os objetos de valor dos
quais ele próprio se separa; o perdulário, ao contrário, pela acele-
ração da circulação dos objetos que esbanja e dos quais se sepa-
ra, põe em causa a própria existência desses objetos e, ainda mais,
o próprio valor subentendido pela troca.

7
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, tome 2. Paris, Minuit, 1986, p. 53.

31
VALÊNCIA

As valências objetais determinam na morfologia das figu-


ras-objeto aquilo que as torna aptas a acolher um investimento
axiológico, notadamente sua estrutura merológica. Com efeito,
as formas particulares da dependência e da independência que
unem as partes do mundo sensível entre si, preparam e determi-
nam o tipo de valores que aí poderão ser investidos, e os limites
do campo disponível, inclusive no plano estético. Nesse sentido,
a preocupação com a “perfeição” não assinala apenas uma certa
concepção do belo, mas pode também ser compreendida como a
manifestação discursiva de uma valência que, por exemplo, atri-
buiria à autonomia sensível do objeto (a ausência de dependên-
cias exteriores perceptíveis) e ao fechamento da apreensão per-
ceptiva, o estatuto de uma condição prévia ao investimento axio-
lógico.
O aprofundamento em curso do conceito de valência pode-
ria igualmente conduzir a um modus vivendi entre o contínuo e o
descontínuo. Numa espécie de dialética da estabilidade e da ins-
tabilidade, a discretização estabiliza as correlações entre as
valências, convertendo os limites que elas aceitam em fronteiras
de uma categoria; desse modo, ela cristaliza as contradições, con-
vertendo respectivamente as valências inversas em contrariedades
e as valências conversas em complementaridades. No outro senti-
do, a desestabilização das categorias e a preeminência dos ter-
mos neutros e complexos nos discursos concretos restituem o
livre curso das correlações tensivas, seja no modo da exclusão
(termos neutros), seja no modo da participação (termos comple-
xos). É o que tentaremos demonstrar no estudo consagrado à
categoria e ao quadrado semiótico.
Por outro lado, a extensão do conceito de valência é de tal
ordem que a decisão mais sábia requer que examinemos antes as
categorias semióticas que escapam ao seu campo de atividade.
Escolheremos, porém, assinalar as conexidades que existem entre
a valência e, respectivamente, a quantidade, o sujeito e o objeto.

32
VALÊNCIA

Na espera de uma semiótica consistente do número e da


quantidade, está claro que a interação incessante entre a valência
e esses operadores de grande envergadura, quais sejam a tria-
gem e a mistura, prefigura um dos capítulos dessa semiótica. A
triagem e a mistura podem, como já apontamos, variar em ter-
mos de tonicidade: a triagem fica menos ou mais drástica e a
mistura, menos ou mais homogênea. Obtemos, assim, a seguin-
te rede, que define quatro figuras da quantidade:

Triagem Mistura
Tônica unidade / nulidade universalidade
Átona totalidade diversidade

A articulação semiótica da quantidade é distinta do


engendramento formalizado do número que os matemáticos
aprofundam. Mas há algo talvez mais importante: se conjuga-
mos a quantidade e a intensidade, então o excesso e a falta per-
mitem, no interior de cada categoria, passar de um regime tensivo
a outro, ou seja, de uma valência a outra:
a) Numa semiótica da triagem, o excesso permite ir de “tudo” a
“qualquer coisa”, até mesmo a “nada”. Esta é a razão pela qual
hesitamos entre nulidade e unidade na rede acima: se a triagem
atinge o limite, não há lugar nem para uma única ocorrência. A
lógica da triagem pode, pois, chegar ao niilismo integral. Lem-
bremos, de passagem, que os grandes ensaios sobre o fenômeno
totalitário contemporâneo demonstraram amplamente que o fun-
do, ou a forma acabada, do totalitarismo era o niilismo; na cria-
ção artística, essa superação do “tudo” pelo “nada” corresponde
até certo ponto ao “estilo semiótico” de Mallarmé, que se diri-
ge à “nulidade” passando pela inapreciável “raridade” da unida-
de singular. Ao contrário, a falta permite a nosso imaginário
que considere os começos como desencadeamentos, explosões,

33
VALÊNCIA

“big bangs”, levando, como se ouve dizer, de “nada” a “qualquer


coisa”, e de “qualquer coisa” a “tudo”.
b) Numa semiótica da mistura, o excesso permite, em nome da
“tolerância”, da “abertura”, do tão justamente denominado
“pluralismo”, passar da “diversidade” à “universalidade”; o acen-
to se desloca da diferença (a desigualdade, nesse caso) para a
semelhança (a igualdade); a falta, que restabelece a “diversidade”
em detrimento da “universalidade”, entra em ação assim que decai
o fervor das confraternizações entusiastas, o que, como cada um
pode sentir, é uma questão de tempo: o “ápice” não suporta a
duração.
Examinemos agora a relação entre a valência e a paixão,
considerada restritivamente como um modo de ser do sujeito.
Para depreender a estrutura das valências subjacentes à “paixão”,
propomos projetar, um sobre o outro, os dois gradientes da in-
tensidade e da extensidade e colocamos, frente a frente, uma “ten-
são mínima divisa” e uma “tensão máxima indivisa”. Se admiti-
mos que a paixão supõe uma relação com o objeto e uma relação
com os outros, duas profundidades podem ser consideradas. A
profundidade da fixação ao objeto tem como termos extremos o
apego e o desapego; recorremos de propósito ao termo freudiano
por ser difícil contestar que o ponto de vista econômico em psica-
nálise tenha algo a ver com a valência, na medida em que esta
modula “energias” semânticas e perceptivas. A paixão dirigida
por uma “tensão máxima indivisa” elege um objeto exclusivo,
enquanto a multiplicação dos objetos, diminuindo as tensões,
conjuga-se facilmente com o desapego. A profundidade da rela-
ção com outrem teria, por sua vez, como termos extremos uma
socialidade restrita, cujo limite seria uma intersubjetividade dual,
e uma socialidade ampliada que teria como limite a “humanida-
de” no sentido de Augusto Comte.
O apaixonado, no limite, é “a-social”, ou solitário, ainda
que a resposta à questão: “Robinson, em sua ilha, estaria sujeito

34
VALÊNCIA

à paixão?”, depois das obras de R. Girard, seja algo delicado de


fornecer, a menos que se imagine, evidentemente, que as clivagens
modais internas do ator suscitem uma interação entre diversos
papéis, instaurando de alguma forma o diálogo “dele” “consigo
próprio”. Na França do século XVII, o “honnête homme”, ou seja,
aquele cujo “comércio” era agradável, estava situado sob o signo
do desapego.
Entretanto, afirmar que a socialidade do apaixonado é res-
trita pode levar à confusão: somente a sociabilidade do papel
patêmico está em pauta nesse momento, dado que, no caso de
Grandet, por exemplo, Balzac mostra que, na qualidade de ava-
ro, ele participa de uma socialidade restrita – os avaros se reco-
nhecem intuitivamente e se compreendem sem que convivam
ou tenham simpatia mútua: é o que Balzac chama de “franco-
maçonaria das paixões” – mas, a partir do momento em que sua
avareza não esteja diretamente implicada, ele participa de uma
socialidade ampliada, já que conhece “toda” Saumur.
Reencontramos o elo de estrutura entre a diminuição da
tensão e seu fracionamento. Desse modo, a estrutura tensiva dos
sujeitos apaixonados se deixa atingir pela conjugação de quatro
valências: a intensidade, a extensidade, a relação com o objeto e a
relação com outrem. Associando as duas primeiras no mesmo gra-
diente disposto verticamente e as duas últimas num gradiente
disposto horizontalmente, obtemos o seguinte diagrama:

35
VALÊNCIA

apego

(profundidade
intensa da
fixação ao
objeto)

desapego

socialidade restrita socialidade ampliada


(profundidade extensa
da socialidade)

O elo de dependência entre as valências propriamente


tensivas e as valências sociais vale também para os actantes co-
letivos homogêneos: o fanático de ontem, o totalitário de hoje
compõem um apego muito forte e uma socialidade tendendo à
nulidade, que os conduzem a encarar como natural a liquidação
física dos adversários que eles próprios se atribuem.
Por fim, ainda que haja mais de uma razão para que o jogo
das valências interesse ao tratamento dos objetos, limitamo-nos
aqui, a exemplo do que já fizemos com a intersubjetividade, às
relações de compatibilidade entre objetos. Nesse caso, também,
a intervenção dos operadores da triagem e da mistura permite
formular as articulações elementares. Do lado da dêixis da tria-
gem, os objetos podem ser considerados incompatíveis ou ina-
dequados; do lado da dêixis da mistura, eles serão compatíveis
ou adequados; vê-se logo que esses diferentes casos de figura
também provêm da competência de um sujeito da triagem ou da
mistura, que pode ou não pode, que deve ou não deve reunir ou
separar os objetos. O quadrado semiótico correspondente seria
este:

36
VALÊNCIA

incompatível adequado

Dêixis da
triagem
{ } Dêixis da
mistura

separado compatível

A importância atribuída respectivamente à triagem e à mis-


tura decide as ambiências nas quais os sujeitos se projetam e se
reconhecem. Um exemplo, como simples suposição, permitirá fi-
xar as idéias: na perspectiva exclusiva da triagem, uma biblioteca
“high tech” e uma cômoda “Louis XV” são, juntas, inconcebíveis
(incompatíveis ou, a rigor, inadequadas), enquanto na perspecti-
va da mistura, a justaposição desses dois móveis será avaliada e
sentida como “muito chique” e “audaciosa”, na medida em que
serão considerados pelo menos como compatíveis. Os estilos pró-
prios aos valores são, pois, sobredeterminados por seus regimes
de valências. Permite-se pensar que, na perspectiva da mistura,
um salão inteiramente “Louis XV” ou inteiramente “high tech”
serão avaliados como “tediosos”, “cafonas”, quando a valência
da mistura estiver nula. As avaliações estéticas e éticas e seus
correlatos emocionais assinalam aqui claramente que as valências
subtendem as axiologias e que é sobre elas, mais que sobre os
valores propriamente ditos, que incide a pertinência dos “esti-
los”.

37
VALOR

VALOR

1 RECENSÃO

A REFLEXÃO sobre o valor apresenta à época contemporâ-


nea duas características: a polissemia do termo “valor” e a
consideração das conseqüências epistemológicas decorrentes des-
ta polissemia. Com relação à polissemia, lembremos que ninguém
põe em dúvida a existência de valores econômicos, lingüísticos,
estéticos, morais..., mas, nesse domínio, todo limite é apenas
um uso; para os que gostam de comer bem, existem, sem dúvida,
valores gastronômicos, como mostrou o estudo de Greimas
intitulado “La soupe au pistou ou la construction d’un objet de
valeur”1. A partir do instante em que uma práxis é atestada e
codificada, tem-se o direito de postular valores de sistema (a “boa
dosagem” dos ingredientes selecionados e, no mesmo ato, valo-
rizados) e valores de processo (a aquisição da destreza, o sentido
de uma justa coordenação temporal, etc.).
Mas a especulação sobre o valor, seja ela conduzida de um
ponto de vista filosófico, sociológico ou semiótico, é de fato
uma reflexão sobre os valores, já que diz respeito à relação entre
as diferentes ordens de valores. Para Saussure, revelar o papel
do valor em lingüística é colocá-lo, sucessivamente, em relação
com os valores que chamaríamos de “agonísticos”, subjacentes
ao jogo de xadrez2, os valores econômicos, enfim, os valores
matemáticos. Pode-se pensar que cada uma dessas analogias deve
ter constituído, para Saussure, um critério de validação das hipó-
teses que lançava.

1
GREIMAS, A. J. Du sens II, Paris, Seuil, 1983, p. 157-69. [N. dos T.]: “A sopa ao ‘pistou’
ou a construção de um objeto de valor” in: Significação - Revista brasileira de semiótica,
11/12, set. de 1996, p. 7-21.
2
SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo, Cultrix, 1971, p. 104.

39
VALOR

Hjelmslev, menos nítido ou menos interessado nessas ques-


tões que Saussure, adota como analogias preferenciais o jogo de
xadrez, os valores econômicos e os valores algébricos. Mas esta
última analogia é indireta, já que parece tributária da centralidade
atribuída por Hjelmslev ao conceito de função, do qual ele retém
sobretudo “o sentido lógico-matemático”. Esta preferência renova
o algebrismo de Saussure.
Para Greimas, essa problemática é dupla: trata-se de for-
mular uma mediação entre os valores lingüísticos, em princípio
estritamente diferenciais e “vazios” de conteúdo, e os valores
narrativos, os quais, na perspectiva greimasiana, são considera-
dos como imanentes ao devir do sujeito e à sua busca do “sen-
tido da vida”. Em segundo lugar, se se admite que o percurso
gerativo declina as diferentes classes de valores – valores
aferentes às estruturas elementares da significação, valores
modais e temáticos aferentes às estruturas narrativas de super-
fície, valores discursivos –, a reflexão sobre os valores acaba
por se confundir com outra, referente à conversão dos valores de
um nível a outro e indica uma certa incompletude da semiótica
greimasiana atual.

2 DEFINIÇÕES

2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

A análise paradigmática de uma grandeza semiótica está


sujeita a duas dificuldades muitas vezes subestimadas. Em pri-
meiro lugar, os pais fundadores da semiótica européia divergem
sobre um ponto importante. Para Saussure, no Curso de lingüística
geral, em razão do critério adotado (a saber a “associação”), ma-
nifestamente herdeiro do século 19, um paradigma, contraria-
mente ao sintagma, é aberto:

40
VALOR

“Um termo dado é como o centro de uma constelação, o ponto para onde
convergem outros termos coordenados cuja soma é indefinida.” 3

Para Hjelmslev, ao contrário, por certo em razão do princí-


pio de empirismo e de suas três exigências, a exaustividade, a
não-contradição e a simplicidade, a análise conduz necessaria-
mente a um inventário fechado:

“Quando são comparados os inventários assim obtidos nos diferen-


tes estágios da dedução, é notável ver que o número deles diminui à
medida que o procedimento de análise avança. [...] De fato, se não
houvesse inventários limitados, a teoria da linguagem não poderia
esperar alcançar seu objetivo: tornar possível uma descrição simples
e exaustiva do sistema que está por trás do processo textual.”4

A semiótica greimasiana, notadamente com o papel


unificador atribuído ao percurso gerativo, está de acordo com a
posição adotada por Hjelmslev, mas é claro que as diversas tenta-
tivas de introduzir, nos anos 80, novos degraus a converteram
parcialmente em inventário aberto dos níveis de articulação. Con-
seqüentemente, não haveria nada a mais nos termos de um para-
digma do que o conteúdo atingido pela comutação: aquilo que a
intervenção da comutação depreende é com certeza pertinente,
mas esta pertinência é de fato e não de direito, enquanto as outras
grandezas comutáveis não tenham sido, elas também, distingui-
das e recenseadas.
Hjelmslev empresta de um lingüista russo do começo do
século, A. M. Peškovskij, a hipótese segundo a qual

3
SAUSSURE, F. de, op. cit., p. 146.
4
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 48.

41
VALOR

“Há termos precisos e termos vagos, e, o que importa acima de tudo,


parece que um sistema é freqüentemente organizado sobre a oposição
entre termos precisos de um lado e termos vagos de outro.”5

Essa hipótese, que já apresenta o mérito de inscrever a in-


certeza no sistema, é seguida de uma outra que marca, de
antemão, os limites do binarismo: “todo sistema com dois ter-
mos é organizado sobre a oposição entre um termo preciso e
um termo vago”6. Dito de outro modo, a diferença, antes de se
projetar numa alternativa, é confrontada com sua denegação,
quando não com seu próprio desaparecimento. Em La catégorie
des cas, essa oposição dará lugar à oposição entre o termo “in-
tensivo” e o termo “extensivo”:

“A casa que é escolhida como intensiva tende a concentrar a signi-


ficação, enquanto as casas escolhidas como extensivas têm uma
tendência a propagar a significação sobre as outras casas de modo
a invadir o conjunto do domínio semântico ocupado pela zona”7

Não poderíamos desconsiderar o fato de que G. Deleuze


inaugura sua reflexão sobre a diferença com considerações sur-
preendentemente próximas:

“Mas em lugar de uma coisa que se distingue de outra coisa imagi-


nemos alguma coisa que se distingue – e no entanto aquilo de que
ela se distingue não se distingue dela. O relâmpago, por exemplo,
distingue-se do céu escuro, mas deve levá-lo consigo como se ele
se distinguisse do que não se distingue. É como se o fundo emergis-
se à superfície, sem deixar de ser fundo. [...] A diferença é esse
estado de determinação como distinção unilateral. Deve-se dizer, da
diferença, que ela é feita, ou que ela se faz, como na expressão ‘fazer
a diferença’.”8

5
HJELMSLEV, L. Nouveaux essais. Paris, P.U.F., 1985, p. 33.
6
Op. cit., p. 34.
7
HJELMSLEV, L. La catégorie des cas. Munich, W. Fink, 1972, p. 112-3.
8
DELEUZE, G. Différence et répétition. Paris, P.U.F., 1989, p. 43.

42
VALOR

Essa reflexão, bem próxima da concepção gestaltista da per-


cepção, é reformulada em termos semióticos como “primado da
negação”: o termo primeiro é a princípio aquele que não é qualquer
um, e que, por isso, destaca-se do “qualquer um”. A distinção pre-
cederia de direito a diferença ou, em outros termos, a independên-
cia como negação da dependência precederia a diferença.
Uma dupla obstrução pesava sobre a diferença: (i) os ter-
mos da diferença são, ambos, determinados; (ii) o conteúdo da
diferença é, de acordo com o ensinamento de Saussure, negativo,
já que só se exige dos termos que difiram um do outro, sem que
se pergunte em quê eles diferem; essa dupla obstrução está
doravante superada, de modo que questões abandonadas até o
presente podem ser, daqui para frente, formuladas.
Optamos, no entanto, por nos situar a meio-caminho do
“indefinido” saussuriano e do “estritamente definido” hjelmsle-
viano. Entretanto, uma reflexão sobre as precondições de uma
definição paradigmática do valor deve admitir os dois postula-
dos mencionados por Hjelmslev nos Prolegômenos: (i) a “massa
amorfa e indistinta” de Saussure é substituída pela postulação
de um “continuum não analisado mas analisável”9 ; (ii) “...não
existe formulação universal, mas somente um princípio univer-
sal de formação”10.
Entretanto, parece-nos pertinente acrescentar à lista das
precondições as quatro propriedades seguintes: a dissimetria, a
orientação, a reversibilidade, a concessão. Quanto ao primeiro pon-
to, a dissimetria, esta emerge literalmente dos textos de
Hjelmslev e de Deleuze que acabamos de evocar: a oposição de
base não se refere aos termos polares, mas a um “termo preci-
so” e um “termo vago”, uma plenitude e uma vaguidade, no limi-

9
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 59.
10
Op. cit., p. 79.

43
VALOR

te um “alguma coisa” e um “qualquer coisa”; a delimitação ine-


rente aos termos polares não parece dever ser inscrita entre os
primitivos. Hjelmslev não se interessa em saber se o continuum
de que se vale é orientado ou não, mas, com Cassirer e Deleuze,
admitiremos que ele deve ser apreendido como o “fluxo de uma
série contínua sensível”11. Do ponto de vista epistemológico,
permite-se pensar que dissimetria e orientação devem entreter
uma relação de pressuposição recíproca, que nos dispensa de
fixar uma anterioridade ou uma prioridade, ou de sermos cate-
góricos, a exemplo do binarismo, sobre a questão de saber se se
deve tomar branco por não-preto ou preto por não-branco.
Com relação ao terceiro ponto, a reversibilidade, por sua vez,
é menos uma propriedade do que uma resultante da análise: a
partir do momento em que uma dimensão é concebida como um
gradiente, o aumento dos “mais” tem por correlato uma diminui-
ção dos “menos”, assim como uma tensão decrescente tem por
correlato um relaxamento crescente.
O quarto ponto, a concessão, é uma generalização do prece-
dente: em cada ponto do gradiente, sobrevém um pequeno “dra-
ma”, na imanência daquilo que Bachelard chama de “vingança
das decisões contrárias”; no devir, quer se trate de uma proprie-
dade, como no confronto do rubor e do enrubescimento, ou de um
processo propriamente narrativo, uma determinada valência é
correlata ao esforço, ao trabalho de uma valência inversa: uma
valência de movimento enfrenta uma valência de inércia; uma
valência coesiva defronta-se com uma valência dispersiva, etc.
Em suma, das valências conversas (e “tranqüilas”) passa-se às
valências inversas e “inquietas”.
O arcabouço próprio das definições paradigmáticas apre-
senta, portanto, de um lado uma complexidade contínua, de ou-
tro, uma dissimetria irredutível. De maneira que (i) em nome da

11
DELEUZE, G. Différence et répétition, op. cit., p. 51.

44
VALOR

complexidade [A/B], nenhum componente, nem A nem B, poderia


ser tomado isoladamente, e que (ii) em nome da dissimetria, A e
B podem, tanto um como outro, receber a orientação positiva,
mas, nesse caso, com a condição de imputar ao outro a orienta-
ção negativa.
Falta-nos apenas denominar as grandezas que, em razão
de sua exclusão recíproca, constituem o intervalo ao longo do
qual virão se inscrever os valores intermediários. Do ponto de
vista figural, ou seja, das categorias atestadas simultaneamente
no plano do conteúdo e no plano da expressão, temos a “inten-
sidade” e a “extensidade”; do ponto de vista figurativo, ou seja,
das categorias atestadas somente no plano do conteúdo, admi-
tiremos que o espectro do valor possui como termos extremos:
para a intensidade, os valores de absoluto, onde domina o foco;
para a extensidade, os valores de universo, onde domina a apre-
ensão; mas, tanto num caso como no outro, trata-se apenas de
uma dominante: os valores de absoluto prevalecem em detrimento
dos valores de universo, e reciprocamente.
Já é tempo de propor um exemplo. Sabe-se que o livro de
Tocqueville, De la démocratie en Amérique, compõe uma aborda-
gem paradigmática visando a apreender as diferenças entre o tipo
de sociedade própria do Antigo Regime e o que se instaura do
outro lado do Atlântico e, por outro lado, uma abordagem
sintagmática, na medida em que Tocqueville toma o advento da
democracia e o declínio da aristocracia como inevitáveis, ainda
que as “razões do coração” façam-no preferir a segunda à pri-
meira. O que reterá nossa atenção, no entanto, é menos a exis-
tência da oposição do que os termos pelos quais Tocqueville a
exprime:

“Compreendo que num Estado democrático, constituído dessa


maneira, a sociedade não será imóvel; mas os movimentos do cor-
po social poderão nesse caso ser regulamentados e progressivos;
se encontramos aí menos brilho que no seio de uma aristocracia,

45
VALOR

encontramos também menos miséria; as satisfações serão menos


extremas e o bem-estar mais geral; as ciências menos amplas e a
ignorância mais rara; os sentimentos menos enérgicos e os hábitos
mais suaves; notar-se-ão mais vícios e menos crimes.”12

O sistema aristocrático escolhe o ápice dos valores em de-


trimento de sua extensão na exata medida em que o sistema de-
mocrático adota a extensão máxima a que aspira ao preço da
“mediocridade”, como indica literalmente a frase: as satisfações
serão menos extremas e o bem-estar mais geral. Do ponto de vista
paradigmático, as oposições pelas quais se pretende apreender
duas configurações são, pois, de duas ordens: a orientação posi-
tiva dos valores de absoluto próprios do sistema aristocrático con-
trasta com a orientação positiva dos valores de universo próprios
do sistema democrático, mas ela se opõe também à orientação
negativa dos valores de universo no interior do mesmo sistema
aristocrático. Uma configuração bastante comum manifesta as-
sim “duas” oposições que desembocam em programas distintos
de exclusão: uma externa, outra interna, mas é comum que a se-
gunda prevaleça sobre a primeira: é aí então que dois sistemas
de valor em oposição “externa” são fundidos num só, sob um
ponto de vista único: um sistema de valores homogêneo se esta-
biliza, orientado por uma “oposição interna”; na verdade, formu-
lar a categoria como um quadrado semiótico corresponde a ado-
tar a perspectiva que conseguiu impor sua orientação aos valo-
res. O diagrama das valências que vem a seguir traduz, pois, o
ponto de vista adotado por Tocqueville e denuncia de certo modo
sua preferência pelos valores de absoluto, no sentido de que a
imposição de uma correlação inversa entre a intensidade e a
extensidade já assinala a perspectiva daquele para quem o outro
regime, o dos valores de universo, só pode ter renunciado ao
“ápice”, à intensidade, em proveito da difusão máxima:

12
TOCQUEVILLE, A. de. De la démocratie en Amérique. Paris, 10/18, 1963, p. 28.

46
VALOR

+
aristocracia

valores de
absoluto

democracia

– +
valores de universo

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

As definições sintagmáticas encarregam-se da complexida-


de específica dos termos extremos da profundidade, aqui uma
intensidade sem extensidade, na qual pode-se reconhecer uma
definição válida do uno, ou do único, lá uma extensidade sem in-
tensidade, na qual pode-se reconhecer uma definição do univer-
sal. Basta agora identificarmos os operadores que suscitam uma
distensão em cada complexo: no caso dos valores de absoluto,
parece que a triagem e o fechamento intervêm como operadores
principais, tendo por benefício a concentração, enquanto os valo-
res de universo pedem o concurso da mistura e da abertura, ten-
do por benefício a expansão. A sintaxe canônica possui, por conse-
guinte, a forma de um ciclo:

triagem → fechamento → abertura → mistura → triagem

Contudo, se essa distensão é necessária, ela não é suficien-


te. A elucidação da dinâmica sintáxica, no espírito dos fundado-
res da semiótica européia, diz respeito ainda à direção para
Hjelmslev e ao limite para Saussure.
Para a direção, entendemos que a perspectiva adotada, a
partir da alternativa entre valores de absoluto e valores de uni-

47
VALOR

verso, vai afetar o discurso e funcionar, ela própria, como uma


instância de triagem, deixando passar as configurações discursivas
que estão de acordo com o ponto de vista adotado e barrando as
que pertencem ao outro regime de valores. Assim, Tocqueville dá
a entender, no texto citado, que o crime está para o regime aris-
tocrático assim como o vício está para o regime democrático, de
maneira que essa operação de triagem, que pode estar explícita e
mesmo axiomatizada, responde pela homogeneidade do discur-
so que a depreensão da isotopia expõe mas não explicita. As gran-
dezas enuncivas, aqui o crime e o vício, são, pois, regidas pelo
regime axiológico assumido pelo sujeito da enunciação, indivi-
dual ou coletivo.
Para o regime que visa aos valores de absoluto, o máximo
de intensidade está associado à unicidade, ou seja, a uma gran-
deza definida por sua tonicidade e sua exclusividade; no plano
discursivo, essa grandeza será qualificada de “sem paralelo”,
“inigualável”, “única”...: ele apenas ou ela apenas serão os únicos
predicados dignos desta concentração de valor, como na segunda
quadra do conhecido soneto de Verlaine:

“Car elle me comprend, et mon coeur transparent


Pour elle seule, hélas! cesse d’être un problème
Pour elle seule, et les moiteurs de mon front blême,
Elle seule les sait rafraîchir, en pleurant.”13

Esse regime dos valores de absoluto tem por base a


intersecção de um eixo da intensidade e de um eixo da quantifi-
cação que possuem como termos extremos, de um lado, a sin-
gularidade, aqui valorizada como unicidade e, de outro, a uni-

13
[N. dos T.]:
“Porque ela me compreende, e meu coração transparente
Só por ela, ai de mim! deixa de ser um problema
Só por ela, e o suor de minha fronte pálida
Só ela sabe refrescar, chorando”

48
VALOR

versalidade, cuja orientação torna-se, pois, para esse regime, ne-


gativa. Os intervalos correspondentes à quantificação são aque-
les realizados nas línguas, só que falta evidentemente estabele-
cer que, no universo de discurso em que intervém esse regime,
um determinado valor num eixo está ligado por comutação a um
determinado valor no outro. Em outras palavras, cada fase de
concentração ocasiona um deslocamento na escala da quantida-
de, o que significa a ultrapassagem de uma fronteira ou, ainda,
que cada “abertura” se dá ao preço de uma queda de intensidade.
A avaliação própria desse regime é, pois, positiva quando a in-
tensidade aumenta e a extensidade diminui, negativa quando a
intensidade enfraquece e a extensidade aumenta.
No outro regime, a “importância” dos valores é função de
sua extensão; o limite corresponderia, entre outras coisas, ao
imperativo categórico de Kant, segundo o qual todo valor deve
poder se submeter à universalização. Desde então, uma vez que
as duas dimensões evoluem de maneira conversa, a avaliação é
positiva quando a extensidade e a intensidade estão no nível mais
alto e negativa quando estão ambas no nível mais baixo.
Essas proposições proporcionam um conteúdo formal e
operatório a uma intuição que se manifesta em Semiótica das pai-
xões, a saber que os universos de valores são secretamente regi-
dos no espaço tensivo por dois grandes tipos de valências: as
valências de intensidade, que modulam as energias em conflito,
e as valências quantitativas, que modulam notadamente as pro-
priedades merológicas da percepção. Os dois grandes regi-
mes axiológicos assentam na correlação inversa ou conversa
desses dois gradientes. Identificamos a exclusão-concentração,
regida pela triagem, e a participação-expansão, regida pela mis-
tura, como as duas principais direções capazes de ordenar os
sistemas de valores.
Consideremos agora o tratamento do limite. Na medida em
que sabemos que a participação governa o regime dos valores de

49
VALOR

universo e a exclusão, o dos valores de absoluto, convém exa-


minar, para cada um desses regimes, sua aspectualização a par-
tir da questão: a mobilização de cada um desses dois princípios
será total ou parcial? A segunda possibilidade apresenta uma
configuração interessante: no caso da exclusão, se esta não for
total, devemos nos perguntar qual é o lugar que a exclusão con-
cede à ... participação. Também no caso da participação, se ela
não for total, deve conceder igualmente um lugar para a exclu-
são. Do ponto de vista da práxis enunciativa, isso representa para
o sujeito, individual ou coletivo, ter que tratar, em função do
regime prevalente, uma ou outra dessas duas questões: como,
no regime da participação, excluir participantes? Como, no regime
da exclusão, fazer participar os excluídos?
Assim, literalmente, cada uma das duas funções, reconheci-
das pela antropologia clássica, torna-se, a partir de sua aspectua-
lização parcial, objeto para a outra. Para o sujeito coletivo, fare-
mos referência às observações de Lévi-Strauss sobre os modos de
punir em Tristes tropiques:

“Penso em nossos costumes judiciários e penitenciários. Se os es-


tudássemos de fora, seríamos tentados a opor dois tipos de socie-
dades: as que praticam a antropofagia, ou seja, que vêem na ab-
sorção de certos indivíduos detentores de forças temíveis, o único
meio de neutralizá-las e mesmo de colocá-las a seu favor; e as que,
como a nossa, adotam o que poderíamos chamar de antropoemia (do
grego émein, vomitar); diante do mesmo problema, essas últimas
escolheram a solução inversa, qual seja a de expulsar esses seres
temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou defi-
nitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabele-
cimentos destinados a esse uso.”14

Para o sujeito individual, gostaríamos de introduzir a hi-


pótese de que o modus vivendi, o compromisso, entre exclusão e

14
LÉVI-STRAUSS, Cl. Tristes tropiques. Paris, Plon, 1959, p. 418.

50
VALOR

participação é procurado na pejoração e na melhoração; a identifi-


cação dos “bons” ou dos “maus” permite, no caso da participa-
ção, restringir a própria extensão do universal, evitando que a
exclusão ganhe todo o terreno; no caso da exclusão, a mesma
distinção, mas em sentido inverso, permite estender o domínio
dos “bons”, evitando que a universalidade e a indiferenciação,
quando não a entropia da qual ela é portadora, ganhem todo o
terreno.
Na medida em que as definições sintagmáticas esforçam-se
para apreender o alcance das transformações sintáxicas, somos
levados, como no tratamento da valência, a caracterizar essas
transformações por sua extensão. Admitiremos que essas trans-
formações são restritas ou ampliadas.
Elas serão restritas quando sobrevêm no interior de um só
regime, ou seja, quando a participação e a exclusão, sem deixar
de ser funções, assumem igualmente valores de termos; os per-
cursos consistiriam nesse caso em variações de equilíbrio entre
a participação e a exclusão; por exemplo, se existe um devir da
participação, este corresponderá à “dose” de exclusão admiti-
da: é o caso da aparição da economia, ou até da avareza, numa
sociedade em que prevalece a troca e a circulação de bens. E,
reciprocamente, se existe um devir da exclusão, este está às vol-
tas com a área da participação que admite: as pesquisas de E.
Landowski sobre a marginalidade e o estatuto do Outro em nos-
sas sociedades referem-se a esse caso de figura15. As transforma-
ções restritas esforçam-se, pois, para determinar e ajustar os
valores médios do “mais” e do “menos”. A melhoração suspen-
de a exclusão própria dos valores de absoluto, admitindo no
espaço dos valores uma zona participativa; do mesmo modo, a
pejoração suspende a participação, delimitando uma zona ex-
clusiva: em relação à intensidade, a melhoração pode passar

15
LANDOWSKI, E. Présences de l’autre. Paris, P.U.F., 1997.

51
VALOR

por uma negação; em relação à extensidade, a pejoração desem-


penha o mesmo papel.
As transformações serão ditas ampliadas se a participação e a
exclusão repelirem-se mutuamente, participação total culminando
com os valores de universo ou exclusão implacável conduzindo
aos valores de absoluto. Os valores são, nesse caso, valores extre-
mos, ou seja, adstritos à alternativa do “tudo ou nada”.
O conjunto das possibilidades sintáxicas oferecidas no es-
paço dos valores assenta, efetivamente, na categorização do com-
plexo tensivo “intensidade/extensidade”:

Universalização Exclusão
(aliança, aliagem) (pureza)

Melhoração Pejoração
(acréscimo) (contração)

3 CONFRONTAÇÕES

Nessa seção, cabe-nos, evidentemente, precisar o liame


entre valor e valência: a valência apresenta-se como o elemento
analítico do valor, e, de maneira mais corrente, como o “valor
do valor”. Cada uma das duas espécies de valores indicados, os
valores de absoluto e os valores de universo, aplica-se às duas
profundidades destacadas, a intensiva e a extensiva; em cada
profundidade, dois operadores intervêm normalmente: para a
profundidade intensiva, a abertura e o fechamento; para a pro-
fundidade extensiva, a triagem e a mistura. Tanto num caso como

52
VALOR

no outro, o imaginário semiótico pode ser concebido “a montan-


te” como uma barragem – um “container” segundo P. Aa. Brandt
– que, simultaneamente, deixa escapar e retém, de maneira que
a soma das duas operações fica constante. Por conseguinte, as
valências próprias a essas operações permitem precisar a tipologia
subsumida por cada classe de valores:
a) os valores de universo supõem a predominância da
valência da abertura sobre a do fechamento e a predominância
da valência da mistura sobre a da triagem; em relação à primeira,
a abertura vale como livre e o fechamento como restrito, ou até
apertado; em relação à segunda, o misturado é avaliado como
completo e harmonioso e o puro é depreciado como incompleto ou
mesmo imperfeito ou desfalcado;
b) os valores de absoluto supõem a predominância da
valência do fechamento sobre a da abertura e a predominância
da valência da triagem sobre a da mistura; em relação à primeira,
o fechado vale como distinto e o aberto como comum; em relação
à segunda, o misturado deprecia-se por ser disparatado (cf. na
isotopia religiosa, o profano, ou mesmo o sacrílego), e o puro
aprecia-se justamente por ser absoluto, sem concessão (cf. o sa-
grado).

A rede das interações possíveis apresenta-se assim:

Abertura/Fechamento Pureza/Mistura
Valores de universo aberto = livre misturado = completo
fechado = excluído puro = incompleto
Valores de absoluto aberto = comum misturado = disparatado
fechado = distinto puro = “absoluto”

Esse esboço confirma a relatividade atual do esquema nar-


rativo: o “sentido da vida” obtido a partir da descrição proposta

53
VALOR

por V. Propp torna-se uma forma, entre outras, de vida possível,


ciosa de sua coerência própria e de sua “originalidade”, ou seja,
de sua distintividade. A título de ilustração, evidentemente su-
mária, é fácil revelar, no caso de figura em que o fechado domina
o aberto, que a apreciação do fechado encontrou no esnobismo
uma manifestação quase institucional, enquanto a depreciação
do aberto é nítida na pejoração que atinge, sem trégua, a cha-
mada sociedade de consumo, de tal maneira que aqueles que
ousam elogiá-la despertam suspeitas de serem “provocadores”
adeptos do paradoxo.
A manifestação de uma classe de valores estabelece, para
cada valor considerado isoladamente, o seu contexto, mas este
último é tratado seja como um recurso, seja como um comple-
mento. O contexto não é um parâmetro secundário, mas pri-
mordial e tensivo. Cada grandeza espera, pois, que o contexto
fixe a orientação geral do universo de discurso, revelando sua
chave axiológica: valores de absoluto ou valores de universo?
A reflexão de Max Weber sobre as condutas éticas interes-
sa-nos igualmente, já que o sociólogo chega a um resultado for-
malmente comparável ao que propomos: não há um sistema de
valores, mas dois que estão, segundo Weber, numa relação de
oposição abissal:

“Toda atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a


duas máximas totalmente diferentes e irredutivelmente opostas.”16

Trata-se da ética dita de responsabilidade e da ética de con-


vicção. Seus programas narrativos respectivos parecem distin-
guir-se primeiramente do ponto de vista aspectual:

“[...] o partidário da ética de responsabilidade levará em conta justa-


mente as fraquezas comuns do homem [...] e considerará que não

16
WEBER, M. Le savant et le politique. Paris, Bourgois, 10/18, 1963, p. 206.

54
VALOR

pode se isentar, à custa dos outros, das conseqüências de sua própria


ação na medida em que as tenha podido prever. [...] O partidário da
ética de convicção sentir-se-á “responsável” apenas pela necessida-
de de preservar a chama da pura doutrina para que ela não se apague
[...]”

Mas a diferença entre as duas orientações éticas vem à tona


assim que as confrontamos com os modos de existência: (i) segun-
do a ética de convicção, a potencialização dos valores é erigida em
absoluto, já que as conseqüências da ação são, de certo modo,
virtualizadas e, assim, consideradas como “nulas e sem efeito”; (ii)
segundo a ética de responsabilidade, a realização da ação é solidária
à atualização dos valores. Nos termos da rede apresentada anteri-
ormente, a ética de convicção resgata sua incompletude exaltando
sua pureza, enquanto a ética de responsabilidade deve sua completude
a seu caráter misturado, ou seja, ao fato de assumir também o que
Weber chama de lastimáveis conseqüências. Admitiremos, grosso
modo, que a ética de convicção procede a uma triagem, isolando a
intenção, enquanto a ética de responsabilidade pertence à mistura,
na medida em que recusa separar a intenção das conseqüências
que decorrem de sua operação.
Essa convergência permite precisar o lugar da semiótica no
seio das ciências humanas. A semiótica deveria ocupar, em relação às
ciências humanas, o lugar que a língua, segundo Hjelmslev, ocupa
frente aos demais sistemas semióticos, e que decorre de sua capaci-
dade de assegurar a traduzibilidade entre os outros sistemas. Essa
concepção era igualmente a de Greimas, que atribuía à semiótica a
tarefa de propor às ciências humanas uma metalinguagem coerente,
já que a semiótica pretende ser uma teoria da significação e as ciên-
cias humanas, sob um aspecto ou outro, exploram esta ou aquela
ordem de significações. Nesse caso, a função da semiótica não é di-
tar às ciências humanas suas hipóteses: ela encarrega-se apenas de
estabelecer as condições de uma “boa” comunicação entre semiótica
geral e semióticas singulares.

55
VALOR

O último ponto diz respeito à relação entre a moralização e


a tipologia dos valores. De fato, isso equivale a se perguntar como
os discursos “se viram” para pôr em circulação os valores. Desafia-
do pela tipologia dos valores, o discurso intervém, recorrendo à
melhoração e à pejoração. Com efeito, entre os dois grandes ti-
pos de valores, os valores singulares, exclusivos e visando ao
absoluto, e os valores universais, participativos e assumindo a
relatividade, interpõem-se os valores melhorativos e os valores
pejorativos, que se esforçam, de certo modo, para preencher o
hiato que existe entre os dois tipos; mas essa compensação, por
sua vez, submete-se a uma gradação. De fato, o lugar atribuído
ao regime concorrente, no interior de um regime axiológico do-
minante, pode ter maior ou menor importância: o regime tolera-
do e dominado estará, pois, ou em ampliação, ou em diminuição.
Lembremos, no entanto, que: (i) num micro-universo dirigido
pelos valores de absoluto, a participação é obtida por melhoração:
certos elementos considerados “bons” são adicionados; (ii) num
micro-universo dirigido pelos valores de universo, a exclusão é
obtida por pejoração: certos elementos considerados “maus” são
retirados. A variação da dosagem de cada uma dessas operações
conduz às seguintes avaliações:
a) Em regime de valores de absoluto: o aumento da melhoração
produz a banalização; a diminuição da melhoração produz a rare-
fação.
b) Em regime de valores de universo: o aumento da pejoração
produz a marginalização; a diminuição da pejoração produz a
generalização.
Delineia-se, assim, uma sintaxe dos tipos de valores, que
permitiria descrever a “vida” e a “morte” das axiologias e até o
grau de interesse e de desinteresse dos sujeitos que as utilizam:
a banalização, por exemplo, num regime de valores de absoluto,
conduz, progressivamente, não à vitória dos valores de univer-
so, mas a uma decomposição axiológica, assim como, num regi-

56
VALOR

me de valores de universo (uma democracia, por exemplo), a


marginalização. Imaginemos, por exemplo, um amor conforme o
cânone platônico: cada um com seu par ou a alma-gêmea enfim
reencontrada. Enquanto o sujeito não procura outras razões para
esse amor, ele está livre de qualquer inquietude, já que é o único
a poder unir-se ao outro. O lugar que ele ocupa na rede que aca-
bamos de produzir é o da rarefação. Mas se outras razões atin-
gem seu espírito, razões que poderiam ser partilhadas pelos ou-
tros, nesse caso abre-se a via à banalização; enfim, se nosso sujei-
to chega a imaginar o objeto de seu amor como universalmente
“amável”, o objeto amado torna-se agora um objeto difuso ao
qual outros sujeitos, além dele, têm acesso. O círculo trágico no
qual se envolve o ciumento insere-se na tensão entre uma exclu-
sividade de fato, que o ciumento atribui a si próprio, e uma par-
ticipação de direito dos outros que o ciumento não pode deixar
de admitir. É como se a morfologia dos valores de absoluto, aos
quais o ciumento se prende, fosse minada pela dos valores de
universo que, no entanto, ele não pára de convocar. Ao contrário,
a “prostituição”, de que nos fala Baudelaire nas primeiras pági-
nas de Fusées, parece justamente corresponder a um funciona-
mento hiperbólico dos valores de universo17.
A pejoração e a melhoração confirmam-se como pontos de
vista indispensáveis, pois que permitem diferenciar operações e
grandezas que, sem isso, viriam a confundir-se. Como já subli-
nhamos, o concentrado e o difuso não possuem significação em
si: é o devir, a “dura lei” da correlação tensiva que faz sentido
porque impõe inexoravelmente o enfraquecimento do termo
correlato, quando, por exemplo, a exclusão leva à negação de

17
“O amor é o gosto da prostituição. Não existe sequer prazer nobre que não possa ser
associado à prostituição./ Num espetáculo, num baile, todos desfrutam de todos./ O
que é a arte? Prostituição./ O prazer de estar nas multidões é uma expressão misteriosa
do desfrute da multiplicação do número [...]” [Tradução livre], in Œuvres complètes, op.
cit., p. 1189.

57
VALOR

toda extensão, ou ainda quando a difusão extenua toda concen-


tração...
Estamos agora aptos a atribuir aos diferentes tipos de va-
lores um modo de existência próprio. Mas, antes de tudo, intro-
duziremos uma modificação na correspondência proposta no
Dicionário de semiótica e retomada em Semiótica das paixões18 (cf.
capítulo “Presença”) da seguinte maneira:

Realização Virtualização
Conjunção Disjunção

Atualização Potencialização
Não-disjunção Não-conjunção

Esse remanejamento pareceu-nos necessário na medida em


que (i) a acepção lingüística mais corrente da atualização é a de
uma “subida” das estruturas virtuais em direção à manifestação
e, por conseguinte, em direção à realização, e (ii) a potencializa-
ção, principalmente pelo efeito da práxis enunciativa, conduz a
um retorno das formas do uso para o sistema ou, pelo menos, a
uma memória esquemática que fica em seu lugar.
Desde então, podemos considerar que: (i) os valores de
absoluto são virtualizantes porque são disjuntivos; (ii) os valores
de universo são realizantes porque são conjuntivos; (iii) os valo-
res melhorativos são atualizantes por serem não-disjuntivos: ad-
mitem algum suplemento no interior dos valores de absoluto;

18
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 52.

58
VALOR

(iv) os valores pejorativos são potencializantes por serem não-con-


juntivos: suspendem, de um determinado elemento, a condição
de pertencente aos valores de universo.
A partir disso, estamos aptos a afirmar que os grandes ti-
pos de valores podem ser considerados como modos de existência
do valor no interior das culturas individuais e coletivas e que es-
ses se mostram, por isso mesmo, capazes de articular as modula-
ções da presença e da ausência dos valores (cf. capítulo “Presença”);
os regimes de valores serão, então, reformuláveis em termos de
densidade de presença para um sujeito sensível, e capazes de
fundar sua “forma de vida”.
Além disso, a onipresença dos julgamentos melhorativos e
pejorativos no discurso torna-se compreensível na medida em
que esses pressupõem a escolha de um ponto de vista, ou seja, a
preferência por uma valência e a negligência em relação a outra.
A pejoração, por exemplo, supõe que o acréscimo de intensida-
de tem por correlato um empobrecimento em extensidade. Pode-
se admitir, para utilizar uma imagem, que a pejoração é a ante-
câmara da exclusão, assim como a denegação da pejoração, quando
intervém, permite prever uma reintegração próxima daquele que
era ameaçado de exclusão.

59
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

PRELIMINAR

É INCÔMODO examinar essas duas noções, em razão da


centralidade que lhes foi atribuída nas teorias hjelmsleviana
e greimasiana: para Hjelmslev, a culminância da teoria da lingua-
gem – mas não dos “prolegômenos” dessa mesma teoria – equi-
vale a uma “ciência das categorias”, refutando a distinção tradi-
cional entre sintaxe e morfologia:

“Vê-se também que uma tal descrição sistemática da língua, efetu-


ada à base do princípio de empirismo, não permite nenhuma sin-
taxe e nenhuma ciência das partes do discurso.”1

No que respeita ao quadrado semiótico, para Greimas e


Courtés,

“Compreende-se por quadrado semiótico a representação visual


da articulação lógica de uma categoria semântica qualquer.”2

Mas a centralidade do quadrado semiótico não tem muito


a ver com a da categoria na perspectiva hjelmsleviana: para
Greimas e Courtés, a centralidade do quadrado semiótico pro-
vém da posição que se lhe designa no percurso gerativo, isto é,
em última análise, no universo de discurso particular cujo simu-
lacro o percurso gerativo tenta estabelecer, ao passo que, para
Hjelmslev, a centralidade da categoria deriva do conteúdo exclu-

1
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 107.
2
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 364.

61
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

sivamente funcional que ela apreende. Carregando um pouco nas


tintas, o quadrado semiótico está no centro do discurso, e a cate-
goria, no centro do discurso sobre o discurso.
Duas outras diferenças devem ser assinaladas: (i) as duas
noções diferem em extensão. Segundo a definição dada em Le
Langage:

“categoria, paradigma cujos elementos não podem ser introduzi-


dos senão em certos lugares da cadeia, e não em outros.”3

A categoria é, assim, uma singularidade situada na cadeia,


ao passo que, para Greimas e Courtés, o quadrado semiótico,
com as orientações previstas, deverá, ao cabo da descrição, re-
velar-se coextensivo à cadeia; (ii) para Greimas e Courtés, a articu-
lação é dada como “lógica”, mas parece-nos mais judicioso
considerá-la como “lógico-discursiva”; caso contrário, a teoria
semiótica seria “apriorística” e “transcendente”, ou seja, contra-
ditória com as premissas epistemológicas às quais, por outro
lado, ela se vincula. Para Hjelmslev, já não sucede o mesmo, se
se admitir que o ensinamento da Catégorie des cas é mais claro
que o dos Prolegômenos, visto ser a oposição participativa julgada
mais pertinente para descrever os dados semióticos do que a
oposição distintiva:

“O princípio estrutural que dirige o sistema lingüístico dos casos é


por definição pré-lógico. A relação entre dois objetos, que é a sig-
nificação dos casos, pode ser concebida por um sistema de oposi-
ções lógico-matemáticas ou por um sistema de oposições
participativas. Ora, só o sistema desta última espécie é que reco-
bre os fatos da linguagem e permite descrevê-los pela via imedia-
ta. Mas seria possível reduzir o sistema da lógica formal e o da
língua a um princípio comum que poderia receber o nome de sistema

3
HJELMSLEV, L. Le langage. Paris, Minuit, 1969, p. 173.

62
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

sublógico. O sistema sublógico fundamenta o sistema lógico e o


sistema pré-lógico ao mesmo tempo. [...]”4

Cada uma dessas abordagens, em suma, proporciona à ou-


tra o que lhe falta: por um lado, a abordagem de Hjelmslev apre-
senta o “sistema lógico” preconizado por Greimas e Courtés como
uma das soluções possíveis. Por outro, a práxis descritiva proposta
por Semântica estrutural e pelo Dicionário de semiótica permite apli-
car o aparato teórico dos Prolegômenos à análise dos textos que
Hjelmslev recomendava, sem todavia mostrar como abordá-la. As
conseqüências para o tratamento de tais noções no presente tra-
balho são duplas: em primeiro lugar, o tratamento do quadrado
semiótico está subordinado ao da categoria, assim como o da
espécie ao do gênero; em segundo lugar, o quadrado semiótico é
especificado por sua orientação e pelo número reduzido de ter-
mos que contém. Semelhante relativização afasta tanto a tenta-
ção do dogmatismo ortodoxo – o quadrado seria uma aquisição
definitiva –, quanto heterodoxo: o quadrado teria caído em desuso,
e seria chegada a hora de descartá-lo.

1 RECENSÃO

As recensões respectivas das categorias e do quadrado se-


miótico são obviamente muito diferentes uma da outra. O pensa-
mento europeu deve as primeiras a Aristóteles; de acordo com D.
de Tracy:

“As dez categorias são a substância, a quantidade, a qualidade, a


relação, o lugar, o tempo, a situação, ter, agir e padecer; ou seja – e
isso foi bem observado pelos autores de Port-Royal –, ele [Aristóteles]
quis reduzir a dez classes todos os objetos de nossos pensamentos,
incluindo todas as substâncias na primeira e todos os acidentes nas
nove outras.”5

4
HJELMSLEV, L. La catégorie des cas, op. cit., p. 127.
5
TRACY, D. citado pelo Littré, verbete “Catégorie”.

63
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Kant transformará esse inventário em um sistema de qua-


tro “dimensões”: a quantidade, a qualidade, a relação e a modalida-
de, cada uma admitindo três casos. Perante tal herança, os lin-
güistas dividiram-se entre três atitudes: os que avaliaram que
ela não lhes dizia respeito, os que – como por exemplo Benveniste
– julgaram que as categorias decorriam da gramática da língua
em que eram enunciadas, e enfim os que, como V. Brøndal, con-
sideraram que era necessário compor-se com elas 6 .
De outro ponto de vista, a partir das investigações antro-
pológicas sobre a percepção, conduzidas nos anos 70 por Berlin
e Kay, a psicologia americana, na pessoa de Rosch, mostrou como
os sujeitos empíricos (os informantes empenhados em dispositi-
vos experimentais) constroem as categorias necessárias à apreen-
são de seu meio ambiente. Toda uma corrente da semântica con-
temporânea 7 , representada na França por G. Kleiber8 , ex-
plorou os resultados de tais pesquisas sob a denominação de
“semântica dos protótipos”. Na verdade, trata-se antes da cate-
gorização pelos sujeitos psicológicos e culturais (na versão mais
recente dessa teoria), categorização que opera por tipificação, e
cabe indagarmo-nos se é legítimo projetar esse procedimento,
bastante pertinente do ponto de vista psicológico e antropológi-
co, na descrição semiolingüística da categoria. Como quer que
seja, uma vez admitida a variedade dos modos de construção
psico-antropológica das categorias, o quadrado semiótico, re-
conhecido como específico de seu funcionamento discursivo, só
pode considerar-se como produto de um desses modos de cons-
trução, como uma apreensão entre outras: aquela, justamente,
que assenta nas “estruturas elementares” da significação.

6
BRØNDAL, V. “Langage et logique”, in Essais de linguistique générale. Copenhague, E.
Munsksgaard, 1943, p. 48-71.
7
Ver, em particular, RASTIER, Fr. Sémantique et recherches cognitives. Paris, P.U.F.,
1991, p. 180-236.
8
KLEIBER, G. La sémantique du prototype. Paris, P.U.F., 1990.

64
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

No que toca ao quadrado semiótico, se se aceitar vê-lo como


um caso particular daquilo que A. de Libéra denomina um “dispo-
sitivo quadrangular”9, então não será impossível vinculá-lo ao qua-
drado de Apuleio, para uns, de Aristóteles, para outros, o qual per-
mite articular “quatro proposições diferenciadas pela quantidade e
pelo caráter positivo (afirmativo) ou negativo do juízo que encer-
ram”10 . Tal filiação, entretanto, não é reivindicada por Greimas, e,
se for preciso a qualquer custo designar “pais espirituais”, são an-
tes os nomes de Hegel e Lévi-Strauss que vêm à mente. O quadra-
do semiótico11 está contido em filigrana no último capítulo de
Semântica estrutural, dedicado à obra de Bernanos, capítulo em que
a referência a Hegel é explícita12. Mas é principalmente o modelo
proposto por Lévi-Strauss no estudo intitulado “A estrutura dos
mitos”13 que se menciona:

“[...] a nova formulação do modelo apresenta a vantagem de ser


idêntica, quanto à forma de sua articulação, à da estrutura acrônica,
imanente, do conto popular, assim como ao modelo do mito pro-
posto por Lévi-Strauss.”14

2 DEFINIÇÕES
2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

O empreendimento greimasiano não pôde eludir o fato de


que a lingüística européia, nos anos sessenta, estava marcada

9
LIBÉRA, A. de. “La sémiotique d’Aristote”, in NEF, F. (Ed.). Structures élémentaires de la
signification. Bruxelles, Complexe, 1976, p. 28-55.
10
Op. cit., p. 30.
11
Sua primeira explanação sistemática deve-se a A. J. GREIMAS e RASTIER, F. “O jogo das
restrições semióticas”, in GREIMAS, A. J. Sobre o sentido. Petrópolis, Vozes, 1975,
p. 126-43.
12
GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. São Paulo, Cultrix, 1973, p. 326.
13
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.
14
GREIMAS, A. J. Semântica estrutural, op. cit., p. 302. Cf. igualmente Greimas, “Por uma
teoria de interpretação da narrativa mítica”, in Sobre o sentido, op. cit., p. 171-216.

65
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

pela diversidade de postulações. Numa perspectiva fundadora,


cuja necessidade ninguém contesta, quatro direções epistemoló-
gicas marcavam suas posições: uma semiótica da diferença e do
valor, herdeira declarada do Curso de lingüística geral de Saussure;
uma semiótica da dependência preconizada por Hjelmslev; uma
semiótica da oposição binária distintiva, formulada por Jakobson
e ilustrada por Lévi-Strauss; enfim, uma semiótica da complexida-
de, proposta já com certa clareza por Brøndal. Se é provável que
sua contemporaneidade tenha salientado as diferenças, com o
passar do tempo estas seriam paulatinamente atenuadas; de nos-
sa parte, situamo-nos precisamente num ponto intermediário em
que os desacordos e as convergências tendem a se equilibrar.
Em presença de tal diversidade, parece-nos que o empreen-
dimento greimasiano apresentava-se como duplamente
“ecumênico”: (i) ele foi capaz de provar que o aparelho concep-
tual, essencialmente “praguense”, previsto para dominar as dis-
tinções fonológicas, era transponível e aplicável ao tratamento
da narratividade; (ii) o empreendimento greimasiano, perante as
duas versões do estruturalismo, a “praguense” e a “dinamarque-
sa”, esforçou-se para conjugar a “letra” da versão praguense –
temos em mente o empréstimo declarado a Jakobson quanto à
tipologia das oposições elementares – e o “espírito” da versão
dinamarquesa15, a saber: por um lado, a “teoria da linguagem”
proposta por Louis Hjelmslev, não por ser a melhor, mas por ser
esta, em certo sentido, a única que assegura de maneira coerente
a continuação da revolução saussuriana (apesar da ampliação no-
tável do foco); por outro lado, a importância da complexidade
ressaltada por Brøndal:

15
ZILBERBERG, Cl. “Greimas et le paradigme sémiotique”, in Raison et poétique du sens.
Paris, P.U.F., 1988, p. 65-94.

66
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

“[...] minha principal dívida é para com Viggo Brøndal, que propôs
uma combinatória sistemática das oposições morfológicas.”16

Mas tal síntese põe entre parênteses a tensão entre essas


duas correntes teóricas, tensão que não deixa de ressurgir, em
particular na análise dos discursos.
A divergência entre as duas principais correntes do estru-
turalismo europeu provém do fato de a escola praguense admi-
tir a existência de termos simples, e, quando fosse o caso, com-
postos, ao passo que para a escola dinamarquesa a complexida-
de é primeira e todos os termos são compostos – dado que,
para Hjelmslev, “[...] toda grandeza é uma soma”17. Esta posição
descende em linha direta do Mémoire sur le système primitif des
voyelles dans les langues indo-européennes de Saussure, obra que
demonstrara serem complexas as vogais longas, uma vez que
associavam uma vogal breve e um “coeficiente sonântico”. O
progresso, se é que há algum, vai da ilusão da simplicidade ao
reconhecimento da complexidade.
Preocupado em explicitar o que o separa dos praguenses,
Hjelmslev afirma que dois modos de organização das entidades
podem ser previstos: a rede e a hierarquia; define a primeira como
“análise por dimensões”, a segunda como “análise por subdivi-
são”. A análise por dimensões, que produz as “redes”,

“consistiria em reconhecer, no interior de uma categoria, duas ou


várias subcategorias que se entrecruzam e se interpenetram. [...]”18

A partir daí, cada membro da categoria pode ser conside-


rado como a intersecção de pelo menos duas dimensões e, por
conseguinte, como composto por um mínimo de duas grande-

16
NEF, F. (Ed.). Structures élémentaires de la signification, op. cit., p. 21.
17
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 89.
18
HJELMSLEV, L. Nouveaux essais, op. cit., p. 49.

67
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

zas. Esse é, entre outros, o princípio da análise sêmica mais co-


mum. A análise por subdivisão, que produz hierarquias,

“consistiria em repartir os membros da categoria superior em duas


ou várias classes, das quais pelo menos uma comportaria ao menos
dois membros”,

de tal forma que cada membro da categoria pode ser definido


pela maneira (parcial ou total) como ocupa as casas obtidas por
subdivisão.
A diferença entre as duas abordagens não é nada negligen-
ciável:

“A diferença operativa entre os dois procedimentos consiste no fato


de se estabelecerem, na análise por dimensões, simultaneamente
duas (ou várias) subcategorias que são absolutamente coordenadas,
ao passo que, na análise por subdivisão, são estabelecidas sucessiva-
mente duas (ou várias) subcategorias, a segunda das quais está subor-
dinada à primeira (a terceira à segunda, e assim por diante se for o
caso).”19

Acrescentemos que a intervenção das valências, que pre-


conizamos no capítulo a seu respeito, requer a análise por di-
mensões.
É possível relacionar a tipologia dos termos primeiros a tal
problemática. Uma “análise por dimensões” não conhece senão
termos complexos, obtidos a partir de pelo menos duas dimen-
sões, enquanto uma “análise por subdivisão” encontra, ao mes-
mo tempo, termos complexos e termos simples. Os textos funda-
dores do estruturalismo podem ser abordados como tomadas de
posição nessa matéria. Para o fundador da glossemática, todos
os termos são complexos, ainda que pareçam simples. Brøndal e

19
Op. cit., p. 50.

68
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Greimas registram a existência de uns e outros, mas separam-se


em seguida: as dominâncias brøndalianas são as mediadoras por
excelência entre termos positivo e negativo, ou ainda – mas isso
não está nítido – entre termos plenos e termo neutro; Greimas
atribui aos operadores lógicos, contradição e implicação, a tarefa
de conduzir de um contrário a outro. Enfim, as oposições jakob-
sonianas referem-se, obviamente, a termos simples em si. Para
resumir: entre Hjelmslev e Jakobson, que optam exclusivamente,
o primeiro pela complexidade, o segundo pela simplicidade,
Brøndal e Greimas conjugam ambas as soluções.
A partir disso, definir uma relação paradigmática apenas
pela alternância é visivelmente retirar-lhe ao menos metade do
alcance. Atingimos a inteligibilidade de uma relação paradigmá-
tica quando as três seguintes condições estão satisfeitas: (i) a re-
lação paradigmática se insere no que propomos chamar, com
Hjelmslev, uma rede, da qual a alternância paradigmática só re-
presenta uma parte, a parte “cega”, por assim dizer, já que a ou-
tra metade está faltando; (ii) uma rede compõe, por definição,
dimensões distintas. Nesse sentido, várias explanações no pre-
sente estudo mostram que as dimensões predominantes podem
ser a intensidade e a extensidade; (iii) em cada dimensão operam
correlações de valências, ora conversas, ora inversas, embora as
incidências das correlações inversas sejam mais significativas e
mais pungentes para os sujeitos do que as das correlações con-
versas.
Parece-nos que tais exigências se lêem indiretamente atra-
vés das dificuldades, ou até das objeções, que jamais deixaram
de acometer o quadrado semiótico: (i) o material operatório não
é homogêneo, pois que o quadrado mobiliza por um lado a con-
trariedade e a contradição, e por outro lado a implicação, mas
uma solução de continuidade subsiste, apontada por exemplo
por B. Pottier, que sempre insistiu no fato de que não-rico não
implica necessariamente pobre; (ii) o caráter bidimensional do

69
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

quadrado é evidente no caso dos quadrados modais, que com-


põem ao menos dois predicados, e a solução proposta, a saber, o
recurso ao “grupo de Klein”20, nada mais faz que dar uma forma
ao problema, sem resolvê-lo; (iii) a despeito dos tesouros de
ingeniosidade produzidos por Greimas, a diferença entre o mo-
delo constitucional e o modelo transformacional permanece bem
tênue, e tem-se o sentimento de uma simples variação de ponto
de vista:

“Uma nova interpretação da estrutura elementar da significação [...]


parece, a partir disso, possível: se a primeira procurava traduzir a
maneira pela qual se supõe que o sentido se articula para ser apreen-
dido enquanto significação, a segunda por sua vez permite compre-
ender como a significação é produzida por uma série de operações
criadoras de posições diferenciadas.”21

Mas como, por outro lado, a significação não se apreende


senão em sua transformação, a distinção permanece bastante
frágil.
A reformulação da semântica fundamental a partir das pre-
missas tensivas – projeto declarado nas primeiras páginas de
Semiótica das paixões – deve, para atingir o fim que se propõe, ser
capaz de compor os seguintes dados: (i) ela toma a forma de
uma rede que associa ao menos duas dimensões ligadas por uma
função, conforme a definição proposta pelos Prolegômenos: “Uma
dependência que preenche as condições de uma análise será de-
nominada função.”22; (ii) toda grandeza, cuja pertinência à rede
esteja demonstrada, deve por isso mesmo ser considerada como
complexa: se a rede compreender duas dimensões, A e B, a defini-

20
COURTÉS, J. Analyse sémiotique du discours. Paris, Hachette, 1991, p. 136-60; FONTANILLE,
J. Le point de vue dans le discours - de l’épistémologie à l’identification, Tese de doutorado de
Estado, Univ. Paris III, 1984, primeira parte.
21
In Structures élémentaires de la signification, op. cit., p. 22.
22
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 39.

70
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

ção de uma grandeza será do tipo: [(valência de A) + (valência de


B)]. Observemos apenas que Greimas, nas primeiras páginas de
Semântica estrutural, estabelecia a complexidade do lexema “tête”,
mas sem assinalar a tensão entre as duas dimensões da /extremi-
dade/ – intensiva? – e da /esfericidade/ – extensiva? Existe, contu-
do, um isomorfismo inegável entre os termos concebidos como
“pontos de intersecção de [tais] feixes de relações” e a rede for-
mada pela “interpenetração” das dimensões.

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

A questão que se nos apresenta no momento é a seguinte:


se a rede vale como sistema, que processo lhe corresponde? Em
outros termos, qual o teor da sintaxe adequada à rede?
Seria no mínimo estranho que a sintaxe fundamental pre-
vista por Greimas, sintaxe que opera por contradição [s1 → não
s1] e implicação [não s1 → s2], conviesse à rede. Não pareceria
menos estranho, porém, que as operações próprias da rede fos-
sem totalmente alheias à sintaxe fundamental. A principal cen-
sura dirigida à sintaxe fundamental sempre incidiu sobre a impli-
cação: esta era incumbida de proporcionar o “suplemento” que a
contradição era incapaz de fornecer, a não ser que excedesse sua
própria definição.
Se a implicação constitui uma dificuldade, é aparentemen-
te por supor uma homogeneidade da categoria que a contradi-
ção, por sua vez, coloca em xeque, negando o eixo semântico e
abrindo uma infinidade de possíveis capazes de desestabilizar a
categoria23. Para que “não-pobre” possa implicar “rico”, parece
necessário, segundo essa objeção, postular-se antes de mais nada
uma redução de todos os gradientes subjacentes, para se atingir
o menor número possível de posições. A objeção de B. Pottier

23
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. “Le beau geste”, R.S.S.I., 13, 1-2, 1993, p. 21-35.

71
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

recai justamente, entre outras coisas, sobre a legitimidade de tal


redução, na medida em que há uma infinidade de maneiras de
não ser “pobre”, a maioria das quais não consiste em ser “rico”.
A versão sintáxica do mesmo problema é ainda mais clara,
pois, se a contradição representa o abandono do domínio de A
por negação, a asserção correspondente à implicação permite re-
integrar-se no domínio de B: vale dizer que a negação e a
asserção só podem atuar entre os domínios A e B, mas não no
interior de cada um deles, e, por conseguinte, cada subdomínio
constitutivo da categoria é considerado como simples e não
graduável.
Pode-se contudo vislumbrar uma solução, à qual retornare-
mos, e que se deve ao fato de a negação pluralizar, ao passo que a
asserção reduz e concentra: os operadores do quadrado semiótico,
e em particular a seqüência [contradição → implicação], parecem
gerir em segredo uma componente quantitativa, isto é, extensi-
va. Conseqüentemente, conforme as hipóteses formuladas a res-
peito das valências e valores, como a extensidade não poderia
atualizar-se sem afetar a intensidade (e reciprocamente), essa de-
pendência nos autoriza a supor, subjacentes às operações
canônicas do quadrado semiótico, correlações entre a intensida-
de e a extensidade.
De resto, esqueceu-se muitas vezes que o princípio da co-
mutação, na medida em que garante o valor de uma oposição,
implicava estar toda alternância paradigmática ligada, em dis-
curso, a pelo menos uma outra alternância. O que se traduz pelo
fato – cabal evidência que não seria inútil recordar aqui – de que
a “pobreza” entrará em isotopias diferentes conforme apareça,
por exemplo, num conto folclórico ou nos Evangelhos. No pri-
meiro caso, ela será tratada dentro da isotopia social, como uma
figura do não poder fazer individual; no outro, dentro da isotopia
da sensibilidade à palavra divina, quer dizer, na verdade, como
um poder saber ou poder sentir.

72
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Isso equivale a dizer que as relações lógico-discursivas pró-


prias à categoria constituem-na apenas em razão da correlação
que associa a dimensão “pobreza/riqueza” a outras dimensões,
como poder fazer/não poder fazer, num caso, ou “humildade/orgu-
lho”, “sensibilidade/insensibilidade à palavra divina”. De tal for-
ma que, mais concretamente, o “pobre” do Evangelho não se con-
tenta em desfazer-se de seus bens (negação), por causa da insen-
sibilidade à palavra de Deus que estes provocam, mas ele deve,
além disso, asseverar a “pobreza” – dentro da relação de implica-
ção – em virtude da nova capacidade que dela decorre, o que lhe
permitirá, então, acolher plenamente essa mesma palavra. De
certa maneira, a contradição visava a dissociar duas dimensões
agindo sobre uma só delas, enquanto a implicação-asserção sela
definitivamente sua solidariedade.
A “condução teleológica” que, segundo P. Ricoeur, dirigiria
sub-repticiamente as operações sintáxicas profundas24 , poderia
receber uma descrição em termos de correlações entre isotopias
do discurso. No caso específico da implicação-asserção, que “ar-
remata” o percurso no quadrado, seus mistérios poderiam ser
solucionados se se admitisse que não há categoria simples ou
isolável, sobretudo em discurso, e que a redução final imposta
pela implicação é na verdade guiada por um foco pertencente a
outra dimensão, correlativa da primeira.
Esse raciocínio, desenvolvido a propósito de uma correla-
ção externa, poderia ser utilmente reaplicado à complexidade
interna do próprio quadrado semiótico. Se se partir, não do ter-
mo simples “rico” que, na realidade, não tem qualquer direito à
existência antes do desdobramento de todas as suas relações
constitutivas, mas sim do complexo ainda indiferenciado “pobre-
za/riqueza”, que a somação identificou como zona de uma cate-

24
ARRIVÉ, M. & COQUET, J.-C. Sémiotique en jeu. Paris/Amsterdam/Philadelphia, Hadès/
John Benjamins, 1987, p. 293-7, bem como RICOEUR, P. “Entre herméneutique et
sémiotique”, Nouveaux Actes Sémiotiques, 7. Limoges, PULim, 1990.

73
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

goria, a contradição tenta dissociar as dimensões que lhe são


correlatas, e depois a implicação vem restabelecer-lhes a solidarie-
dade indissolúvel. Desse ponto de vista, a implicação/asserção
não pressupõe uma (duvidosa) homogeneidade da categoria, mas,
ao contrário, ela a constrói contra todas as tendências dispersivas
que se expressam. Noutras palavras, cada um tem liberdade para
imaginar um domínio semântico aberto e heterogêneo, em que
certas formas da “não-riqueza” ou da “não-pobreza” nos fariam
simplesmente sair da categoria: o “não-rico” e o “não-pobre” dei-
xariam, então, de ser afetados pela alternância “riqueza/pobre-
za”, e não haveria implicação capaz de convencê-los a completar
o percurso no quadrado, ou seja, declarar-se, o primeiro, “po-
bre”, e o segundo, “rico”. Mas, justamente, esse domínio aberto
e heterogêneo não está organizado pela pressuposição recíproca
“riqueza/pobreza”, pois “riqueza” e “pobreza” só se pressupõem
uma à outra de maneira estrita se “não-pobre” implicar “rico”, e
se “não-rico” implicar “pobre”.
Com relação à complexidade interna da categoria, a sintaxe
fundamental tenta, portanto, dissociar as dimensões: tratar à parte
pelo menos metade da rede, para depois reuni-las. O processo,
para abarcar as duas partes da rede, se vê então obrigado a recor-
rer a uma espécie de “jeitinho”, a implicação, que nada mais é,
como procuramos mostrar, que a reafirmação final da unidade de
uma categoria.
Talvez seja aqui a ocasião – mas voltaremos a isso – de
distinguir uma categoria semântica, que requer a interdependên-
cia estrita da pressuposição recíproca e das implicações, de um
simples domínio semântico, ou “campo”, no dizer de certos au-
tores, o qual seria muito mais tolerante, deste ponto de vista. Se
a semântica lingüística, e particularmente a lexical, na medida
em que manipula conjuntos já selecionados, limitados ou depu-
rados, pode a rigor satisfazer-se com os domínios, a semiótica
discursiva deve, em contrapartida, chegar a construir categorias,

74
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

que ofereçam aos conjuntos vastos, diversos e heterogêneos que


ela manipula, o mínimo de coerência necessário à inteligibilida-
de do discurso.
É simples fazer um balanço: se a contradição caracteriza a
dissociação da rede e se a implicação lhe assegura a existência e a
coerência, ou seja, a pressuposição recíproca das duas “semi-re-
des”, então a implicação deve ter prioridade sobre a contradição.
Observemos, antes de mais nada, que, ao adotar essa definição
da estrutura, colocamo-nos deliberadamente na perspectiva de
uma semiótica da dependência e da complexidade. Uma semiótica
da dependência é uma semiótica fortemente implicativa, que atri-
bui ao [se → então] (e à sua inversão concessiva) uma “força
ilocutória” superior; essa apresentação, contudo, é incompleta.
O operador adequado à rede é na realidade, como sugerimos, a
comutação, em que Hjelmslev via o sustentáculo do método
lingüístico e que ele incluiu na “estrutura fundamental de toda
língua, no sentido convencional”. Se nos colocarmos decidida-
mente na perspectiva da rede de dependências, limitando-nos ao
caso em que esta assenta na intersecção de duas dimensões, ob-
teremos as seguintes posições, selecionando os valores a e b numa
dimensão, e c e d na outra:

c d
a ac ad
b bc bd

A comutação supõe que os valores a e b numa determinada


dimensão “reclamem”, impliquem, isto é, selecionem respectiva-
mente os valores c e d em outra dimensão sempre ligada à pri-
meira, de tal sorte que, ao cabo dessa seleção, conservamos ape-
nas meia rede:

75
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

c d
a ac
b bd

A dependência e a diferença respondem assim pela estrutu-


ra: a dependência toma a forma das duas implicações, [ se a, en-
tão c ] e [ se b, então d ], enquanto a diferença produz a distinção
pressuposta: [ a ⇔ b ], e sua réplica pressuponente: [ c ⇔ d ]. Em
outras palavras, a disjunção entre os dois primeiros complexos
advém por causa da correlação entre as duas dimensões: é por-
que [ a ] e [ b ] selecionam respectivamente [ c ] e [ d ] (relações de
dependência “eletivas”) que [ a ] e [ b ] por um lado, [ c ] e [ d ] por
outro, estão disjuntos (relações de diferença).
A dependência “cria” a diferença, mas não por si só. Uma
semiose recorre a certas possibilidades do “sistema sublógico”,
mas não a todas, ou não na mesma perspectiva: ela leva em con-
ta aqui [ a - c ] e [ b - d ], mas “ignora” ou põe no segundo plano
os dois outros complexos possíveis [ a - d ] e [ b - c ]. E tal procedi-
mento, ou orientação, são inerentes à própria significação, pois
se todos os possíveis fossem manifestados, no plano da expres-
são bem como no do conteúdo, o sujeito só se veria às voltas
com universais e ficaria na impossibilidade de articular o sentido.
Noutros termos, a dependência só pode produzir a diferença se
ela for “eletiva”; essa seria, provavelmente, uma das operações
constitutivas para a somação: no interior de uma dimensão qual-
quer, uma grandeza, por exemplo, a “pobreza”, elege uma gran-
deza pertencente a outra dimensão, por exemplo a “humilda-
de”, e, ao fazê-lo, cria a possibilidade de uma diferença com as
outras grandezas de sua própria dimensão. Com efeito, a oposi-
ção entre “pobreza” e “riqueza” é apenas de escala, enquanto a
correlação com a dimensão “humildade-orgulho” não lhe confe-
rir valor e orientação (no caso, “pobre” → positivo, e “rico” →
negativo).

76
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

De certa maneira, a comutação significa que “se” muda de


valor sem no entanto sair do sistema. Ela confirma, de alguma for-
ma, a eleição operada inicialmente: [ se a, então c ] mas [ se b, então
d ]. Sair do sistema seria mudar a relação eletiva entre grandezas. Se
se admitir, considerando-se o complexo tensivo em que tais depen-
dências se instauram, que cada dimensão [ a - b ] e [ c -d ] é um
gradiente e cada grandeza solicitada [ a, b, c, d ] é uma posição num
gradiente, então o procedimento de “eleição” que estamos expondo
pode ser interpretado como o “estabelecimento de uma correlação”
entre dois gradientes. De acordo com o princípio estabelecido espe-
cialmente no capítulo sobre as valências, dispomos, no caso, de duas
possibilidades: a correlação conversa, que permite uma eleição “dire-
ta” entre grandezas de mesma ordem, e a correlação inversa, já entre
grandezas de ordem simétrica. Além disso, de um ponto de vista
sintáxico, a concessão – a relação inversa – pressupõe a implicação –
a relação conversa – na medida em que a contradiz.
Se pudermos admitir que as quatro entidades complexas
[ a - c ] e [ b - d ] por um lado, e [ a - d ] e [ b - c ] pelo outro,
constituem os termos da estrutura, cuja diferença, como já ressal-
tamos, provém de dependências “eletivas”, o jogo estrutural pode-
rá então adotar, no caso em que apenas duas dimensões estejam
correlacionadas, as duas formas seguintes:

+ +

b S2
b S2

S1
a S1
a
– –
– c d + – c d +

77
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Se, no interior de cada correlação, é a “eleição” de uma


grandeza por outra que faz emergir a diferença, entre duas corre-
lações o processo é bem outro: para saber se a correlação é con-
versa ou inversa, não basta identificar quais grandezas “elegem”
quais outras grandezas: é preciso, além disso, poder comparar
globalmente os gradientes e suas respectivas orientações. Vale
dizer, este segundo tipo de diferença põe em jogo, não este ou
aquele grau, mas as dimensões no seu conjunto, ou seja, literal-
mente a orientação e a coerência da rede. Aqui também, uma
dependência (a correlação) faz emergir uma diferença entre duas
maneiras de associar duas orientações; na realidade, a diferença
ou a semelhança entre as orientações, conversa ou inversa, de
cada dimensão, só aparece contra o fundo da dependência – a
correlação – que obriga a compará-las e adotar uma ou outra
solução.
Para tomar um exemplo já bem conhecido, o das
modalizações veridictórias, sabe-se que por definição e por cons-
trução, desde os anos 70, cada posição é definida como um ter-
mo complexo que conjuga as dimensões do ser e do parecer. Ad-
mitindo-se, por hipótese, que as duas dimensões são graduais –
não é absurdo supor que, a exemplo do que ocorre alhures, o ser
possa ser graduado conforme a intensidade e o parecer confor-
me a extensidade –, obtêm-se, mediante correlação conversa ou
inversa, os dois seguintes esquemas:

+
+

ser VERDADE ser SEGREDO

ILUSÃO
FALSIDADE não-ser
FALSIDADE
não-ser – –
– não- parecer + – não- parecer +
parecer parecer

78
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Parece, pois, que, a partir de uma semântica do contínuo,


da dependência e da complexidade, pode-se pensar em distin-
guir dois tipos de diferenças: (i) uma diferença interna, própria a
cada correlação, tal que a variação entre s1 e s2 – o percurso no
arco de correlação – possa ser tratada de maneira contínua, em
função de graus selecionados em cada uma das duas dimensões;
(ii) uma diferença entre duas correlações que, qualquer que seja a
solução adotada, só pode ser descontínua, pois não há passagem
contínua possível entre os dois arcos de correlação.
Concreta e intuitivamente, sabe-se que a ilusão e o segre-
do possuem um comprometimento mútuo: difícil falar, por exem-
plo, numa ilusão que não corresponda a um segredo, ou num
segredo que esteja mais bem guardado do que por trás do ante-
paro de uma ilusão. Cada correlação se apresenta, portanto, como
uma perspectiva homogênea sobre o complexo de ser e parecer,
em que os dois termos opostos são, apesar de tudo, solidários,
podendo estar até mesmo associados numa única estratégia
discursiva: nesse sentido, eles obedeceriam à regra de pressu-
posição recíproca, e poderiam ser tratados como contrários.
Conseqüentemente, a partir do momento em que se tenta
sintetizar as duas correlações em um único sistema quadrangular,
a passagem de uma correlação conversa para uma correlação inver-
sa deve processar-se como uma revolução interna à correlação: esta
não se encontra suspensa, por certo, mas a orientação dos gradien-
tes está invertida. No interior da categoria, tem-se de escolher obri-
gatoriamente uma das soluções, e cada uma delas exclui a outra.
Essas diferentes propriedades nos levam a reconhecer aí uma inter-
pretação plausível da contradição. O exemplo da veridicção mostra
cabalmente que tal síntese é incompleta, pois que temos ainda a
escolha entre duas soluções, se dispusermos “horizontalmente” os
dois pares de contrários, e “verticalmente” as duas correlações con-
traditórias:

79
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

(I) Verdade Falsidade OU (II) Verdade Falsidade


Segredo Ilusão Ilusão Segredo

A questão é a seguinte: quando partimos efetivamente de


um complexo que engendra as modulações da tensão entre duas
dimensões, como reconhecer, por exemplo, a modulação que
corresponderia ao contraditório apriorístico “não verdade”? Como
a contradição, aqui, é global – entre duas orientações da correla-
ção, isto é, entre duas formas de complexidade –, não se pode
logo de saída decidir que se trata do segredo ou da ilusão. É
então que o valor e o papel da implicação na estabilização do
quadrado semiótico aparecem plenamente.
Com efeito, se o segredo implicar a verdade (solução I),
isso significa que é o ser, igualmente positivo em um como no
outro, que está na posição de selecionar, ou o parecer (verdade),
ou o não-parecer (segredo); no que toca à implicação [ilusão →
falsidade], seria o não-ser que desempenharia o mesmo papel, de
tal sorte que somos levados a afirmar que, no que concerne à
primeira solução, é a dimensão do ser que é decisiva, na medida
em que são as grandezas que a compõem que são “eleitoras” (ou
selecionantes).
Em contrapartida, se a ilusão implicar a verdade (solução
II), isso significa que é o parecer (igualmente positivo num e nou-
tro) que, desta vez, está em posição de selecionar quer o ser (ver-
dade), quer o não-ser (ilusão); na outra implicação, o não-parecer
tem o mesmo papel, confirmando assim a função selecionante da
dimensão do parecer.
Em suma, a implicação continua a garantir aqui a homoge-
neidade (ou, em termos discursivos, a isotopia) da categoria; no
entanto, ela está condicionada pela distribuição dos papéis – elei-
tor/elegível, selecionante/selecionado – entre duas dimensões
correlatas (ao mesmo tempo em que revela essa distribuição): a

80
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

categoria veridictória, por exemplo, muda de disposição confor-


me a dimensão selecionante seja a do parecer ou a do ser.

3 CONFRONTAÇÕES

O primado da rede e, num âmbito mais geral, da complexi-


dade, sobre a oposição binária, incita-nos a examinar sua reper-
cussão na noção de ponto de vista. De fato, por relação à rede, o
ponto de vista não escapa ao seguinte dilema: operar, após seu
desligamento, quer com uma só dimensão: [ac ⇔ ad] ou [bc ⇔
bd], quer com duas dimensões: [ac ⇔ bd]. No primeiro caso, o
ponto de vista informa, dentre c e d, qual é o termo positivo; no
segundo caso, informa qual é a dimensão diretora. Considere-
mos a máxima de La Rochefoucauld: “A fraqueza se opõe mais à
virtude do que o vício.” (Máxima 445): ao invés de separar as di-
mensões do querer e do poder, essa máxima solda-as uma à outra,
de tal sorte que a única via de diferenciação – como já indicamos
no capítulo “Valor” – é a da melhoração e da pejoração; por con-
seguinte, a pejoração afeta o querer e a melhoração incide sobre o
poder, e a virtude e o vício podem ser parcialmente identificadas
em razão da “força” que requerem, e da “fraqueza” que repelem.
Nosso segundo exemplo será tomado a Baudelaire. No pri-
meiro verso da peça LXXVIII das Flores do Mal:

“Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle”25

o “céu” acrescenta às dimensões em uso – a luminosidade, a


superatividade espacial – as dimensões, inesperadas, da gravida-
de e da compacidade; ao fazê-lo, esse primeiro verso opera uma
comutação do ponto de vista: como a profundidade tátil vem to-

25
“E quando pesa o céu, tal tampa grave e baça”. Tradução de Jamil Almansur Haddad. São
Paulo, Difel, 1958. [N. dos T.]: Em razão do semantismo que liga “baixo” a “grave”,
propomos também a tradução literal: “Quando o céu baixo e grave pesa como tampa”.

81
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

mar o lugar da profundidade visual, o “céu” fica ameaçado de


promiscuidade com o “cá embaixo”. Surpreendente, a metáfora
indica uma mudança de regime: o “céu”, protegido, por assim
dizer, pelo regime da triagem (a separação, a distância), cai sob o
regime, pejorativo, da mistura (a promiscuidade).
Dessa maneira, a metáfora procederia, em geral, a uma co-
mutação de pontos de vista da mesma natureza, e a “grande”
metáfora – a que, de acordo com Proust, “é a única a poder dar
uma espécie de eternidade ao estilo, [...]” – é aquela que transfe-
re uma dada grandeza de um campo categorial para o campo
diametralmente oposto, por exemplo do ser para o fazer, da pes-
soa para a não-pessoa, do evento para a repetição, etc.26 Assim, a
metáfora homérica, “a aurora dos dedos de rosa”, projeta a auro-
ra da não-pessoa para a pessoa, do amorfo para o eidético, da
luminosidade para o cromatismo... Se a metáfora violenta real-
mente a práxis enunciativa, compreende-se que tenha sido consi-
derada, com a ajuda do tempo, como a “rainha” das figuras, a
despeito dos louváveis esforços envidados por Jakobson e Lévi-
Strauss para pôr a metonímia no mesmo patamar.
A proximidade com as propostas – e as denominações – de R.
Blanché em seu livro intitulado Structures intellectuelles são demasia-
do eloqüentes para serem ignoradas. Fica difícil, considerando-se os
limites que nos impomos, reproduzir aqui o encaminhamento, mui-
to técnico, do autor. Os procedimentos de engendramento dos dife-
rentes postos são diferentes: enquanto, para Greimas, trata-se de
passar de “dois” a “quatro” e, depois, mediante outras operações, de
“quatro” a “seis”, para R. Blanché trata-se, antes, de passar de “três”
a “seis”. Em segundo lugar, o papel da implicação parece menor na
abordagem de R. Blanché do que na de Greimas.

26
Essa é a tese do Grupo µ, em Rhétorique de la poésie (Paris, Complexe, 1977, rééd. Points
Seuil, 1990), visto que, para eles, a dimensão retórica do discurso poético opera por
mediação entre os grandes universos disjuntos que são o logos, o cosmos e o anthropos.

82
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Duas dificuldades aparecem, ligadas ao postulado da com-


plexidade, e ao jogo das valências que é sua expressão operató-
ria. Para o que irá chamar-se, em semiótica, de isotopia passio-
nal, R. Blanché propõe a seguinte “héxada completa”27:

Patia
Y
Filia Fobia
A E
Afobia Afilia
I O
Apatia
U

Cabe primeiramente indagar-se a respeito da natureza exata


dos postos Y (patia) e U (apatia): a nosso ver, eles são menos termos
engendrados pelas relações próprias à héxada do que os próprios
eixos semânticos, quer dizer, o denominador comum aos termos
contrários. Em segundo lugar, as dissensões [ A – I ] e [ E – O ] seriam
de ordem lógica, ou seriam manifestantes de uma diferença de in-
tensidade (ou de quantidade), em continuidade com os constituin-
tes mesmos do quadrado de Aristóteles? Como quer que seja, fica
fácil transpor tais dados para a estrutura comutativa que sugerimos,
ou seja, para uma rede:

Conjunção Disjunção
Tonicidade filia fobia
(Y) (A) (E)

Atonia afilia afobia


(U) (O) (I)

27
BLANCHÉ, R. Structures intellectuelles. Paris, Vrin, 1969, p. 104.

83
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

Se o direito à “arbitrariedade” em matéria de teoria é im-


prescritível, o mesmo já não se verifica no que tange à sua
“aplicabilidade”. As vicissitudes da paixão [ filia ⇔ fobia ], por
exemplo, a conversão do amor em ódio28, advêm porque a “toni-
cidade” é conservada, por assim dizer, intacta. Quanto ao que se
deveria denominar, rigorosamente, “a aforese”, isto é, a “perda”
[tonicidade → atonia], uma máxima de La Rochefoucauld dá a
medida de sua complexidade:

“Raríssimas são as pessoas que não têm vergonha de se haverem


amado quando já não se amam.” (Máxima 71)

Tudo se passa como se a negação da “filia” fosse impossí-


vel; como se a paixão, embora acabada, conservasse um resíduo
de intensidade que tenderia a se atualizar numa forma degrada-
da da paixão contrária.
Mais uma vez, o que parece estar em questão é o conteú-
do exato da negação e sua relação com a intensidade. A negação
é incontestavelmente do âmbito da textualização, onde, de ma-
neira geral, ela se manifesta sem variação observável; mas, em
profundidade, as coisas aparecem sob outra luz: a negação im-
põe uma seqüência única e sincrética a descontinuidades muito
diversas e perfeitamente provisórias, próprias às culturas e às mu-
danças qualitativas que tais descontinuidades determinam median-
te comutação. Em suma, a negação é condicionada, e quiçá até
analisável, de forma que se pode pôr em dúvida seu caráter de pri-
mitiva.
Acrescentemos, enfim, que R. Blanché propõe como “estru-
tura perfeita” o seguinte “hexágono da igualdade”29, que organi-
za as diferenças de grandezas:

28
FREUD, S. Introduction à la psychanalyse. Paris, Payot, 1971, p. 323.
29
BLANCHÉ, R. Structures intellectuelles, op. cit., p. 64.

84
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

=
> <
> <
=
Para o lingüista e o semioticista, essa apresentação não é
nada evidente. Considerar que a igualdade, a superioridade e a
inferioridade formam uma tríade de contrários é negligenciar o
fato de que as contrariedades não são de mesma ordem: a con-
trariedade [igualdade/desigualdade] é primeira, e a contrarieda-
de [superioridade/inferioridade] é segunda. Duas outras diferen-
ças devem ainda assinalar-se: a superioridade e a inferioridade
são identificáveis uma à outra conforme a seguinte regra ele-
mentar: se a for maior que b, então b é menor que a, de modo
que se está lidando com uma reciprocidade, e não com uma con-
trariedade no sentido estrito. Enfim, a igualdade e a desigualda-
de pressupõem, como indicou Sapir, uma “gradação” que pode
estender-se, quer por ultrapassagem de seu limite inferior ou su-
perior, quer por segmentação interna, de sorte que bastam
três termos para se introduzir uma complexidade irredutível. As-
sim, Sapir mostra que as posições significam, antes de mais nada,
que uma transitividade está interrompida:

“[...] a, b, c devem ser os únicos membros da série a ser classificada


em gradação; nesse caso, c é ‘o melhor’, não porque seja melhor
que a e b, mas porque não existe qualquer outro membro da série
que seja melhor que ele. [...] c deixará de ser ‘o melhor’ assim que
outros membros, d, e, f, ... n acrescentem-se à série, muito embora
ele ainda permaneça ‘melhor’ que certos outros membros já fixados
da série. [...]”30

Sapir encontra-se aqui na mesma linha de Greimas, quando


este último escreve:
30
SAPIR, E. Linguistique. Paris, Folio-Essais, 1991, p. 242.

85
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

“Em lingüística, as coisas se dão de maneira diferente [do que ocorre


em lógica]: o discurso, aqui, conserva os rastros de operações
sintáxicas anteriormente efetuadas: [...]”31

Por outro lado, as relações entre o 4-grupo de Klein e o


quadrado semiótico poderiam ser precisadas graças à teoria das
valências. De fato, o grupo de Klein se apresenta globalmente
como a conjugação de duas transformações aplicadas a uma
mesma grandeza, como em Piaget, implicitamente retomado por
J.-C. Coquet, quando este propõe seu diagrama das seqüências
modais da identidade subjetal:

q-ps não q-ps

sp-q não sp-q

O autor comenta:

“Esse quadrado é construído formalmente de acordo com as ope-


rações involutivas (logicamente, da contrariedade) e da inversão
(logicamente, da implicação).”32

Os parênteses acrescentados pelo autor assinalam, justa-


mente, o que cumpriria demonstrar: dispõe-se de um jogo de
grandezas modais, às quais se aplicam conjuntamente a inver-
são e a negação, mas não se sabe como, e nem mesmo se, se
pode passar assim da contrariedade à implicação, ou seja, a um
quadrado semiótico.
Outra configuração, freqüentemente representada nos cha-
mados quadrados modais, é aquela em que o grupo de Klein con-
siste em aplicar uma mesma operação a duas grandezas

31
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 366.
32
COQUET, J.-C. Le discours et son sujet I e II. Paris, Klincksieck, 1984-85, p. 39.

86
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

conjugadas; em vez de duas operações combinadas, lida-se nesse


caso com uma única operação cujo alcance varia:

Querer fazer Querer não fazer

Não querer não fazer Não querer fazer

Mas esse caso pode ser facilmente assimilado ao primeiro,


mais geral, contanto que se considere que as duas negações não
têm, aqui, o mesmo estatuto: uma incide sobre o predicado de
base (sobre o pressuponente: neste caso, o fazer), e a outra, sobre
o predicado modal (sobre o pressuposto: neste caso, o querer);
mesmo em lógica, e com maior razão em lingüística e semiótica,
já não há que demonstrar que a negação do pressuposto e a do
pressuponente não possuem nem o mesmo estatuto semântico,
nem as mesmas conseqüências pragmáticas, o que implica que
os termos assim engendrados, por não terem o mesmo estatuto,
não são homogêneos.
Poderíamos contentar-nos, portanto, com a seguinte defi-
nição geral: o 4-grupo de Klein forma-se a partir da aplicação de
duas operações ou duas variedades de uma mesma operação a
uma grandeza ou um conjunto de grandezas previamente defini-
das. E é aqui, de fato, que está a dificuldade: o grupo de Klein, ao
contrário do quadrado semiótico, não define os termos que ma-
nipula, ele define apenas as posições que estes ocupam; o qua-
drado semiótico produz, graças a suas relações constitutivas,
posições que definem os termos de uma categoria, ao passo que
o grupo de Klein parece pressupor a existência de tais termos,
para atribuir-lhes a posteriori as respectivas posições. Essa era,
em essência, a objeção – oral – de Greimas.
Com efeito, o grupo de Klein se aparenta ao que denomina-
mos aqui uma rede de dependências; duas constatações corrobo-

87
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

ram essa afirmação: em primeiro lugar, não há grupo de transfor-


mações a não ser que duas operações estejam correlacionadas;
ademais, na quase totalidade dos exemplos encontrados em
semiótica, essas operações não se aplicam a uma grandeza isola-
da, e sim a pelo menos duas grandezas correlatas, ou seja, a uma
forma complexa. Disso dá testemunho o quadrado da identidade modal
em J.-C. Coquet, uma vez que, longe de se limitar a uma combinatória
formal de grandezas simples, ele trata explicitamente das relações de
dominância (dominância do querer ou dominância do saber) no interi-
or de um dispositivo modal complexo.
Decorre daí, imediatamente, uma primeira conseqüência.
Se o grupo de Klein, tal como se utiliza em semiótica, manipula
correlações de grandezas e operações, supõe-se que ele se apli-
que a gradientes e valências, o que nos leva, por exemplo, a
reinterpretar a predicação modal como um elo tensivo entre dois
gradientes; a modalização do fazer pelo querer, por exemplo, po-
deria então conduzir a dois tipos de correlações: (i) duas correla-
ções conversas, fundando modalizações implicativas: se “mais”
querer, então “mais” fazer; se “menos” querer, então “menos” fa-
zer; (ii) duas correlações inversas, fundando modalizações conces-
sivas: apesar de “mais” querer, ainda assim “menos” fazer; apesar
de “menos” querer, ainda assim “mais” fazer. As modalizações
implicativas, fundando-se em correlações conversas, consagram
a força do vínculo modal (querer fazer e não querer fazer); as
modalizações concessivas, assentadas em correlações inversas,
exprimem o enfraquecimento desse mesmo laço modal (querer
não fazer e não querer não fazer).
Conseqüentemente, o raciocínio que desenvolvemos para
analisar a passagem de uma rede de valências a um quadrado
semiótico pode ser reproduzido aqui, na medida em que o grupo
de Klein, tal como é usado em semiótica, nada mais é que a re-
presentação especificada de uma rede de dependências. O exem-
plo do quadrado da veridicção, acima evocado, é particularmente

88
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

claro a esse respeito, uma vez que o problema por ele colocado já
foi abordado tanto através do grupo de Klein33 , quanto – como
fazemos aqui – em termos de resolução de uma grandeza com-
plexa. Vale dizer, o grupo de Klein, a exemplo do quadro cartesiano
em que se insere a rede, não é uma solução à questão da comple-
xidade e da tensividade que ele exprime: tudo o que faz é propor-
cionar-lhe uma aparente forma lógica e gráfica. A explicação, por
sua vez, reside no mecanismo tensivo das correlações de valências.
Por outro lado, o quadrado semiótico e a categorização em
geral receberam, com os trabalhos de R. Thom e J. Petitot, uma
interpretação nos termos da teoria das catástrofes. Não cabe aqui
avaliar o impacto e o alcance da teoria das catástrofes em semió-
tica. Assinalemos apenas que o princípio mesmo da diferença de
potencial, que aliás não é apanágio dessa teoria, mas do qual ela
faz uso, e que ultrapassa em muito as questões relativas ao qua-
drado semiótico, poderia ser uma boa reformulação da noção de
“tensão”; ainda assim, restaria poder justificar o ganho de seme-
lhante reformulação.
Mas se se examina mais de perto a argumentação de J.
Petitot, percebe-se logo que a eleição de uma matemática
topológica funda-se afinal, em termos diferentes dos nossos, na
preocupação de fazer emergir as diferenças a partir de redes de
dependências. Com efeito, assimilar as oposições constitutivas
de uma categoria sêmica ao “valor posicional” de suas determi-
nações é privilegiar o “princípio de conexão”, tomado explicita-
mente a Geoffroy Saint-Hilaire; a opção efetuada e sua motivação
estão claras, pois que se trata de mostrar

“como conexões podem preexistir a sua análise em termos e rela-


ções, e por isso mesmo organizar unidades interiormente articula-
das em que o valor das partes é função de sua posição.”34

33
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 368.
34
PETITOT, J. “Sémiotique et théorie des catastrophes”, Actes sémiotiques, Documents, V,
47-48. Paris, C.N.R.S., 1983, p. 6.

89
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

A colocalização das diferentes determinações num mesmo


espaço resulta, em suma, numa divisão do espaço, numa coexis-
tência de partes que apresentam estratos e pontos em comum, e
por conseguinte o advento da diferença será pensado, nessa pers-
pectiva, como produto da complexificação morfológica daquilo
que, inicialmente, não é mais que uma simples distribuição de
lugares conectados entre si. Coerentemente, a argüição em favor
da dependência se prolonga, em J. Petitot, por uma refutação da
“discretização dos esquemas topológicos”, pela qual “tudo o que
constitui estrutura se anula”35.
Além disso, quando se examinam os avatares das diversas
determinações, nas catástrofes que descrevem a topologia do
quadrado semiótico, percebe-se que eles poderiam ser caracte-
rizados, muito economicamente, como as diferentes relações
tensivas entre duas [X–Y], e depois três [X–Y–0] dimensões. Eis,
por exemplo, a distribuição própria à cúspide, ou seja, ao confli-
to entre duas determinações:

(x)Y
x
Y

X-Y y
X

X(y)

Dois comentários ocorrem. Primeiramente, se não se ima-


ginam – como alguns o fazem, por vezes – as determinações X e
Y como entidades mais ou menos autônomas “capturadas”, “atra-
ídas” ou “rejeitadas” pelos poços de potencial, mas simplesmen-
te como valores posicionais e graduais, que se definem pela cor-

35
Op. cit., p. 17.

90
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

relação de suas variações respectivas e conexas, então todas as


zonas desse conflito descrevem equilíbrios diferentes dessa cor-
relação. Em segundo lugar, parece legítimo perguntar-se: se não
houvesse distribuição dos lugares e das forças no espaço
categorial, se o domínio não estivesse dividido em subdomínios
que diferenciam dominantes de X e de Y, o que restaria? A respos-
ta não é: o “eixo semântico”, ou o “sema isotopante”, como nos
sugeriria a semântica clássica, mas sim: a “fusão” de X e Y, fusão
que se obtém tanto fora do alcance dos estratos (à esquerda da
ponta da cúspide, no diagrama acima), caso da “fusão estática”,
quanto pela globalização de um processo considerado reversível
e cíclico (nos termos de R. Thom: o “ciclo de histerese”), caso da
“fusão metabólica”: não é portanto o eixo semântico amorfo que
subsistiria, e sim a correlação de X e Y em seu princípio mesmo.
Noutras palavras, a “correlação tensiva”, tal como a definimos, é
para a semântica tensiva e contínua o que o “eixo semântico” é
para a semântica discreta e descontínua.
Aproximando o olhar, notaremos que a complexidade – no
sentido em que a entendemos, isto é, como a coexistência e cor-
relação de muitas dimensões ou profundidades – não se elimina
nunca, na perspectiva catastrofista, pois que até mesmo a oposi-
ção privativa a mantém: a ausência de X pode ser reformulada, a
partir da “descompactificação” da cúspide, como um desapareci-
mento de X (absorção por 0) “em presença de Y”; inversamente,
o aparecimento de Y será formulado como “gênese de Y a partir
de 0, em presença de X”36. Logo, a co-presença e a conexão de
duas determinações – que gostaríamos de denominar “dimen-
sões” ou “profundidades” – é, aí também, o mínimo requerido
para que uma categoria se delineie.
Mas a focalização – compreensível nos anos 80 – no qua-
drado semiótico e na necessidade de explicá-lo ocultou, em par-
te, esta dimensão quase brøndaliana da teoria das catástrofes: de
36
Op. cit., p. 21.

91
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

fato, toda a demonstração de J. Petitot é finalizada e visa “fun-


dar” matemática e ontologicamente, via fenomenologia, o qua-
drado semiótico. Ainda assim, as posições do quadrado definidas
dessa maneira não são nunca termos simples; serão no máximo,
por vezes e num limite, termos “simplificados” – é o caso de X∞,
a chamada determinação “infinitizada” ou “idealizada” – mas são,
muito pelo contrário, termos complexos em cujo seio dimensões
correlatas buscam equilíbrio em reciprocidade e interdependência.
Parece, enfim, oportuno tentar tomar posição em relação à
semântica do protótipo, que se apresenta atualmente como uma
teoria psicolingüística da categoria. Com efeito, nessa perspecti-
va, a categoria não se define a partir das relações canônicas que a
constituem, mas sim mediante a eleição de uma grandeza deno-
minada “protótipo”, em torno da qual se organizam as diferentes
dimensões de um domínio semântico. Convém precisar, a propó-
sito, vários pontos: (i) originariamente, essa teoria se interessa
sobretudo pela base perceptiva da categorização (por exemplo, o
recorte das cores); (ii) ela trata portanto, como sugerimos, antes
da categorização do mundo natural, na perspectiva de sua
lexicalização, do que da categoria lingüística em geral; (iii) ela se
serve igualmente das propriedades distintivas e das proprieda-
des hierárquicas, ou seja, da diferença tanto quanto da depen-
dência; (iv) isso equivale a dizer que os protótipos que ela mani-
pula são de naturezas bastante diferentes: um feixe de traços co-
muns ou um elemento isolado, um elemento neutro ou um ele-
mento saliente (o “parangon”, ou melhor exemplar), um conjun-
to de traços organizados em rede, ou então numa simples seme-
lhança de família em cadeia. Relativamente a este último ponto,
nota-se que os protótipos podem ser quer intensivos (melhor
exemplar), quer extensivos (rede, ares de família), e que seu pa-
pel estruturante pode ser forte (parangon, rede) ou fraco (ele-
mento neutro, ares de família).
A semântica do protótipo diz respeito à estratificação, na
medida em que a questão colocada é a da determinação das fron-

92
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

teiras do domínio semântico a partir das figuras do mundo natu-


ral que são percebidas pelo sujeito e, por via de conseqüência, da
identificação das relações internas e externas que contribuem para
estabilizar ou desestabilizar tais fronteiras. Trata-se portanto mais
da emergência das categorias a partir da figuratividade, do que
da descrição da categoria sêmio-lingüística em geral. Quanto a
isso, a semântica do protótipo deve muito à teoria da Gestalt,
por tratar da identificação de formas cuja diversidade fenomenal
é dificilmente controlável, graças a uma matriz que vai sendo pouco
a pouco desenhada por sua superposição e aproximação: o protó-
tipo é, de algum modo, uma “figura” que se destaca sobre o fundo
indistinto das ocorrências.
Diversos problemas abordados por essa teoria podem ser
formulados, e em parte resolvidos, nos termos de uma semiótica
tensiva do discurso. Por exemplo, a questão da consistência das
fronteiras do domínio quase não faz sentido em língua, na medi-
da em que depende das seleções próprias a cada discurso, a uma
classe de discursos, e mesmo quiçá a uma cultura. Indagar-se,
por exemplo, se a “lava” faz parte da classe dos líquidos, ou se
um disco voador é um bom protótipo para a classe dos veículos
automotivos, é perguntar-se, na verdade, qual é a isotopia do
discurso, a qual, por sua vez, é tributária do gênero e do tipo de
discurso.
A natureza das ligações entre os constituintes da categoria,
outra questão recorrente, depende do ponto de vista adotado
para construir a totalidade: a coleção de traços comuns depende
de uma estratégia cumulativa, extensiva e conceptualizante, en-
quanto a seleção de um “melhor exemplar” obedece a uma estra-
tégia intensiva, eletiva e iconizante. Conforme a distinção pro-
posta no capítulo “Práxis enunciativa”, as duas grandes estraté-
gias de ponto de vista intervêm aqui, uma assentando na exten-
são cognitiva de uma ou várias grandezas no domínio semântico
e a outra, na intensidade sensível de uma parte válida por todas

93
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

as demais. Por isso, a análise da categoria e das posições respec-


tivas de seus constituintes poderá desembocar na medição das
tensões entre a matriz e suas realizações concretas. Assim é, por
exemplo, que se levarão em conta tanto as tensões coesivas a reu-
nir num só domínio: água, leite, sopa, chuva, neblina, lava, óleo,
metal fundido, quanto as tensões dispersivas que, num determina-
do contexto discursivo, podem ser consideradas, quer como infe-
riores (entre água e óleo), quer como superiores (entre água e lava).
Nesse particular, as figuras de retórica podem também intervir,
para elevar ou baixar tais tensões dispersivas, visto que, sob cer-
tas condições, a lava pode formar um rio, ou ainda, como em
Verlaine, o horizonte turvo de neblina pode aparecer como Um
céu como leite37 .
Entre as modulações tensivas (extensivas e intensivas) da
categoria e seus usos sob enunciações e pontos de vista particu-
lares, permanece todavia a zona de pertinência do quadrado
semiótico, o qual, também sob essa ótica, merece ser situado.
Tal situação poderia ser explicitada assim: (i) a organização tensiva
da categoria determina pelo menos um centro de tensão (o
atrator, ou “protótipo”) e horizontes de distensão ou “frontei-
ras”, (ii) logo, um domínio semântico, do ponto de vista da per-
cepção semântica, está organizado como um espaço tensivo, um
campo de presença (cf. o capítulo “Presença”), (iii) o apareci-
mento do atrator se aparenta, se este for de tipo intensivo, ao
que chamamos de “somação”, e, se ele for de tipo extensivo, à
“resolução” (cf. o capítulo “Esquema”); a somação e a resolução
estão no âmago do engendramento do quadrado semiótico a partir
do espaço tensivo (cf. acima), e enfim (iv) a práxis enunciativa,
regulando o aparecimento e a fixação dos usos, retroage sobre a
percepção categorial, e fixa, nesse particular, “estilos” categoriais
(cf. acima). Sob essa perspectiva, e lembrando que o quadrado

37
VERLAINE, P. “L’échelonnement des haies...”, Sagesse, III, 13, Le Livre de Poche, p. 147.

94
CATEGORIA – QUADRADO SEMIÓTICO

semiótico pode ser derivado da rede, ele ocuparia o seguinte lu-


gar na tipologia dos “estilos categoriais”:

Dominante intensiva Dominante extensiva


(→ somação) (→ resolução)
Percepção tônica Elemento saliente Rede de traços comuns
(→ parangon) (→ quadrado semiótico)
Percepção átona Elemento neutro Abarcamentos irregulares
(→ termo básico) (→ ares de família)

95
ESQUEMA

ESQUEMA

1 RECENSÃO

P ROCEDER aqui à recensão significa, primeiramente, esta-


belecer o corpus dos termos lexicalmente aparentados. Em
primeiro lugar, o lexema “esquema” pode apresentar-se de forma
absoluta ou então especificado. No domínio sêmio-lingüístico, o
emprego absoluto pertence a Hjelmslev e funda a distinção entre
forma e substância, na qual ele via o essencial da descoberta saus-
suriana. O emprego absoluto é igualmente adotado por Greimas,
no que tange às estruturas elementares da significação, para de-
signar a relação entre os termos contraditórios do quadrado se-
miótico, respectivamente s1 e não-s1, s2 e não-s2, e para lem-
brar que a forma semiótica é “feita de exclusões, de presenças e
de ausências”1. Precisemos de imediato que Greimas não vincula
esta denominação à acepção hjelmsleviana – conduta que, aliás,
jamais deixa de adotar, quando a continuidade é patente –, mas
está claro aqui que, concebida como produtora de um “esque-
ma”, a negação é identificada com uma operação de triagem cujo
objetivo é o de delimitar a zona de uma categoria: a esquemati-
zação teria assim, nesse sentido, alguma coisa a ver com a soma-
ção.
Em segundo lugar, “esquema” apresenta-se também muni-
do de um adjetivo, como no sintagma “esquema narrativo”, em
cujo desenrolar Greimas gostava de ver o “sentido da vida”. Mas,
se é permitida a expressão, o “esquema narrativo” ficou, por
assim dizer, órfão: por que, por exemplo, não estabelecer um
“esquema modal”? Certamente a modalização constitui parte
integrante da narratividade, mas pode ser abordada em si mes-

1
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 158.

97
ESQUEMA

ma e considerada como uma dimensão autônoma do discurso.


Não seria preferível, portanto, tratá-la como “esquema modal”?
O corpus compreende ainda os termos “esquematismo”,
oriundo de Kant, e “esquematização das categorias”, segundo J.
Petitot, que considera esta última como uma mediação entre a
transcendência das categorias e sua objetividade fenomenal. Mas
para além do sentido próprio, que consistiria em se manter fiel
ao termo kantiano, ou seja, ao “esquematismo” concebido como
mediação entre o conceito e a imagem2 , encontra-se também
um sentido figurado, que Cassirer, em La philosophie des formes
symboliques, propõe, expandindo essa noção para a mediação en-
tre o que vem sendo chamado de sensível e inteligível:

“A linguagem, com os nomes que dá aos conteúdos e às relações


espaciais, possui também um esquema, ao qual ela deve remeter
todas as representações intelectuais para torná-las apreensíveis e
representáveis pelos sentidos”3

J. Petitot, por sua vez, esclarece o estatuto de esquema con-


frontando-o a modelo: a meio-caminho entre o conceito e a diver-
sidade fenomenal, as estruturas topológicas são esquemas em re-
lação aos conceitos teóricos porque os traduzem num imaginário
passível de ser desdobrado em ocorrências e são modelos em rela-
ção à diversidade das ocorrências que elas reduzem.

2
Para Kant: “Tudo o que podemos dizer é que a imagem é um produto da faculdade
empírica da imaginação produtora, enquanto o esquema dos conceitos sensíveis
(como figuras no espaço) é um produto e de algum modo um monograma da imagi-
nação pura a priori, por meio do qual e de acordo com o qual as imagens são
primordialmente possíveis; e que, se essas imagens só podem ser ligadas ao conceito
por meio do esquema que elas designam, então elas não lhe são em si mesmas
perfeitamente adequadas.” (in Critique de la raison pure, tome 1. Paris, Flammarion,
1944, p. 173).
3
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, op. cit., tome 1, p. 154.

98
ESQUEMA

A questão em foco é a seguinte: seria essa diversidade


redutível? Seria possível depreender um núcleo comum a todos
os empregos que destacamos, de modo que esses não fossem
mais do que variedades desse núcleo? Parece que a convocação
de uma esquematização responde à necessidade de tratar com
o máximo rigor uma heterogeneidade ou uma alteridade conside-
rada, por outro lado, como constitutiva: entre a forma e a substân-
cia em Hjelmslev, entre o inteligível e o sensível em Cassirer, entre
a imagem e o conceito em Kant, entre a estética transcendental e a
percepção em J. Petitot. Restam os dois empregos diferentes de
esquema por Greimas: tais empregos, correlatos entre si, não
contradizem essa proposta, na medida em que, embora situados
num nível de generalidade menor, tentam pelo menos estabele-
cer uma ponte, puramente semântica no caso do quadrado, exis-
tencial no caso do esquema narrativo. Tudo se passa como se,
nesses diversos autores, o esquema tributasse sua posição de
mediador a esse hiato entre, de um lado, a intensidade e a con-
centração conceptual e categorial e, de outro, a extensão e a dis-
persão das ocorrências.
É dentro desse espírito, ou seja, dentro dos limites que ele
pressupõe, que a noção de esquema será abordada aqui. Em ra-
zão da problemática tensiva subentendida pelo conjunto desses
ensaios, o esquema será examinado como a mediação entre as
duas dimensões cuja intersecção constituiria o fato tensivo por exce-
lência, a saber, a intensidade e a extensidade. O esquema não trata,
pois, nem da intensidade nem da extensidade em si, mas pre-
tende ater-se ao princípio de sua correlação na semiose, e espe-
cialmente na mediação entre realizável e realizado, entre uma
categoria e seus usos.

99
ESQUEMA

2 DEFINIÇÕES
2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Nos anos sessenta, em razão da “fonologização da semân-


tica” , que parecia então a via promissora, admitia-se geralmente
4

que o problema teórico recaía sobre o inventário de uma vinte-


na de pares de traços distintivos, com auxílio dos quais parecia
possível descrever os micro-universos tais como aparecem nos
discursos verbais ou não-verbais. A epistemologia da semântica
era concebida de forma imitativa ou analógica: a partir dos tra-
balhos de R. Jakobson, notadamente o grande estudo intitulado
“Phonologie et phonétique”5 , tratava-se de aplicar no plano do
conteúdo um procedimento que já havia sido bem aprovado no
plano da expressão. Sabe-se que o empreendimento não vin-
gou, mas, nesse episódio, a resposta era menos equivocada que
a pergunta.
O procedimento binarista, de acordo com a terminologia
hjelmsleviana, decorre de um ponto de vista “intensional”, en-
quanto o ponto de vista da semiótica deve ser também
“extensional”. Isso exige esclarecimento: para Hjelmslev, o valor
– como já mencionamos no capítulo sobre o valor – é definido
por sua extensão: concentrado ou expandido. Mas na medida em
que a semiótica tem por objeto o discurso, essa grandeza será
aqui uma extensão discursiva, mínima para o sema, máxima quan-
do a isotopia é coextensiva ao discurso-objeto; em segundo lu-
gar, as grandezas que oferecem as mesmas características na ca-
deia formam uma classe, ou ainda uma categoria, já que esta
define-se como “um paradigma cujos elementos só podem ser
introduzidos em certos lugares da cadeia e não em outros”6 . Lem-
4
Emprestamos essa expressão de Hjelmslev que, com ela, precavia-se contra as teses
binaristas, mesmo antes que fossem formuladas. Ver HJELMSLEV, L. Ensaios Lingüísticos,
op. cit., p. 131.
5
JAKOBSON, R. Essais de linguistique générale. Paris, Minuit, 1963, p. 103-49.
6
HJELMSLEV, L. Le langage, op. cit., p. 173.

100
ESQUEMA

bremos a propósito que, no Curso de lingüística geral, Saussure


pergunta-se:

“Quando, numa conferência, ouvimos repetir diversas vezes a pala-


vra Senhores!, temos o sentimento de que se trata, toda vez, da
mesma expressão, e, no entanto, as variações do volume de sopro
e da entonação a apresentam, nas diversas passagens, com diferen-
ças fônicas assaz apreciáveis [...]”7

Mesmo antecipando-nos um pouco, diremos justamente


que os valores esquemáticos de Senhores! são constantemente
reavaliados pelo enunciador; enfim, as grandezas, no que diz
respeito a cada uma isoladamente, são definidas pela intersecção
de pelo menos duas dimensões, mas, conforme tentamos esta-
belecer no capítulo “Categoria – Quadrado semiótico”, são tam-
bém parte integrante do que denominamos uma rede fundada na
“interpenetração de duas dimensões”, e esta incorporação res-
ponde por sua complexidade estrutural. É dentro dessas condi-
ções que cremos ser útil distinguir entre definição ampla e defini-
ção restrita.

2.1.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS AMPLAS

O procedimento característico de Hjelmslev nos Prolegô-


menos, que consiste em situar-se inicialmente fora da linguagem,
em seguida instalar a função e a dependência como objetos da
análise, e depois, a partir desse “credo”, reintroduzir uma a uma
as categorias que foram, desde sempre, o objeto da reflexão
lingüística, este procedimento arroga-se justamente o que seria
necessário estabelecer: a possibilidade dessa expulsão inicial da
linguagem.

7
SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral, op. cit., p. 125.

101
ESQUEMA

Esse procedimento deveria demonstrar, no mínimo, que a


reintrodução da linguagem ocorre sem gerar maior conseqüên-
cia. Ora, se está claro que o componente estrutural da língua e,
mais amplamente, o componente chamado de “semionarrativo”,
não são de modo algum afetados, o mesmo não se pode dizer do
que provém do sensível (a foria) e do perceptível (a tensividade).
O que se encontra especialmente prejudicado e falseado nesse
episódio é precisamente a mediação, ou até mesmo a conversão,
entre a tensividade e a foria de um lado e a estrutura de outro,
conversão que as noções de esquema, esquematismo e
esquematização pretendem explicitar. Até certo ponto, o procedi-
mento hjelmsleviano visa a submeter o objeto ao método preconi-
zado; a distinção entre os caracteres “arbitrário” e “adequado” da
teoria assim como a independência do sistema em relação ao pro-
cesso são apenas corolários dessa escolha.
Temos a impressão de que o percurso da semiótica, pouco
mais ou pouco menos, questionou esta última. Sob o estímulo
de Greimas, a semiótica deu ênfase, sucessivamente, ao fazer, ao
crer e ao sentir. Observemos de imediato que o crer foi menos
“bem servido” que as duas outras dimensões. A semiótica da pai-
xão permanece, digamos assim, aquém da semiótica da ação que,
em virtude dos direitos imemoriais do “primeiro ocupante”, apro-
priou-se da narratividade; mas, sobretudo, em razão de sua ante-
cedência, a semiótica da ação é sempre a referência em matéria
de processo e de consecução na cadeia.
A introdução de Semiótica das paixões assinala com nitidez
que a semiótica da paixão não vem depois da da ação, mas como
um esforço de integração no que se refere às clivagens até então
aceitas:

“Não seria demais insistir, ainda aqui, no fato de que se as duas


concepções do estado – estado de coisas, transformado ou
transformável, e estado de alma do sujeito, como competência para

102
ESQUEMA

e depois da transformação – se reconciliam numa dimensão semióti-


ca da existência homogênea, isso ocorre à custa de uma mediação
somática e ‘sensibilizante’. ” 8

A questão proposta é a seguinte: integração por adoção


de um ponto de vista englobante ou comutação ocasionando
uma mudança de ponto de vista? Trata-se de ver mais, ou ver
outra coisa ou de outro modo? Realmente, é o segundo termo da
alternativa que chama a nossa atenção. Nas manifestações
discursivas do sentir, tudo indica que o sujeito sofre uma mudan-
ça de regime modal, ou mesmo de recção: em vez de reger e de
informar o objeto, em vez de flexioná-lo, o sujeito submete-se ao
objeto. Essa revolução íntima – interpretável sumariamente como
reversão da dependência – residia, segundo Merleau-Ponty, no
próprio coração da práxis pictórica:

“O pintor vive num estado de fascinação. Suas ações mais particula-


res – esses gestos, esses traçados que só ele pode fazer e que
surgem aos outros como revelação, pois que não possuem os mes-
mos defeitos que ele – parecem-lhe emanar das próprias coisas,
como o desenho das constelações. Entre ele e o visível, os papéis
inevitavelmente invertem-se. É por isso que tantos pintores já dis-
seram que as coisas os observam, [...]”9

Entretanto, nada nos permite reservar esse dispositivo


modal exclusivamente para a experiência estética e, na verdade,
Cassirer propõe que se faça dele o critério do que chama de
“pensamento mítico”:

“O pensamento teórico adota, diante daquilo que aborda como objeto,


com pretensões de objetividade e de necessidade, uma atitude de
investigação, de interrogação, de dúvida e de exame: opõe-se, com
normas próprias, ao objeto. O pensamento mítico, ao contrário, não

8
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 15.
9
MERLEAU-PONTY, M. L’œil et l’esprit. Paris, Folio-Essais, 1989, p. 31.

103
ESQUEMA

apresenta qualquer confronto desse gênero. Só “possui” o objeto se


for dominado por ele: não o possui por construí-lo, pois seria, em vez
disso, absolutamente possuído por ele. Esse pensamento não é im-
pulsionado pela vontade de compreender o objeto, no sentido de
abarcá-lo pelo pensamento e de incorporá-lo a um complexo de cau-
sas e conseqüências: ele é simplesmente tomado pelo objeto.”10

Apreender ou ser apreendido, eis a questão.


De uma certa maneira, a teoria revela aqui uma de suas
insuficiências: a existência de um sistema modal fundado sobre a
alternância de dois esquemas modais, o primeiro acentuando o
sujeito e instaurando-o como sujeito de controle eficaz, o se-
gundo acentuando o objeto e qualificando, ou recategorizando
o sujeito como sujeito de acolhimento e de escuta, ou ainda
como sujeito “passível” segundo A. Hénault11.
O objetivo de toda esquematização é preencher uma lacuna,
denunciar uma alteridade que é ameaçada de inconsistência. Ora,
não há alteridade mais resistente do que aquela que opõe o eu ao
não-eu, seja sob a forma da relação sujeito/objeto, seja sob a forma
da relação sujeito/outro sujeito. Admitiremos que, graças ao fazer,
o eu tenciona reduzir o não-eu; no limite, o eu propõe-se assimilá-
lo e, de um certo ponto de vista, até anulá-lo, enquanto no caso do
submeter-se, o eu é convidado a conformar-se, a dobrar-se ao não-
eu que o precede. É possível levar mais longe ainda o contraste: no
caso do fazer, é o não-eu que suporta a ação e, portanto, resiste,
enquanto no caso do submeter-se, esse papel actancial cabe então
ao eu. Mas essa inversão é menos uma resposta do que uma lista
de questões relativas às condições de emergência do sentir e do
submeter-se.
Por outro lado, os conceitos operacionais da teoria lingüís-
tica, a saber a alternância, a inversão, a comutação, a polariza-

10
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, op. cit., p. 100.
11
HÉNAULT, A. “Structures aspectuelles du rôle passionnel”, Actes Sémiotiques, Bulletin, XI,
39, “Les passions”. Paris, C.N.R.S., 1986.

104
ESQUEMA

ção..., não são conceitos livres, frutos de um pensamento etéreo:


são condicionados, ligados ao que chamaremos de primado da
tensividade (intensidade/extensidade), concebida como medida
imaginária da alteridade entre o eu e o não-eu; esse valor pode
ser nulo ou em via de diminuição, mas a nulidade não significa
ausência. O caráter geralmente compacto da predicação é uma
ilusão, de modo que propomos aqui distinguir, indo do pressu-
posto ao pressuponente, alguns tipos de predicação: (i) uma
predicação tensiva relativa ao complexo intensidade/extensidade;
(ii) uma predicação existencial relativa à presença e à ausência, e
correlata aos modos de existência; (iii) uma predicação diferencial
e qualificativa aberta para a análise sêmica. Essa ordem não é
somente sincrônica: ela permite dar conta do devir da própria
semiótica, se pudermos admitir, hipótese seguramente pesada,
que a evolução teórica conduz progressivamente à depreensão
dos pressupostos subjacentes.
Em primeiro lugar, essa ordenação pode ser justificada as-
sim: a predicação das diferenças em discurso só é possível se
cada uma das grandezas concorrentes estiver dotada de um modo
de existência próprio; uma dada figura só se atualiza se seu
contrário estiver potencializado ou virtualizado. Além disso, a
predicação dos modos de existência, que dá lugar às modula-
ções da presença e da ausência discursivas, não pode ser com-
preendida sem referência à intensidade e à extensidade de um
campo perceptivo. De onde decorre a seqüência proposta: a
predicação diferencial pressupõe a predicação existencial que,
por sua vez, pressupõe a predicação tensiva. Em segundo lugar,
estamos nos limites do nominalismo, pois que a asserção tanto
das coisas, quanto de suas qualidades, é condicional e situada no
interior dos gradientes da intensidade / extensidade, como Pascal
bem indicou com ênfase:
“Não sentimos nem o calor extremo nem o frio extremo. As qualidades
excessivas são nossas inimigas e não nos são sensíveis: não mais as senti-

105
ESQUEMA

mos, apenas as sofremos. A juventude e a velhice em demasia entravam o


espírito, assim como a falta e o excesso de instrução. Enfim, as coisas
extremas apresentam-se a nós como se não existissem e nós, em relação a
elas, também não existimos: escapam de nós ou delas escapamos”12

Do mesmo modo, uma semiótica do visível restringe-se,


em sua tentativa de depreender os estados significantes da luz,
aos limites que são, de um lado, o ofuscamento e, de outro, a
escuridão. Por isso o discurso, sempre oscilando entre o sensível
e o inteligível, tende a “traduzir” em extensão o gradiente da in-
tensidade e vice-versa. A intensidade luminosa, por exemplo, só
atingirá a significação em discurso ao espacializar-se em forma
de brilhos, iluminação, cromatismo etc. Ao contrário, a amplitu-
de espacial só é perceptível figurativamente se for submetida ao
gradiente da intensidade luminosa.
No nível da transformação discursiva, por sua vez, a forma
sensível é a do evento, caracterizado por sua irrupção e saliência,
sendo que sua conversão inteligível e extensiva engendra o pro-
cesso, muitas vezes definido como um “inteiro” quantificável e
divisível em aspectos; de modo inverso, o processo só é perceptí-
vel pelo sujeito do sentir se for modulado pela intensidade que o
converte num evento para um observador. A correlação fundado-
ra da esquematização narrativa do discurso seria, portanto, a se-
guinte:

evento ⇔ processo
intensidade extensidade

Estamos em condições de propor um primeiro esboço do


esquema: na medida em que leva em conta a tensão oriunda da
desigualdade entre a intensidade e a extensidade, o esquema

12
PASCAL, B. Œuvres Complètes. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1954, p. 1109.

106
ESQUEMA

apresenta-se como a mediação entre essas duas dimensões.


Hjelmslev opõe, em alguns estudos, duas dimensões do plano
da expressão, a dos “constituintes”, os fonemas, e a dos “expo-
entes”, a prosódia. Os expoentes, para o autor, são de dois ti-
pos: os acentos, intensos e localizados, e as modulações, exten-
sas e distribuídas. Essa análise vale para os dois planos da lin-
guagem, uma vez que:

“Grosso modo, os morfemas extensos são os morfemas verbais, os


morfemas intensos são os morfemas nominais.”13

É nessa direção que gostaríamos de seguir.


No plano do conteúdo, o esquema comportaria, outra vez,
dois funtivos: um funtivo intenso e um funtivo extenso. O funtivo
intenso corresponde ao que Semiótica das paixões chama de
somação:

“O primeiro gesto é um ato puro, ato por excelência: somação; [...]essa


somação é ela mesma negação, ou melhor, captação, parada nas
flutuações da tensão. Com efeito, o mundo como valor oferecia-se
inteiro ao sentir do sujeito tensivo; mas para conhecê-lo é preciso
parar o desfile contínuo, isto é, generalizar o “encerramento” – essa
é, pois, a fonte da primeira negação –, cercar uma zona, destacar um
lugar, ou seja, negar o que não é esse lugar.”14

A somação apresenta-se como a presentificação de uma re-


lação in absentia. Ela cerca e estabiliza, sob a égide da irrupção e
da parada, um lugar, mas um lugar vazio, à espera de preenchi-

13
HJELMSLEV, L. Ensaios lingüísticos. São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 175; cf. também “La
syllabe en tant qu’unité structurale”, in Nouveaux essais, op. cit., p. 165-71; Le langage,
op. cit., p. 131-50.
14
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 38. A propósito do
valor gerador da parada, ver ZILBERBERG, C. “Pour introduire le faire missif ”, in Raison
et poétique du sens, op. cit., p. 97-113.

107
ESQUEMA

mento; numa palavra, a somação – culminância e suspensão da


intensidade – é uma “pergunta”. Ela provoca a espera do funtivo
extenso do esquema que denominaremos resolução. Desse modo,
se num nível geral, o esquema conjuga a intensidade e a exten-
sidade, no plano do conteúdo, ele associa a somação e a resolu-
ção, ou seja:

esquema = somação ⇔ resolução

A dimensão tensiva e a dimensão esquemática ajustam-se


assim uma à outra, permitindo a passagem entre o evento e o
processo, entre a categoria como “lugar vazio” e suas articula-
ções discretas, entre a explosão e suas ressonâncias discursivas,
entre o sobrevir e o devir.
O esquematismo elementar que propomos aqui consiste,
pois, de um lado, em resolver uma somação na extensidade e, de
outro, em destacar uma resolução sob a forma intensiva. A partir
disso, as diversas acepções que estabelecemos na recensão pré-
via podem ser globalmente esclarecidas: o esquematismo asse-
gura a mediação entre o conceito (somação) e a diversidade feno-
menal (resolução), entre as definições em compreensão (somação)
e as definições em extensão (resolução), entre o evento (somação)
e o processo (resolução), entre a junção (somação) e seu desdo-
bramento sob a forma de “esquema narrativo canônico” (resolu-
ção).
OBS: Do ponto de vista da manifestação, essa hipótese
permitiria compreender como dois níveis de articulação diferen-
tes (por exemplo, de um lado, a junção, ou a transformação nar-
rativa elementar, e, de outro, o esquema narrativo canônico ou o
processo aspectualizado), podem ser, um ou outro, alternadamen-
te, assumidos pela predicação discursiva. Nessa perspectiva, a es-
colha do nível pressuposto, com vistas à manifestação discursiva,
é intensiva (do tipo “somação”), e a escolha do nível pressupo-

108
ESQUEMA

nente, uma escolha extensiva (do tipo “resolução”). A partir dis-


so, a manifestação direta de uma grandeza ou de uma estrutura
oriunda dos níveis profundos do percurso gerativo parece sem-
pre mais “sensível”, e a manifestação de uma grandeza ou de
uma estrutura oriunda dos níveis superficiais parece mais “inteli-
gível”. A esquematização que propomos diz respeito diretamen-
te à operação conhecida como “convocação”, cujas escolhas obe-
decerão, pelo menos em parte, ao princípio da correlação entre
intensidade e extensidade (ver sobre esse tema o estudo dedica-
do à práxis enunciativa).

2.1.2 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS RESTRITAS

A partir dessa estrutura geral definida: (i) do ponto de vis-


ta antropológico, pelo comércio do sensível e do inteligível; (ii)
do ponto de vista estrutural, pelo comércio da intensidade e da
extensidade, estamos em condições de introduzir propriedades
formais, que consideraremos de segundo grau, mesmo levando
em conta que a descrição da forma não deveria ser um fim em si
e que ela é apenas a “guardiã da estrutura”. Assim, sugerimos
modificar a definição hjelmsleviana de estrutura: entidade autô-
noma e deformável de dependências internas. Qualificar a estrutu-
ra de “entidade autônoma”, significa que ela é circunscrita ou,
como indica a própria definição de somação, que ela é contida.
Acrescentar que ela é “deformável”, é entender que a plasticidade
da estrutura permite às valências intensivas e extensivas variar e
deslocar os valores esquemáticos. Essas propriedades formais
são respectivamente relativas (i) à sutura entre somação e resolu-
ção, (ii) ao jogo da expansão e da síncope, (iii) e enfim, à direção,
que examinaremos aqui no que tange a seus efeitos sobre os
esquemas sintáxicos do discurso.
A primeira diferenciação diz respeito à sutura ou à transição
entre somação e resolução. Se examinarmos, por exemplo, as

109
ESQUEMA

variações passionais em torno da ruptura de um apego, o


“inconsolável” é aquele que não chega a sair da somação disjun-
tiva e que não realiza o “trabalho de luto”; ao contrário, para a
“viúva alegre”, a resolução já prevalece sobre a somação.
A segunda possibilidade recai sobre a expansão discursiva
de um ou outro dos componentes do esquema. Não se trata mais,
nesse caso, do lugar relativo da somação e da resolução no inte-
rior da estrutura e da correlação, como anteriormente, mas no
desdobramento do processo discursivo. O teatro de feição clássi-
ca favorece claramente a somação e “despacha” a resolução, o
que não é próprio, parece-nos, do teatro grego que apreciava as
tragédias que encenavam a deploração, tragédias essas nas quais,
sem desmerecê-las, quase nada acontecia. Em outras palavras, o
teatro grego parece ter tido a intuição de uma divisão entre pe-
ças “somativas”, violentas, e peças “resolutivas”, lentas, em vias
de apaziguamento. Nada impede considerar que a fusão de uma
peça “somativa” e de uma peça “resolutiva”, como Édipo,
reconstitua o esquema completo. Nessa perspectiva, a Poética de
Aristóteles, ao erigir a “peripécia” e sobretudo a “gratidão” como
pivôs da emoção trágica, coloca visivelmente a somação acima
da resolução.
Desse ponto de vista, a “elasticidade” do discurso (conden-
sação ou expansão) recebe uma descrição operatória e sua esque-
matização autoriza-lhe a reformulação em termos de correlações
entre intensidade e extensidade, entre efeito “sensível” e efeito
“inteligível”.
Por síncope, agora, entendemos uma propriedade simétrica
e inversa da expansão que consiste em abreviar um uso bem ates-
tado. A síncope, por natureza, incide sobre a resolução: ela opera
por retirada de uma determinada seqüência intermediária, senti-
da repentinamente como redundante ou não pertinente. Greimas
definia a cólera, por exemplo, por meio da “síncope” da vingan-
ça, síncope que impede de algum modo a impetuosidade do des-

110
ESQUEMA

contentamento de se resolver, e que bloqueia especialmente o


processo de reequilíbrio (extensivo) das penas e dos sofrimentos.
A seqüência completa do enfrentamento comporta a fase resolutiva
da vingança ou da justiça; a cólera é obtida, a partir dessa se-
qüência, por síncope da resolução15 .
A terceira possibilidade evoca-nos a direção e incide sobre a
seguinte questão: poderia a sucessão (somação → resolução) ser
reversível? Limitar-nos-emos a duas alusões: na música européia,
se admitirmos que a sucessão dos movimentos na sonata obteve
durante séculos um valor esquemático, é sabido que antes de
declinar [vivo-lento-vivo], a sonata foi construída sobre a suces-
são [lento-vivo-lento]. Mais próximo de nós, Mallarmé, no texto
intitulado Le Mystère dans les lettres, escreve:

“Disposition l’habituelle.
On peut, du reste, commencer d’un éclat triomphal trop brusque
pour durer; invitant que se groupe, en retards, libérés par l’écho,
la surprise.
L’inverse: sont, en un reploiement noir soucieux d’attester l’état
d’esprit sur un point, foulés et épaissis des doutes pour que sorte
une splendeur définitive simple.”16

Reduzimos, provavelmente, o alcance dessas observações,


mas temos a impressão de não falseá-las ao reconhecermos, na
primeira recomendação, o esquema [somação → resolução] e, na
segunda, o seu inverso: [desdobramento → somação].

15
“De la colère”, Actes Sémiotiques, Documents, III, 27. Paris, C.N.R.S., 1981; retomado
em Du Sens II, op. cit.
16
MALLARMÉ, S. Œuvres complètes. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1945, p. 384-5. [N. dos
T.]: “Disposição, a habitual.
Pode-se, de resto, começar por uma explosão triunfal muito brusca para durar, convidan-
do que se agrupe, em retardos, liberados pelo eco, a surpresa.
Ao contrário: são, num recolhimento negro preocupado em atestar o estado de espírito
num ponto, espremidas e apuradas dúvidas para que saia um esplendor definitivo
simples.” 

111
ESQUEMA

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Tratar da definição sintagmática do esquema significa,


na realidade, estatuir ou apostar no sentido existencial da sin-
taxe e, a esse respeito, Greimas tem razão, sem dúvida, quan-
do faz do esquema narrativo o depositário do “sentido da vida”.
Entretanto, a investigação em curso das “formas de vida” mos-
trou que a exclusividade atribuída ao esquema narrativo deve
ser reexaminada. A problemática própria do esquema apóia-se
na substituição do singular pelo plural e no discernimento das
conseqüências dessa substituição: a que remete, exatamente,
a multiplicidade dos esquemas? Como um determinado discur-
so singular chega a ajustar os diferentes esquemas que ele aco-
lhe, já que a originalidade de um discurso depende dos esque-
mas que mobiliza? O corolário dessa co-presença de esquemas
no discurso impõe, com toda a evidência, os conceitos de densi-
dade e coerência esquemáticas.
O exame das definições sintagmáticas do esquema consis-
tirá em formular primeiramente todos os detalhes de uma es-
quematização canônica e, em seguida, as condições que lhe per-
mitam dar conta de um determinado modelo ou de um determi-
nado percurso discursivo. De fato, é próprio desses esquemas
tensivos articular a intensidade sensível e o desdobramento
cognitivo, mas essa articulação refere-se tanto aos percursos
narrativos, descritivos, quanto aos passionais. Suspeitamos da
existência de esquemas canônicos gerais, mas essa problemática
é tão nova em semiótica que as questões prevalecem sobre as
respostas e, como sempre, confirma-se a necessidade de algu-
mas convenções terminológicas. Emprestaremos de G. Guillaume,
pois é sugestiva, a oposição [ascendente/decadente], e admitire-
mos as seguintes equivalências:

esquema ascendente: desdobramento → somação


esquema decadente: somação → resolução

112
ESQUEMA

Esperamos ter enfatizado, ao longo de todo este trabalho,


que o esquema decadente revela-se sempre mais heurístico que o
esquema ascendente. É por isso que nos dedicaremos principal-
mente à estrutura do esquema decadente. Para pensar a
processualização de uma grandeza semiótica é necessário co-
meçar traduzindo-a em termos de programa e de contra-progra-
ma, transitivos ou intransitivos. A partir do diagrama que segue,
no qual introduzimos uma terceira fase, a sintaxe tensiva
imanente ao esquema canônico pode ser examinada:

Negrito = conteúdo
Itálico = expressão

tonicidade + somação
acento

INTENSIDADE resolução
modulação

– aforia
atonia silêncio
– +
concentração difusão
EXTENSIDADE

O esquema decadente comporta pelo menos uma fase ca-


racterizada pela pressuposição recíproca entre um máximo de
intensidade e um mínimo de extensidade; esses dois graus
tensivos podem, ou não, ser convertidos respectivamente em ex-
cesso de intensidade e em déficit de extensidade se o grau ultra-
passar a fronteira de uma norma. Examinemos cada caso: se o
máximo de intensidade é convertido em excesso de intensidade,
especialmente pelo efeito de uma moralização, diremos que esse
excesso é contensivo e pede um contra-programa distensivo de re-
solução, destinado a preencher o déficit de extensidade: na au-
sência dessa avaliação, o máximo de intensidade será simples-

113
ESQUEMA

mente retensivo e apresentar-se-á então como um contra-progra-


ma em relação à resolução potencial. Chegamos, assim, aos esti-
los tensivos elementares, por exemplo, no segundo caso, a uma
cultura deliberada – por vezes cínica – do excesso, do paroxis-
mo, resumida trivialmente pela palavra de ordem sumária: que
importa o frasco, contanto que possamos ter a embriaguês!
Introduzimos um terceiro termo, a aforia, cuja interpreta-
ção pode ser dupla: será que deveríamos pensar esse esquema
como ternário? Ou como uma “montagem” de dois esquemas
binários?

[somação → resolução] + [resolução → aforia]

Essa “montagem” atribuiria à resolução dois valores


esquemáticos distintos pois, se o processo atinge a aforia, então
a resolução precedente vale nesse caso como uma espécie de
“somação”.
Ambas as interpretações são plausíveis: a primeira está de
acordo com o caráter atrativo dos mínimos e dá conta, por exem-
plo, da substituição, na sinfonia moderna, do allegro pelo adagio
como o último movimento: é nesse sentido que um crítico pôde
escrever, a respeito do último movimento da Nona de Mahler, que
sua “escrita flutua no ar”17 .
Mas, por outro lado, é próprio de uma cultura particular
selecionar, algumas vezes, uma determinada porção do esque-
ma. Assim, “tudo se passa como se”, por uma espécie de síncope
da primeira parte do esquema, a cultura hindu quisesse conhecer
e “habitar” apenas a porção do arco que vai “da” resolução “à”
aforia:

17
CHION, M. La symphonie à l’époque romantique. Paris, Fayard, 1994, p. 240.

114
ESQUEMA

“Para a visão religiosa, o objetivo, ao contrário, é o de fazer desapa-


recer o tempo como totalidade, com tudo o que se encontra nele e o
que recebe dele ‘forma e nome’. A chama da vida apaga-se diante da
visão pura do conhecimento. ‘A roda está quebrada, o rio ressequido
do tempo não corre mais, a roda quebrada não gira mais: é o fim da
paixão.’ (Udana VII, 1; VIII, 3)”18

Ao contrário, o tempo ocidental, escatológico, só retém a


primeira parte do esquema e rejeita a aforia como excessiva. Mas
no interior do espaço tensivo assim definido, podemos prever
acentuações e diferenciações. Concebemos o esquema canônico,
munido de suas duas possibilidades de correlação, como um
arcabouço ou uma estrutura de acolhimento para os outros es-
quemas. Por ora, ele é apenas uma hipótese em curso de valida-
ção, que se apóia sobre: (i) a interação do sensível e do inteligí-
vel, e (ii) a direção reversível de cada uma das duas dimensões, a
intensidade e a extensidade.
Isso posto, a incorporação de um modelo específico pelo
esquema canônico supõe três condições: (i) a presença de uma
dimensão patêmica, manifesta ou latente; (ii) a identificação das
dimensões que, no discurso examinado, valem respectivamente
como intensiva e como extensiva; (iii) a identificação dos opera-
dores que tratam a intensidade e a extensidade.
Embora a escolha de um exemplo esteja sempre sujeita à
cautela, gostaríamos de mostrar que a projeção do esquema
canônico sobre um discurso-objeto não prejudica o texto, longe
disso. Assim, quando Pascal escreve no texto intitulado Le mystère
de Jésus:

“Jesus estará em agonia até o fim do mundo: não se deve dormir


durante esse tempo”

18
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, op. cit., p. 153.

115
ESQUEMA

ele impõe o tempo somativo da vinda, quando não da sobrevinda,


de Cristo, mas suspende o tempo resolutivo. Entre as tensividades
possíveis, o pensamento pascaliano manifesta a escolha de uma
sintaxe retensiva, no sentido de que a somação nunca é demasia-
damente intensa. Quando Pascal examina as vias do conhecimen-
to, opondo o “espírito de geometria” ao “espírito de refinamento”,
convoca as mesmas categorias, ou seja, as mesmas tensões
canônicas: “Sentem-se os princípios, concluem-se as proposições”19 :
os “princípios”, filiados ao sentir, advêm da somação, enquanto as
“proposições”, cuja dedução é confiada à razão, são assumidas pela
resolução. A passagem seguinte é ainda mais explícita:

“A razão age com lentidão e com tantas visões sobre tantos princípi-
os, os quais precisam estar sempre presentes, que toda hora ela se
entorpece ou se extravia por não conseguir manter todos os seus
princípios presentes.”20

e sua incorporação pelo esquema canônico é imediata: (i) os “prin-


cípios” que correspondem à somação baseiam-se na intensidade
máxima do sensível, cujo operador declarado é “o coração”; (ii) as
“proposições” que correspondem à resolução baseiam-se na
extensidade do inteligível, cujo operador é “a razão”.
E, segundo o ponto de vista introduzido neste ensaio, o
desafio que Pascal lança a uns e outros consiste, para os “espíri-
tos refinados”, em deslocar-se da somação à resolução, enquanto
os “geômetras” são convidados a transportar-se do desdobramento
à somação. Entretanto, poder-se-ia criticar a transposição que
propusemos por não ser mais que uma tradução. Nesse sentido,
o esquema canônico comporta duas possibilidades de desdobra-
mento: (i) quando a somação é retensiva, quer se trate do ser
amado:

19
PASCAL, B., op. cit., p. 1222.
20
Op. cit., p. 1220.

116
ESQUEMA

“Quando se ama fortemente, é sempre uma novidade ver a pessoa


amada”

ou da graça:

“É um fluxo contínuo de graça que a Escritura compara a um rio e à


luz que o sol envia incessantemente para fora de si, e que é sempre
nova, de modo que, se deixasse um instante de enviar, toda luz já
recebida desapareceria e só restaria a escuridão”21

ela tende ao que Pascal chama de “efusão”; (ii) ao contrário, se a


somação tende à nulidade, a resolução torna-se, ao mesmo tem-
po, máxima e vazia:

“É uma coisa horrível sentir que se está perdendo tudo que se possui.”22

Esse esquema canônico, que anuncia aqui os rudimentos


de uma gramática pascaliana, parece, pois, apresentar possibili-
dades de previsão, que embora bem modestas, fazem dele um
modelo de compreensão e não somente de descrição.

3 CONFRONTAÇÕES

A cadeia do discurso é composta, segundo Hjelmslev, de


dois tipos de grandezas: os constituintes e os expoentes; os cons-
tituintes ocupam a extensão da cadeia e obedecem às regras ex-
tensivas da distribuição, enquanto os expoentes são responsá-
veis pelas variações de intensidade na cadeia. Num segundo tem-
po, para os expoentes, cumpre distinguir entre morfemas inten-
sos e morfemas extensos; no plano da expressão, os primeiros re-
portam-se aos acentos, os segundos às modulações que afetam o
21
Loc. cit.
22
Op. cit., p. 1181.

117
ESQUEMA

enunciado integral; no que diz respeito ao plano do conteúdo,


Hjelmslev não propõe nenhum termo mas fornece como exem-
plo, a pessoa, a voz, o aspecto, o tempo e o modo23 . Se o termo
prosódia, reunindo acentos e modulações, impõe-se sem dificul-
dade no plano da expressão, o mesmo não ocorre no plano do
conteúdo; mas se lembrarmos que uma de nossas hipóteses cen-
trais incide sobre a dependência entre a intensidade e a extensidade,
parece-nos que o termo consistência, entendido como ponto de
convergência numa rede de dependências, de complexidades e
de tensões que tentamos precisar, poderia designar, no plano do
conteúdo, a associação do impacto e da extensão. A sintaxe dis-
cursiva comportaria, pois, dois planos associados: a sintaxe da
constituência e a sintaxe da consistência.
Na medida em que o esquema tem por princípio, no plano
do conteúdo, a tensão entre somação intensiva e resolução ex-
tensiva, o seu equivalente no plano da expressão será, por essa
razão, o período ou o esquema entoativo. Para recapitular:

PLANO DA EXPRESSÃO PLANO DO CONTEÚDO


Prosódia Consistência
Período, esquema entoativo Esquema tensivo
Acento ⇔ modulação Somação ⇔ resolução

Para terminar, levantaremos duas questões que ajudam a


estender algumas das hipóteses lançadas: (i) seria conveniente
postular um esquema dos esquemas? (ii) o que significa a desi-
gualdade recorrente entre o esquema ascendente, que mobiliza a
correlação conversa das valências, e o esquema decadente, fun-
dado em sua correlação inversa?

23
Ver ZINNA, A. “La théorie des formants. Essai sur la pensée morphématique de Louis
Hjelmslev”, Versus, 43, avril-juin, 1986, p. 95-9.

118
ESQUEMA

Será que existe um esquema dos esquemas, como o percur-


so gerativo, na perspectiva de Greimas, ou a estratificação, numa
escala bem mais modesta? Ou somente correlações e congruências
circunstanciais, “sob encomenda”, entre duas esquematizações,
julgadas até aqui estranhas e subitamente identificadas por uma
enunciação individual, a exemplo do que propõe Lévi-Strauss, ao
final de Mythologiques, quando ele lança uma ponte entre mito e
música, até então considerados estranhos um ao outro. O percur-
so gerativo é certamente um “esquema dos esquemas”, mas que
teria deliberadamente apostado na inteligibilidade do discurso,
numa série de “resoluções” em cadeia a partir da primeira somação
categorial, até as articulações mais finas da discursivização. Mas
o próprio Greimas, ao interessar-se pelo sentir e pela estesia, foi
obrigado a deixar provisoriamente entre parênteses o percurso
gerativo; e as pesquisas sobre as formas de vida, baseando-se
cada uma sobre uma estesia característica, confirmam essa ten-
dência: as seleções operadas a partir dessa estesia discriminante
apóiam-se certamente sobre os diferentes níveis do percurso
gerativo, mas para lhes propor uma deformação coerente que é
a verdadeira esquematização em ato no discurso. Realmente, o
ensaio que lhes é consagrado e no qual elas são definidas como
“esquemas de esquemas”, responde à questão precedente atri-
buindo às culturas a tarefa de esquematizar coleções de esque-
mas. Desde então, o esquema dos esquemas só pode ser especí-
fico, particularizante e não genérico, assim como em I. Lotman,
os sistemas modelizantes secundários, ao assegurar a intersec-
ção das estruturas, engendram a originalidade e a especificida-
de culturais.
A desigualdade entre esquema ascendente e esquema de-
cadente é um dos motivos – bem involuntário –, deste trabalho.
Nos anos sessenta, em razão do consenso que considerava os
elementos como afóricos, acrônicos e pontuais, ou seja,
“incorpóreos”, a emergência do sentido era atribuída a uma com-

119
ESQUEMA

binatória que proporcionava um número finito de possíveis; a


partir desta combinatória, cada micro-universo procedia a uma
seleção, provavelmente arbitrária, mas o discurso ficava encarre-
gado de motivá-la pondo-a em relação com outras seleções. Ora,
a combinatória, a partir do momento em que precisa compor com
as precondições tensivas do sentido, deve levar em conta as dife-
renças de potencial, e os esquemas ascendente e decadente, em-
bora associem as mesmas grandezas, não produzem, nesses ter-
mos, os mesmos efeitos. Não faríamos alusão a essa hipótese se
Saussure, nos manuscritos acessíveis e em seus “Princípios de
fonologia”, não tivesse enfrentado com determinação essa difi-
culdade.
A análise fonológica segundo Saussure não consiste em
propor primeiramente traços binários, depois fonemas e final-
mente sílabas, ou seja, em propor partes e, em seguida, compor
um todo:

“Aquele que proferir uma opinião determinada sobre u consoante e


u vogal, sem ter de si para si uma visão perfeitamente <nítida e>
precisa sobre a sílaba, não sabe do que está falando.”24

Saussure passa então a preocupar-se com os constituintes


próprios da sílaba, identificando-os como dois processos: a
implosão (cuja notação é >) e a explosão (cuja notação é <):

“Vejamos, agora, o que deve resultar da seqüência de explosões e


implosões nas quatro combinações teoricamente possíveis: 1° < >,
2° > <, 3° < <, 4° > >.”25

24
ENGLER, R. Edition critique du C.L.G., tome 2, fasc. 4. Wiesbaden, O. Harowitz, 1974,
3305.2.
25
SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral, op. cit., 1971, p. 68.

120
ESQUEMA

Entretanto, se todas elas são “teoricamente possíveis”, as


duas primeiras combinações manifestam propriedades que as
colocam em destaque: (i) a primeira, [< >], que pode ser aproxi-
mada do esquema decadente, produz o “ponto vocálico”; a se-
gunda, [> <], comparável ao esquema ascendente, produz a “fron-
teira de sílaba”. Um produziria um efeito de “centro”, o outro um
efeito de “passagem”, o que quer dizer que o esquema decadente
encerra-se sobre si próprio, atribuindo-se um centro organizador,
enquanto o esquema ascendente remete-se sempre a um “para
além de”, ou seja, a uma outra resolução.
O caso da falta e da sua liquidação é particularmente claro
nesse sentido: quando a resolução liquida uma falta intensa, ela
conduz o percurso do sujeito para um atrator que o estabiliza – é
o efeito “centro” –; ao contrário, quando a liquidação é uma
somação que suprime uma falta difusa e extensa, ela prepara o
sujeito, como Swann em Proust, para novas aventuras – novas
resoluções –, pois, sendo uma zona crítica, a “passagem” não
assegura qualquer estabilidade. A desigualdade entre os dois es-
quemas poderia ser assim resumida: o esquema decadente con-
duz a um equilíbrio estável (o centro atrator), enquanto o esque-
ma ascendente conduz a um equilíbrio instável (a passagem, que
poderíamos denominar “ponto de repulsão” ou “repulsor”).
Ao término desse estudo, parece agora que o esquema
tensivo canônico é dotado das seguintes propriedades: (i) perten-
ce ao espaço tensivo pelo fato de negociar uma correlação inver-
sa entre duas dimensões (ou profundidades): uma profundidade
intensiva e uma profundidade extensiva; (ii) afeta tanto o tempo
quanto a duração e a espacialidade: a somação apresenta-se nor-
malmente como uma aceleração acompanhando uma contração
do espaço e da duração; seu caráter instantâneo chega a ser, algu-
mas vezes, a única manifestação concreta da intensidade que a
define; (iii) enfim, a somação é doação, doação de objeto ou do-
ação de sentido, enquanto a resolução, por sua vez, inscreve-se

121
ESQUEMA

do lado do saber-fazer e do poder-fazer; (iv) o esquema canônico é,


pois, justamente a transição gramatical em virtude da qual o sen-
sível evoca o inteligível que ele mesmo suspendeu26 ; se o esque-
ma canônico apresenta-se agora como o caminho entre a somação
e a resolução, então ele permite ao sujeito converter a paixão em
ação, o afeto em projeto, o suportar somativo em agir resolutivo
e, nesse sentido, o esquema canônico merece bem o título de
saber-viver ou de arte de viver elementar.

26
Para uma semiótica da dependência, a distância entre ser e fazer, entre estado e
processo, tende a diminuir.

122
PRESENÇA

PRESENÇA

1 RECENSÃO

A CATEGORIA presença/ausência pertence de direito, para co-


meçar, ao discurso filosófico sobre a existência (em geral
oposta à essência). Neste, ela funciona quase sempre como uma
categoria “impura”, cujo termo complexo presença + ausência
parece mais facilmente atualizável e mais produtivo do que os
outros. Assim, no mito platônico da caverna, a presença sensível
é construída como uma “ausência presentificada”, uma espécie
de simulacro da “Idéia” obtido por apresentação indireta e
deceptiva. A reformulação mais recente de tal categoria pela
fenomenologia, culminando, em Merleau-Ponty, na noção de
“campo de presença”1 , assenta numa interpretação do par pre-
sença/ausência em termos de operações (aparecimento/desapare-
cimento) pelas quais os “entes” sensíveis se destacam do “ser”
subjacente, e depois retornam a ele. O interesse dessa
reformulação, de um ponto de vista semiótico, reside no fato de
estar a presença aí definida em termos dêiticos, ou seja, em suma,
a partir de uma espécie de presente lingüístico; além disso, para
a própria fenomenologia, a presença é o primeiro modo de exis-
tência da significação, cuja plenitude estaria sempre por ser con-
quistada.

2 DEFINIÇÕES

Para a semiótica, na medida em que esta se filia a Hjelmslev,


a elucidação da presença, noção já em si particularmente delica-

1
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1983, p. 29-30.

123
PRESENÇA

da, depara, por assim dizer, com uma proibição, visto que o autor
dos Prolegômenos declara:

“Estas definições baseiam-se em conceitos não específicos e


indefiníveis: presença, necessidade, condição, bem como nas defi-
nições de função e funtivo”2

Sem tratar a questão a fundo, se os indefiníveis são real-


mente assim, tomados cada um separadamente, parece-nos que,
do grupo que eles formam – aos que acabamos de indicar é pre-
ciso acrescentar ainda “descrição, objeto, dependência,
homogeneidade”3 –, e de sua aproximação, destacam-se índices
de correlação que permitem vislumbrar uma interdefinição.

2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Só se pode conceber a existência semiótica como presença


se se supõe, como fazem os autores do Dicionário de semiótica,
que essa existência é um objeto de saber para um sujeito cognitivo.
Mas haveria que dar um passo a mais e reconhecer, em tal relação
cognitiva, a base perceptiva da apreensão de toda significação.
Consideradas como parte integrante de uma configuração
perceptiva que seria constitutiva tanto da semiose quanto da
enunciação, a ausência e a presença, logicamente anteriores à
categorização, prefiguram contudo, como veremos, o aparecimen-
to desta última.
Atrelando assim, logo de saída, a problemática da presença
à da enunciação, estamos aptos a introduzir as “variedades”
enunciativas da presença, controladas pela instância trinitária
da enunciação: actante, espaço, tempo. Nosso ponto de partida

2
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 40.
3
Op. cit., p. 34.

124
PRESENÇA

estará constituído pela pressuposição recíproca entre, por um lado,


o “campo de presença”, considerado como o domínio espácio-
temporal em que se exerce a percepção, e, por outro, as entradas,
as estadas, as saídas e os retornos que, ao mesmo tempo, a ele
devem seu valor e lhe dão corpo. Isolemos cada uma das três
dimensões da dêixis enunciativa e consideremo-la como catego-
ria tensiva.
Para o actante, que concebemos, como a fenomenologia,
em sua relação com um objeto de valor, propomos distinguir uma
orientação quer para o sujeito, quer para o objeto, sem prejuízo
da junção sujeito-objeto. Do ponto de vista do sujeito, a presen-
ça é – de maneira quase unânime – apreendida como espanto;
admitiremos que estamos diante da presença realizada. Mas sen-
do o súbito, por definição, efêmero, sua virtualização inevitável
dá lugar ao hábito. Do ponto de vista do objeto, a oposição
canônica, homóloga à precedente, conjunge e disjunge o novo e
o antigo. A semiótica não tem outra pretensão que a de compre-
ender a prevalência de tais “vivenciados de significação” (Cassirer);
por relação ao campo de presença, o espanto e a novidade carre-
gam um valor de irrupção, o hábito e a antigüidade, um valor de
estada.
No que tange à dêixis espacial, a categoria tensiva de primei-
ra ordem é obviamente a profundidade, cuja melhor formulação
fenomenológica foi proposta por Merleau-Ponty em L’oeil et
l’esprit:

“Da profundidade assim compreendida, não se pode mais dizer que


seja ‘terceira dimensão’. Para já, se ela fosse uma dimensão, seria
antes a primeira: não há formas, planos definidos a não ser que se
estipule a que distância de mim se encontram suas diferentes par-
tes. Mas uma dimensão primeira e que contém as demais não é uma
dimensão, pelo menos no sentido corriqueiro de uma certa proporção
segundo a qual se mede. A profundidade, assim entendida, é antes a
experiência da reversibilidade das dimensões, de uma ‘localidade’

125
PRESENÇA

global em que tudo é ao mesmo tempo, e de que altura, largura e


distância estão abstraídas, de uma voluminosidade que se exprime
numa palavra dizendo que uma coisa está aí.”4

A articulação semiótica mínima é a que confronta o próxi-


mo, para a presença realizada, e o distante, para a presença vir-
tualizada.
Quando a profundidade se projeta na competência do sujei-
to da percepção, ela dá lugar à dialética dos “pontos de vista”: aos
intervalos inerentes à distância correspondem morfologias percep-
tivas, ora apenas distintas, ora irredutíveis umas às outras, como
nas páginas que Proust dedica ao chafariz do pintor Hubert Robert
em Sodome et Gomorrhe5. A morfologia dos pontos de vista deve
considerar-se, na sua relação com a profundidade, como uma “fun-
ção descontínua de certa variável contínua”6.
No que concerne à última dimensão, o agora, a mnésia,
versão despsicologizada da memória, está para a temporalidade
assim como a profundidade está para a espacialidade. Admitire-
mos que o atual manifesta a presença realizada, e o ultrapassado,
forma intensiva do passado, a presença virtualizada. A estrutura
elementar da temporalidade parece-nos antes dual que ternária:
com efeito, numerosas são as línguas, entre outras o latim, em
que as formas do futuro são dadas como “tardias”.
Antes de seguir adiante, gostaríamos de fazer duas obser-
vações: (i) se se admite que a dimensão própria do ego não é
outra que a do afeto, isto é, o estado – ou mesmo a “temperatu-
ra” – da relação do sujeito a seus entornos, a relação da profundi-
dade e da mnesia ao afeto é da ordem da catálise, na medida em
que o próximo e o atual só valem se forem “afetantes”. Em razão

4
MERLEAU-PONTY, M. L’ Œil et l’esprit, op. cit., p. 65.
5
PROUST, M. A la recherche du temps perdu, tome 2. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1954,
p. 656-7.
6
VALÉRY, P. Cahiers, tome 1. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1973, p. 789.

126
PRESENÇA

de sua dependência comum por relação ao afeto, a profundidade


e a mnesia tendem a “metaforizar-se” uma à outra, o que nem as
línguas nem os discursos deixam de fazer: pode-se, assim, falar
na “profundidade” temporal da lembrança. (ii) A práxis enunciativa
pode sofrer ou reagir: ela sofre se a consecução [realizado →
virtualizado] prevalecer; em contrapartida, reage, se esse conteú-
do for avaliado como conteúdo invertido a reclamar sua inversão
em conteúdo posto. A título de exemplo imediato, o empreendi-
mento de Péguy, a partir da oposição entre o “já feito” – o ultra-
passado, em nossa abordagem – e o “fazendo-se” – o atual –,
esforça-se por barrar o que ele chama de “amortecimento”:

“Pois a madeira morta é a madeira invadida pelo já feito, inteiramente


ocupada, inteiramente dedicada ao já feito, inteiramente devorada
pelo já feito, inteiramente consumida, por assim dizer, pela invasão do
já feito. Ressequida por completo, mumificada por completo; plena de
seu hábito e de sua memória. É uma madeira que chegou ao limite de
tal amortecimento. É uma madeira cuja matéria foi sendo toda tomada,
pouco a pouco, por esse envelhecimento. É uma madeira cuja flexibi-
lidade foi sendo toda ela, aos poucos, carcomida por esse enrijecer, e
cujo ser foi inteiramente esclerosado por um tal endurecimento. É
uma madeira que não tem mais um átomo de espaço, nem de matéria,
para o fazendo-se. Para fazer um fazendo-se. Logo, ela não o forma
mais, ela não o faz mais.”7

O seguinte quadro expõe a projeção dos modos de presen-


ça nas categorias enunciativas:

7
PÉGUY, C. Œuvres en prose, 1909-1914. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1961, p. 1402.

127
PRESENÇA

Presença Presença
realizada virtualizada
EGO PdV do sujeito espantado habituado

PdV do objeto novo antigo


AQUI próximo distante
AGORA atual ultrapassado

Em segundo lugar, o “eu” semiótico não se reduz ao “eu”


lingüístico: o “eu” semiótico é um “eu” sensível, afetado, muitas
vezes atônito, quer dizer, comovido pelos êxtases que o assal-
tam, um “eu” mais oscilatório do que identitário. A presença se
torna, por isso, uma variável, como já mostrava Descartes ao
tratar da “admiração”:

“Quando o primeiro encontro com algum objeto nos surpreende,


julgamo-lo novo, ou bem diferente do que conhecíamos antes [...];
isso pode nos acontecer antes de sabermos minimamente se tal
objeto nos é conveniente [...]; ele não tem contrário, uma vez que, se
o objeto que se apresenta nada tiver em si para nos surpreender [...],
consideramo-lo sem paixão.”8

O “eu” semiótico habita um espaço tensivo, ou seja, um


espaço em cujo âmago a intensidade e a profundidade estão as-
sociadas, enquanto o sujeito se esforça, a exemplo de qualquer
vivente, por tornar esse nicho habitável, isto é, por ajustar e re-
gular as tensões, organizando as morfologias que o condicio-
nam.
Se aceitarmos ver, por um lado, na duração e no espaço,
possibilidades de desdobramento, e, por outro lado, na intensi-
dade o operador capaz de efetuar, mas também, quando for o

8
DESCARTES, R. Traité des passions. Paris, Gallimard, La Pléiade.

128
PRESENÇA

caso, de inibir esses desdobramentos, o campo de presença será


determinado, do ponto de vista morfológico, de um lado pelo
centro dêitico que lhe serve de referente, e do outro pelos hori-
zontes de aparecimento e desaparecimento que constituem suas
primeiras modalizações e aspectualizações. A profundidade
espácio-temporal proporciona à presença um devir e uma exten-
são; ela permite além disso, na medida em que é sempre passível
de se contrair ou se estender, de recuar ou avançar os horizontes,
uma perspectivização da presença ou da ausência, uma em rela-
ção à outra, de sorte que o campo de presença aparece como
modulado, mais do que recortado, por diversas combinações de
ausência e presença, isto é, por correlações de gradientes da pre-
sença e da ausência. Gostaríamos de mostrar mais precisamente
como os termos do par presença/ausência são articulados por sua
imersão no espaço tensivo.
A categoria que procuramos construir baseia-se, de fato, na
co-presença, num mesmo domínio – ou campo de presença –, de
pelo menos duas grandezas: a presença semiótica não pode ser
senão relacional e tensiva, e deve compreender-se como uma “pre-
sença de x a y”. Na perspectiva que nos interessa aqui, as duas
grandezas em foco são os dois resultantes da função “percep-
ção”, um sujeito e um objeto. A partir disso, o domínio conside-
rado é aquele determinado pelo alcance espácio-temporal do ato
perceptivo, que pode ser expresso tanto em termos de extensão
dos objetos percebidos, quanto em termos de intensidade das
percepções.
Esse domínio tem portanto um interior e um exterior (o
“campo” e o “extracampo”), cujos correlatos respectivos são a
tonicidade e a atonia das percepções. Pode, além disso, ser trata-
do como aberto ou como fechado; no primeiro caso, a percepção
é considerada como um foco, e, no segundo, como uma apreen-
são. O foco se firma, em suma, na intensidade da tensão que ins-
taura entre seus dois resultantes, o sujeito e o objeto, ao passo

129
PRESENÇA

que a apreensão procede por delimitação de uma extensão, e


demarca o domínio para aí circunscrever o objeto. Nessa perspec-
tiva, “apreender” é fazer coincidir a extensão de um domínio fe-
chado com o campo em que se exerce a intensidade ótima da
percepção. No campo assim circunscrito, a intensidade e a
extensidade perceptivas evoluem de maneira conversa: quanto
maior o número de objetos apreendidos, mais se admite que
seja intensa a percepção. Em contrapartida, “focalizar” é selecio-
nar, numa extensão aberta, a zona em que se exercerá a percep-
ção mais intensa; é renunciar à extensão e ao número dos obje-
tos, em prol da saliência perceptiva de alguns, ou de um único.
Por conseguinte, no foco, a intensidade e a extensidade perceptivas
evoluem de maneira inversa: quanto menos objetos se visam de
uma só vez, mais bem estes são visados. A profundidade do foco
e da apreensão, avaliada a partir do centro dêitico, será portanto
função da tonicidade de um e outra, tonicidade essa considerada
como um complexo de intensidade e extensidade perceptivas.
As definições respectivas do foco e da apreensão são
homólogas das definições respectivas dos valores de absoluto (cor-
relação inversa entre intensidade e extensidade) e dos valores de
universo (correlação conversa), tais como aparecem no capítulo
“Valor”. Poder-se-ia, então, indagar, com razão: de que intensidade
e de que extensão se tratava? Em que medida esses dois tipos
axiológicos se fundavam nas duas grandes direções do espaço
tensivo? A resposta se encontra em nossa definição da presença:
os valores de absoluto, associados às operações de triagem
axiológica, firmam-se no tipo perceptivo do foco; os valores de
universo, associados às operações de mistura e totalização
axiológicas, firmam-se no tipo perceptivo da apreensão.
Nessa primeira fase de elaboração da categoria, dispomos
de dois gradientes da “tonicidade” perceptiva: o da apreensão e
o do foco. Admitiremos que a categoria presença/ausência repou-
sa sobre a correlação entre esses dois gradientes, na medida em

130
PRESENÇA

que suas diferentes configurações resultam da associação entre


um foco e uma apreensão, da tensão entre a abertura e o fecha-
mento do campo. Semelhantes tensões podem ser organizadas
em rede:

Foco tônico Foco átono


Apreensão tônica Plenitude Inanidade
Apreensão átona Falta Vacuidade

ou então, organizadas em quadrado homogêneo, mas não


canônico:
Plenitude Vacuidade

Dêixis da Dêixis da
PRESENÇA
{ } AUSÊNCIA

Falta Inanidade

As modulações da presença e da ausência fornecem, em


suma, a primeira modalização das relações entre o sujeito e o
objeto tensivos, a modalização existencial: a plenitude é realizante,
a falta é atualizante, a vacuidade é virtualizante e a inanidade é
potencializante. Tal sugestão supõe, de fato, (i) que as modaliza-
ções existenciais possam ser engendradas a partir das modula-
ções da presença/ausência, e (ii) que possamos generalizar as ar-
ticulações da base perceptiva ao conjunto da modalização exis-
tencial no discurso.
No que toca ao primeiro ponto, é fácil perceber que a cate-
goria da presença procede de uma análise tensiva, perceptiva, e
preocupada em articular as formas complexas, dos mesmos fenô-
menos que são analisados, por outro lado – numa perspectiva dis-
creta, estritamente narrativa, e limitada aos termos simples –, gra-

131
PRESENÇA

ças à categoria da junção. Ora, a categoria da junção já foi utiliza-


da por Greimas para fundar a tipologia dos modos de existência
(cf. na presente obra, o capítulo “Modalidade”), e isso em dois
tempos. Primeiro, de um ponto de vista epistemológico:

“A teoria semiótica se coloca o problema da presença, isto é, da


‘realidade’ dos objetos cognoscíveis, problema comum – é verdade –
à epistemologia científica no conjunto.”9

Segue-se a apresentação dos três modos de existência en-


tão reconhecidos: o virtualizado, o atualizado e o realizado. Em
seguida, os mesmos modos de existência são atribuídos ao per-
curso do sujeito discursivo, a partir do seguinte raciocínio:

“[...] uma definição existencial, de ordem propriamente semiótica,


dos sujeitos e dos objetos encontrados e identificados no discur-
so, é absolutamente necessária. Dir-se-á que um sujeito semiótico
não existe enquanto sujeito senão na medida em que se lhe pode
reconhecer pelo menos uma determinação; ou seja, que ele está
com um objeto-valor qualquer. Da mesma forma, um objeto [...] só o
é enquanto esteja em relação com um sujeito, enquanto é ‘visado’
por um sujeito. É a junção que é a condição necessária tanto à exis-
tência do sujeito quanto à dos objetos[...]”10

Vê-se bem como foi que, da questão epistemológica da


presença, passamos à categoria discursiva da junção: por inter-
médio dos modos de existência que lhes são comuns. Parece-
nos, todavia, que, a partir do momento em que recebe, como
aqui, uma definição discursiva e tensiva firmada nas correlações
entre o foco e a apreensão, a categoria presença/ausência substitui
facilmente, e não sem proveito, a da junção, cujas operações ló-
gico-narrativas constitutivas permanecem, com efeito, um tanto

9
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 172.
10
Op. cit., p. 173.

132
PRESENÇA

distantes das questões inerentes à existência, em particular a


densidade de presença e a tonicidade perceptiva. Verdade que se
a junção fosse tratada como uma grandeza complexa, associan-
do, por exemplo, os avatares da intencionalidade (i. e.: o foco) e
as vicissitudes da captura (i. e.: a apreensão), reencontraríamos
então o complexo foco/apreensão e, com ele, toda a espessura,
toda a densidade da existência semiótica.
Quanto ao segundo ponto, é preciso admitir que, em nos-
so procedimento, a tonicidade (esse complexo de intensidade e
extensidade) prevalece sobre as demais grandezas. Para uma se-
miótica da presença, a relação não vai da diferença para a tonici-
dade, mas sim da tonicidade para a diferença; analogamente, a
física, em sua própria ordem, inverteu a relação admitida entre a
matéria e a energia, e pôs a matéria na dependência dos destinos
da energia. A partir disso, se nós erigimos a intensidade/extensi-
dade como dimensões ab quo, a apreensão da presença torna-se
indissociável da avaliação dessa tonicidade: o simulacro semiótico,
a própria semiose, resultaria, sob esse aspecto, de um compro-
misso entre as duas modulações extremas que são, por um lado,
o excesso de presença do mundo natural (o “pleno” da expressão,
a plenitude sensível das tensões) e, por outro, o excesso de au-
sência do mundo interior (o vazio de conteúdo, a ausência de
articulações). Entre esses dois extremos, a significação se nutre
de todos os graus de modulação recíproca da presença e da au-
sência. A generalização da complexidade que propusemos leva a
pensar que a existência semiótica assenta, afinal de contas, na
busca de um equilíbrio tensivo entre os diferentes modos de exis-
tência (a potencialização, a virtualização, a atualização e a reali-
zação), que organizam o campo perceptivo e, transitando através
do percurso gerativo, condicionam a própria semiose discursiva.
Mas o compromisso sensível em que se alicerçam os universos de
sentido está sempre ameaçado pelo não-sentido, que espreita
nas duas extremidades do gradiente da presença.

133
PRESENÇA

Com base nisso, e retomando a sugestão de Semiótica das


paixões, que introduz um quarto modo de existência11 , propo-
mos a seguinte homologação:

Plenitude Vacuidade
realizante virtualizanter
li t

Falta Inanidade
atualizante potencializante12

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

O conteúdo das definições sintagmáticas não é autôno-


mo; deve concordar com as definições paradigmáticas que aca-
bamos de mencionar, e obedecer às seguintes exigências: (i) a
pertença a um espaço tensivo; (ii) a divisibilidade da foria, cujo
corolário é a solidariedade entre os gradientes da intensidade e
da extensidade, conforme procuramos demonstrar no estudo
dedicado à valência. Globalmente, os percursos sintáxicos se de-
duzem das definições paradigmáticas, como diminuições ou au-
mentos da intensidade do foco e da extensão da apreensão, e a
“presença viva” é nesse caso um produto das tensões máximas.

11
GREIMAS, A. J. et FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 128-36.
12
Como já mencionamos e justificamos no capítulo “Valor”, não retomamos nem a
formulação de Semiótica das paixões nem a do Dicionário de semiótica: na realidade,
considerar a atualização como disjuntiva no discurso, é se servir de um emprego
contra-intuitivo desse termo e colidir com sua significação epistemológica (cf. Greimas
& Courtés: “a existência atual, própria do eixo sitagmático, oferece ao analista os
objetos semióticos in praesentia, parecendo, com isso, mais ‘concreta’. ”, Dicionário de
semiótica, p. 172). Se as palavras possuem um sentido, a atualização está a um passo da
realização, ou seja, situa-se, como termo complementar, na mesma dêixis que esta e
nunca em posição contrária.

134
PRESENÇA

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Não há necessidade de imaginar as definições sintagmáti-


cas: a foria, considerada como o princípio sintáxico do espaço
tensivo, é precisamente aquilo cujo devir se modula pelas varia-
ções da tonicidade perceptiva. A presença perceptiva deve por-
tanto ser confrontada à “foria” que a carrega, sendo esta da or-
dem do puro “vivenciado”, isto é, do sentir. Desse ponto de vista,
a presença é o correlato perceptivo de uma grandeza puramente
sensível, identificável à “lebendige Strömung der Gegenwart” segun-
do Husserl, ao “fluxo inapreensível” segundo Cassirer.
Os modos de existência, ou modalizações existenciais, forne-
cem-nos desde já uma sintaxe canônica, que cruza dois percursos,
como no quadrado semiótico: a inanidade (a potencialização) cons-
titui uma “perda” de densidade existencial, provocada pela anu-
lação do foco, perda que conduz da presença (realizante) à ausên-
cia (virtualizante); inversamente, a perda (atualizante) proporcio-
na um ganho de densidade existencial, devido à intensidade do
foco, no caminho que leva da ausência à presença. Assim, os dois
percursos podem ser representados, respectivamente, como a saída
e a entrada por relação ao domínio perceptivo:

Inanidade
(Potencialização)

Vacuidade
(Virtualização) Plenitude
(Realização)

Falta
(Atualização)

Gostaríamos de evocar o que sucede quando essa estrutura


sintáxico-prosódica, cujo plano de fundo permanece constituído
pelas transformações da tonicidade perceptiva (intensidade/exten-

135
PRESENÇA

sidade), incide sobre as três dimensões constitutivas da enunciação,


a actancialidade, a temporalidade e a espacialidade:

1. No que concerne ao actante, podemos considerá-lo, quer na


perspectiva da intensidade, quer na da extensidade. Assim se ar-
ticula a intensidade:

compacto ⇔ difuso

Segundo a extensidade, ego recebe a quantificação:

uno ⇔ numeroso

As duas dimensões constitutivas da tonicidade perceptiva


e da densidade de presença, a intensidade e a extensidade, po-
dem então adotar os seguintes estilos ou regimes:

Int.: Int.: difuso


compacto Ext.: numeroso
Ext.: uno (virtualizado)
(realizado)

INDIVISÃO {
Dêixis da
}
Dêixis da
DIVISÃO

(atualizado) (potencializado)
Int.: concentrado Int.: distribuído
Ext.: massivo Ext.: dividido

A pergunta a que estamos tentando responder está motiva-


da pela projeção da definição de estrutura, “entidade autônoma
de dependências internas”, sobre a tensividade (intensidade e
extensidade). A dependência diz respeito, neste caso, à solidez
do liame entre intensidade e extensidade: uma estrutura pode
ser postulada se uma morfologia diferencial estiver associada, de
maneira recorrente, a um determinado grau de intensidade. Para
simplificar, só examinamos aqui a correlação inversa entre a inten-
sidade e a extensidade:

136
PRESENÇA

a) Com o compacto, estamos diante do que gostaríamos de cha-


mar de presença viva: a intensidade está no auge, e a morfologia
associada é a do uno, do singular.
b) Com o distribuído, reencontramos essa disposição que liga a
diminuição das tensões a seu fracionamento, e a morfologia as-
sociada é a que resulta da cisão, geradora do dividido, e até mes-
mo do discreto e do serial. Como já indicamos no estudo dedica-
do à valência, toda articulação, na medida em que contraria a
fusão, vale como distensão, levando à potencialização e afinal à
virtualização da própria intensidade.
c) Com o difuso, do ponto de vista da intensidade, e o numeroso,
do ponto de vista da extensidade, a distensão se manifesta pela
distância estabelecida e mantida entre o sujeito e o objeto, ain-
da quando benéfico. A máxima difusão da cisão culmina, agora,
na pluralização, que é a morfologia mais distensa. Para ilustrar,
lembremos que, segundo H. Wölfflin, tal distensão era a catego-
ria diretriz do estilo do Renascimento, tendo como correlato uma
lassidão crescente, ou seja, uma felicidade:

“O Renascimento é a arte da beleza plácida. Ele nos oferece essa


beleza libertadora que sentimos como um bem-estar geral e um
crescimento regular de nossa força vital”13

Os paradoxos comuns denunciados acerca dos valores to-


mados dois a dois encontram resolução nos ajustes e concordân-
cias de valências.
d) Com o concentrado, a reconstituição da intensidade, graças à
atualização, terá como correlato morfológico e quantitativo o
massivo; sob essa denominação emprestada da lingüística, reco-
nhecemos grupos indissociáveis, massas pouco articuladas po-
rém individualizadas; o ritmo faz amplo uso destas, já que uma

13
WÖLFFLIN, H. Renaissance et baroque. Paris, Le Livre de Poche, 1989, p. 81.

137
PRESENÇA

das virtudes do ritmo consiste em reunir as grandezas numero-


sas em grupos, ou células rítmicas, resistentes à dispersão; a re-
tomada da intensidade (“concentrado”) e o déficit morfológico
(“massivo”) são solidários um do outro. Prolongando o exemplo
anterior, lembremos que Wölfflin insiste na dissolução dos con-
tornos e dos limites em que se empenhou, em sua opinião, a arte
barroca:

“O contorno é destruído por princípio, a plácida linha contínua cede


lugar a uma zona terminal, as massas não podem ser delimitadas por
linhas nítidas, mas ‘perdem-se’.”14

2. Para a temporalidade, a aplicação da distinção proposta por


G. Guillaume entre “tempo ascendente” e “tempo decadente”15
leva a opor, para o primeiro:

iminente ⇔ futuro

e, para o segundo:

recente ⇔ antigo

A tensão entre “iminente” e “futuro”, por sua vez, é


analisável a partir do momento em que a supusermos variável
em tensão e lassidão, de tal forma que o pólo tenso, o iminente,
possa ser relaxado, e, ao contrário, o pólo distenso, o futuro,
possa ser tensionado:

14
Op. cit., p. 69.
15
GUILLAUME, G. Temps et verbe – théorie des aspects, des modes et des temps. Paris, Champion,
1968, p. 52 e ss.

138
PRESENÇA

Iminente Futuro

Dêixis da Dêixis da
impaciência
{ } paciência

Antecipado Adiado

A tensão própria do tempo decadente, a saber, recente/anti-


go, também pode ser enriquecida:

Recente Antigo

Dêixis da { } Dêixis da
permanência precariedade

Reminiscente Esquecido

Notemos ainda que, se os esquemas contrastam por suas


respectivas direções, eles contrastam principalmente por sua di-
ferença de tempo: a transformação da paciência em impaciência
pode ser considerada como uma aceleração, e a transformação
inversa, como uma desaceleração. Do mesmo modo, para o tem-
po decadente, a reminiscência é, em maior ou menor medida,
súbita, ao passo que o apagamento das recordações está marca-
do pela progressividade.
3. Enfim, quanto à espacialidade, a tensão entre o “próximo” e o
“distante” também pode ser desenvolvida graças às variações
tensivas:

139
PRESENÇA

Próximo Distante

Dêixis da
integração
{ } expulsão
Dêixis da

Familiar Estranho

Neste estudo, como em outros, o leitor terá observado: pelo


menos duas dimensões são necessárias para evidenciar os valo-
res em cada sistema. Assim, no que tange à espacialidade, a dis-
tância métrica deve se entrosar com uma distância afetiva, da
mesma maneira como, na temporalidade, uma distância cronoló-
gica deve se entrosar com uma distância mnésica. Tal bivalência
repropõe, mais uma vez, a questão da passagem de uma correla-
ção de valências tensivas para um quadrado semiótico, ou seja, a
questão da somação e da categorização. A esse respeito, o último
caso de figura é particularmente revelador. Com efeito, em ter-
mos de valências, e portanto de correlações tensivas, o gradiente
(métrico) do “próximo” e do “distante” varia de maneira conversa
com o gradiente (afetivo) do “familiar” e do “estranho”; mas a
correlação entre as valências associadas duas a duas homogeneíza
a categoria, de modo que, por contágio, os dois primeiros ter-
mos ficam também carregados afetivamente, e os dois últimos
recebem um valor métrico. Assim é que a “familiarização” se tor-
na uma etapa da aproximação e, reciprocamente, a aproximação
é a culminação do estabelecimento do contato afetivo.
É mediante essa condição que os limites dos gradientes
conjugados tornam-se fronteiras da categoria, e que as correla-
ções tensivas, uma vez estabilizadas, são convertidas em diferen-
ças. Mas o leitor observou, e talvez tenha estranhado, que os
termos simples, que se supõem habitualmente isótopos, ficam
assim estabelecidos logo de saída como complexos figurais
tensivos. Os quadrados construídos para explicar discursos con-

140
PRESENÇA

cretos foram muitas vezes criticados por seu caráter heterogê-


neo: propomos inverter a perspectiva, e considerar que a semió-
tica do discurso lida unicamente com categorias impuras, em que
o valor emerge das tensões entre no mínimo duas dimensões.

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Concebemos as definições amplas como estruturas


receptoras para as definições restritas. Estas se obtêm aqui atra-
vés da projeção das definições amplas sobre as categorias ele-
mentares da sintaxe, a saber, as de sujeito e objeto.
Gostaríamos agora de examinar brevemente em que medi-
da esse levantamento de estruturas tensivas pode contribuir, sob
esse ponto de vista apenas, para enriquecer a tipologia dos sujei-
tos. Dado que as estruturas tensivas são impulsionadas
sintaxicamente pelas variações correlatas da intensidade e da
extensidade, é útil comparar o percurso que, no quadrado, leva
da realização à virtualização, passando pela potencialização, à
prótase de um período rítmico, e o percurso que leva da virtuali-
zação à realização, passando pela atualização, à sua apódose. A
tipologia tensiva do sujeito assentaria, portanto, no seguinte prin-
cípio: se admitirmos que, como toda grandeza semiótica consi-
derada do ponto de vista tensivo, a subjetividade pode ser des-
crita como uma relação tensiva consigo mesma, entre “ego” e
“alter-ego”, a tensão interna constitutiva da subjetividade (e da
“empatia”, segundo Kant) poderá ser compreendida pelo menos
de três maneiras: (i) no que toca aos atos perceptivos, como uma
tensão, maior ou menor, entre o foco e a apreensão; (ii) do ponto
de vista do alcance das percepções, como uma tensão entre a
interoceptividade (o noológico, a “consciência”, o “pensamento”,
etc.) e a proprioceptividade (o corpo próprio do sujeito que per-
cebe, sede das correlações entre dimensões); e (iii) no que diz
respeito à identidade modal, como uma tensão entre os papéis
modais que o compõem.

141
PRESENÇA

Em cada caso, o sujeito está clivado em pelo menos duas ins-


tâncias (S’ e S”) – por exemplo, S’, sujeito do foco, e S”, sujeito da
apreensão; entre tais instâncias, a tensão evolui da contração máxi-
ma, por fusão, que é realizante, até a distância máxima, que é
virtualizante. Para cada um deles, o mundo (M) é um fator de coesão
ou dispersão – em caráter de campo de presença, no caso (i), de
exteroceptividade, no caso (ii), e de objeto sintáxico, no caso (iii).
A realização do sujeito S, em face de um mundo M percebido
como único e de presença compacta, consagra-o como contraído,
unificado, na medida em que não há qualquer distância entre o
foco e a apreensão, entre a interoceptividade e a proprioceptivi-
dade: a apropriação do mundo M pelo sujeito S é, de certa manei-
ra, simultânea à sua confrontação.
A potencialização do sujeito S, perante um mundo M percebi-
do como distribuído e dividido, compromete essa apropriação
síncrona de M por S’ e S”, de tal sorte que a tensão interna do sujeito
diminui, distribuindo-se: o sujeito estará, então, distendido.
A virtualização do sujeito S, ante um mundo M percebido
como difuso e numeroso, compromete radicalmente a apropria-
ção paralela de M por S’ e S”: nesse caso, é um ou outro. Em
razão disso, o sujeito será desligado de si mesmo.
A atualização defronta o sujeito S e um mundo M percebi-
do como concentrado e massivo: assim, ela reconstitui em parte
a tensão entre as duas instâncias S’ e S”, e permite, se não uma
sincronização, pelo menos uma superposição parcial de seus atos
e papéis respectivos, de modo que o sujeito poderá ser chama-
do aqui de mobilizado, tal como se diz que o exército “mobiliza”
suas tropas, ou seja, convoca-as ao mesmo tempo em que as reú-
ne.
Obtém-se assim uma tipologia das tensões próprias ao “diá-
logo” do sujeito consigo mesmo; cada “estado de alma” resulta
da interação com as modulações da intensidade e da extensidade
projetadas sobre o mundo M:

142
PRESENÇA

Sujeito contraído Sujeito desligado


(realizado) (virtualizado)

(atualizado) (potencializado)
Sujeito mobilizado Sujeito distendido

Supõe-se que essa tipologia possa explicar a interação


entre, por um lado, a tensão entre as instâncias clivadas do
sujeito – instâncias sensíveis, perceptíveis e modais – e por
outro lado as energias e morfologias que caracterizam seu
mundo-objeto. Pode ser declinada de acordo com os três ca-
sos de figura evocados acima (foco e apreensão, interoceptivi-
dade e proprioceptividade, papéis modais), em especial para
explicitar, neste último caso, os imponderáveis da coesão in-
terna do sujeito apaixonado. Parece, contudo, depreender-se
uma unidade noutro plano, se se considera por exemplo que é
o próprio corpo do sujeito que, em todos os casos, constitui ao
mesmo tempo o lugar e a mola da tentativa de reunião ou sepa-
ração das instâncias S’ e S’’; tal tipologia diria respeito, então, à
comunicação entre a linguagem do corpo e as outras linguagens.
A maior ou menor distância entre o próprio corpo e as outras
instâncias do sujeito dá lugar às variações da tensão emocional,
considerada como dependente dessas “diferenças de potencial”
internas ao sujeito.
Assim é que um sujeito “mobilizado” será arrebatado pela
emoção, vindo a tornar-se até mesmo, quando dotado das com-
petências e dos programas de uso requeridos, “fantasmático”,
conforme demonstra a leitura da fábula de La Fontaine, proposta
em Semiótica das paixões. Da mesma forma, um sujeito “concen-
trado”, cujo corpo próprio carrega consigo todo o ser, poderá ser
considerado exaltado, ou até extático, o que demonstrou M. de

143
PRESENÇA

Certeau em sua análise de “L’absolu du pâtir”16 . A mesma figura,


tensa ao máximo, poderia, mais comumente, ser considerada
como a do sujeito “embevecido”. Em outros contextos, este po-
deria até ser qualificado de “entusiasta”, quase no sentido
etimológico, na medida em que o princípio mesmo de sua ação
ou reação “habita” literalmente seu corpo. Enfim, o sujeito
“distendido”, pela negação da exaltação, estaria então “desilu-
dido”, e o sujeito “desligado”, completando o percurso da
distensão, estaria abatido.
A reformulação “emocional” da tipologia dos sujeitos pode
ser reportada no diagrama anterior:

Sujeito concentrado Sujeito desligado


(exaltado, extático) (abatido)

(arrebatado) (desiludido)
Sujeito mobilizado Sujeito distendido

Se, por jogar com valores e valências, tais estases e fases


tiverem alguma pertinência, torna-se então compreensível que elas
tenham retido a atenção dos escritores afeiçoados à análise. Pedi-
remos a Valéry e a Nietzsche um testemunho em nosso favor.
No diálogo intitulado Eupalinos ou l’Architecte, Valéry de-
monstra claramente que o sujeito arrebatado, evocado por Fedro,
é incompreensível para Sócrates, sujeito desligado:

“Sócrates – Mas dado que os deuses permitem, meu caro Fedro, que
nossas conversas prossigam nestes infernos, [...] devemos saber agora o
que é verdadeiramente belo, o que é feio; o que convém ao homem, o
que deve maravilhá-lo sem confundi-lo, possuí-lo sem embrutecê-lo...

16
“L’absolu du pâtir”, Actes Sémiotiques, Bulletin, 9, “Passions”, Paris, C.N.R.S., 1979.

144
PRESENÇA

Fedro – É aquilo que o eleva sem esforço acima de sua natureza.


Sócrates – Sem esforço? Acima de sua natureza?
Fedro – Sim.
Sócrates – Sem esforço? Como é possível? Acima de sua natureza?
Que quer dizer isso? Penso invencivelmente num homem tentando
subir em seus próprios ombros!... Avesso a essa imagem absurda,
pergunto-te, Fedro, como deixar de ser si próprio e, depois, retornar
a sua essência? E como, sem violência, pode isso acontecer?”17

Mas foi certamente Nietzsche quem mais alimentou o tema


da oposição entre os dois regimes da presença, confrontando o
“dionisíaco” e o “apolíneo” – que vinculamos respectivamente
às dêixis intensiva e extensiva. Se a intenção de Nietzsche é
mostrar que a arte grega tende à complexidade, ou seja, a criar
obras a um tempo “apolíneas” e “dionisíacas”, nosso propósito é
muito mais modesto, pois que desejamos apenas validar dois
tipos de vínculos.
Por um lado, o vínculo entre distensão e estabilidade
morfológica, entre o “sonho” e a “aparência”:

“É o contorno sóbrio, a ausência de impulsões brutais, a calma e a


sabedoria do deus escultor. [...] Ainda quando este exprime a cólera
e o ressentimento, a graça da bela aparência não o deixa.”18

A obra “apolínea” é respeitosa daquilo que Nietzsche deno-


mina “princípio de individuação”, isto é, daquilo que nos permiti-
mos, acerca das estruturas elementares, denominar “o numeroso”:

“Poder-se-ia até dizer de Apolo que a fé inabalável no princípio de


individuação e a tranqüilidade encontraram nele sua expressão sublime.”19

17
VALÉRY, P. Eupalinos ou l’Architecte. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1960, p. 89.
18
NIETZSCHE, F. La naissance de la tragédie. Paris, Gallimard, Idées, 1970, p. 24.
19
Op. cit.

145
PRESENÇA

Pouco mais adiante, Nietzsche falará de “natureza desmem-


brada em indivíduos”.
Por outro lado, o vínculo entre intensidade e divagação
morfológica, entre a “embriaguez” e a “harmonia universal”:

“[...] [o homem] sente-se deus, marcha extasiado e alçado acima de si


mesmo, como aqueles deuses que ele viu marchar em sonho.”20

Consideremos agora os regimes de presença do objeto. Tam-


bém aí as direções mutuamente inversas da potencialização e da
atualização parecem fundar as morfologias elementares do obje-
to, as quais poderiam ser aproximadamente circunscritas graças
às seguintes denominações:

Moderno Clássico

Novo Antigo

Não é sobre as significações objetivas – pois, nesse caso, as


denominações propostas pareceriam evasivas ou muito arbitrá-
rias – que versam nossas declarações, e sim sobre as valências
que subjazem a elas. As significações dependem da enciclopédia,
que estabelece por debreagem a antiguidade dos começos nesta
ou naquela data. Mas temos em vista o comércio dos valores, ou
seja, o percurso dos objetos que potencializa sua modernidade e
atualiza sua antiguidade. Aí, a presença se afasta mais uma vez
do “estado” propriamente dito, e parece ligada a uma proble-
mática das fases tensivas: (i) a conversão de um objeto “moderno”
em objeto “clássico” é grosso modo distensiva, mas, se o processo

20
Op. cit. p. 26.

146
PRESENÇA

for examinado de perto, a “antiguidade”, que corresponde em


princípio a um limiar, pode converter-se num limite: nem tudo
que é antigo se torna clássico, e essa parada pode avivar a tensão;
(ii) também a transferência inversa deve apreciar o peso das valên-
cias respectivas do clássico e do moderno; mais precisamente, os
sujeitos têm que medir, com efeito, a resistência a uma “novidade”
que lhes parece, em maior ou menor medida, “agressiva”, e que
pode, por isso, comportar-se também, quer como limiar, quer como
limite. Também aqui, a consagração da novidade em modernidade
está na dependência do tempo, muito embora a época contempo-
rânea, ávida, como se sabe, de velocidade “pura”, tenda a abreviar
o intervalo que os distingue.

3 CONFRONTAÇÕES

Nesta seção, gostaríamos de examinar se a problemática


dos modos de presença, proposta pelo Dicionário de Sémiótica e
Semiótica das paixões, é exclusiva ou não. A revelar-se exclusiva,
ela induzirá uma ruptura, para não dizer uma “mudança de
paradigma”; ao contrário, se se admitir a diversidade de “estilos
de presença”, são apenas novas perspectivas que se abrem.
No terceiro volume de La philosophie des formes symboliques,
E. Cassirer admite que existe uma região em que as distinções
entre “objeto” e “propriedades”, entre “ser” e “parecer”, são ain-
da desprovidas de prioridade, e essa região é o mito:

“Todo fenômeno ocasional [no mito] mostra um caráter de presença


autêntica, e não de mera representação substitutiva: cada ente real
ergue-se em plena presença, em vez de se ‘representar’ somente
pela mediação do fenômeno.”21

21
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, op. cit., tome 3, p. 83.

147
PRESENÇA

As clivagens entre o “signo” e a “coisa”, entre a “parte” e o


“todo”, tidas por indispensáveis pela conduta objetivante, ainda
não são nem operantes, nem exclusivas, e a própria conversão da
diferença em precedência é peculiar à conduta objetivante, mas
de modo algum à consciência mítica: para que esta última se
reconheça na conduta objetivante, seria necessário que ela se
comparasse ao procedimento científico, e que essa comparação
trouxesse à tona uma falta, mas sabe-se que é o contrário que se
admite, em geral, quando a comparação é efetuada a posteriori.
Há “mais”, e até “melhor”, no mito, do que no inventário “de-
sencantado” do mundo ao qual a conduta objetivante se dedica,
sob a denominação de “ciências”.
No entanto, o conhecimento dito científico e a consciência
mítica possuem, pelo menos, duas categorias em comum, as de
“presença” e “eficiência”, a primeira sob a insígnia do objeto e a
segunda, sob a do sujeito:

“Pois toda realidade efetiva que apreendemos é menos, em sua


forma primitiva, a de um mundo preciso de coisas, erigido diante
de nós, do que a certeza de uma eficiência viva sentida por nós.”22

O sujeito e o objeto tensivos da eficiência e da presença


podem ser afetados pela intensidade, em especial pela categoria
“tônico vs átono”. O actante sujeito aparece então como o emissor
de certo grau de intensidade, e o actante objeto como o receptor.
Se o emissor for tônico, sua ação aparecerá como um golpe, e pro-
duzirá no receptor um “efeito”; se o emissor for átono, sua ação
aparecerá apenas como “eficiência”, e o receptor contentar-se-á em
senti-la como “presença”. Para o observador, o “efeito” e a “presen-
ça” manifestam pois, respectivamente, a “ação” e a “eficiência” do
emissor. Ou seja, a rede:

22
Op. cit., p. 90.

148
PRESENÇA

tônico átono
emissor ação eficiência
receptor efeito presença

Equivaleria isso a pôr em xeque a semiótica greimasiana?


Não e sim, somos tentados a responder. Em Semântica estrutural,
Greimas defendia, acerca das categorias modais e actanciais, uma
concepção antes “materialista” da emergência e interação dos
actantes, arriscando-se a confiá-la ao imaginário:

“Dizer que uma categoria modal engloba o conteúdo das mensa-


gens e o organiza, estabelecendo um tipo determinado de relação
entre os objetos lingüísticos constituídos, quer dizer, que se reco-
nhece que a estrutura da mensagem impõe uma certa visão do
mundo. Assim, a categoria da “transitividade” nos força, por assim
dizer, a conceber certo tipo de relação entre os actantes, coloca
diante de nós um actante como investido de um poder de agir e
um outro actante investido de uma inércia. O mesmo ocorre com a
relação entre destinador e destinatário, que parece não apenas
fundar a troca, mas também instituir, face a face, objetos dos quais
um será a causa e o outro o efeito.”23

Entretanto, Greimas entreabre uma porta que em seguida


se apressará em fechar para não contradizer as premissas “fono-
logizantes” e “logicizantes” adotadas para fundar as estruturas
elementares da significação.
Uma segunda razão pode explicar o relativo desinteresse
da semiótica pela categoria da presença. O privilégio concedido
pela semiótica greimasiana à narratividade proppiana conser-
vou-se ambíguo: que a narratividade proppiana detenha um grau
elevado de pertinência, certamente – mas dentro de que limi-
tes? De acordo com Propp, o conto era um avatar do mito, mas

23
GREIMAS, A. J. Semântica estrutural, op. cit., p. 175.

149
PRESENÇA

tal degradação permaneceu impensada e, para evitar a espinho-


sa questão que esta induzia, bastava fazer como se não houves-
se nada de “mais” no mito do que na narrativa, e nada de “me-
nos” na narrativa do que no mito. Semelhante redução do mito
à narrativa permite compreender, até certo ponto, que a semió-
tica tenha tido alguma dificuldade para tratar da presença, uma
vez que, para uma importante tradição da antropologia, o mito
lidava precisamente com a presença!
No discurso semiótico propriamente dito, essa dificulda-
de induziu uma distorção entre, por um lado, uma metalingua-
gem privilegiadora da divisão, da diairesis e da articulação – e,
para além disso, das forças dispersivas –, e, por outro, uma lin-
guagem-objeto mais sensível à indivisão, à sunagôgê – e, para
além, às forças coesivas –, como no caso do discurso mítico.
A homogeneidade da conceptualização semiótica supu-
nha uma solução de continuidade entre a esfera do sensível e a
do inteligível, e, pelo mesmo gesto, a suficiência do inteligível,
mas a ruptura não pôde ser operada nem de direito, nem de
fato. Para começar, de direito: como nota Hjelmslev, distinguir
não é separar, e é só aparentemente que o reconhecimento do
inteligível se efetua à custa do sensível:

“Mas nenhuma abstração, por aprofundada que seja, pode descartar


e eliminar essa camada [fundamental e primitiva da percepção] en-
quanto tal; [...] Essa abstração é plenamente legítima para a intenção
puramente teórica de construir a ordem objetiva da natureza e apre-
ender-lhe a legalidade; não pode, porém, dissipar o mundo dos fenô-
menos expressivos enquanto tal.”24

O dualismo do afeto e da forma estabelece, por meio de um


tenaz positivismo, que a forma se impõe por si própria, ao passo
que a semiótica da presença, já adotada por E. Cassirer, propõe,

24
CASSIRER, E., op. cit., p. 89.

150
PRESENÇA

com convicção, que o impacto da presença deve atribuir-se ao afe-


to, ou seja, em seus próprios termos, à “expressão”:

“Da percepção, tomada como mera percepção de coisas, nunca se


poderia inferir um ser real se este já não estivesse incluído nela, de
uma maneira ou de outra, graças à percepção de expressão, e se
este não se manifestasse nela de modo inteiramente original.”25

Se examinarmos agora a questão de fato, as coisas ficam


talvez ainda mais claras. O percurso próprio da semiótica con-
sistiu, de nosso ponto de vista, em reintroduzir progressivamen-
te os pressupostos da presença como grandezas cardeais das
linguagens-objeto: a foria, indispensável para fazer “rodar” ou
“avançar” o modelo transformacional; a “massa tímica” a permi-
tir a conversão dos “valores virtuais” do saussurismo em “valo-
res axiológicos” ou intencionais; as paixões, para imprimir aos
actantes e atores as dinâmicas tensivas internas; o “espaço
tensivo”, proposto em Semiótica das paixões como “pré-condição”
da busca pelo sentido; enfim, determinadas propostas recentes
que visam a aprofundar tanto quanto possível a hipótese de uma
prosodização do conteúdo. Tomada em separado, cada uma des-
sas hipóteses aparece como a adição de um simples toque inca-
paz de pôr em xeque a economia global do projeto semiótico;
postas em conjunto, porém, elas conferem à semiótica uma
“fisionomia” sensivelmente diversa da que prevaleceu num pri-
meiro momento.

25
Op. cit., p. 90.

151
DEVIR

DEVIR

1 RECENSÃO

A S QUESTÕES sobre o devir são tão antigas quanto a filoso-


fia e o fato de termos como objeto de uma das primeiras
confrontações – a que opõe Parmênides, adepto da eternidade
do ser, a Heráclito, adepto da eternidade do devir – justamente o
tratamento desse tema, indica que estamos diante de uma noção
de grande envergadura. Realmente, as filosofias que se interes-
sam pelo devir opõem-no ao ser: quanto mais prestamos atenção
no movimento progressivo pelo qual as coisas se dão, menos o
ser é detectável, a ponto de provocar dúvida se haveria, no fluxo
do devir, alguma coisa além dos “estados”. Nesse sentido, tanto
para Husserl como para Merleau-Ponty, o mundo sensível, a par-
tir do momento em que é considerado por um sujeito, torna-se
um perpétuo devir, dividido entre retenção e protensão, dado
que a série dos esboços que constituem o ser sensível se suce-
dem e se superpõem indefinidamente.
No domínio da semiótica, é bom lembrar que o Dicionário
de Semiótica, seguindo as opções iniciais de Greimas, não con-
tém este verbete. B. Pottier havia apontado essa reticência1 . No
segundo volume do mesmo dicionário (Sémiotique, II), E. Tarasti,
em nome da semiótica musical, insiste sobre a importância do
devir que o autor identifica com a temporalidade e que situa
como termo neutro regido, entre o ser e o fazer, sendo estes
considerados como termos regentes: a desaceleração é a expres-
são de uma modalização pelo ser na exata medida em que a
aceleração nos remete a uma modalização pelo fazer2 .

1
POTTIER, B. “Un mal-aimé de la sémiotique: le devenir”, in PARRET, H. et RUPRECHT, H.-
G. Exigences et perspectives de la sémiotique, tome 1. Amsterdam, John Benjamins, 1985, p.
499-503.
2
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Sémiotique, II, op. cit., p. 67.

153
DEVIR

2 DEFINIÇÕES
2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Não existe definição lexical exclusiva do devir porque a classe


paradigmática do devir, que poderíamos tentar constituir a partir
da coleta dos sinônimos ou dos quase-sinônimos elaborados pe-
los dicionários, é um vale-tudo. Considerar que o devir denota
unicamente a passagem de um estado a outro, vista por um ob-
servador atento, é privilegiar, sem maior justificativa, uma das
possibilidades. Para falar claramente sobre o devir, é recomendá-
vel saber previamente “o que se passa” num paradigma – o que é
o caso dos paradigmas gramaticais que são, de fato quando não
de direito, estabilizados – mas a questão que levantamos supõe
uma outra: os paradigmas, independentemente do número de
termos que comportam, procedem da mesma estrutura ou de
estruturas diferentes?
As dificuldades encontradas para definir o devir decorrem,
no nosso entender, das decisões relativas à predicação. Admita-
mos, a título de premissa, que a predicação se aplique a um “es-
paço tensivo” organizado em torno de um centro dêitico; esse
“espaço tensivo” é caracterizado pela intensidade que nele se dis-
tribui, pelos aparecimentos/desaparecimentos dos esboços no
campo, por sua extensão e seus horizontes (cf. capítulo “Presen-
ça”). Nesse sentido, o devir é uma propriedade da “instância
enunciante” na predicação, instância que controla as transforma-
ções referentes à presença, à sua intensidade e sua amplitude.
Existiriam, por decorrência, três classes predicativas na depen-
dência dos três eixos enunciativos da predicação: (i) a intensida-
de, produzindo a tensão entre tonicidade e atonia; (ii) a existên-
cia, produzindo a tensão entre ausência e presença; (iii) a exten-
são, produzindo especialmente a tensão entre abertura e fecha-
mento.

154
DEVIR

O estudo dos textos, das estruturas frásticas elementares,


o reconhecimento da existência de estruturas patêmicas e afetivas,
mostram que “o que conta” é ser ou não impactante, ser ou já
não ser mais, ser ou não desdobrado. Nas palavras de Saussure, a
significação do devir diz respeito à passagem de um termo a ou-
tro, mas o valor do devir em cada um desses eixos não é o mesmo
em razão das relações de pressuposição que identificamos entre
essas três predicações: a existência (ausência/presença) pressu-
põe a intensidade (tônico/átono) e a extensão (aberto/fechado,
concentrado/ampliado). De maneira que os valores intensivos do
sensível e os valores extensivos da percepção são – é uma de
nossas orientações – determinantes em relação aos valores exis-
tenciais.
Na terminologia de Hjelmslev, o devir torna-se uma “varie-
dade”, ou seja, uma variante combinatória tributária da direção
do discurso e da extensão que pretende abranger. Mas se a análi-
se mal chega a distinguir as três predicações mencionadas acima,
os discursos travam relação com sua simultaneidade efetiva e uma
das tarefas da discursividade consiste em atualizar o tipo de devir
predominante. Com efeito, esses três tipos de devir são necessa-
riamente portadores de valores e de afetos diferentes – de valores
quando o devir em questão volta-se para o objeto, de afetos quan-
do volta-se para o sujeito. Uma das finalidades do discurso, seja
ele pertencente a um gênero ou relativamente livre, é, como indi-
cava Greimas a propósito da “cólera”, operar essa “regulação [so-
cial] das paixões”3 até que um limiar, julgado como suportável ou
aceitável, seja atingido e estabilizado.
As três predicações mencionadas – a intensidade, a exten-
são (ou “extensidade”) e a existência – pertencem tanto ao plano
da expressão como ao plano do conteúdo; assim, gostaríamos de
qualificá-las de gerais para distingui-las de sua projeção sobre

3
GREIMAS, A. J. Du sens II, op. cit., p. 242.

155
DEVIR

qualquer um dos dois planos. Examinaremos aqui apenas a pro-


jeção sobre o plano do conteúdo. A cada uma dessas predicações
corresponde uma tensão singular, difícil de nomear por ser ela
tributária da língua na qual foi formulada. A predicação intensiva
(ou “prosódica”, que dá lugar à “consistência” – cf. capítulo “Es-
quema”), que tem como base o tempo e os perfis sintáxicos da
intensidade, corresponde, no plano do conteúdo, à polaridade:

evento ⇔ estado

O evento seria, pois, decorrente da definição mínima se-


guinte:

evento = intensidade + classema/conteúdo

dado que essas propriedades se aplicam a uma predicação tensiva


(cf. o devir), num campo sensível e perceptivo; a “intensidade”,
especialmente, implica que haja um observador, sujeito que per-
cebe e testemunha o “impacto” próprio do evento.
A predicação extensiva diz respeito primeiramente à
espacialidade, mas na medida em que desenha o espaço abstrato
no qual surgirão os valores; determina o espaço tensivo como
“fechado” ou como “aberto”, de tal maneira que os valores que
por aí circularão serão considerados “concentrados” ou “amplia-
dos”; a polaridade extensiva se estabelece, pois, assim:

exclusividade ⇔ universalidade

A predicação existencial, por sua vez, fundamenta-se na


temporalidade e na mnésia, que é o seu correspondente subjetal.
Realmente, o par [ser/não ser] só é pensável, de um ponto de
vista semiótico, na perspectiva de um devir, ou de uma transfor-

156
DEVIR

mação, em relação com um parecer que o manifesta; “não ser” é,


portanto, apenas a “outra” extremidade de uma direção que atra-
vessa o “ser”; além disso, a apreensão temporal dessa diferença
não é da mesma natureza se o olhar dirige-se para o passado ou
para o futuro; com efeito, contrariamente à abordagem
fenomenológica, o enfoque semiótico do “devir existencial” fará
a distinção entre (i) uma predicação propriamente existencial:
[ser/ter sido], e (ii) uma predicação alética: [ser/dever ser]; a pri-
meira instaura, portanto, o “passado”, e a segunda, o “futuro”.
Assim, a predicação existencial – determinada pelo classema/con-
teúdo – incide apenas sobre a polaridade:

passadificação ⇔ presentificação

Do ponto de vista paradigmático, o devir é, por isso, uma


classe que controla três subclasses: o devir da foria (predicação
intensiva), o devir da amplitude (predicação extensiva) e, enfim,
o devir da mnésia (predicação existencial). Esse tríptico da
predicação tem por base, como foi sugerido, o mesmo da enun-
ciação, a qual se relaciona com as determinações de um domí-
nio tensivo-perceptivo, organizado a partir da dêixis e articulável
de acordo com a intensidade, a extensidade e a existência. Como
mostramos no capítulo “Presença”, a abordagem das “modaliza-
ções existenciais” continua ligada à intensidade e à extensida-
de, mas num nível de articulação diferente.
Nesse sentido, cada uma dessas polaridades é da ordem da
virtualidade, ou seja, está sujeita a um tratamento semiótico que
comporta um certo número de operações semióticas elementa-
res. As três operações seguintes parecem, nesse sentido, apresen-
tar-se como as mais pertinentes na análise concreta e as mais
bem fundadas para atualizar o devir em discurso: (i) a orientação,
que polariza a trajetória com valor positivo num determinado
universo de discurso; (ii) a seqüencialização, que fixa o lugar e o

157
DEVIR

número das grandezas manifestadas na cadeia; e (iii) a segmenta-


ção, que tem como resultantes uma diferenciação e uma rítmica.
Esse inventário é apenas uma hipótese de trabalho, da qual já
podemos ver os limites, uma vez que pressupõe a linearidade e
não leva em conta, por exemplo, o devir na “espessura” e a estra-
tificação de um discurso, ou mesmo, mais genericamente, o devir
nos discursos pluri-dimensionais.
Decorre, entretanto, dessas considerações preliminares que
o conceito de transformação – ao qual o Dicionário de Semiótica
pensava se ater ao tratar do devir – revela-se muito limitado,
pois que interessa exclusivamente à predicação qualificativa (ser
alguma coisa ou outra – provisoriamente ou para sempre); em
segundo lugar, que esse devir singular deve ser tratado como
um “sincretismo resolúvel”4 , comportando respectivamente uma
força, uma foria de um certo tipo, a escolha de uma cadência,
uma direção e um campo de extensão. Sob essas prévias, um
devir estaria, pois, semioticamente descrito, desde que se tenha
calculado sua dinâmica, apreciado seu tempo, reconhecido seu
sentido e circunscrito seu domínio.
Na medida em que mobiliza, ao mesmo tempo, várias
predicações, a semiose é necessariamente complexa e a instau-
ração do sentido consiste em fazer prevalecer uma determinada
predicação em detrimento das outras. Assim, quando Greimas
propunha que duas paixões fundamentais do homem seriam a
“espera” – o que não é ainda, já é – e a “nostalgia” – o que não é
mais, é ainda –, é evidente que ressaltava a presentificação e pri-
vilegiava a predicação existencial em detrimento das outras
duas5 .

4
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem, op. cit., p. 96.
5
GREIMAS, A. J. De l’imperfection, Périgueux, Fanlac, 1987, p. 93-8.

158
DEVIR

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Se a distinção entre “definições amplas” e “definições res-


tritas” aplica-se de modo tão pertinente ao devir, é porque, tal-
vez, proceda deste último.

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

As definições amplas têm como discriminantes a orienta-


ção e a seqüencialização. Se, apenas por comodidade, chamar-
mos de A e não-A os termos de uma polaridade, a orientação
consiste em reconhecer se é do tipo: [A → não-A] ou [não-A →
A]; a seqüencialização deve estabelecer se o esquema discursivo
limita-se a esse par ou se encadeia três seqüências: [A → não-A
→ A] ou ainda [não-A → A → não-A].
Por outro lado, a fixação do tempo do discurso é uma das
prerrogativas maiores do sujeito da enunciação e determina a
difusão dos afetos. A ressonância do tempo nas três predicações
mencionadas explica as morfologias elementares respectivas da
intensidade, da existência e da extensão; eis aqui uma tipologia
possível, em que as denominações não pretendem se constituir
em metalinguagem, mantendo apenas um valor indicativo:

Tempo: Vivo Neutro Lento


INTENSIDADE choque desdobramento profundidade
EXTENSIDADE acesso expansão difusão
EXISTÊNCIA parada duração mnésia

Considerado em si mesmo e globalmente, ou seja, como


esquema, o devir determinado pelas variações do tempo apresen-
tar-se-ia assim:

159
DEVIR

advir
⇓ ↓ ⇓
sobrevir devir ser
↓ ↓ ↓
lance processo estado

A seqüencialização, nesse caso, é de fácil formulação, pois


que se apresenta ora como aceleração, ora como desaceleração.
A relação entre a orientação e o tempo pode ser pensada a partir
de pelo menos três questões diferentes: (i) Quanto “tempo” de-
mora para se passar de uma seqüência a outra? (ii) Quais são as
forças, ou seja, as competências que permitem esse avanço? (iii)
Quais são as resistências conhecidas? O avanço será feito com
facilidade ou com dificuldade?
O exame do tempo conduz, como vimos, a um deslocamen-
to terminológico controlável. A tradição culta e a linguagem cor-
rente mantiveram como termo genérico o “devir”, enquanto nós
propomos substituí-la nesse papel por advir, o que nos obriga a
restringir o devir ao âmbito de uma forma específica. Essa esco-
lha nos satisfaz a partir dos dois argumentos seguintes: em pri-
meiro lugar, os três membros da tríade participam efetivamente,
cada um a seu modo, do advir, este abordando o enunciado míni-
mo tensivo e os demais, suas variedades; em segundo lugar, qual-
quer um percebe que o devir não pode ser concebido sem um
freamento interno que explica, sem muito custo, sua posição
mediana entre o sobrevir, que vence num só “lance” todas as resis-
tências potenciais, e o ser, no interior do qual as forças presentes
equilibram-se, pelo menos momentaneamente. Cumpre insistir
com veemência no fato de que o sobrevir, o devir e o ser constitu-
em aqui grandezas semióticas, condicionadas pela função
semiótica, o que significa que a cada um desses termos estão
vinculadas morfologias objetais singulares, de tal modo que a
aceleração e a desaceleração encontram resistências, apreensões,
atrasos...

160
DEVIR

A conjugação da orientação e da seqüencialização leva-nos


a depreender dois tipos de devir ampliado: se os termos extre-
mos do percurso permanecem distintos, o devir será considerado
linear; se, ao contrário, os termos extremos do percurso são idên-
ticos, o devir será circular. Essa formulação requer, no entanto,
três precauções. Em primeiro lugar, considerando que os valores
semióticos são sempre contextuais, num esquema discursivo do
tipo [A → não-A → A], o conteúdo A não possui o mesmo valor
na posição inicial ou final, assim como o fonema /r/ em posição
pré-vocálica, em “Roma” por exemplo, é sensivelmente diferente
do fonema /r/ em posição pós-vocálica em “amor” (em pronúncia
carioca).
Em segundo lugar, a veridicção intervém para confundir os
dados propriamente funcionais e produzir, por exemplo, um devir
aparentemente linear e de fato circular: assim, o esquema narra-
tivo greimasiano é apresentado como linear já que vai do “con-
teúdo invertido” ao “conteúdo posto”, mas a própria fórmula “con-
teúdo invertido”, considerando que os termos possuem um sen-
tido, faz presumir que exista um conteúdo anterior à sua inver-
são e, portanto, faz conceber o “conteúdo invertido” como prece-
dido por um “conteúdo pressuposto”. Ao término dessa catálise
elementar, o esquema narrativo greimasiano aparece como circu-
lar, no caso em que o “conteúdo pressuposto” e o “conteúdo pos-
to” forem idênticos.
Enfim, um devir ampliado pode ser descrito como linear de
fato mas não de direito: se um devir circular apresenta uma suspen-
são durável, do tipo que ocasiona uma indeterminação ao sujeito
cognitivo, tal devir corre o risco de ser apressadamente qualificado
de linear. As especulações sobre as evoluções conhecidas como “aber-
tas” são desse gênero. Um devir linear também pode, por certo, ser
equivocadamente reconhecido como circular: é esse o caso toda
vez que a novidade é prematuramente interpretada em função dos
códigos invalidados pelo seu surgimento.

161
DEVIR

A dualidade dos devires possíveis conduz assim a distin-


guir devires de restauração e devires de instauração, dependendo
dos conteúdos, “pressuposto” e “posto”, se são idênticos ou não.
Assim, o discurso do socialismo considerado “utópico” no sécu-
lo XIX era de “restauração” e se reportava à felicidade rousseau-
niana das primeiras eras, enquanto o discurso do socialismo,
considerado “científico”, propunha-se como sendo de “instaura-
ção”, sem falar dos discursos que quiseram compor com ambas
as direções.

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

As definições restritas destacam a segmentação. Toda se-


qüência pode ser desdobrada e esse desdobramento confere ao
devir uma profundidade. Assim, quando da substituição da se-
qüência simples [A → não-A → A] pela seqüência desdobrada
[A → (não-A1 + não-A2) → A], o desmembramento da seqüên-
cia mediana, seu incremento, e a desaceleração que ocasiona
são equivalentes a um ganho de profundidade. A multiplicação
dos planos na análise do estilo clássico elaborada por H. Wölfflin
é uma ilustração – exemplar, a nosso ver – dessa prática semiótica.
Em primeiro lugar, as proposições inovadoras de P. Aa.
Brandt expostas no verbete “aspectualização” no Sémiotique, II6 ,
relativas à “cadência”, aos “efeitos de fase”, à “progressividade” e
à “intensidade”, parecem-nos proceder das definições restritas do
devir. No mesmo espírito, configurações como “provir”,
“parvenir”, “prevenir”, “intervir”..., merecem ser vistas como
morfologias locais: (i) o “provir” desdobra a incoatividade, ins-
taurando uma “origem” do começo; estamos aqui no imaginário
regressivo da genealogia; (ii) o “parvenir”, que podemos aproxi-
mar ao “efeito aorístico” indicado por P. A. Brandt, apresenta-se

6
Op. cit., p. 20-2.

162
DEVIR

como uma morfologia localmente tensiva, concessiva (le sujet


parvient à... malgré...)7 e, por isso, gratificante para o sujeito, em
razão da resistência subjacente de um anti-sujeito que, declara-
damente, impõe obstáculo ao progresso do processo; (iii) o “pre-
venir” e o “intervir”, bem próximos entre si, definem-se por in-
terromper ou modificar a trajetória de um devir com a finalida-
de de desviá-la do resultado esperado. Essa intervenção pode
situar-se no exato momento em que se instaura o processo e é
justamente essa a acepção de “prevenir” no francês clássico;
possui, portanto, como conseqüência, a virtualização do pro-
cesso. Pode ainda situar-se no curso do processo, de acordo com
a definição do Micro-Robert: “suceder, produzir-se no decorrer
de um processo. [...] Tomar partido numa ação, numa operação
em curso com a intenção de infuir em seu desenvolvimento”.
Pode, enfim, sobrevir in extremis. O “prevenir” e o “intervir” su-
põem uma cooperação intersubjetiva e uma espacialidade aber-
ta favorável à comunicação.
É tarefa das próximas descrições reconhecer nessas confi-
gurações seu grau de dependência em relação ao tempo: o tempo
do “parvenir” aparecerá, por exemplo, como “refreado”, se o
compararmos com o de “prevenir”, que seria acelerado.
Consideramos essas definições restritas na medida em que
nenhuma dessas configurações indica, mesmo depois de catálise,
se o processo ampliado é linear ou circular.

3 CONFRONTAÇÕES

O devir intercala-se entre duas categorias importantes: a


continuidade e o aspecto. Sem pretender esgotar um tema tão
delicado, lançamos a hipótese de que o devir deveria ser abor-
dado como mediação entre o termo ab quo do contínuo e o ter-

7
[N. dos T.]: “o sujeito consegue... apesar de...”

163
DEVIR

mo ad quem do aspecto, tal como este é definido pelos lingüistas.


As virtualidades do contínuo, ou ainda as esperas com as quais o
sujeito muda o contínuo, ou seja, a divisibilidade e a orientação,
são realizadas pelo devir e essas conquistas formais do devir se-
rão utilizadas, após a estabilização, como ponto de apoio da
aspectualização.
Mas, por outro lado, temos que introduzir a questão da
relação entre o devir e o fazer ou, mais exatamente, a eventuali-
dade da repercussão do segundo termo sobre o primeiro: o devir
é algo que se faz? Realmente, de duas uma, ou o devir é concebi-
do como sendo compacto, liso, suficiente e, nesse caso, não de-
pende de operação particular para ser produzido. Ou todo devir é
um produto e, portanto, é o sincretismo de várias grandezas
descontínuas; nesse segundo caso, será que o devir poderia ser,
por analogia com o engendramento do número, serial num pri-
meiro tempo, depois alisado num segundo tempo? A menos que
a diferença entre um devir “rugoso” e um devir “liso” seja um
efeito da distância da observação: o olhar distanciado permitiria
ver apenas uma mudança contínua e orientada ali onde o olhar
próximo depreenderia estados e fazeres.
As conseqüências da introdução do devir nas estruturas
profundas aparecem especialmente em Semiótica das paixões. A
importância superior que hoje gostaríamos de atribuir ao devir
resulta da instalação do espaço tensivo e das virtualidades
esquemáticas que ele avaliza. Por outro lado, o devir, de sua par-
te, torna-se a origem de uma série de ressonâncias relativas res-
pectivamente à estruturação, à modalização e à patemização.
Na fase constitutiva da semiótica, as estruturas eram pen-
sadas, e isso parecia por assim dizer evidente, como se fossem
definitivas, fixas e acrônicas; ao serem inscritas no espaço tensivo,
foram logo reconhecidas como instáveis, móveis, e temporais; e
o significado, anteriormente solidário apenas a seu conteúdo
sêmico, passou a depender das valências positivas e negativas

164
DEVIR

dos programas e dos contra-programas. É o que Semiótica das


paixões designa como “desequilíbrio positivo”8 .
Essa acentuação do devir permite reerguer a semiótica, con-
siderando, de fato e de direito, a enunciação como estrato
primeiro e, especialmente, sua base perceptiva. Se essa orienta-
ção vai ao encontro do enfoque de J.-C. Coquet9 , suas etapas de
construção basearam-se em considerações diferentes. O espaço
tensivo tem como tensão diretora a cisão entre demarcação e
segmentação, entre demarcação discursiva e segmentação
enunciva, entre uma demarcação que pretende abranger o todo
e uma segmentação que tenta cercar as partes do todo.
A segunda ressonância diz respeito a uma melhor compre-
ensão da modalização no interior do percurso gerativo. De acor-
do com o ensinamento de Saussure, um conceito detém, por si
mesmo, uma significação e recebe seu valor a partir do lugar que
ocupa num dispositivo teórico. Nesses termos, ainda hoje com-
preende-se melhor a significação da modalização do que o seu
valor. Para progredirmos na compreensão desse valor, duas hipó-
teses podem ser lançadas: a primeira, de cunho descritivo, prevê
que a modalização e a aspectualização pertençam ao mesmo ní-
vel de classificação e que estejam em distribuição complementar:
a aspectualização estaria voltada para o processo e o objeto visa-
do, enquanto a modalização para o sujeito em devir. A segunda,
de cunho normativo, prevê que a modalização seja induzida por
uma aspectualização que, abandonando a programação das fases
do processo, se encarregaria de sancionar os excessos e as faltas e
se desdobraria em duas direções: uma modalização predominan-
temente deôntica, quando possui como objeto o excesso, e outra
predominantemente volitiva quando tem como objeto a falta.
Ambos os “regimes” ou “estilos” aspectuais, um descritivo e o

8
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J., op. cit., p. 33.
9
COQUET, J.-C. Le discours et son sujet, op. cit., e La quête du sens. Paris, P.U.F., 1997.

165
DEVIR

outro normativo, situam-se, cada um com seus próprios recur-


sos, na vizinhança da modalização.
Enfim, a solução de continuidade entre a estrutura e o tímico
parece decrescer. A semiótica e a episteme dos anos 60, restriti-
vas em relação às aquisições dos anos 30, concebia uma solução
de continuidade necessária entre a estrutura e o afeto. A imersão
da estrutura no espaço tensivo permite fugir desse dilema. O es-
paço tensivo não é um espaço de completo repouso, ainda que
uma semiótica do repouso – esboçada especialmente por G.
Bachelard em A dialética da duração – possa reivindicar seus direi-
tos tanto quanto qualquer outra. O espaço tensivo é um espaço
inquieto, o que pode ser comprovado pela paixão como pano de
fundo da existência. É também uma das razões pelas quais prefe-
rimos o termo advir, que implica uma certa instabilidade, como
termo genérico, ao termo devir, que já supõe certa continuidade
controlada inerente à mudança.
A patemização pode ser atribuída ao sujeito e creditada a
sua sensibilidade ou passibilidade, segundo A. Hénault10 , mas
essa interpretação, amplamente calcada na percepção, não leva
em conta todos os casos e especialmente aqueles que poderiam
ser descritos como “efeitos sem causa”. A partir das definições
sintagmáticas amplas estabelecidas anteriormente, parece pos-
sível, de um lado, proceder a uma dedução imanente do afeto e
mesmo da única coisa que importa de fato, qual seja a violência
do afeto, e, de outro, prever devires críticos do passional. Se uma
grandeza demarcativa, relativa ao todo, vem substituir, num tem-
po bem rápido, uma grandeza segmentativa, relativa a uma par-
te, essa substituição improvisada suscita, em virtude da função
semiótica, um afeto possante, do tipo “pequena causa, grande
efeito”, imediatamente qualificado de “catástrofe” – no sentido
corrente do termo. A substituição inversa, a saber a troca inespe-

10
HÉNAULT, A. “Structures aspectuelles du rôle passionnel”, op. cit., p. 35-41.

166
DEVIR

rada de uma parte (grandeza segmentativa) pelo todo que a com-


preende (grandeza demarcativa) parece estar no princípio do “en-
tusiasmo”, e, especialmente para os gregos, da presença do divi-
no no humano.
Está em jogo também o tratamento que a teoria semiótica
dispensou à discursividade. Esse tratamento ficou longe de um
nível satisfatório, pois que a semiótica mostrou-se incapaz de
estudar a noção de gênero, um dos pontos de passagem obriga-
tórios da discursividade, conforme já demonstrou Fr. Rastier11 .
Por outro lado, as estruturas narrativas de superfície convocam,
e o fazem de maneira exclusiva, um gênero dentre outros, o dis-
curso narrativo, projetam-no sobre o mito e, feito isso, admitem
que a forma do primeiro vale – sem ressalvas – para o segundo.
Enfim, a teoria semiótica leva em consideração, com razão, as
“estratégias discursivas”, mas sem expor com clareza o liame
entre essas “estratégias” e o discurso narrativo.
Sem ter a intenção, bem entendido, de esgotar o assunto,
pode-se perguntar se a focalização das definições paradigmáti-
cas do devir não permitiria atenuar a dependência – sem a rom-
per – da semiótica em relação à narrativa proppiana e, ao mes-
mo tempo, compreender melhor a presença incontestável dos
gêneros em toda elaboração discursiva. Na medida em que nos
apoiamos em três tensões predicativas – intensiva, extensiva e
existencial, respectivamente – supomos que cada uma dessas
tensões esteja impregnada de devires, cada um convocando um
tipo de discurso cioso de sua especificidade. Essa diferenciação
do discurso em tipos discursivos produz por recorrência um efeito
apreciável de “congruência” e serve de apoio à práxis discursiva.
Seguindo essas noções preliminares, parece-nos que:
a) a predicação intensiva (tensão tônico/átono) requer primordial-
mente o relato e todo discurso de cunho narrativo, pois que este

11
RASTIER, Fr. Sens et textualité. Paris, Hachette, 1989, p. 35-53.

167
DEVIR

último constitui-se de um esquema no qual estão associados os


eventos salientes, que são extraídos, em virtude de sua própria
intensidade, do repositório pré-narrativo do devir;
b) a predicação extensiva (tensão aberto/fechado, amplo/concen-
trado) estaria relacionada, antes de tudo, à lei e a todo discurso
de tipo normativo, na medida em que determina, em termos de
limites e de gradações, o domínio de aplicação de um determina-
do devir;
c) e, enfim, a predicação existencial fundaria o mito, mais de acordo
com a acepção de Cassirer do que com a de Lévi-Strauss ou Greimas,
na medida em que proporciona ao advir a autenticidade de uma
ausência revivificada, convocada certamente como uma “presen-
ça”, mas uma presença validada por sua imersão anterior num pas-
sado imemorial e irreversível. Esse tipo, de sua parte, engendra,
por degenerescência e por derivação, toda uma classe de discursos
históricos, ou simbólicos e alegóricos.
Pode-se desenhar um esboço de tipologia:

Predicação Tensão predicativa tipo discursivo


INTENSIVA evento ⇔ estado o relato
EXTENSIVA exclusividade ⇔universalidade a lei
EXISTENCIAL passadificação ⇔ presentificação o mito

Esse esboço deveria permitir esclarecer o estatuto da narra-


tividade na semiótica greimasiana e o lugar que deve ser atribuí-
do ao modelo proppiano. A significação desse modelo não está
em causa, mas o seu valor ainda precisa ser fixado a partir do
instante em que admitimos tratar-se de um uso da narratividade,
estando este precisamente na dependência de um esquema mais
geral, ainda por constituir. Por mais insuficiente que seja, esse
esboço denuncia uma das dificuldades persistentes da teoria
greimasiana, a saber o paralogismo, que consiste em examinar

168
DEVIR

uma grandeza genérica sob o enfoque das singularidades de uma


grandeza específica. Para falarmos de maneira mais simples, uma
vez neutralizada a diferença entre mito e relato – enquanto para
Propp o conto era um avatar do mito – as características do relato
tornaram-se as mesmas do mito, mas como há “mais” no mito
que no relato, a análise deste não era suficiente para o estudo do
primeiro. É esse resto, inestimável, que nosso esboço tenta dis-
cernir e preservar. Podemos presumir que o mesmo se dê no caso
daquilo que gostaríamos de chamar “discurso da lei”, que possui
suas especificidades mesmo que mantenha relações de vizinhan-
ça e de imbricação com os dois precedentes.
Em outras palavras, a pluralidade dos tipos discursivos te-
ria qualquer coisa a ver com a pluralidade dos devires possíveis.
A semiótica, em razão da generalização conferida ao relato prop-
piano, vinculava a narratividade à inversão do conteúdo; ora,
numerosas mudanças ocorrem nos discursos concretos sem que
se produza uma inversão do conteúdo; além disso, ainda podem
ser encontrados nesses discursos certos estados instáveis que dis-
pensam a presença de um operador manifesto, assim como cer-
tas rupturas que contestam o eixo semântico.

169
PRÁXIS ENUNCIATIVA

PRÁXIS ENUNCIATIVA

1 RECENSÃO

D E UM PONTO DE VISTA terminológico, a “práxis” evoca,


em primeiro lugar, uma concepção materialista e realista
da atividade de linguagem, quer no domínio da sociolingüística
(Bourdieu, por exemplo1 ), quer no da lingüística guillaumiana,
conhecida como “praxemática”.
A “praxeologia”, a exemplo do que propunha a Escola po-
lonesa (Kotarbinsky), torna-se, nesse sentido, uma das formas
possíveis da teoria da ação, tendendo a relegar ao segundo plano
as dimensões cognitivas e passionais. Numa perspectiva compa-
rável, porém com pressupostos ideológicos diferentes, Greimas e
Courtés propunham ressaltar, de modo peculiar, as “práticas
semióticas”:

“[...] denominaremos práticas semióticas os processos semióticos


reconhecíveis no interior do mundo natural, e definíveis de modo
comparável aos discursos (que são ‘práticas verbais’, isto é, proces-
sos semióticos situados no interior das línguas naturais).”2

Fundando-se em tal precedente, P. Stockinger sugerirá pos-


teriormente3 oporem-se o “discursivo” (práticas verbais) e o
“praxeológico” (práticas não-verbais).
Haveria contudo alguma contradição, pelo menos no pla-
no terminológico, em definir essas duas semióticas como “práti-
cas”, reservando em seguida o termo de “práxis” ou “prática” ao

1
BOURDIEU, P. Esquisse d’une théorie de la pratique. Genève, Droz, 1972.
2
Dicionário de semiótica, op. cit., p. 344.
3
Sémiotique, II, op. cit., p. 173-4.

171
PRÁXIS ENUNCIATIVA

domínio não-verbal, chamado “do mundo natural”. Uma das hi-


póteses subjacentes à noção de “práxis” aplicada ao domínio
lingüístico, e de que partiremos aqui, é que tendo a língua – e,
de maneira geral, a competência dos sujeitos enunciantes – o
estatuto de um simulacro e de um sistema virtual, a enunciação
é uma mediação entre o atualizado (em discurso) e o realizado
(no mundo natural). Em suma, a enunciação é uma práxis na
exata medida em que dá certo estatuto de realidade – a ser defi-
nido – aos produtos da atividade de linguagem: a língua se des-
taca por definição do “mundo natural”, mas a práxis enunciativa
a reincorpora nele, sem o que os “atos de linguagem” não teri-
am qualquer eficácia nesse mundo. Existem de fato dois tipos
de atividades semióticas, as atividades verbais e as não-verbais,
mas ambas estão ligadas a uma só “práxis”.
Benveniste evoca, por sua vez, o “exercício da língua”4 , ou
sua “colocação em funcionamento”, e está claro que, para ele, a
língua e seu “exercício” não têm o mesmo estatuto de realidade,
pois que é o segundo que reinsere a língua na vida social, na cul-
tura e na história. A distinção entre esses dois registros lingüísticos
é, para ele, fundadora da distinção entre o “semiótico” e o “se-
mântico”, e, para além do aparelho formal da enunciação, ele faz
votos por uma “metassemântica” da enunciação, capaz justamen-
te de analisar os efeitos de sentido da “práxis”.
Atentemos, todavia, para o fato de que o programa de in-
vestigação esboçado por Greimas no Dicionário também incluía
uma distinção desse tipo:

“[...] o espaço das virtualidades semióticas, cuja atualização cabe à


enunciação, é o lugar de residência das estruturas semionarrativas,
formas que, ao se atualizarem como operações [grifo nosso], constitu-
em a competência semiótica do sujeito da enunciação.” 5

4
Problemas de lingüística geral. São Paulo, Edusp/Ed. Nacional, 1976, p. 288.
5
Dicionário de semiótica, op. cit., p. 146.

172
PRÁXIS ENUNCIATIVA

As “formas” convertidas em “operações”: eis, nitidamente


desenhado, o campo de exercício da práxis enunciativa, clara-
mente distinto, por outro lado, da enunciação enunciada:

“Freqüentemente insistimos numa confusão lamentável entre a


enunciação propriamente dita, cujo modo de existência é ser o pres-
suposto lógico do enunciado, e a enunciação enunciada (ou narrada),
que é apenas o simulacro que imita, dentro do discurso, o fazer
enunciativo.” 6

Tal “modo de existência” peculiar serviu não raro de pretex-


to para se desistir do estudo da “enunciação propriamente dita” –
ou seja, das operações inerentes ao ato de discurso –, e para se
considerar que só a enunciação enunciada era semioticamente
reconhecível. Já é tempo de enfrentar o desafio.

2 DEFINIÇÕES
2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

2.1.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS AMPLAS

Na história recente da semiótica, a reflexão sobre a enun-


ciação, as instâncias enunciantes e o discurso levou muitas ve-
zes a pôr em questão o percurso gerativo, a buscar-lhe alternati-
vas, quando não a invalidá-lo. Assinalaremos, quanto a nós, que
o conceito de práxis enunciativa começou a atrair atenção a par-
tir do momento em que se procurou tratar a heterogeneidade
das grandezas convocadas no discurso, especialmente na análi-
se das paixões-efeito de sentido; ora, é patente que o percurso
gerativo foi concebido para engendrar grandezas homólogas e
isomorfas. O fato crítico geral é o seguinte: a todo momento da

6
Dicionário de semiótica, op. cit., p. 147-8.

173
PRÁXIS ENUNCIATIVA

evolução de uma cultura e dos discursos que a constituem, em


todo ponto de sua difusão, convivem ao menos dois tipos de
grandezas: as engendradas a partir do sistema e as fixadas pelo
uso. De tal forma que, como todo discurso dispõe, hic et nunc,
desses dois tipos de grandezas, a exigência mínima de coerên-
cia impôs, de certo modo, o conceito de práxis enunciativa, para
explicar sua co-presença discursiva.
Jean-Marie Floch7 escolheu abordar essa questão através
de uma metáfora emprestada de Lévi-Strauss, a da “bricolagem”;
tal ponto de vista, essencialmente figurativo, expõe a maneira
pela qual os conjuntos de figuras e motivos, tomados a universos
semióticos heterogêneos e quase sempre estranhos uns aos ou-
tros, são reunidos, enunciados e recategorizados na perspectiva
de outro discurso, e submetidos a outras axiologias. Adotaremos
aqui um ponto de vista antes “figural” e dinâmico, complementar
ao anterior, e vamos nos interessar mais particularmente pela for-
ma da convivência e suas transformações. Para que grandezas de
estatuto diferente convivam num mesmo discurso, postularemos
que estas devem ligar-se a diferentes modos de existência: a co-
presença discursiva não se reduz à coocorrência. As modalizações
existenciais – o virtualizado, o atualizado, o potencializado e o
realizado – convertem, de certa forma, a co-presença em espes-
sura discursiva, e projetam distensões modais nessa profundida-
de (ver, a respeito, o capítulo “Presença”). Preliminarmente, po-
deríamos projetar esta primeira distribuição:
1) As formas semionarrativas (o sistema) constituem a competên-
cia enunciativa virtual;
2) A primeira operação da práxis é a convocação dessas formas
em discurso, isto é, uma primeira ativação-seleção no percurso
gerativo, que as atualiza;

7
FLOCH, J.-M. Identités visuelles. Paris, P.U.F., Formes Sémiotiques, 1995.

174
PRÁXIS ENUNCIATIVA

3) Os produtos dessa convocação são de duas ordens: por um


lado, ocorrências, que se realizam em discurso; por outro, praxemas
(os tipos, particularmente), os quais são potencializados pelo uso;
4) Os produtos potenciais ou são postos em memória (em dispo-
nibilidade, de algum modo), ou são realizados por uma nova con-
vocação em discurso;
5) Estes experimentarão, então, dois devires diferentes: ou são
convocados para serem virtualizados, isto é, “denunciados” em
prol de uma reabertura da combinatória virtual; ou, ao contrário,
são por sua vez realizados em ocorrências, desde que o discurso
explore diretamente as formas canônicas disponíveis.
Parece portanto fácil fazer a distribuição entre os “produ-
tos” da práxis enunciativa e os modos de existência, da seguinte
maneira: (i) virtualizado: estruturas e categorias; (ii) atualizado:
regimes selecionados; (iii) potencializado: praxemas; (iv) realiza-
do: ocorrências em discurso.
Os modos virtualizado e potencializado correspondem am-
bos ao estado latente das formas disponíveis, à linguagem “em
potência”, segundo Guillaume, ao “sistema”, segundo Hjelmslev.
Convém provavelmente distinguir o “virtual”, puro pressuposto
sistêmico do discurso, e o “virtualizado”, obtido por desprendi-
mento de um praxema; do ponto de vista da análise discursiva,
porém, esses dois modos se superpõem de maneira exata, na me-
dida em que – memória da coletividade (sistema virtual) ou me-
mória das operações do discurso (grandezas virtualizadas) – am-
bos aparecem como a memória da práxis enunciativa. Em contra-
partida, os modos atualizado e realizado correspondem ao estado
manifesto, à linguagem em ato, ao “processo”, segundo Hjelmslev.
Em cada um desses dois regimes, o aberto (o foco) e o fechado (a
apreensão) entram em ação; chegamos assim a uma rede definicio-
nal das modalidades da práxis:

175
PRÁXIS ENUNCIATIVA

sistema (em potência) processo (em ato)


foco virtualizado atualizado
apreensão potencializado realizado

Tal repartição se complica, no entanto, ao se examinarem


os discursos concretos, dado que a práxis só pode ser apreendi-
da em discurso por contraste, ou seja, se pelo menos dois modos
de existência forem explorados concorrentemente; ocorre então
uma superposição modal que regula o “conflito das interpreta-
ções” (cf. P. Ricoeur). Por exemplo, no seguinte slogan publicitá-
rio utilizado por uma marca de lubrificantes automotivos:

“Des mécaniques qui roulent”8

O trocadilho e a ruptura de isotopia (automóvel/muscula-


tura) firmam-se na superposição, para uma mesma figura, de dois
modos de existência diferentes, a caracterizar respectivamente
cada uma das duas isotopias: um deles diz respeito a um praxema
cristalizado (rouler les mécaniques) que a imagem associada ao
slogan confirma pela presença de bíceps reluzentes; o outro diz
respeito a uma ocorrência comum, construída de acordo com um
princípio combinatório mais aberto, e que apresenta certas pos-
sibilidades comutativas (uma mecânica automobilística roda –
avança, recua, acelera). Graças à adoção da construção intransiti-
va cujo sujeito é mécanique, apenas a segunda dessas isotopias
está realizada no discurso; a outra, que exige uma construção
transitiva direta cujo objeto seria mécanique, fica, por conseguin-
te, potencializada. O praxema, assim, continua a ser potencial,
pois sua sintaxe não pode atualizar-se ao mesmo tempo que a da

8
[N. dos T.]: Literalmente, “mecânicas que rodam”. Alusão à expressão francesa rouler les
mécaniques, em que mécaniques remete a “ombros musculosos” (exibidos por um atle-
ta). Legenda de outdoors amplamente difundidos numa campanha publicitária fran-
cesa .

176
PRÁXIS ENUNCIATIVA

ocorrência; a estrutura virtual está atualizada como forma sintá-


xica, e realizada como ocorrência. Como se vê nitidamente pelo
exemplo, estaria aí o ponto de partida para uma reflexão sobre o
funcionamento dos tropos, na perspectiva da práxis.
Mesmo potencializado, o praxema continua todavia a pro-
duzir efeitos em segundo plano, como se o discurso guardasse,
em cada ponto da cadeia, a memória das operações cujo resulta-
do final será, contudo, o único a ser exposto no plano da expres-
são. De tal sorte que a figura convocada fica dotada de uma pro-
fundidade enunciativa, graças à perspectiva que lhe imprimem
os quatro “graus de existência” superpostos: virtual, atual, po-
tencial e real. A práxis enunciativa instalaria, em suma, uma ter-
ceira dimensão no discurso realizado, a da profundidade dos mo-
dos de existência (dimensão praxemática?), dimensão que convi-
ria associar às duas primeiras, a saber, a dimensão paradigmática
e a sintagmática. É em tal profundidade que se instalam as figu-
ras de retórica e de estilo, bem como, de modo mais geral, todas
as figuras do discurso fundadas na competição entre pelo menos
dois conteúdos, dimensões ou regimes, com vistas à manifesta-
ção.
No plano do discurso como um todo, essas tensões podem
ser reguladas e distribuídas numa polifonia (cf. Bakhtin, Ducrot
etc.); podem também ser fixadas por convenção, sob a forma de
gêneros discursivos. Desta maneira, pode-se reconhecer no exem-
plo anterior uma figura da práxis pertencente ao gênero “publici-
tário com pretensão humorística”.

2.1.2 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS RESTRITAS

Semelhante definição, em termos de modos de existência


(ou modalidades existenciais), reclama dois tipos de observações
complementares. Em primeiro lugar, não se podendo apreender
a práxis, de um ponto de vista semiótico, senão quando esta

177
PRÁXIS ENUNCIATIVA

tensiona pelo menos dois modos de existência, o mínimo defini-


cional requerido consistirá pois no emparelhamento de duas
modalizações existenciais. Mas esse emparelhamento é regulado
por um princípio que merece atenção.
Com efeito, para retomarmos o exemplo anterior, se a in-
terpretação for átona, ou seja, “rasa”, não adotará nada além da
isotopia que respeita a sintaxe de superfície: a isotopia “automó-
vel” será então realizada, e a isotopia “musculatura”, virtualiza-
da. Se, em compensação, a interpretação for tônica, conservará as
duas isotopias em tensão, uma na perspectiva da outra: a isotopia
“automóvel” será apenas atualizada, e a outra, potencializada. O
efeito da práxis será, então, bem outro. No primeiro caso, o enun-
ciado refere-se a uma única figura de cada vez, e é percebido
como puramente icônico (e distensivo), constituindo sua realiza-
ção efetiva uma das condições dessa iconicidade. No segundo caso,
o enunciado refere-se a duas figuras ao mesmo tempo, e é percebi-
do como um tropo (e contensivo). Uma vez que a práxis se define
como tensivização de modos de existência, ela se inscreve ipso fac-
to no âmbito de uma dimensão tensiva, que, no caso evocado,
resumiremos assim:

Práxis tônica Práxis átona


Estatuto do conteúdo latente Potencializado Virtualizado
Estatuto do conteúdo manifesto Atualizado Realizado

Sugerir que a práxis poderia gerir a variação das tensões


entre as grandezas que manipula é reconhecer que ela deve obe-
decer a coerções esquemáticas, no sentido em que o propuse-
mos no capítulo sobre os esquemas. Lembremos que um esque-
ma tensivo assenta na correlação entre a intensidade e a exten-
sidade, e, por homologação, entre o sensível e o inteligível. Como
hipótese geral, o modelo básico da práxis será o da dupla correla-

178
PRÁXIS ENUNCIATIVA

ção entre intensidade e extensidade, correlação conversa e corre-


lação inversa.
Em cada gradiente, o da intensidade e o da extensidade,
podemos isolar duas zonas principais, uma correspondente aos
valores fracos, e outra aos fortes. Assim, no espaço dos valores
que elas definem, aparecem consecutivamente quatro grandes
zonas típicas, que transcrevemos no seguinte diagrama:

+ Somação
Amplificação

INT.

Desdobramento
Atenuação
Resolução

– +
EXT.

As operações típicas da práxis serão, portanto, as seguintes:

1. em relação conversa: a amplificação e a atenuação


2. em relação inversa: a somação e a resolução (ou o desdo-
bramento)

Esclareçamos, de imediato, que os movimentos são sem-


pre mais “fáceis” num sentido que no outro: a amplificação im-
põe, como a somação, apenas um aumento de intensidade, ao
passo que a atenuação e a resolução impõem um esforço para
conter a intensidade

179
PRÁXIS ENUNCIATIVA

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

A práxis tem a seu cargo a regulação global, em diacronia e


sincronia, dos diversos modos de existência das grandezas utili-
zadas pelos discursos. Tal regulação compreende, na tradição lin-
güística bem como nas semânticas cognitivas mais recentes, uma
condição intersubjetiva, além de condições de iteração e tipifica-
ção. A condição intersubjetiva é central em Benveniste, de tal
maneira que a iteração das formas não resulta em nada, se a san-
ção dos alocutários for desfavorável. O raciocínio de Benveniste é
particularmente explícito acerca do presente lingüístico: a cada
nova enunciação, o sujeito do discurso inventa um novo presen-
te, mas esse presente só pode ser atualizado na interlocução,
contanto que o alocutário o aceite como seu próprio presente.
Após afirmar:

“Tal presente é reinventado cada vez que um homem fala, pois trata-se,
literalmente, de um momento novo, ainda não vivido.” 9

ele esclarecerá:

“[...] a temporalidade do locutor, embora literalmente estranha e


inacessível ao receptor, é identificada por este à temporalidade que
informa sua própria fala quando ele se torna, por sua vez, locutor. [...]
O tempo do discurso [...] funciona como fator de intersubjetividade,
convertendo-o, de unipessoal que ele teria de ser, em onipessoal. Só
a condição de intersubjetividade permite a comunicação lingüísti-
ca.”10

9
Problèmes de Linguistique Générale, II. Paris, Gallimard, Tel, rééd. 1980, “Le langage et
l’expérience humaine”, p. 74.
10
Ibid., p. 77.

180
PRÁXIS ENUNCIATIVA

Sem o compartilhamento intencional que a intersubjetivi-


dade permite, a freqüência de uso de uma forma não passa de
pura repetição: a formação e o desaparecimento de uma norma
se firmam nesse princípio; os sujeitos que tentam fazer evoluir a
norma não podem ter esperança de consegui-lo sem encontrar
um auditório, sem suscitar seu próprio “horizonte de expectati-
va”. Generalizando um pouco o raciocínio de Benveniste,
inclinamo-nos a considerar que é a troca social, a circulação dos
objetos semióticos e dos discursos no seio das culturas e comu-
nidades que adota ou rejeita os usos inovadores ou cristaliza-
dos, e que de certo modo “canoniza” as criações do discurso. A
semântica do protótipo não escapa a tal regra, visto que, como
assinala G. Kleiber:

“Uma instância só será um protótipo, ou melhor exemplar, se houver


um acordo entre os sujeitos para considerá-la como tal.”11

A práxis alterna portanto duas direções: pelo lado do su-


jeito, o “unipessoal” (concentrado) e o “onipessoal” (difuso); pelo
lado dos objetos que ele manipula, entre o único “melhor exem-
plar” e a multiplicidade dos usos. Essa dimensão da extensidade
está, além disso, associada à intensidade.
Nota-se por exemplo que a freqüência de uso não pode
ser dissociada do impacto de uma sanção intersubjetiva, e que a
saliência de um protótipo depende do acordo de um número su-
ficiente de sujeitos. A aceitação intersubjetiva abre a porta para a
recorrência de uma forma; a difusão sociocultural garante a esta-
bilidade de um protótipo. A correlação conversa entre a intensi-
dade e a extensidade assegura, assim, o valor de troca de uma
forma.

11
KLEIBER, G. Sémantique du prototype, op. cit., p. 49. Essa posição corresponde à “teoria
standard estendida”, ou seja, a que leva em conta as especificidades culturais e reco-
nhece uma pertinência para o observador.

181
PRÁXIS ENUNCIATIVA

Mas encontraremos também evoluções em que a recorrên-


cia dessemantiza o conteúdo trópico, a tal ponto que, uma vez
lexicalizado (cf. boire un verre)12 , este se torna literalmente insen-
sível, esquecido. A “inflação” discursiva, que corrói neste caso o
valor de uso de uma forma, assinala uma correlação inversa entre
intensidade e extensidade.
Os diversos modos de existência dos conteúdos manipulados
pela práxis enunciativa (por exemplo, o potencial, para um protóti-
po, ou o virtual, para o conteúdo trópico esquecido de uma catacrese)
são controlados pelas operações que recaem sobre a intensidade e a
extensidade, no nível da sintaxe geral da práxis.
Em correlação conversa, os sintagmas disponíveis são os
seguintes:
1. a “amplificação” explicita a seqüência [adoção → integração]
de uma forma;
2. a “atenuação” descreve a seqüência [reconhecimento →
obsolescência] de uma forma;
Tais operações se referem à regulação do valor de troca das for-
mas na comunicação.
Em correlação inversa, os sintagmas são os seguintes:
1. a “resolução” ou “desdobramento” descreve a seqüência [for-
mação → desgaste] de uma forma;
2. a “somação” explicita a seqüência [difusão → ressemantização]
de uma forma.

Essas operações dizem respeito à regulação do valor de


uso das formas.
Falta examinar, agora, a passagem de uma correlação con-
versa a uma correlação inversa. Uma forma em via de desgaste

12
[N. dos T.]: Ao pé da letra, “beber um copo”.

182
PRÁXIS ENUNCIATIVA

será apesar de tudo adotada; depois, por um aumento contínuo


de sua extensão, será mais amplamente reconhecida. Ao contrá-
rio, uma forma pode ser adotada, integrada e, depois, por sim-
ples difusão – caso sua expansão continue a aumentar –, desgas-
tar-se e cristalizar-se. Trata-se de duas transformações diferentes,
tendo como pivô, num caso, um mínimo de intensidade e, no
outro, um máximo de intensidade e como elemento indutor, um
aumento (ou uma diminuição) contínuo da extensidade. A pri-
meira transformação supõe uma “energia” particular (um querer,
um poder), ou até mesmo uma mudança de classe de sujeitos da
enunciação, para desenterrar e fazer reconhecer uma forma já
desgastada. A segunda transformação não requer nenhuma ener-
gia particular para que a difusão geral de uma forma a conduza
progressivamente ao desgaste.
Podem-se prever também as duas seguintes transformações,
cujo pivô seria, num caso, um mínimo de extensidade, e, no ou-
tro, um máximo de extensidade, e cujo elemento indutor seria
um aumento ou uma diminuição contínua da intensidade: uma
forma reconhecida cai em desuso e, apoiada em sua raridade,
recobra um brilho efêmero, antes de se desgastar por difusão;
por fim, uma forma adotada é integrada e, em seguida, com base
numa difusão relativamente restrita, vê-se ressemantizada em
virtude de um suplemento de brilho.
Esses quatro percursos podem ser cumpridos nos dois sen-
tidos; dispomos, portanto, de oito transformações possíveis que
caracterizam a sintaxe da práxis enunciativa.
A simbolização e a dessimbolização operam assim. Glo-
balmente, poderiam ser descritas como “encenações” da
assunção enunciativa. Quando a categoria da pessoa é embreada
em categorias figurativas exteroceptivas, como no verso de
Verlaine:

183
PRÁXIS ENUNCIATIVA

“Votre âme est un paysage choisi”13

a simbolização se funda na apropriação, pelo sujeito da enuncia-


ção, de categorias próprias ao enunciado. Aqui, a predicação as-
socia dois sintagmas que, por sua vez, remetem a duas opera-
ções sobre a extensidade e a intensidade das figuras: sua singu-
lariza alma, referindo-a à dêixis, e eleita concentra e intensifica
paisagem; os versos seguintes retratam depois a “paisagem” e
enumeram seus ocupantes, sem que a embreagem e a identifica-
ção inicial entre a pessoa e a extensão se ressintam disso. Logo,
a correlação é conversa; estaríamos, nesse caso, diante de um
“aumento” (cf. acima), que nos conduz da simples “adoção” de
uma figura até sua “integração”.
A dessimbolização busca reencontrar em seu princípio a
embreagem constitutiva do símbolo estereotipado, para desfazê-
la e substituí-la por uma encenação inédita. Quando Bruegel pinta
O transporte da cruz, escolhe um motivo simbólico e fortemente
estereotipado pela tradição; mas ele retrata a cena de tão longe
– com o Cristo perdido numa multidão de personagens minús-
culas e numa paisagem imensa –, que o símbolo se desfaz: a
partir daí, o motivo evangélico já não é mais que uma ocorrência
qualquer de suplício público. Mas, para tanto, Bruegel teve de
identificar o ponto de vista responsável pela embreagem e
simbolização, ou seja, o ponto de vista restrito e intenso de um
próximo que segue a via-crúcis, identificando-lhe os incidentes e
“passos”, e teve de substituí-lo por outro ponto de vista, estendi-
do, indefinido e átono, que arruína os efeitos simbólicos, vedan-
do, em particular, a embreagem responsável pela simbolização.
Por conseguinte, na medida em que o desdobramento da figura
no espaço e na extensão compromete sua identificação, põe em
xeque a embreagem e arruína o efeito simbólico, pode-se consi-

13
“Clair de lune”, Fêtes galantes. Paris, Gallimard, 1973, p. 97. [N. dos T.]: “Sua alma é uma
paisagem eleita”.

184
PRÁXIS ENUNCIATIVA

derar que a correlação entre a intensidade (do reconhecimento,


da identificação simbólica) e a extensidade (do desdobramento)
foi invertida. A simples mudança de ponto de vista, substituindo
um dispositivo perceptivo por outro, levou-nos de um “aumen-
to” a uma “resolução”.

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Já identificamos, no cerne da práxis enunciativa, dois ti-


pos de operações associadas, as que recaem sobre a intensidade
e as que recaem sobre a extensidade; vamos agora examiná-las
separadamente.
a) Operações intensivas. Partimos da idéia de que a práxis
punha em perspectiva os modos de existência dois a dois. A sinta-
xe intensiva da práxis consistirá pois num conjunto de operações
que incidem sobre as tensões entre modalizações existenciais.
No espaço tensivo em que se desenvolvem, as modaliza-
ções existenciais articulam as modulações da presença e da au-
sência, e, em especial, a travessia dos horizontes do campo, se-
gundo o princípio descrito pelo seguinte diagrama:

(Potencialização)

(Virtualização) ( Realização )

(Atualização)

As operações elementares são de duas ordens:


(i) as operações ascendentes, pelas quais as formas são convocadas
visando à manifestação:

185
PRÁXIS ENUNCIATIVA

– Virtualização → Atualização [Virt. → At.] representa a emer-


gência de uma forma;
– Atualização → Realização [At. → Real.] descreve seu apareci-
mento;
(ii) e as operações decadentes, pelas quais as formas são
implicitadas, estocadas em memória, ou até mesmo apagadas e
esquecidas:
– Realização → Potencialização [Real. → Pot.] é a condição do
declínio de uma forma num discurso singular, e eventualmente
sua fixação no uso enquanto praxema potencial;
– Potencialização → Virtualização [Pot. → Virt.] descreve o desa-
parecimento de uma forma.
Como a práxis só pode ser apreendida se se referir a duas gran-
dezas e dois modos de existência em competição, as operações
intensivas combinam duas operações elementares: uma ascen-
dente e uma decadente. Ou seja:
1. [At. → Real.] ↔ [Pot. → Virt.]: o aparecimento de uma forma,
correlacionado ao desaparecimento de outra, constitui uma re-
volução semiótica. A clássica substituição lingüística é exemplo
disso.
2. [Virt. → At.] ↔ [Real. → Pot.]: a emergência de uma forma,
correlacionada ao declínio de outra, é uma distorção semiótica.
Excelentes exemplos disso são os tropos vivos, pondo em con-
corrência uma forma atualizada (o conteúdo figurante e sensí-
vel) e uma forma potencializada (o conteúdo reconstituído, con-
ceptual ou parafrástico).
3. [Virt. → At.] ↔ [Pot. → Virt.]: a emergência de uma forma,
conjugada ao desaparecimento de outra, é um remanejamento
semiótico, que afeta as relações entre os primitivos culturais e o
sistema. A isso se liga, por exemplo, toda operação tendente a
promover a combinatória virtual num estereótipo, como na se-
guinte troca entre duas personagens de Ionesco, em que uma
ocorrência livre vem desfazer e virtualizar o estereótipo:

186
PRÁXIS ENUNCIATIVA

Jean: Vous rêvez debout!

Béranger: Je suis assis.14

4. [At. → Real.] ↔ [Real. → Pot.]: o aparecimento de uma forma,


conjugado ao declínio de outra, é uma flutuação semiótica. É o
caso, principalmente, quando duas isotopias, ligadas por uma
metáfora, manifestam-se uma após outra na superfície; sua alter-
nância supõe então que a isotopia figurante vai e vem entre atua-
lização e realização, e a isotopia figurada oscila entre potenciali-
zação e realização.
Recapitulando: a noção genérica de “transformação”, tal
como definida por Greimas, levava unicamente em conta, em
seu nível de pertinência, a inversão de conteúdo entre dois es-
tados não concomitantes, e somente no plano dos valores se-
mânticos. Em razão da atenção aqui concedida às tensões –
no nível das valências – entre estados concorrentes, tal noção
especifica-se em quatro transformações elementares, e quatro
transformações tensivas. Obtemos, dessa maneira, a seguinte
rede de figuras sintáxicas:

(Ascendência) Emergência Aparecimento


(Decadência)
Declínio Distorção Flutuação
Desaparecimento Remanejamento Revolução

b) Operações extensivas. As operações tensivas que incidem


sobre a extensão e a quantidade referem-se tanto à percepção
dos estados de coisas (unitários, parciais, holísticos), quanto à
enunciação, pois que a debreagem é, em si própria, pluralizante,
e a embreagem, homogeneizante. Entre os dois graus extremos
14
(Rhinocéros, Le Livre de Poche, p. 34). [N. dos T.]: “Jean: Você está sonhando em pé! /
Béranger: Estou sentado.”

187
PRÁXIS ENUNCIATIVA

da extensidade, que são a nulidade e a totalidade, as línguas


naturais dispõem segmentos. Tais segmentos constituem uma
série, que evocamos aqui em caráter ilustrativo:

globalidade – totalidade (totus)


nulidade – unidade – dualidade - pluralidade

generalidade – universalidade
(omnis)

A sintaxe extensiva consiste então, a partir de cada seg-


mento, em deslocar-se de maneira ascendente ou decadente, rumo
a outro segmento. O número de transformações possíveis (cerca
de quarenta) desestimula qualquer veleidade de denominação
sistemática. Podem-se todavia extrair, dentre as operações ascen-
dentes:
1. nulidade → unidade: emergência de um “hápax”;
2. unidade → dualidade: partição (principalmente conflituosa);
3. pluralidade → totalidade: integração;
4. pluralidade → universalidade: homogeneização;

e, dentre as operações decadentes:

1. pluralidade → dualidade: polarização;


2. pluralidade → unidade: singularização.

3 CONFRONTAÇÕES

A relação com o plano da expressão é particularmente sig-


nificativa do funcionamento da práxis. Um praxema é uma rede

188
PRÁXIS ENUNCIATIVA

de dependências, mais que de diferenças; ele explora as diferen-


ças próprias ao sistema, para instalar dependências. Se a práxis
convocar conjuntamente duas diferenças, A/B e x/y, tais diferen-
ças caracterizam o sistema subjacente, mas o efeito de sentido
em discurso assentará nas duas dependências conjuntas A-x e B-
y. Eluard compreendeu bem essa conversão, no interior da metá-
fora, da diferença em dependência, ao escrever:

“Comme le jour dépend de l’innocence


Le monde entier dépend de tes yeux purs
Et tout mon sang coule dans leurs regards.”15

As diferenças paradigmáticas convocadas, dia/mundo e ino-


cência/olhos puros, são suspensas pelo “como” comparativo, que
as substitui por uma correlação (neste caso, por uma equivalên-
cia) de dependências: “dia depende de inocência” equivale a “mundo
depende de olhos puros”. O fundamento da dependência só apare-
ce a posteriori: é o traço /incoativo/, alçado à qualidade de condi-
ção axiológica. Logo, não são apenas os traços distintivos con-
vocados a partir do sistema lingüístico que instalam a isotopia –
aqui, a isotopia do incoativo –, mas igualmente a presença sen-
sível de uma rede de dependências, que suscita a presunção de
isotopia. Tal procedimento é do âmbito da estratificação, dado
que toda dependência, especialmente no que toca aos sistemas
semi-simbólicos e à metáfora, associa um plano da expressão e
um plano do conteúdo.
Ademais, quando da constituição de um praxema, a corre-
lação entre o plano da expressão e o do conteúdo obedece a cer-
tas regras responsáveis por sua “cristalização”.
Um exemplo tomado à publicidade permitirá esclarecer este
ponto; no seguinte slogan, ligado a uma grande marca de uísque:

15
ELUARD, P. Capitale de la Douleur, in Œuvres complètes. Paris, Gallimard, 1966, p. 139.
[N. dos T.]: “Como o dia depende da inocência/O mundo todo depende dos teus olhos
puros/E todo o meu sangue escorre em seus olhares.”

189
PRÁXIS ENUNCIATIVA

“C’est pas donné, mais c’est souvent offert.”16

lê-se uma tentativa de virtualização do praxema. No início do


slogan, o praxema está fechado, não comutável; no final, o enun-
ciado está diretamente realizado a partir das possibilidades vir-
tuais da estrutura; está aberto, comutável. Na primeira parte, as
restrições impostas à interpretação, no plano do conteúdo, de-
correm do fechamento da forma sintáxica. O juízo que ele com-
porta é tratado como um bloco autônomo, direta e maciçamen-
te convocável. Em compensação, a segunda parte suspende, no
plano da expressão, o vínculo sintáxico forte do segmento pre-
cedente, graças à inserção de uma locução adverbial circunstan-
cial (muitas vezes) e à comutação entre de graça e de presente; por
conseguinte, desaparecem as restrições de interpretação no plano
do conteúdo, e o sujeito da enunciação pode explorar todas as
virtualidades de uma verdadeira cena de troca.
A questão da dependência se coloca, neste caso, de duas
maneiras: (1) Trata-se, primeiramente, da dependência/indepen-
dência entre a expressão e o conteúdo, a qual justifica a evolu-
ção inversa da densidade respectiva das articulações do plano
da expressão e do plano do conteúdo. (2) Em seguida, trata-se
da dependência/independência entre os constituintes de cada pla-
no: quanto mais forte o vínculo, mais resistente o praxema. Isso
se traduz, porém, diferentemente em cada plano: no plano da
expressão, por uma sobredeterminação das coerções sintáxicas;
no plano do conteúdo, por uma redução das possibilidades
interpretativas.
A práxis enunciativa interessa, além disso, à semiótica das
culturas. Com efeito, ela produz “taxionomias conotativas”, ou
seja, recortes da macrossemiótica do mundo natural, que são
próprios de uma área ou época cultural; essas taxionomias são,

16
[N. dos T.]: “Não é de graça, mas é ofertado muitas vezes de presente.”

190
PRÁXIS ENUNCIATIVA

por sua vez, constituídas de microssemióticas, lingüísticas ou não-


lingüísticas, nas quais cada termo, em razão dos laços de depen-
dência e diferença que o unem aos demais, conota a filiação a um
universo cultural particular. Mais precisamente, é a distribuição
das figuras numa determinada microssemiótica que acrescenta a
cada uma delas uma carga semântica particular, a que chamamos
“conotação”. Mas, nesse caso, não há, sob essa perspectiva, semas
especificamente “conotativos”.
Se examinarmos, por exemplo, a “microssemiótica” da “auto-
estima” em francês, encontraremos aí, sem preocupação de
exaustividade: l’orgueil, la vanité, la fatuité, la suffisance, la fierté, la
dignité, le narcissisme etc.17 O recorte do domínio obedece aos
seguintes princípios: (1) Funda-se em alguns traços distintivos:
estima justificada/não justificada, juízo comedido/excessivo, manifes-
tação ostensiva/discreta, referência moral/social, certeza/incerteza,
ofensivo/defensivo etc.; (2) A formação dos sememas não chega a
recorrer a todos os pares de traços distintivos, de maneira que o
recobrimento da rede de traços pela dos sememas é irregular, e
desprovido de regra aparente. Assim, cada termo aparece como
intersecção entre várias dimensões semânticas, estando, nesse
sentido, duas vezes submetido à práxis cultural: (i) em primeiro
lugar, pelo número e natureza dos traços disponíveis, que carac-
terizam o valor de cada um no domínio; (ii) depois, pelo número
e natureza dos traços selecionados por uma intersecção, os quais
caracterizam a valência própria do termo.
Contudo, a práxis intervém ainda de outra maneira, quan-
do se trata de confrontar as microssemióticas entre si. Opera por
superposição de microssemióticas conotativas, tentando homo-
logá-las. A pedra de toque que permite verificar a congruência de
tais superposições é a convocação enunciativa. Por exemplo, se,
ao convocarmos em discurso um determinado bloco modal (isto

17
[N. dos T.]: O orgulho, a vaidade, a fatuidade, a presunção, a altivez, a dignidade, o narcisismo etc.

191
PRÁXIS ENUNCIATIVA

é, um elemento da microssemiótica modal de uma cultura parti-


cular), pudermos sempre convocar simultaneamente o mesmo
arranjo rítmico, deduziremos que as duas microssemióticas de
que eles fazem parte são superponíveis e congruentes. Ocorre-
nos outro exemplo, mais geral: a superposição do “sensível” e do
“risível” aparenta ser um critério particularmente significativo da
estabilidade e evolução das culturas. Sabe-se, por exemplo, que,
se os avarentos fazem rir a aristocracia francesa no século XVII,
quando Molière os põe em cena, já não divertirão ninguém no
século XIX, nos romances de Balzac; a mudança de gênero é ins-
trutiva: não se cogitaria mais, em 1830, fazer do avarento uma
personagem de comédia. A correlação entre as duas taxionomias
pode ser inversa ou conversa: os regimes totalitários, que susci-
tam a indignação dos vizinhos, inspiram mais facilmente a sátira
dentro de sua própria nação. No primeiro caso, o risível se apaga
diante do sensível; no segundo, eles se reforçam mutuamente.
Percebe-se facilmente que as razões são históricas, táticas, socio-
lógicas – isso nada retira ao fato de que a variação cultural se
traduz por modos de superposição e formas de correlações dife-
rentes entre taxionomias culturais.
A teoria da semioesfera proposta por I. Lotman poderia aco-
lher tal observação. O centro da semioesfera seria, nesse sentido,
definido como o topos cultural em que se concentra a maioria
das taxionomias superponíveis: seria constituído, então, de mi-
crossemióticas homologadas e altamente correlacionadas. A
periferia da semioesfera – lugar de trocas com as culturas vizi-
nhas no espaço, ou próximas no tempo, lugar de instabilidade
e fonte dos remanejamentos da semioesfera – seria constituída
por taxionomias de frágil correspondência. Ali onde a cultura
como um todo – o sujeito da enunciação coletivo – não promo-
ve a congruência dos recortes culturais, a iniciativa dos sujeitos
individuais e as influências periféricas podem ocorrer livremen-
te.

192
PRÁXIS ENUNCIATIVA

O conceito de “episteme”, considerado por Greimas e


Courtés como

“a organização hierárquica – [...] – de vários sistemas semióticos,


capaz de gerar, com a ajuda de uma combinatória e de regras restri-
tivas de incompatibilidade, o conjunto das manifestações (realizadas
ou possíveis) recobertas por esses sistemas, dentro de uma dada
cultura.”18

poderia, conseqüentemente, ser completado por uma sintaxe fun-


damentada nos deslocamentos relativos das taxionomias entre
si, bem como nas transformações das regras de correlação e com-
patibilidade.
Poderíamos identificar, assim, operadores de transforma-
ção cultural, cujo princípio já foi proposto no capítulo dedicado
às “formas de vida”. Com efeito, o que é, por exemplo, o “belo
gesto”, senão uma tentativa de modificar as correlações existen-
tes entre os papéis sociais, éticos e passionais? Analogamente,
quando um discurso (verbal ou não-verbal) deixa de respeitar a
correlação admitida entre o risível e o sensível, ele é qualificado
de “cínico”. Não será o cinismo filosófico, mais radical, uma for-
ma de vida que se inventa buscando um deslocamento das axio-
logias, umas em relação às outras, assim como uma dissociação
mútua das taxionomias, através do exercício da derrisão?
Pelos próprios termos de Lotman, uma forma de vida con-
vencional, canônica e amplamente compartilhada (como o espíri-
to “burguês”, segundo Barthes) ocuparia o centro da semioesfera,
enquanto as formas de vida inventivas, contestatórias, as correla-
ções inesperadas e não canônicas ocupariam a periferia, esperan-
do ser logo mais admitidas no centro, ou sair definitivamente da
semioesfera. A sintaxe que se desenha, no vaivém entre centro e
periferia, compreenderia três fases principais: a congruência, no cen-
18
Dicionário de semiótica, op. cit., p. 150.

193
PRÁXIS ENUNCIATIVA

tro, a ascendência e a decadência, na periferia. As formas de vida


emergentes vêm alimentar a congruência, no centro da semioesfe-
ra, onde se estabilizam; as formas de vida em declínio retiram-se
para a periferia, onde se desfarão. Dessa maneira, compreende-se
melhor como se pode qualificar de “decadente” uma forma artís-
tica ascendente emergente, sem modificar sua posição na
semioesfera, mas apenas invertendo sua orientação sintáxica. No
âmbito da cultura como um todo, a forma semiótica do “campo
de presença”, e a sintaxe existencial que a modula, ainda susten-
tam a práxis coletiva.
Em sua teoria da semioesfera 19 , Lotman insiste sobre
várias propriedades estritamente homólogas às do campo
discursivo: (i) a semioesfera, centrada no “nós” (a cultura, a har-
monia, o interior) e excluindo o “eles” (a barbárie, a estranheza, o
caos, o exterior), está limitada por fronteiras; (ii) ocorrem inces-
santes transformações, entre o centro e a periferia, entre o inte-
rior e o exterior.
Ademais, e isso nos aproxima em particular da práxis enun-
ciativa epistolar, os movimentos e deformações da semioesfera
são determinados pelas operações de um diálogo entre domí-
nios, isto é, pelas modulações de uma tensão enunciativa entre o
interior e o exterior do campo discursivo. No caso, o que há de
mais notável é a sintaxe proposta por Lotman:
(a) em primeiro lugar, o aporte externo é percebido como
impactante e singular, superestimado como prestigioso ou in-
quietante;
(b) tal aporte é então imitado, reproduzido, traduzido e trans-
posto nos termos do “próprio” e do “nosso”, difundido e digeri-
do em todo o campo interno, de maneira que perde todo seu
impacto;

19
LOTMAN, I. Universe of the mind. Londres, I.B. Tauris, 1990, p. 123 e ss.

194
PRÁXIS ENUNCIATIVA

(c) assim integrado por completo, ele já não será reconhecido


como estrangeiro, de tal forma que o domínio externo recupera-
rá toda sua especificidade e singularidade, e tornará a aparecer
como confuso, falso, não pertinente;
(d) por fim, o aporte primeiro, agora irreconhecível, será erigido
em norma universal, proposta retroativamente não apenas den-
tro dos limites do mundo interno, senão também ao mundo ex-
terno, como parâmetro para toda e qualquer cultura.
Tal seqüência de diálogo entre “campos” semióticos en-
cerra de fato: (i) operações de abertura e fechamento do campo;
(ii) aumentos e diminuições da intensidade (intensidade da per-
cepção-recepção); (iii) operações de aumento e retraimento da
extensão e da quantidade. As modificações da semioesfera, tanto
quanto as da práxis, recaem, assim, sobre duas dimensões essen-
ciais: a intensidade (em função da operação de foco) e a extensão
e quantidade (em função da operação de apreensão). As quatro
fases definem-se, portanto, assim:
– fases a e b: a intensidade do foco e a extensão da apreensão
evoluem em razão inversa uma da outra; em a, a irrupção impac-
tante do aporte externo engendra um afeto intenso, porém sem
extensão; em b, a difusão intervém, e o aporte externo é ao mes-
mo tempo domesticado, negociado, diluído, conquistado: todo
o campo é afetado por ele, mas de modo tênue.
– fases c e d: a intensidade do foco e a extensão da apreensão
evoluem no mesmo sentido, conjuntamente; em c, tanto a exten-
são quanto a intensidade se encontram no mínimo; em d, a am-
plificação, enfática, conquistadora e normativa, faz seu trabalho,
e afeta simultaneamente a intensidade (do reconhecimento) e a
extensão (da difusão).

195
PRÁXIS ENUNCIATIVA

O esquema da práxis assume então a seguinte forma:

D e s dob ra m e n to
tôn ico Im p a c to do e s tra nho do unive rsa l

FO CO
inte ns ida de

E xc lu sã o D ifus ã o
do específico do fa m ilia r
áto no e s pe c ífic o

áto no A PREEN SÃ O tôn ico


de s d obra m e nto e difu sã o

O ângulo agudo da cúspide determina uma zona de


descontinuidade; com efeito, uma vez que um fato cultural seja
considerado como universal, todas as fases anteriores são es-
quecidas: a universalização de uma forma poderia até mesmo –
e vale a observação para as teorias pretensamente universais –
ser definida como o descarte da práxis que a produziu. A zona
crítica do “desdobramento universal” é, na verdade, o local onde
se introduz um metadiscurso que redefine até o próprio referente
do discurso e da cultura. Nesse sentido, é em tal zona que se
realizam e estabilizam os remanejamentos do campo discursivo,
para formar novos “universos”.
A “práxis” enunciativa deve também ser confrontada a es-
sas grandes distinções da lingüística do século XX que são a
língua, a fala, o discurso e a norma. A posição que lhe reconhe-
ceremos, no interior desse conjunto, estará ligada aos modos de
existência das instâncias da linguagem.
A lingüística saussuriana opõe a língua e a fala, ou seja, o
virtual e o realizado, sem grande preocupação com a mediação
entre as duas. Como recorda M. Arrivé, uma vez definida a língua
como um “todo”,

196
PRÁXIS ENUNCIATIVA

“Evidentemente, resta identificar o objeto que, adicionado ao todo


da língua, vai constituir o não-todo (perdoem essa antecipação
lacaniana) da linguagem saussuriana.”20

Trata-se da fala, cuja relação com a língua é assim esclareci-


da pelo próprio Saussure:

“A faculdade de linguagem é um fato distinto da língua, mas que não


pode se exercer sem esta. Pela fala, designa-se o ato do indivíduo ao
realizar sua faculdade através da convenção social que é a língua.”21

Na linguagem, a língua é portanto um todo homogêneo e


virtual, em relação ao qual a fala – o que resta – não pode ser
definida senão negativamente, ela que no entanto possui um
inegável estatuto de realidade. Essa “realização”, que a lingüísti-
ca só pode descrever negativamente e não sabe assumir, consti-
tui decididamente uma dificuldade. Tendo já sobejamente frisa-
do tal aspecto, não insistiremos nisso; ainda assim, cumpre res-
saltar que Saussure também fala em “exercer” uma competência
lingüística (cf. a dinâmica homogeneizante da motivação e da
analogia), e que esse “exercício” é igualmente considerado não-
pertinente de um ponto de vista estritamente lingüístico, isto é,
do ponto de vista exclusivo do sistema da língua.
A lingüística guillaumiana vai introduzir aqui outro modo
de existência, depois de redefinir os termos iniciais: em vez de
opor a língua e a fala, o “todo” e o “não-todo”, Guillaume opõe
a língua e o discurso, par de noções comparável ao par hjelmsle-
viano “sistema/processo”. Sem entrar nos pormenores de tais dis-
tinções, salientaremos apenas a operação constitutiva da lingüís-
tica guillaumiana: em vez de apenas opor uma competência –
20
Linguagem e psicanálise, lingüística e inconsciente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999,
p. 36.
21
ENGLER, R. Edition critique du “Cours de Linguistique Générale”, I. Wiesbaden, Harrassowitz,
1989, p. 41.

197
PRÁXIS ENUNCIATIVA

um saber dizer – a um discurso realizado – um dito efetivo –,


Guillaume alarga de certo modo a fronteira entre os dois, aí ins-
talando a “efetivação”:

potência / efetivação / efeito

Como o nome indica, a “efetivação” é um processo de con-


versão do virtual em real, processo constituído de diversas opera-
ções, mas que, por isso mesmo, só pode se desenrolar num tempo
mínimo, porém irredutível, o chamado tempo “operativo”– a sa-
ber, literalmente, o tempo das “operações”. Projetado sobre a
dicotomia hjelmsleviana sistema/processo, esse alargamento da
fronteira entre as instâncias poria à mostra o heterodoxo “proces-
so” (processus), que Hjelmslev por si próprio jamais considerou,
pois para ele, apoiado num raciocínio tipicamente saussuriano, o
“processo” (procès) é tudo o que resta quando se levou em conta o
sistema.
E. Coseriu, por sua vez, distingue a língua, a norma e a fala22 ,
concebendo o segundo termo como um filtro que, limitando as
possibilidades de atualização da língua, predetermina a realização
dos discursos concretos, ou seja, a fala. Por princípio, o poder de
mediação e seleção da norma é comparável ao que admitimos para
a práxis; também ele funda-se nos usos que, a título de atualiza-
ção, aparecem como produtos da combinatória lingüística, mas, a
título de potencialização, restringem, de fato, a extensão dos pos-
síveis numa dada cultura. A diferença entre a norma e a práxis
consiste essencialmente no fato de que o ponto de vista de Coseriu
ainda é estático, na medida em que a norma, assim como a lín-
gua, é um “depósito” de estruturas e formas fixas; a práxis pro-
duz tais formas, decerto, mas também todas as demais, inventi-

22
“Sistema, norma e ‘parola’”. Studi linguistici in onore di Vittore Pisani. Brescia, Paideia
Editrice, p. 235-53.

198
PRÁXIS ENUNCIATIVA

vas e extranormas, e o ponto de vista que adotamos é o das ope-


rações, e não o das “formas depositadas”.
Por outro lado, a enunciação de que tratamos aqui é conce-
bida como um conjunto de operações; numerosos autores já ado-
taram semelhante ponto de vista; mencionaremos apenas as pro-
postas mais próximas de nossas preocupações, a saber, as de
Saussure, Benveniste e Greimas.
Em “O aparelho formal da enunciação”23, Benveniste expli-
ca-se com firmeza acerca do que entende por ato de enunciação,
essa “entrada em funcionamento” ou “efetuação” da língua. Até
onde se podem reconstituir as diversas operações, através de sua
explanação, estas seriam quatro: (i) a mobilização da língua; (ii) a
apropriação da língua; (iii) a alocução; e (iv) a referência. Sua de-
finição semiótica seria a seguinte:
A mobilização pressuporia, de certo modo, um conjunto iner-
te a ser ativado globalmente: consideremos que isso correspon-
deria à ativação do percurso gerativo, à “entrada em ressonân-
cia” de seus diferentes níveis.
A apropriação é, de acordo com Benveniste, o ato “que in-
troduz aquele que fala em sua fala”24, mas tal definição, situada
no contexto do aparelho formal da enunciação, foi geralmente
interpretada de maneira restritiva, ou seja, apenas em termos
dêiticos e modais. Na verdade, o sujeito do discurso se apropria
mais amplamente da língua, dado que ele escolhe categorias,
seleciona para cada qual um ou vários regimes, põe-nos em rela-
ção, esforça-se por estabelecer congruência entre os regimes
adotados – e principalmente entre os usos que deles decorrem –, e
é assim também que ele se instala em seu discurso.
A alocução, por meio da qual o locutor “implanta o outro
diante dele” implica entre outras coisas o compartilhamento, a
23
Problèmes de Linguistique Générale, II, op. cit., p. 79-88, primeiramente publicado em
Langages 17. Paris, Didier/Larousse, 1970, p. 12-8.
24
Op. cit., p. 82.

199
PRÁXIS ENUNCIATIVA

comunhão fática, e a possibilidade de uma sanção intersubjetiva


das convocações efetuadas por cada um dos parceiros. Por conse-
guinte, a práxis discursiva é interativa.
Enfim, a referência, que Benveniste por vezes reduz, quer à
referência dêitica, quer à referência ao mundo descrito, deve ser
compreendida também como estabelecimento de uma rede de
referência interna ao discurso, a partir, bem entendido, do cen-
tro de referência constituído pela instância de discurso; D.
Bertrand propôs denominar “referenciação” a “construção enun-
ciativa do referencial”, e “referencialização” os “procedimentos
internos ao tecido discursivo”25.
Greimas, por sua vez, concebe a enunciação a partir de três
operações: (i) a debreagem e a embreagem; e (ii) a convocação.
Não obstante seu ar de parentesco etimológico, que inspirou a H.
Parret o termo genérico “breagem”26 , a debreagem e a embrea-
gem não operam no mesmo nível: a primeira é a operação funda-
dora da instância de discurso, a “esquizia”, que atualiza num só
gesto as categorias enunciativas (dêiticas, essencialmente) e as
categorias do discurso (ator, espaço, tempo); a segunda é uma
tentativa, sempre adiada, de regresso das categorias do discurso
às da enunciação. A debreagem instala as condições de realiza-
ção do discurso, e a embreagem não pode neutralizar seus efei-
tos, sob pena de proibir qualquer fala. Vale dizer, se a debreagem
instala as condições de uma enunciação, a embreagem não pode
operar, e portanto “simular” essa enunciação, a não ser no interior
das condições impostas pela debreagem.
É por isso que, de um ponto de vista sintáxico, a debrea-
gem promove a passagem de uma realidade indizível (logo, vir-

25
In L’espace et le sens, Germinal d’Emile Zola. Paris/Amsterdam, Hadès/John Benjamins,
Actes Sémiotiques, 1985, p. 32.
26
“L’énonciation en tant que déictisation et modalisation”, in PARRET, H. (Ed.), “La mise
en discours”, Langages, 70. Paris, Larousse, 1983, p. 92.

200
PRÁXIS ENUNCIATIVA

tual) a um discurso realizado; por conseguinte, de um modo de


existência a outro. Em compensação, a embreagem, apoiando-se
nas categorias atualizadas pela debreagem, propõe apenas um
simulacro da instância de discurso, a “enunciação enunciada”, a
qual deve ser considerada como “potencial”, na medida em que
ela é convencional e, em maior ou menor grau, fixa. Voltaremos
a isso em breve.
Outra propriedade insuficientemente salientada da debrea-
gem é a de ser pluralizante: dissociando a pessoa da não-pessoa,
ela instala ao mesmo tempo uma multiplicidade de não-pessoas
(de “eles”) disponíveis, ao passo que a pessoa subjetiva é sem-
pre, ou singular, ou massiva (“nós”) e coletiva. Da mesma manei-
ra, a pluralidade dos espaços e momentos resultantes da
debreagem funda a própria possibilidade dos deslocamentos,
dos pontos de vista, dos jogos da memória etc. Como a embrea-
gem visa à homogeneização entre enunciado e enunciação, com-
preende-se que as operações extensivas/intensivas da práxis fa-
zem, aqui também, seu trabalho, e que a embreagem e a debrea-
gem são seus avatares, aplicados à própria instância de discurso,
isto é, refletidos.
É então que intervém a noção de “convocação”27 . A metá-
fora do “chamamento” em discurso recobre, de fato, o processo
de discursivização do conjunto das categorias semionarrativas
disponíveis. De acordo com o procedimento a ser apresentado
no capítulo dedicado às formas de vida, chamar uma categoria
em discurso é: (i) selecionar este ou aquele de seus regimes, e (ii)
desenvolver os usos do regime selecionado. Tal processo, que se
supõe válido para todas as categorias constitutivas do discurso,
recebeu aqui uma descrição em termos de efeitos de apresenta-
ção e representação: a convocação permite às categorias aceder à
presença discursiva, sendo portanto controlada pelas modalida-
des existenciais.
27
Cf. Semiótica das paixões, op. cit., especialmente p. 12-4 e 69-70.

201
PRÁXIS ENUNCIATIVA

As operações propostas por Greimas correspondem às de


Benveniste, redistribuindo-as diferentemente: a “mobilização” e
a “apropriação” deixam-se identificar sem dificuldade a opera-
ções constitutivas da convocação (chamamento das categorias,
seleção de um regime, principalmente enunciativo28 ). A
“alocução” procede da embreagem, pois que instala um dos ter-
mos do regime pessoal, ao passo que a “referência” (referenciação
ou referencialização) procederia da debreagem, dado que, já por
separar cada categoria da instância de discurso em duas ou várias
grandezas, esta suscita entre elas uma tensão que reclama sua
resolução, o que se designa, justamente, pelo termo “referência”.
A referência, nessa perspectiva, nada seria senão a lembrança de
uma unidade perdida do indizível. Contudo, a diferença não é
nada negligenciável: para Benveniste, a referência pressupõe a
alocução, pois não poderia haver referência a não ser comparti-
lhada, isto é, já uma “co-referência”; a referência enunciativa é
para Greimas, por outro lado, inerente à debreagem, ou seja,
independente da alocução. A razão é simples: o sujeito da
enunciação greimasiano é um actante único, que só vai cindir-
se em dois atores, enunciador e enunciatário, no momento da
manifestação, independentemente da debreagem em si.

28
Lembremos que, para Benveniste, “o locutor se apodera do aparelho formal da língua
e enuncia sua posição de locutor” graças à mesma operação, chamada de “apropria-
ção”. Cf. P.L.G., II, op. cit., p. 82.

202
F ORMA DE VIDA

FORMA DE VIDA

1 RECENSÃO

A NOÇÃO de forma de vida aparece nas Investigações filosóficas


de Wittgenstein, que a utiliza para generalizar os “jo-
gos de linguagem”: a significação de uma expressão não se pode
estabelecer senão em seu “uso”, que por sua vez pertence a um
“jogo de linguagem”, o qual por sua vez pertence a uma “forma
de vida”.

“O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da


linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida.”1

O projeto de Wittgenstein vai na direção de uma pragmá-


tica generalizada, que de fato concederia primazia ao cultural, à
labilidade dos usos lingüísticos e semióticos, sobre o sistema e a
estrutura. O encadeamento conceptual que propõe:

expressões → usos → jogos de linguagem → formas de vida

permite substituir usos, em si mesmos lábeis, imprevisíveis e in-


significantes, por formas intencionais e/ou codificadas, capazes de
ancorar em cada expressão o sentido da práxis cotidiana.
O controle do sentido das expressões é, assim, assumido
por um duplo procedimento de condensação e expansão, que per-
mite passar das figuras locais às formas de vida mais gerais que
as subsumem e fazem-nas significar. Nesse sentido, toda manifes-
tação de uma forma de vida é então considerada como um
1
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas, Primeira Parte. São Paulo, Nova Cultural, Os
Pensadores, 1999, p. 35.

203
FORMA DE VIDA

condensado da forma de vida inteira. O princípio subjacente, da


coexistência entre uma significação constante e múltiplos níveis
de articulação, está, por um lado, em conformidade com a análi-
se semiótica em “variedades” e “variações”, tal como a concebe
Hjelmslev no capítulo dezesseis dos Prolegômenos, e, por outro,
bem próximo do percurso gerativo2 , cujos diferentes níveis são
considerados “homotópicos” – na medida em que conservam a
significação ao rearticulá-la –, porém “heteromorfos”, para per-
mitir a complexificação das articulações, de um nível a outro. Ou
seja, nesse sentido, o “estilo” de uma forma de vida é ao mesmo
tempo o condensado, a manifestação e a garantia de coerência
dos diversos níveis de articulação subjacentes. Mas o recurso ao
percurso gerativo, nesse dispositivo, permite orientar a conden-
sação e a expansão, pois pode-se admitir que as estruturas narra-
tivas, tanto profundas quanto superficiais, condensam as estru-
turas discursivas, na exata medida em que estas estendem e trans-
põem aquelas, em concordância com o axioma hjelmsleviano se-
gundo o qual o conteúdo semiótico é tributário de sua extensão.
A mesma noção, em outra acepção, encontra-se também
em Cassirer, que, no segundo tomo de La philosophie des formes
symboliques, dedica mais de oitenta páginas ao mito concebido
como “forma de vida”. Ela permite então, numa perspectiva que
já não se vincula apenas à pragmática da linguagem, e sim, mais
amplamente, à semiótica das culturas, evidenciar o enraizamento
sensível das organizações simbólicas coletivas.

2
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 206-9.

204
F ORMA DE VIDA

2 DEFINIÇÕES
2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Levar em conta as formas de vida é algo comparável à pas-


sagem do uníssono para a “polifonia”. Por concepção “em unís-
sono”, entendemos a dupla redução operada pela semiótica
greimasiana numa primeira fase: antes de mais nada, a redução
da diversidade semiótica à narratividade, fazendo a semiótica
aparecer como uma “narratividade generalizada”; em seguida, a
redução da narratividade geral à narratividade proppiana. No
entanto, um comentário de Greimas, no verbete “Esquema nar-
rativo” do Dicionário de semiótica, permaneceu por muito tempo
inexplorado:

“O esquema narrativo constitui como que um quadro formal em


que vem se inscrever o ‘sentido da vida’.”3

Tal referência ao “sentido da vida” está aqui duplamente


modalizada e distanciada, como menção (com as aspas) e como
aproximação (com o “como que”); compreende-se essa distân-
cia, quando, no mesmo verbete, se afirma que:

“[...] a semiótica francesa pretendeu ver aí, desde o início, um mode-


lo, perfectível, capaz de servir de ponto de partida para a compreen-
são dos princípios de organização de todos os discursos narrati-
vos.”4

Claro que essa pretensão à universalidade era pouco com-


patível com as variações culturais previsíveis do “sentido da vida”,
aqui concebido a partir da tripartição das provas respectivamen-

3
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica, op. cit., p. 298.
4
Op. cit., p. 297 (grifo nosso).

205
FORMA DE VIDA

te qualificante, decisiva e glorificante. Já na época, entretanto, o


modelo proppiano aparecia como esquematização de uma ideo-
logia do fazer humano – na verdade, própria do mundo indo-
europeu, o qual atribui ao fazer uma dimensão causativa e
“poiética” – assentada na busca, a tal ponto que, por exemplo,
dentre as narrativas do medo, só as organizadas como busca
pareciam ter “algum” sentido; as narrativas organizadas como
simples fuga não o tinham5 .
A interrogação própria às formas de vida deve agora ser
precisada: qual o conteúdo categorial investido numa forma
de vida reconhecida? Esse conteúdo é esquemático, se se con-
vencionar definir o esquema pela seleção, discursivização e
valorização de um dos regimes de uma categoria reconhecida
como dominante em dado discurso. Tais regimes podem cor-
responder, por exemplo, às dêixis positiva e negativa do qua-
drado semiótico, mas, como nem todas as “categorias” são
construídas de acordo com esse modelo, essa equivalência só
pode ser parcial.
Um exemplo tomado a A. Camus vai nos permitir esclare-
cer o ponto. O autor de L’homme révolté descreve o “romanesco”
como busca de uma forma, dado que “a vida [...] não tem esti-
lo”, e apresenta assim o percurso narrativo das personagens
romanescas:

“Os heróis têm nossa linguagem, nossas fraquezas, nossas paixões.


Seu universo não é nem mais belo, nem mais edificante que o nos-
so. Mas eles, ao menos, correm até o fim de seu destino; aliás, não
há nunca heróis tão comoventes quanto aqueles que vão até a
extremidade de sua paixão, Kirilov e Stavroguine, Mme Graslin,
Julien Sorel ou o príncipe de Clèves. É aí que perdemos sua medi-
da, pois eles concluem aquilo que não perfazemos nunca.”6

5
Sobre a singularidade do modelo proppiano, ver ZILBERBERG, C. “Le schéma narratif
à l’épreuve”, Protée, 21,1, hiver 1993.
6
CAMUS, A. L’homme révolté. Paris, Gallimard, 1954, p. 325.

206
F ORMA DE VIDA

A categoria selecionada por Camus, a aspectualidade, é a do


processo discursivo, mais que a do programa narrativo definido
pela liquidação de uma falta; considera-se que essa categoria ad-
mite, como regimes ou subcategorias, o perfectivo e o imperfecti-
vo. Isto posto, o romance, de acordo com Camus, discursiviza a
superioridade progressivamente afirmada do acabado sobre o
inacabado. As observações de Camus ganham todo seu sentido
se lembrarmos que são numerosos os universos semióticos e for-
mas de vida que, ao contrário, privilegiam o incoativo, como por
exemplo a poesia de Eluard.
O conceito de forma de vida pertence ao paradigma das
esquematizações semióticas. Mas ele teria, em princípio, a pecu-
liaridade de integrar as esquematizações atualmente conhecidas:
salvo melhor juízo, um esquema discursivo, um esquema narrati-
vo, um esquema modal, um esquema tensivo e até mesmo, caso
acompanhemos J. Petitot neste ponto, um esquema relativo às
estruturas elementares da significação, em sua interpretação
topológica. Porém a particularidade dos esquemas – a de encon-
trar-se dispostos entre o sistema, que sustentam, e o uso, do qual
se alimentam – incita a pô-los em relação com a problemática
dos modos de existência.
Seja, apenas para a comodidade da explanação, uma cate-
goria C, munida de seus regimes C’ e C’’; cada um desses regi-
mes, por sua vez, admite usos, ou seja, um desdobramento. Para
C’: c’1, c’2, c’3...; para C’’: c’’1, c’’2, c’’3... A discursivização da forma
de vida solidária de um regime afeta cada um dos modos de exis-
tência. Suponhamos aqui que a forma de vida examinada se ligue
ao regime C’; nesse caso:
(a) A atualização de C’ em discurso vem acompanhada, em primei-
ro lugar, pela convocação das diferentes estruturas associadas,
pertencentes ao sistema e passíveis de se manifestarem em dis-
curso (seria o caso do quadrado semiótico ou do esquema
actancial); em segundo lugar, pela realização dos usos correspon-

207
FORMA DE VIDA

dentes a C’: c’1, c’2, c’3; quer um certo uso do quadrado semiótico,
por exemplo a prevalência do termo neutro ou complexo sobre
os termos simples, quer ainda uma certa disposição do esquema
actancial; os diversos patamares do percurso gerativo, assim
convocados, constituem formas receptoras para tais usos
canônicos, de que o esquema narrativo continua a ser, hoje em
dia, o melhor espécime.
(b) Mas a atualização de C’ é solidária de uma virtualização, par-
cial ou total, do outro regime C’’ e de uma potencialização de
seus usos prováveis, c’’1, c’’2, c’’3. Semelhante potencialização do
uso adota não raro as vias da pejoração, da ironia, da derrisão,
do burlesco etc.: os conteúdos c’’1, c’’2, c’’3 são depreciados e rele-
gados à categoria de estereótipos insignificantes.
Voltando ao exemplo tomado a Camus, diremos que a for-
ma de vida, subjacente à subclasse dos romances focalizada, por
um lado atualiza a perfectividade e virtualiza a imperfectividade e,
por outro, realiza os usos associados, ao mesmo tempo em que
potencializa os do outro regime, para depreciá-los; disso dá teste-
munho a disjunção enfática: “Mas eles, ao menos...”. E, para pro-
longar esse exemplo, o suplemento modal inerente à perfectivi-
dade é, no mundo helênico, atribuído a uma vontade divina; num
universo laicizado, à teimosia estúpida aos olhos de uns, e à per-
severança meritória aos olhos de outros. Em tais condições, as
formas de vida exploram, por um lado, as latitudes oferecidas
pela alternância dos regimes “no interior” de uma mesma cate-
goria e, por outro, as possibilidades de expansão ou condensação,
de complicação ou depuração dos usos previstos para o regime
que prevaleceu. Simplificando, a práxis enunciativa seria solicita-
da aqui para responder a duas perguntas prioritárias: (i) a alter-
nância dos regimes permitiria responder à questão: a seleção ine-
rente à convocação opera sobre o quê? (ii) a marcha do discurso,
por seu turno, responderia à questão: o que pode ser associado ao
regime selecionado? É fácil reconhecer, no primeiro procedimento,

208
F ORMA DE VIDA

a somação abordada em Semiótica das paixões e, no segundo, a


resolução (cf. o capítulo “Esquema”). A singularidade própria às
formas de vida, e que lhes confere valor, aparece a partir de então
como o sincretismo entre a sensibilização de uma dada “região”
do sistema (o regime) e de uma extensão variável do processo
que a manifesta (seus usos). As latitudes paradigmáticas (regi-
mes) e sintagmáticas (usos), que são propriedades da semiose,
tornam-se assim, para a práxis enunciativa, possibilidades efeti-
vas de intervenção.
As formas de vida apresentam a peculiaridade de integrar e
ajustar os esquemas particulares que já reconhecemos. A
pregnância de uma forma de vida para aquele que a promove
poderia também ser formulada como uma implicação do tipo: se
C, então c1, c2, c3. Assim, o esquema narrativo canônico, privado
de sua exclusividade, põe a significar juntos: um esquema actancial
a serviço do destinador, dispositivos modais orientados pela aqui-
sição da modalidade do poder-fazer, um esquema discursivo ex-
tensível das provas, modos de existência do sujeito dominados
pela “paciência” e a confrontação, no mínimo, de dois programas
narrativos concorrentes. Uma forma de vida constituiria, pois, um
“esquema de esquemas” responsável pela coerência e significa-
ção de todos os esquemas imanentes a um conjunto discursivo
vinculado a uma enunciação.
Enfim, na conceptualização da esquematização, a forma de
vida acrescenta um ponto de vista diferente e complementar. Já
não se trata somente de identificar uma forma, estrutura ou dis-
positivo na imanência discursiva, e sim de abordar-lhes o efeito
estético. Quer do ponto de vista do emissor, quer do ponto de
vista do receptor, construir ou interpretar uma forma de vida é
focalizar, para o emissor, ou apreender, para o receptor, a estética,
ou seja, o plano de expressão adequado de um sistema de valo-
res, tornado sensível graças à disposição coerente das esquema-
tizações por uma enunciação.

209
FORMA DE VIDA

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Do ponto de vista enunciativo, a noção de forma de vida


permitiria responder à seguinte questão: o que é que garante a
conservação da categoria, em primeiro lugar, e em seguida do
regime, através dos outros níveis em que a primeira seleção re-
percute? Voltando ao exemplo tomado a Camus, em que é que
se funda a ascendência da perfectividade sobre os outros níveis?
Por meio de quais modalidades a perfectividade afeta os outros
níveis do percurso gerativo ou da estratificação?
Tendo obtido das definições paradigmáticas indicações
relativas à morfologia geral das formas de vida, resta-nos exami-
nar-lhes as formas sintáxicas. Na medida em que tais proprieda-
des morfológicas são relativas aos modos de existência, a sintaxe
das formas de vida é levada a encarregar-se das tensões inevitá-
veis surgidas entre os modos de existência, e notadamente das
duas tensões a seguir:
(a) a tensão entre a atualização de C’ e a virtualização de C’’. Para
pensar semioticamente tal confronto, porém, parece indispen-
sável considerar C’ e C’’ como funtivos da função C, função que
chamaremos de totalizante quando C’ e C’’ são julgados compatí-
veis entre si, e partitiva no caso contrário. O verdadeiro dilema
se converte no seguinte: C’ e C’’ seriam conjugáveis ou exclusi-
vos? E, para cada opção: em que medida?
(b) a tensão entre a realização dos derivados c’1, c’2, c’3  e a po-
tencialização correlativa dos derivados c’’1, c’’2, c’’3. Assim, seguindo
o exemplo emprestado a Camus, a relação pertinente entre
imperfectividade e perfectividade é de tipo transitivo: segundo
Camus, a imperfectividade reclama, espera, conta com a
perfectividade; segundo outros, o valor, para o sujeito, reside no
inacabamento, logo, numa intransitividade. Mas tal descrição
aborda apenas “metade” da problemática: a imperfectividade é,
quase unanimemente, avaliada como dinâmica, e a perfectivida-
de, como estática, de sorte que a atualização da perfectividade

210
F ORMA DE VIDA

e do estatismo seria correlativa da virtualização da “dinâmica”.


Na mesma ordem de idéias, porém ainda com inversão das
valências, poderíamos citar a superioridade, aos olhos de
Baudelaire, da obra “feita” sobre a obra “acabada”.
Essa dialética conflui com a problemática das triagens e das
misturas, evocada por Fr. Bastide acerca do “tratamento da maté-
ria”. Do ponto de vista descritivo, procede por projeção e distri-
buição de faltas e, literalmente, de restos; quando a triagem é
adotada como ponto de vista pertinente, o “todo” é avaliado como
mau, pois que comporta partes julgadas impuras – ou seja, res-
tos a serem extraídos ou eliminados; o bom tratamento é então
“defectivo”. Ao contrário, quando prevalece a mistura, a direção
se inverte: o “todo” é avaliado como bom se for completo, e mau,
se apresentar faltas; desta vez, o bom tratamento é “aditivo”.
Consideradas como operações axiológicas, isto é, concebidas para
elaborar objetos de valor, a triagem o faz por eliminação, e a
mistura, por adjunção.
Assim, o “belo gesto”7 que o cavalheiro pensa cumprir ao
jogar sua luva na face da donzela Cunegunda prende-se inega-
velmente a um tratamento “partitivo”, numa forma de vida
dirigida pela triagem, cuja manifestante discursiva é uma práxis,
estrondosa, de ruptura. E, caso suspendamos as variáveis histó-
ricas contingentes, ou seja, os investimentos temáticos, esse
orgulhoso cavalheiro estará de fato irmanado em pensamento
com o dândi baudelairiano:

“O homem rico, ocioso, e que, mesmo blasé, não tem outra ocupação
que a de correr no encalço da felicidade; o homem criado no luxo e
acostumado, desde a juventude, à obediência dos outros homens,
aquele, enfim, que não tem outra profissão a não ser a elegância,
gozará sempre, em todos os tempos, de uma fisionomia distinta,
completamente à parte.”8

7
Cf. GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. “Le beau geste”, R.S.S.I., op. cit.
8
BAUDELAIRE, Ch. “Le peintre de la vie moderne”, in Œuvres complètes, op. cit., p. 906-7.

211
FORMA DE VIDA

Na medida em que a intensidade atravessa de um lado a


outro o campo semiótico, podemos discriminar os operadores
mencionados, projetando a diferença de intensidade como crité-
rio:

Totalização Partição
(mistura) (triagem)
Tônico fusão distinção
Átono adição subtração

As formas de vida estabilizadas seriam portanto oponíveis


entre si, em primeiro lugar conforme fossem, do ponto de vista
da direção, totalizantes e acumulativas, ou partitivas e eletivas;
em seguida, do ponto de vista do acento, estrondosas ou discre-
tas. Assim, se o cavalheiro e o dândi focalizam ambos a partição
– a “distinção”, de acordo com Baudelaire –, o primeiro acres-
centa a modalidade do alarde público, ao passo que o dândi se
faz notar, de certo modo, “discretamente”:

“Assim, aos seus olhos, ávidos, antes de mais nada, de distinção, a


perfeição do vestuário consiste numa simplicidade absoluta, que
é, com efeito, a melhor maneira de se distinguir.”9

O primeiro deles busca o alarde que o segundo evita, mas


as denominações nesse caso são embaraçantes, pois a “distin-
ção” de um é, do ponto de vista dos regimes modais, o antônimo
da do outro: o cavalheiro se “distingue” dando mostras disso
(acentua-se portanto seu querer fazer), enquanto o dândi se es-
força por dissimulá-lo (deslocando-se então o acento para seu
saber fazer). Necessitaríamos aqui de um terceiro patamar, de tipo
modal, que sobredeterminaria as operações axiológicas “tônicas”
9
Op. cit., p. 907.

212
F ORMA DE VIDA

ou “átonas”. Dessa maneira, os regimes intersubjetivos do fazer


saber evidenciados por E. Landowski vêm aqui sobrepor-se ao
alarde de um regime de triagem ou mistura10.
Assim, do ponto de vista sintagmático, uma forma de vida
reconhecer-se-ia (i) pela presença de uma seleção saliente,
detectável principalmente como ruptura por relação à norma ou
ao uso mais freqüente, como no caso do “belo gesto” do cava-
lheiro; (ii) por um conjunto de “comutações em cadeia” daquilo
que chamamos de usos ou derivados, comutações que promo-
vem a repercussão e conservação de tal seleção em todas as
configurações heterogêneas atravessadas. No âmbito dessas
configurações, das estratégias narrativas e dos esquemas
interativos e passionais, uma forma de vida obedece, de fato,
aos mesmos critérios que a isotopia no âmbito dos semas e
sememas.
De outro ponto de vista, na medida em que essas diversas
configurações pertencem necessariamente a diferentes níveis de
abstração, uma forma de vida poderia ser considerada como a
concatenação, a partir das triagens e misturas, das seleções ope-
radas nos diferentes níveis do percurso gerativo. Em outros ter-
mos, há forma de vida a partir do momento em que a práxis
enunciativa apareça como intencional, esquematizável e estéti-
ca, ou seja, preocupada com um plano da expressão que lhe seja
peculiar. De fato, é papel da práxis enunciativa produzir, por tipi-
ficação e esquematização, formas sensíveis imediatamente reco-
nhecíveis, os “praxemas” (cf. o capítulo “Práxis enunciativa”), bem
como garantir a coerência de um conjunto de “praxemas” dentro
de uma cultura histórica e ideologicamente determinada. Se uma
intencionalidade do uso é concebível, como sugere Wittgenstein,
só pode ser no âmbito de uma práxis orientada, a afetar de ma-
neira coerente um conjunto de “praxemas”.

10
LANDOWSKI, E. A sociedade refletida. São Paulo, Educ/Pontes, 1992, p. 85-101.

213
FORMA DE VIDA

3 CONFRONTAÇÕES

Do ponto de vista semiótico, uma forma de vida é ao mes-


mo tempo questão de coerência e de congruência.
O “sentido da vida” é, antes de mais nada, efeito de coerên-
cia de um percurso em que se revela a posteriori um projeto
axiológico. Vale dizer, o princípio da esquematização se funda,
em semiótica, na possibilidade de tornar sensível a coerência de
uma forma de vida graças à construção, pelo uso e pelas cultu-
ras, de dispositivos canônicos imediatamente reconhecíveis –
no decorrer de uma estesia, por exemplo. É nesse sentido que
se poderia dizer que o esquema narrativo é “belo”: como coe-
rência, como manifestação esquematizada (logo, sensível), a
mostrar uma “imagem” do sentido. Por conseguinte, a coerên-
cia é antes sintagmática, e assegura a identidade do percurso.
A congruência diz respeito à concatenação das seleções ope-
radas em cada nível, ou seja, dos regimes. Com efeito, uma forma
de vida pode ser caracterizada por um tipo de equilíbrio ou
desequilíbrio interno à função semiótica, por um tipo de media-
ção proprioceptiva, por papéis modais, actanciais e passionais,
por regimes de objeto... A concatenação paradigmática de tais di-
reções proporciona um efeito de individuação do actante coletivo,
assim como do actante singular. O conjunto, cujo efeito é a
congruência, assenta, como já sugerimos, num princípio de “co-
mutação em cadeia”. Assim, em muitos discursos, o aspecto
perfectivo é não raro associado à obrigação, e o imperfectivo,
como valor, “abandonado” à iniciativa individual: não é necessário,
por força, tradicionalmente, terminar o que se começou?
Nessas condições, a seleção de um certo regime, operada
num nível qualquer, acarreta uma cadeia de seleções congruentes
nos demais níveis. O conjunto aparecerá depois como coerente,
contanto que uma forma de vida identificável assuma a intencio-
nalidade dessa “comutação em cadeia”. Desse ponto de vista, a

214
F ORMA DE VIDA

congruência das seleções e a coerência global da deformação as-


sim operada tornam-se manifestação de um projeto de vida
subjacente.
Além disso, nessa comutação em cadeia, elas modificam a
forma do campo de presença, uma vez que afetam obrigatoria-
mente as estesias do sujeito sensível. Consideraremos, portan-
to, os seguintes dados (cf. o capítulo “Presença”): (i) a organiza-
ção do campo de presença do sujeito a partir de um centro dêitico;
(ii) a identificação dos limites de tal campo de presença com os
horizontes de aparecimento e desaparecimento das figuras per-
cebidas; (iii) a extensão do campo, medida pela distância entre os
horizontes e o centro dêitico, isto é, sua profundidade; (iv) enfim,
a mobilidade dos horizontes.
Para sermos breves, examinemos apenas o caso da profun-
didade. Esta pode ser salientada por uma forma de vida que con-
cederá sua atenção, isto é, seu acento, à extensão do campo de
presença, como no caso da poesia baudelairiana:

“L’opium agrandit ce qui n’a pas de bornes,


Allonge l’illimité,
Approfondit le temps, creuse la volupté,
Et de plaisirs noirs et mornes
Remplit l’âme au-delà de sa capacité.”11

As flutuações do campo de presença dizem respeito: (i) à


alternância entre o foco, que abre o campo, e a apreensão, que o
fecha; (ii) à alternância entre a ativação do sujeito (é ele que foca-
liza ou apreende) e sua passivação (ele é, então, focalizado ou
apreendido por seu meio). As variações da profundidade do cam-

11
BAUDELAIRE, C. op. cit., p. 122. “O ópio acrescenta ao que nunca terá contornos,/
Todo o ilimitado amplia,/Sabe o tempo sondar e aprofunda a alegria,/De negros
prazeres mornos/Enche a alma muito além do que ela conteria.”. Tradução de Jamil
Almansur Haddad. São Paulo, Difel, 1958, p. 176.

215
FORMA DE VIDA

po, que pode ser ampla ou restrita, são efeitos da sintaxe e do


tempo relativo das apreensões e dos focos; por exemplo, em rela-
ção a um foco que ao desdobrar-se provoca a extensão do campo,
se uma apreensão intervier rapidamente ou quiçá prematuramen-
te, a profundidade será mínima; caso esta intervenha lenta e tar-
diamente, a profundidade será maior.
As intersecções formais dessas variáveis entre si caracteri-
zam tipos estésicos, ou seja, morfologias do campo de presença
que determinam e diversificam o fazer perceptivo, morfologias
que servirão de plano da expressão para determinadas formas
de vida reconhecíveis. A intersecção das variáveis em foco resulta
nas seguintes formas de vida:

ATIVAÇÃO PASSIVAÇÃO
Foco Sujeito Sujeito
focalizante focalizado
a busca a fuga
Apreensão Sujeito Sujeito
apreendedor apreendido
a dominação a alienação

Gostaríamos de acrescentar um comentário sucinto de cada


uma de tais posições:
(a) Com a busca, um sujeito focaliza e abre o campo, para com
este englobar um valor que pressente como externo.
(b) Com a fuga, um sujeito que é alvo de um foco, num campo
aberto e em expansão, tenta escapar disso.
(c) Com a dominação, um sujeito apreende o mundo, garante seu
mando e faz valer sua eficiência, seu poder ou seu “encanto” so-
bre o campo que ele fecha.

216
F ORMA DE VIDA

(d) Com a alienação, é o mundo que se apodera do sujeito, absor-


ve-o e encerra-o; ou, mais concretamente, “seqüestra-o”.
Semelhante alternância de regimes permite compreender
por que um comportamento que aparece somente como negati-
vo sob um regime, pode ser, de fato, positivo sob o outro regime.
Assim, Greimas concedeu alto preço, em seu estudo sobre o “belo
gesto”12 , ao caráter “criador” da negação: o “belo gesto” do ca-
valheiro recusa o sistema de trocas que a dama propõe e abre
uma pluralidade de possíveis, mas ao mesmo tempo oferece o
espetáculo de uma forma de vida outra que a que lhe querem
impor, forma de vida em que os perigos corridos13 não admitem
remuneração, em que a elegância reside na própria intransitivi-
dade do processo. Assim fazendo, ele afirma portanto, através
dessa comutação de regime, um foco puro e intransitivo.
Ademais, em razão da dinâmica própria à configuração, todo
o percurso pode ser descrito como uma sucessão de impulsões (a
busca e a fuga) e paradas (a dominação e a alienação), as quais
caracterizam diretamente a “respiração” e a prosódia da profun-
didade perceptiva e, indiretamente, os diversos estilos narrativos
associados a tais formas de vida (cf. o capítulo “Presença”, § Defi-
nições sintagmáticas).
Admitindo que cada “posição” já é em si uma tensão entre
o aberto e o fechado, e, sintaxicamente falando, entre a exten-
são e a retenção, teríamos então de compreender essa sintaxe
como informadora de um fluxo subjacente em concordância com
o princípio da modulação da profundidade, sugerido acima. Por
exemplo, se a alienação-seqüestro interromper bem cedo a aber-
tura inerente à busca, ela a transformará em privatização: o sujei-
to, ainda encerrado na área estreita de seu domínio imediato,

12
Ver nota 7.
13
O cavalheiro desceu à fossa dos leões para buscar uma luva que a dama deixara cair lá,
e em seguida recusa as tentativas de aproximação que esta lhe faz à guisa de agradeci-
mento.

217
FORMA DE VIDA

tenta circunscrever aí o valor que focalizava. A exploração de tais


variedades está apenas começando.
Mas sobretudo uma forma de vida definir-se-ia por seu grau
de complexidade: a depender de uma única configuração, ela se-
ria simples; complexa, caso subsumisse no mínimo duas configu-
rações. Intuitivamente, uma forma como a avareza parece pôr em
jogo ao mesmo tempo a busca e a dominação. As formas de vida
selecionadas nessa rede seriam, assim, absolutas quando exclusi-
vas, e integradas quando associadas a pelo menos uma outra
forma de vida. Embora as denominações sejam sempre perfectíveis,
a corrida desgovernada conjugaria a busca e a fuga; assim, a liber-
tinagem, tal como a apresenta Molière em Don Juan, de maneira
incompreensível para os demais protagonistas da peça,
Esganarelo, Don Luís, Elvira e seus irmãos, também procede da
“corrida desgovernada”, já que, para Don Juan, seduzir e desfa-
zer-se imediatamente da mulher seduzida são indissociáveis. A
“evasiva”, por sua vez, conjugaria a fuga e uma forma abrandada
de alienação; os programas que recorrem à “armadilha”, à “astú-
cia”, operariam ao mesmo tempo por dominação num campo que
o sujeito procura manter sob seu controle, e por alienação, já que
o fechamento para o qual ele contribuiu converte-se em sua pró-
pria prisão.
Também as combinações de formas, portanto, que su-
pomos simples, engendram formas de vida reconhecíveis
como “estilos de comportamento”, individuais ou coletivos,
e como representações estabilizadas de “filosofias do cotidi-
ano”.
As formas de vida estão também em conexão imediata com
os efeitos de sentido passionais. Como as paixões, de fato, elas
comportam papéis e arranjos modais estereotipados, a que es-
tão associadas, além de axiologias, formas aspectuais e tensivas.
Diferenciam-se delas por seu alcance: as paixões infletem apenas
a dimensão tímica dos discursos, enquanto as formas de vida

218
F ORMA DE VIDA

afetam todas as suas componentes. Poderíamos todavia conside-


rar, como hipótese de trabalho, que uma forma de vida se organi-
za em torno de uma paixão prototípica, como, por exemplo, a
busca a partir da espera.
Em vez de nos indagarmos, num contestável procedimen-
to apriorístico, quais são as paixões imanentes, partiremos do
par formado pela apreensão e foco, que consideraremos, em ra-
zão das correlações que associam entre si as grandezas, como
valências. A variação de intensidade/extensidade, tanto para o
foco quanto para a apreensão, engendra formas tônicas e formas
átonas; e a correlação entre tais variações pode ser conversa ou
inversa.
Quando a apreensão e o foco evoluem de maneira conver-
sa, a zona átona comum corresponderia ao tédio, “fruto da som-
bria incuriosidade”, segundo Baudelaire, e a zona tônica, à felici-
dade. Quando a apreensão e o foco evoluem de maneira inversa,
se o foco for tônico, admitiremos estar em presença da espera;
caso prevaleça a apreensão, estaremos diante, grosso modo, da
nostalgia. Ainda para Baudelaire:

“Je pense à la négresse, amaigrie et phtisique,


Piétinant dans la boue, et cherchant, l’oeil hagard,
Les cocotiers absents de la superbe Afrique
Derrière la muraille immense du brouillard”14

Esse sistema das paixões elementares, subjacentes às for-


mas de vida, pode ser representado assim:

14
Op. cit., p. 159. [N. dos T.]: “Vou pensando na negra a fanar cor de terra / Busca de pés
na lama e de olhar tão bravio/Ausentes coqueirais que sua África encerra / Atrás do
muro imenso, o da bruma e do frio”; In: As flores do mal, op. cit., p. 245.

219
FORMA DE VIDA

+ + NOSTALGIA

tônico FELICIDADE tônico

APREENSÃO APREENSÃO

TÉDIO
átono
ESPERA
átono
– –
– átono tônico + – átono tônico +
FOCO FOCO

A descrição dessas configurações relança o problema, sem-


pre delicado, da utilização dos lexemas da língua natural na
metalinguagem. Admitiremos que a felicidade, o tédio, a espe-
ra e a nostalgia são aqui concebidos como morfologias singulares
descritíveis de acordo com: (i) o tipo de correlação, conversa ou
inversa; (ii) o estatuto do actante, focalizante ou focalizado,
apreendente ou apreendido; (iii) a relação com o campo de
presença; (iv) a distribuição taxionômica das asserções e nega-
ções.
Até aqui, consideramos o sistema das paixões elementares
subjacentes às formas de vida. Abordemos agora as mesmas pai-
xões do ponto de vista do processo: o modelo que então se im-
põe é o mesmo que articulava, no capítulo “Presença”, a catego-
ria presença/ausência, a saber, o das modalizações existenciais.
O conjunto das quatro posições forma assim um quadrado que
pode ser percorrido sob o controle dos modos de existência:

F e licid a d e T é d io
(P le n i tu d e (V a c u id ad e
re a l iz a n t e ) vi rtu a li z a n te )

E s p era N o s ta lg ia
(F a lt a (In a n i d ad e
a t u a li z a n te ) p o t e n c ia l iz a n te )

220
F ORMA DE VIDA

Obtemos, dessa maneira, uma dinâmica dos estados de alma


que subtendem as formas de vida, capaz de analisar sua tonalida-
de própria. Tal dinâmica se encarrega de reconhecer os percursos
possíveis, ou seja, os macrossintagmas canônicos: passagens pro-
gressivas entre a felicidade e a nostalgia, ou entre a espera e o
tédio, unicamente pela variação de intensidade do foco; passa-
gens progressivas, também, entre a espera e a felicidade, ou en-
tre a nostalgia e o tédio, apenas pela variação de intensidade da
apreensão; passagens catastróficas enfim, entre a espera e a nos-
talgia, ou entre a felicidade e o tédio, em virtude da inversão das
correlações entre as valências do foco e da apreensão. Observe-
mos, de passagem, que o tempo, suspenso na abordagem siste-
mática, recobra sua prerrogativa na abordagem dinâmica.
Essa observação nos convida a examinar de mais perto a
relação que uma forma de vida mantém com sua prosódia. As con-
siderações sobre a “base perceptiva” das formas de vida ressalta-
ram inevitavelmente a espacialidade. Em conformidade com as
hipóteses propostas no capítulo sobre a presença, a estrutura re-
gente das formas de vida parece ser a seguinte:

próximo ⇔ distante

Cada uma dessas figuras é dependente de um operador: o


distante parece depender da abertura, dado que todas as for-
mas de vida tidas por extensivas comportam o traço /aberto/, na
exata medida em que as formas de vida consideradas retensivas
resultam no traço /fechado/. Admitiremos portanto que a aber-
tura dos horizontes do campo de presença é induzida no senti-
do [próximo → distante], e o fechamento, no sentido [distante
→ próximo].
No que diz respeito ao tempo e à temporalidade, admitire-
mos: (i) que o tempo apresenta como principal polaridade a ten-
são entre o vivo e o lento, que justifica, num sentido, a aceleração, e,

221
FORMA DE VIDA

no outro, a desaceleração; (ii) que a temporalidade está submetida à


tensão entre o efêmero e o durável, produzindo numa direção a
“perenização” e, na outra, a “evanescência”. O conjunto de tais ten-
sões é engendrado pela tensão geral própria à tonicidade perceptiva:

Tônico Átono
Espacialidade próximo distante
Temporalidade efêmero durável
Tempo vivo lento

A partir disso, as operações identificadas acerca de cada


uma das três categorias são também homologáveis:

[Tônico → Átono] [Átono → Tônico]


Espacialidade abertura fechamento
Temporalidade perenização evanescência
Tempo desaceleração aceleração

A escolha deste ou daquele regime, em cada uma das três


categorias indicadas, proporciona outras variedades de formas de
vida. Assim é que a forma de vida descrita por Tanizaki no Elogio da
sombra se encontra sob a influência da desaceleração. Tudo concorre
para isso: uma arquitetura em que a profundidade aumenta a escuri-
dão (abertura) e atenua os perceptos; texturas materiais cujas cama-
das aprisionam o tempo (perenização) e desaceleram ainda mais a
apropriação perceptiva; a recusa, por efêmeros, do alarde, do nítido
e do brilhante, em proveito do fosco, que se impregna de uma luz
ínfima porém eterna, aprisionada dentro da matéria15 .
Já em Céline, a abjeção projetada sobre o mundo natural, que
o transforma em mundo potencialmente em decomposição, ressalta
15
Cf. FONTANILLE, J. “Le ralentissement et le rêve”, op. cit.

222
F ORMA DE VIDA

a evanescência, de tal sorte que, por exemplo, o único esquema nar-


rativo detectável na Viagem ao fim da noite é o de uma degradação
esperada, que procede, não por inversão de conteúdo, e sim como a
realização mais ou menos rápida de uma dessemantização poten-
cial, inerente aos estados de coisas. Conforme as homologações pro-
postas acima, a “evanescência” é obtida por aceleração de uma de-
composição até então mantida em suspenso16 .
Uma vez que as formas de vida podem ser consideradas
tanto em condensação quanto em expansão, podemos nos per-
guntar se algumas delas não seriam isomorfas de certas figuras
de retórica. Assim, o belo gesto aparenta ser de fato o homólogo
do anacoluto, na concepção extensiva proposta por R. Barthes:

“[...] o anacoluto [...] é ao mesmo tempo quebra da construção e


irrupção de um sentido novo.”17

Em ambas as morfologias, o surgimento de um foco vale


como abreviação de uma apreensão. Da mesma maneira, como a
busca da justeza, estudada por D. Bertrand, evitaria a aproxima-
ção com a lítotes e a síncope18 ? Tal aproximação entre as figuras
de estilo e as formas de vida parece, à primeira vista, muito promis-
sora. De fato, assim como as formas de vida se definem como
arranjos congruentes e coerentes de esquemas semióticos – a
que empresta uma certa estética a esquematização global a
consolidá-los –, poder-se-ia dizer que o estilo é (i) uma correlação
de correlações, capaz de tornar sensível a coerência de um con-
junto de “procedimentos”; e (ii) uma motivação icônica e estética
da intencionalidade subjacente a esse conjunto de procedimen-
tos.

16
Cf. FONTANILLE, J. “Le schéma de la peur: phobie, angoisse et abjection dans Voyage au
bout de la nuit de L. F. Céline”, Kodicas, 16, 1/2. Tübingen, Gunter Narr, 1994.
17
BARTHES, R. “La voyageuse de nuit”, in Chateaubriand, La vie de Rancé. Paris, 10/18,
1965, p. 15.
18
BERTRAND, D. “La justesse”, R.S.S.I., 13, 1-2.

223
FORMA DE VIDA

O estilo obedece, por conseguinte, às mesmas regras que


uma forma de vida, um mais como estilo da expressão, outro mais
como “estilo do conteúdo”, digamos. Mas ele principalmente está
regulado da mesma maneira pela práxis enunciativa: assim como
as formas de vida, os estilos nascem, surpreendem, caracterizam
por sua recorrência um texto, uma obra, uma escola ou época, em
seguida cristalizam-se em figuras, e finalmente morrem, confun-
dindo-se com as formas mais gastas da norma.
Analogamente à sociologia, que tenta apresentar, ao lado
dos “papéis sociais”, uma tipologia dos “estilos de vida”, a semiótica
se esforça por explorar, ao lado dos “papéis semióticos”, as “for-
mas de vida”. Uma e outra encontram-se confrontadas à seguinte
dificuldade: a diversidade dos níveis de pertinência, em que estão
definidos os “papéis”, obriga a indagar-se, por um lado sobre sua
coexistência em dado ponto do percurso de um sujeito (a
congruência), e, por outro, sobre sua compatibilidade no percurso
do mesmo sujeito (a coerência). No caso da sociologia, tal diversi-
dade está representada, por exemplo, pela multiplicidade das “re-
des” a que um mesmo sujeito pode pertencer em um ou vários
momentos de sua existência; ou ainda, pela diversidade dos sis-
temas de legitimação aos quais ele pode se referir, ou, segundo L.
Boltanski, das diferentes “cidades” às quais pertence19 . No caso
da semiótica, essa diversidade é a dos papéis actanciais, modais,
temáticos, passionais e figurativos que se encontram sob a iden-
tidade dos mesmos atores. A noção de “estilo de vida” para uns,
e de “forma de vida” para outros, permite pôr a significar em
conjunto esses diferentes papéis, numa perspectiva operatória. A
questão pode ser reformulada em termos de “identidade”, como
se propõe no capítulo “Práxis enunciativa”.
Para o sociólogo, os “estilos de vida” permitem determinar,
através do conjunto dos papéis adotados por uma classe de indi-
19
BOLTANSKI, L. “Agir et vivre en commun”, entretien avec L. Boltanski, Sciences humaines,
5, mai-juin 1994, p. 13-5.

224
F ORMA DE VIDA

víduos, os princípios de escolha e decisão em matéria de consu-


mo, voto, lazeres etc., que constituem a homogeneidade do gru-
po. Para o semioticista, as “formas de vida” permitem apreender
a globalidade de uma prática significante ligada às escolhas
axiológicas próprias a um indivíduo ou a uma cultura inteira.
Terminam aí, contudo, as semelhanças, pois, para o sociólogo, a
preocupação axiológica não resultará nem numa concatenação
congruente de todos os níveis de pertinência da descrição socio-
lógica, nem no cálculo das diversas posições atribuíveis no siste-
ma. O “estilo de vida” pode, é verdade, ser eventualmente identi-
ficado pelo sociólogo a uma “filosofia do cotidiano”, mas sem a
dimensão antropológica e sem a perspectiva de uma estética da
ética, que comportam por sua vez as formas de vida do semioti-
cista.
Se admitirmos, agora de um ponto de vista mais geral, que
as “formas de vida” mobilizam as diferentes categorias de figuras
até aqui evocadas – a saber, especialmente, a escolha de um cen-
tro no interior de um campo de presença, de direções “centrípetas”
ou “centrífugas”, a transposição da extensão do campo assim
desdobrado em valor, e o reconhecimento de sua mobilidade –,
como não reconhecer que, no texto abaixo, E. Cassirer resume
novamente as pré-condições a partir das quais uma determinada
forma de vida formula, ao mesmo tempo contra e como todas as
demais, um ”sentido da vida”:

“A construção do mundo perceptivo tem por condição a organiza-


ção interna do conjunto dos fenômenos sensíveis, em outras pala-
vras, a criação de certos centros aos quais nos referimos, e a partir
dos quais orientamos e dirigimos, de certo modo, tal conjunto.
Pode-se seguir a formação de tais centros em três grandes dire-
ções distintas: ela é requerida para a ordenação dos fenômenos,
tanto do ponto de vista da «coisa» e da «propriedade», quanto do
ponto de vista da contigüidade espacial e da sucessão temporal. Ao
se realizarem e instaurarem tais ordens, trata-se sempre de inter-

225
FORMA DE VIDA

romper, de uma maneira ou de outra, o fluxo da série uniforme dos


fenômenos, para isolar certos «pontos privilegiados».”20

Com relação a seu devir, uma forma de vida é uma grande-


za perecível, sensível aos usos, a seu aparecimento e desapareci-
mento. Mas, aparentemente, seu desaparecimento não é com-
pleto: se sua dimensão estética desaparece, permanece contudo
a dimensão ética, imanente à nostalgia que se concretiza, como,
por exemplo, a nostalgia da “grandeza” de um século em que o
libertino e o asceta rivalizavam um com o outro, como no tercei-
ro ato de Don Juan. Quanto à emergência de uma forma de vida,
ela restaura a estética do sentido da vida, a partir de um fundo
informe e no entanto normativo que é a sina cotidiana. É o caso
do absurdo, do belo gesto, do cinismo, da armadilha, que põem
em xeque a fidúcia generalizada em que se assenta a sociabilida-
de, ou da marginalidade, que denuncia a asfixiante gregaridade;
são reconhecidas como formas de vida autênticas apenas por se
apresentarem como a negação estetizada das formas cristaliza-
das sobre cujo fundo se destacam. Uma forma de vida se apre-
senta sempre em discurso como uma coerência nascente eleva-
da contra a incoerência estabelecida.

20
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, tome 3, op. cit., p. 250.

226
MODALIDADE

MODALIDADE

1 RECENSÃO

A RECENSÃO de todas as contribuições para o conhecimento


do fenômeno modal, se tivesse de ser exaustiva e deta-
lhada, ocuparia toda a extensão deste trabalho. Limitar-nos-emos
de um lado a um breve panorama das disciplinas que se ocupa-
ram disso e, de outro, a um apanhado das principais etapas da
elaboração de uma teoria das modalidades em semiótica.
As modalidades são de início objeto da lingüística, que as
define como predicados a sobredeterminar outros predicados.
A abordagem morfossintáxica, que as tratava como “semi-auxi-
liares”, ficou hoje abandonada em grande parte, de um lado,
porque tinha alguma dificuldade em estabelecer a diferença entre
os semi-auxiliares modais e aspectuais e, de outro, porque não
permitia definir claramente as fronteiras da categoria (o que fa-
zer com o “tendre à” ou o “parvenir à”1 em francês, por exem-
plo?). A abordagem contemporânea é antes semântica2 e atri-
bui às modalidades a função de “exprimir a posição do
enunciador por relação ao seu discurso”3 . Essa evolução é cor-
relativa de uma mudança de perspectiva, já que a concepção
morfossintáxica é puramente enunciva (a modalidade deve ser
considerada entre as partes do discurso e entre as funções sin-
táxicas), enquanto a modalização concerne hoje, via de regra, à
lingüística enunciativa.
As modalidades são também tratadas pela lógica, que, im-
possibilitada de decidir o valor de verdade de certas proposições
em termos de verdade e falsidade, escolhe apreendê-las sob o ân-
gulo alético, deôntico, epistêmico etc. A abordagem das modali-

1
[N. dos T.]: “Tender a” e “conseguir, chegar a”.
2
Cf. POTTIER, B. Théorie et analyse en linguistique. Paris, Hachette, 1992, p. 173.
3
POTTIER, B. op. cit., p. 9.

227
MODALIDADE

dades leva, em lógica, a um enfraquecimento e, ao mesmo tempo,


a um refinamento da teoria da referência, visto que aparece então,
entre a proposição e o estado de coisas a que ela se refere, uma
mediação modal diversificada e hierarquizada: é assim que somos
levados, por exemplo, a nos perguntar como as modalidades
aléticas (o necessário e o contingente) podem condicionar as
modalidades epistêmicas (o certo e o plausível). Tal abordagem
abre enfim a porta dos mundos possíveis, para dar conta da di-
versidade dos modos de referência, e também a da subjetividade,
na medida em que essas grandezas que fazem a ligação entre as
proposições e os estados de coisas podem ser compreendidas
como “estados de alma”.
Sob a dupla égide da lingüística e da lógica, a teoria das
modalidades aparece primeiro em semiótica como uma reformu-
lação do esquema narrativo, uma vez que cada etapa do percurso
pode ser caracterizada como a aquisição ou a mobilização de uma
modalidade: querer-fazer e dever-fazer, saber-fazer e poder-fazer.
A generalização da análise modal para o conjunto da predicação
narrativa (a performance se torna o fazer-ser, a manipulação, o
fazer-fazer e a veridicção, o parecer-ser) permitiu uma reformula-
ção global da teoria narrativa e pôs particularmente em evidên-
cia o caráter específico e relativo do esquema narrativo canônico,
o qual se apresenta, daí por diante, apenas como baseado em
uma das seqüências modais possíveis. A generalização da teoria
modal comporta ao mesmo tempo uma dimensão epistemológica
– na medida em que podemos homologar o percurso modal com
um percurso de uma generalidade muito grande, o dos modos de
existência semiótica – e também uma dimensão metodológica,
em virtude de procedimentos como as confrontações (A. J.
Greimas) ou o estabelecimento das dimensões, isotopias e se-
qüências modais (J.-Cl. Coquet) que de um jeito ou de outro pro-
porcionaram os instrumentos de um “método modal”.

228
MODALIDADE

Em seguida, o movimento de generalização tomou várias


direções, das quais quatro são particularmente marcantes.
Para J.-Cl. Coquet4 , o estatuto do discurso como um todo, e
não apenas de sua dimensão narrativa, definido a partir de suas
instâncias enunciantes e dos predicados que as caracterizam, de-
pende da modalização: a tipologia das instâncias enunciantes se
baseia então no número de modalidades implicadas na predicação,
numa série que é hierarquizada e cumulativa (P0, P1: saber ou
poder, P2: saber e poder, P3: com meta-querer ou P4: com dever).
Para Cl. Zilberberg5 , a modalização se estende até o espaço
tensivo, e especialmente nele: partindo da idéia de que o plano
do conteúdo é isomorfo ao plano da expressão, ele explora os
efeitos de uma projeção das categorias emprestadas da fonologia,
por exemplo, tensão/relaxamento ou difuso/compacto, nessas gran-
des dimensões do conteúdo que são o actante, a junção, o tem-
po, o espaço, o cognitivo etc. As modalizações tomam então o
aspecto de modulações de um continuum tensivo.
P. Aa. Brandt propõe uma generalização da teoria modal6
sob três condições principais: (i) as modalidades são engendra-
das como deformações topológicas de potenciais que esquemati-
zam conflitos de forças e de limiares; (ii) se supomos que as enti-
dades que elas afetam são intrinsecamente “nervosas” e “turbu-
lentas”, a modalização se torna então co-extensiva ao campo
semiótico por inteiro, esquematizado pelas catástrofes elemen-
tares; (iii) a teoria do “controle” (o epistêmico controla o alético
que, por sua vez, controla os estados; o deôntico controla o ôntico
etc.) permite perceber explicitamente – numa concepção bem
próxima das hierarquias modais da lógica ou da lingüística – a
conversão das modalidades umas nas outras e, por conseguinte,
a sintaxe inter-modal.

4
Le discours et son sujet, op. cit.
5
Essai sur les modalités tensives. Amsterdam, John Benjamins, 1981.
6
La charpente modale du sens. Aarhus/Amsterdam, John Benjamins, 1990.

229
MODALIDADE

A. J. Greimas e J. Fontanille7 , enfim, mostram como uma


teoria das paixões pode ser vista a partir de uma concepção das
modalidades articulada sobre a tensividade e a aspectualidade.
A generalização opera aqui, pois se (i) toda a sintaxe narrativa e
discursiva se baseia nos encadeamentos de modalidades, e se (ii)
toda combinação modal é capaz, sob certas condições, de produ-
zir efeitos de sentido passionais, então a questão da paixão não
se apresenta mais como complementar à da ação, mas como um
outro ponto de vista epistemológico e, talvez, como sintoma de
um novo paradigma.

2 DEFINIÇÕES

2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

A centralidade da teoria das modalidades e a abundância


dos trabalhos que decorreram disso, ao invés de simplificar-lhes
a definição, complicam-na singularmente. Com respeito ao pon-
to de vista paradigmático, uma vez admitida a definição geral da
modalidade como “predicado que determina outro predicado”,
permanece intacta a questão de determinar tanto a compreensão
quanto a extensão dessa noção. Se seguirmos A. J. Greimas no
Dicionário de semiótica, ou P. Aa. Brandt em La charpente modale du
sens, toda a sintaxe, com exceção dos estados, é modal, já que
fazer e ser podem eles próprios funcionar como modalidades.
Isso quer dizer que só haveria duas maneiras de captar os esta-
dos: por um lado, em si próprios, isto é, insignificantes; por ou-
tro, em sua condição de dados transformáveis e, portanto, modais
e significantes. A significação, de um ponto de vista sintáxico, se
confundiria pois com a modalização. Examinaremos este ponto
nas definições sintagmáticas amplas.

7
Semiótica das paixões, op. cit.

230
MODALIDADE

Mas uma tal generalização logo cria uma dificuldade para a


definição paradigmática das modalidades, tanto do ponto de vis-
ta do número de elementos da categoria quanto do ponto de vista
dos traços distintivos que fundam sua tipologia. Em princípio, a
maioria dos autores declara proceder dedutivamente, indepen-
dentemente dos lexemas modais da língua natural utilizada, mas,
de fato, bem poucos fazem outra coisa a não ser justificar
(esquematizando-o) o quadro das chamadas modalidades “de
base”: saber, poder, querer, dever & crer.
Examinemos, para começar, os diferentes parâmetros to-
mados, e suas conseqüências sobre o número de termos e o
esquema da categoria modal.
No Dicionário de semiótica8 , as modalidades são engendra-
das a partir de dois parâmetros: os modos de existência (virtual,
atual, real) e as relações entre o sujeito do predicado modal e o
do predicado modalizado (relação transitiva-exógena ou reflexi-
va-endógena). Propomos aqui mesmo (cf. o capítulo “Presença”)
uma organização diferente dos modos de existência, que nos
parece mais adequada aos usos atestados de suas denomina-
ções respectivas; mas isso não acarreta modificação na distribui-
ção das modalidades, que continua a parecer intuitivamente váli-
da. Obtemos um quadro de seis casas:

modalidades modalidades modalidades


virtualizantes atualizantes realizantes
modalidades exógenas DEVER PODER FAZER
modalidades endógenas QUERER SABER SER

O número de elementos nesse caso é de seis modalidades e


sua definição é posicional, numa rede que já se baseia nas etapas

8
Op. cit., p. 283.

231
MODALIDADE

de um percurso sintáxico. Mas não se consegue escapar aqui da


lista dos lexemas modais da língua francesa.
Em Semiótica das paixões9 , as chamadas modalidades “de
base”, isto é, sempre pertencentes à mesma lista lexical restrita,
são engendradas a partir das variedades da tensão, projetadas
num quadrado semiótico em que cada posição define um tipo
de modulação tensiva:

C o n ten sivo E x ten s ivo


(m o d u la ç ã o (m o d u la ç ã o
p o n tu a liz a n te ) cu r siv a )

R eten s ivo D is ten s ivo


(m o d u la ç ã o d e (m o d u la ç ã o d e
e n ce r ra m e n to ) a b e r tu r a )

Cada modalidade é então obtida pela seleção de um tipo de


modulação: a pontualização do devir – ou seja, em suma, sua
neutralização em um puro prazo – subjaz ao “dever”; a abertura,
por seu turno, é característica do “querer”, na medida em que dá
livre curso a outros possíveis, e até mesmo a bifurcações e a uma
reorientação do devir; o “poder”, que tem como tarefa sustentar o
curso de uma orientação já empreendida e permitir-lhe encontrar
sem desvio os obstáculos e os contra-programas, será considerado
como um produto da modulação “cursiva”; o encerramento, enfim,
provisório ou definitivo, é necessário à medida, à apreensão, até
mesmo à avaliação do percurso concluído, e nesse sentido seria
subjacente ao “saber”.
O progresso realizado por relação à combinatória inicial é
duplo: por um lado, a tipologia modal é isotópica, pois fundada

9
Op. cit., p. 42.

232
MODALIDADE

numa só categoria tirada da discretização das modulações


tensivas; por outro, deixa entrever a natureza das operações sin-
táxicas que permitem passar de uma modalidade a outra: opera-
ções incidentes na modificação dos equilíbrios internos da ten-
sividade, isto é, conforme nossa hipótese geral, da interação e
do equilíbrio entre a intensidade e a extensidade.
Bem entendido, o inconveniente maior reside na redução
(provisória) do número de elementos modais a quatro posições:
é o preço a pagar por uma interdefinição isotópica.
As propostas de P. Aa. Brandt, em La charpente modale du
sens e em “The dynamics of modality: a catastrophe analysis”10,
vão mais longe nessa direção, visto que a utilização da catástrofe
elementar esquematizada pela cúspide autoriza dois novos des-
dobramentos da categoria: de um lado, cada tipo modal pode ser
declinado em duas versões: uma “O-Topologia” centrada no obje-
to (por exemplo, a modalização alética), e uma “D-Topologia”,
centrada na instância de decisão (por exemplo, a modalização
epistêmica); de outro lado, cada categoria modal esquematizada
por uma cúspide pode ser declinada ao mesmo tempo em posi-
ções discretas (como, por exemplo, dever ser e não dever ser) e em
posições graduais, como a série em português “ele pode”, “ele
poderia”, “ele deveria” etc.
Poderíamos perguntar, com justa razão, frente às lexicali-
zações acima mencionadas em português, bem como no inglês
(can, may, might, should, would...), se os graus não são de fato o
resultado de modalizações superpostas, acrescidas por camadas
sucessivas quando da enunciação do processo. Nesse caso, o
efeito de modulação contínua, entre os dois limiares da cúspide,
não seria devido às propriedades tensivas intrínsecas de uma
categoria modal, mas, antes, resultaria à primeira vista da com-

10
“The dynamics of modality: a catastrophe analysis” R.S.S.I., 9, 1-2-3, 1989.

233
MODALIDADE

plexificação discursiva produzida pela sobredeterminação progres-


siva (pelo modo verbal, entre outras) do predicado modal.
De modo global, a definição das modalidades baseia-se
numa rede de parâmetros heterogêneos cujo domínio de valida-
de convém precisar:
1) Os parâmetros tensivos (A. J. Greimas e J. Fontanille, Cl. Zilber-
berg), como também a esquematização topológica das diferen-
ças modais de potencial (P. Aa. Brandt) trazem uma definição
tensiva, em que a modalização é então remetida a um campo
perceptivo articulado por intensidades e extensidades variáveis e
conflituais.
2) O caráter transitivo ou reflexivo (A. J. Greimas e J. Courtés)
acrescenta à definição a orientação actancial implicada na
predicação modal.
3) Os modos de existência (A. J. Greimas e J. Courtés) asseguram a
homogeneidade com o percurso epistemológico da elaboração
do sentido, sublinhando assim o papel das modalidades na bus-
ca do sentido pelos sujeitos.
4) A esquematização pela cúspide permite vincular a um mesmo
espaço topológico vários estratos de modalização, trazendo as-
sim à tona a distribuição dos conteúdos modais entre as zonas
de evolução gradual, e tanto de um lado como de outro dos li-
miares de transformação discreta.
Tal esboço de síntese põe em evidência a amplitude do do-
mínio de pertinência da modalização, (i) como modulação dos
efeitos intencionais associados ao estabelecimento de uma dêixis
perceptiva; (ii) como regulação da comunicação interactancial; (iii)
como mediação para a atualização e realização dos universos
semióticos, quer se trate de modos de existência, em Greimas,
quer de hierarquia entre espaços de controle, em Brandt.
O número de elementos da categoria modal depende, de
fato e de direito, do nível de articulação adotado: limitado a so-

234
MODALIDADE

mente quatro nas definições isotópicas, que só tomam um


parâmetro de cada vez, o número de elementos pode chegar a
seis, oito ou mais, assim que essa coerção seja suspensa e que a
tipologia entrecruze vários parâmetros; ... e esse número pode
até mesmo expandir-se indefinidamente quando convocamos toda
a rede definicional. Decorre disso a organização interna da cate-
goria: do quadrado semiótico, que prevalece no primeiro caso,
passamos para uma rede no segundo caso e, enfim, para uma
esquematização catastrofista no terceiro.

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

Vários dos traços convocados para a definição paradigmá-


tica implicam de fato as propriedades sintáxicas das modalida-
des. Nós as evocaremos ao longo da exposição.
A primeira propriedade sintáxica é de tipo narrativo e se
baseia na pressuposição: sendo um sujeito narrativo concebido
como um puro operador de transformação, a lógica das pressu-
posições leva a lhe destinar os atributos necessários a essas ope-
rações; trata-se então de dar a essas “capacidades” e esses “pré-
requisitos”, indispensáveis ao fazer, um estatuto semiolingüístico
e não psicológico. Em vista disso, a semiótica se voltou para a
noção lingüística de “modalidade”, que designa a classe dos pre-
dicados que permitem, como lembramos acima, apreender os
outros predicados (os predicados de base, os do ser e do fazer),
não na perspectiva de sua efetivação, mas na perspectiva das con-
dições necessárias a sua efetivação. Além disso, essa noção per-
mitiria dar um conteúdo semântico explícito e calculável às “pro-
vas qualificantes” e às peripécias ligadas ao aparecimento dos
adjuvantes e oponentes, de resto reconhecidos empiricamente
na análise dos contos.

235
MODALIDADE

Na medida em que as modalidades traduzem as condições e


as qualificações prévias ao fazer, favoráveis ou desfavoráveis, elas
constituem de fato uma reformulação mais abstrata e mais facil-
mente generalizável dos papéis de “adjuvante” e de “oponente”
provenientes dos trabalhos de V. Propp, e que foram considerados
durante algum tempo como actantes narrativos de mesma nature-
za que os outros. Realmente, as modalidades traduzem o “ser” do
sujeito narrativo, seja ele manifestado por um só ator ou por vá-
rios, simultânea ou sucessivamente; não podem, portanto, ser pos-
tas no mesmo plano que os actantes narrativos propriamente di-
tos, já que elas os determinam. Os papéis chamados de “adjuvan-
te” e “oponente” são, pois, apenas acidentes superficiais (realiza-
dos sob a forma de figuras actoriais particulares) do procedimento
muito mais geral da modalização dos actantes narrativos, que acom-
panha sua imersão num espaço tensivo e agonal, onde programas
e contraprogramas sempre se pressupõem uns aos outros.
As modalidades do fazer são, pois, os pressupostos e os
determinantes do fazer. Como tais, obedecem em tudo às regras
da pressuposição, visto que, num enunciado como “João quer
dançar”, o predicado “dançar” pode ser suspenso ou negado sem
que a modalidade “querer” seja por isso afetada, enquanto o in-
verso não é automaticamente verdadeiro. De fato, a regra de pres-
suposição estritamente aplicada só caracteriza uma classe de enun-
ciados e relatos, classe estereotipada e ideal. Em muitos casos,
com efeito, é porque “João não quer dançar”, mas dançará mes-
mo assim, que há relato: ele dançará, seja porque um dever ou
um não poder não fazer de força superior neutralizará seu querer
negativo, seja porque ele decidirá por si próprio (não querer não
fazer) dançar.
Isso significa que poucas combinações modais são incom-
patíveis com o desdobramento narrativo, e que as “pressuposi-
ções” que ligam o fazer à competência modal são, na maior parte
do tempo, pelo menos paradoxais. A exploração das correlações

236
MODALIDADE

entre competência modal e performance não foi de fato nem


mesmo começada; encontraríamos aí tanto (i) a implicação (se
querer, saber, poder, então fazer) quanto (ii) a concessão (embora
querer, saber..., no entanto não fazer; ou apesar de não saber, não
querer, mesmo assim fazer).
A pressuposição narrativa é uma operação retrospectiva,
projetada sobre uma ligação mais ou menos necessária entre uma
competência e uma performance, ou entre duas competências de
diferente ordem. Ela pode ter por correlatos prospectivos duas
operações bem diferentes: a implicação e a concessão. A conces-
são é uma alternativa à implicação quando a ligação entre com-
petência e performance não é mais necessária, mas impossível ou
contingente. A forma implicativa é talvez a mais estudada, mas
também a menos propícia a manter a atenção de um narratário,
na medida em que a força da ligação de necessidade cria, numa
área cultural determinada, uma espera e uma previsão muito pre-
mente: por exemplo, “se ele quer, ele pode” deixa pouca margem
à surpresa; em contrapartida, a forma concessiva, que põe em
jogo confrontações e conversões modais complexas, está entre
as mais ricas em desdobramentos e efeitos passionais, na medida
em que ela põe em xeque a coerência do percurso sintáxico. Em
outros termos, a implicação seria da ordem do devir, e a conces-
são, do sobrevir (cf. o capítulo “Devir”). Desse ponto de vista, a
implicação e a concessão, catalisáveis diretamente a partir de toda
estrutura sintáxica complexa (associando ao menos dois enuncia-
dos), aparecem como os operadores discursivos da esquematização
(cf. o capítulo “Esquema”).
Comparemos por exemplo a configuração da “sanção prag-
mática”, por punição, com a do “perdão”. A primeira, tal como
Greimas descreve no seu Maupassant11 , baseia-se numa implica-
ção: se os dois amigos são espiões, então serão executados. Para

11
Maupassant. La sémiotique du texte: exercices pratiques. Paris, Seuil, 1976, p. 175-88.

237
MODALIDADE

provar que não o são, devem dar a senha, o que acarreta a se-
guinte reformulação: se os dois amigos não dão a senha, então
são espiões, então serão executados. A implicação está aqui, além
do mais, sobre determinada pela veridicção e pela “reinterpreta-
ção” (nos termos de Greimas) que o actante dominante está em
condições de impor.
A segunda, a do perdão, é mais particularmente descrita
por Eco & Violi12 ; ela associa num mesmo sintagma um “S1 should
be punished” e um “S2 not punish S1”. Para Eco, a implicação
se...então continua a funcionar se supomos que os dois enuncia-
dos pertencem a dois momentos diferentes e remetem a duas
tramas diferentes: admitamos que seja preciso um certo tempo
para mudar de idéia (e de trama), mas não é menos verdade que
a estrutura sintáxica, lingüística (e não lógica), é a de uma con-
cessão (embora “S1 should be punished”, no entanto “S2 not punish
S1”) e não a de uma implicação (*se “S1 should be punished”, en-
tão “S2 not punish S1”). Vemos claramente que a formulação
implicativa, ou é contra-intuitiva, ou então renuncia a todo cará-
ter explicativo e se apóia inteiramente em condições suplemen-
tares (no caso, para Eco, temporais e enciclopédicas).
A alternância entre implicação e concessão pode ser com-
preendida como uma inversão da correlação entre duas valências.
No caso da sanção comum, quanto maior a falta, maior o castigo
(correlação conversa); no caso do perdão, quanto mais grave a
falta, maior o perdão (correlação inversa). Esta observação traz à
tona o eco de velhas discussões jurídicas e morais sobre a pro-
porção do castigo ou do perdão, mas é também pesada de impli-
cações semióticas: faria supor (i) que as modalidades (aqui, do
“dever fazer”) são graduais e (ii) que essa conversão em valências
correlatas acompanha (precede? segue?) o aparecimento das

12
In “Instructional semantics for presuppositions”, Semiotica, 64, 1/2, 1987, p. 1-39.

238
MODALIDADE

avaliações axiológicas das posições modais. Retomaremos isso


logo mais.
É certo que, de um ponto de vista de semântica lexical (o
lexema ou a noção de “perdão” pressupõem que haja algo a per-
doar), bem como de um ponto de vista sêmio-pragmático, o “per-
dão” pressupõe que alguém deva ser punido. Com efeito, o ato de
perdão só tem sentido se uma falta foi cometida: aplicando-se
ou não o castigo esperado, a falta permanece cometida.
A pressuposição, na verdade, é apenas o efeito de sentido
lógico-formal da correlação tensiva das valências; mas é o senti-
do da correlação entre as duas valências modais que permite di-
zer se há, por conseqüência, castigo ou perdão. De fato, na con-
cepção puramente lógica da pressuposição (proveniente da lógi-
ca proposicional), a atualização do pressuponente (eu castigo ou
não castigo) seria estritamente aleatória, não permitiria distin-
guir o castigo e o perdão, e menos ainda permitiria reconhecer a
cada um deles uma intencionalidade própria, ao passo que a cor-
relação tensiva proporciona a cada configuração sua significação
diferencial.
Se o mecanismo das estruturas sintáxicas implicativas pode
ser considerado como conhecido, o futuro da pesquisa, como pres-
sentimos por esse esboço de discussão, parece-nos pender mais
para o lado das estruturas concessivas.
Os encadeamentos sintáxicos de modalidades não se apre-
sentam portanto como desdobramento das estruturas modais (con-
cebidas como quadrados modais, cada um dos quais produz seus
próprios encadeamentos de negações e asserções), mas como
sintagmas heterotópicos e heterogêneos, em que seqüências de
papéis modais estão ligadas por pressuposição, implicação ou
concessão. Para caracterizar essas novas configurações sintagmá-
ticas e heterotópicas foram propostas novas denominações: “se-
qüências modais”, “dispositivos modais”, “papéis modais”, con-
forme salientemos respectivamente o arranjo seqüencial, a com-

239
MODALIDADE

binação global ou a identidade modal transitória do sujeito. Seja


qual for o ponto de vista ou a denominação, o essencial no caso
é a capacidade que esses arranjos modais possuem de produzir
efeitos de sentido passionais, em virtude de sua própria
heterogeneidade: uma paixão-efeito de sentido será sempre
analisável como uma seqüência de papéis modais que realizam
progressivamente um certo dispositivo, numa busca da coerên-
cia e da identidade do ser do sujeito.

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Por outro lado, as pesquisas sobre a identidade modal dos


sujeitos, desenvolvidas não mais nos limites do enunciado narrati-
vo elementar (nível semionarrativo) ou do predicado (nível
discursivo), mas nos domínios mais amplos do programa narrativo
e do processo discursivo – as de J.-Cl. Coquet, entre outras –, mos-
tram que as transformações modais do ser também dão origem a
programas, a percursos autônomos que podem ser considerados
por si próprios, independentemente da busca dos objetos de va-
lor. A história modal dos sujeitos, que caracteriza as transforma-
ções do “ser” discursivo destes últimos, desenvolve-se como um
percurso complementar e paralelo à busca dos chamados valores
“descritivos”.
A possibilidade de uma busca de identidade supõe que o
objeto visado possa ser um certo “dispositivo” modal, definido
independentemente das axiologias descritivas e, por conseguin-
te, compatível ou incompatível com elas. Suporemos então que o
sujeito não visa os objetos modais apenas como condições ne-
cessárias à obtenção dos objetos de valor propriamente ditos,
mas que, ao contrário, a busca dos objetos de valor se torna, no
limite, pretexto para a construção de uma identidade modal. Mais
exatamente, quando a isotopia do discurso se funda na recorrên-
cia da relação aos objetos de valor, a busca das competências

240
MODALIDADE

modais que a acompanham é secundária (da ordem dos chama-


dos programas “de uso”). Em contrapartida, se a isotopia do dis-
curso assenta na busca recorrente de um mesmo tipo de
modalização (por exemplo, o poder), não importando quais se-
jam os objetos de valor em foco, então fica claro que o sujeito
discursivo é semantizado por um certo dispositivo modal que
define a identidade modal que ele visa, e não pelas axiologias
descritivas que encontra.
Essa possibilidade de uma “história modal dos sujeitos”
abre pois a porta a um outro tipo de narratividade, complemen-
tar e parcialmente autônoma, fundada numa espécie de “projeto
de realização” do ser do sujeito. Esse outro tipo de narratividade
foi explorado progressivamente sob a forma de “dimensões”: di-
mensão cognitiva, dimensão fiduciária, dimensão tímica, entre
outras. É em parte com esse pano de fundo que se edifica a teoria
das paixões em semiótica.
Mas surge imediatamente a questão das relações que se
devem estabelecer entre a busca de valores descritivos e a busca
de identidade: de que forma os sujeitos se constroem, em termos
de modalidades, ao mesmo tempo em que perseguem objetos de
valores e se reconhecem nas axiologias “descritivas”? Quanto a
isso, podemos entrever dois tipos de resposta: a primeira consis-
te em homologar ao menos parcialmente os “valores-tipo” com
os valores modais, de modo que os dois percursos possam ser
considerados como fundados nas mesmas valências; a segunda
consiste em examinar a possibilidade de fundar uma tipologia de
valores descritivos sobre a dos valores modais.
Os valores-tipo são definidos, no capítulo “Valor”, a partir
da tensão entre a intensidade e a extensidade, e a oposição de
base que resulta disso, “valores de absoluto/valores de univer-
so”, é homóloga à oposição “intenso/extenso”; os valores de ab-
soluto definem-se não apenas por sua “intensidade” mas tam-
bém por seu caráter fechado, exclusivo e singularizante; os valo-

241
MODALIDADE

res de universo, além da sua “extensidade”, definem-se pelo cará-


ter aberto, participativo e pluralizante. O traço “aberto/fechado”
diz respeito, na verdade, ao modo pelo qual os valores investem e
estruturam o campo de presença do sujeito sensível. Ora, os auto-
res de Semiótica das paixões propuseram justamente reconhecer,
nas modulações tensivas do devir (de abertura, de encerramento,
cursiva e pontualizante), as primeiras articulações que prefiguram
as modalidades com base no princípio evocado mais acima.
Desse ponto de vista, a categoria tensiva “aberto/fechado”
seria portanto comum aos valores-tipo e aos valores modais de
base. Mas talvez caiba examinar mais precisamente em que me-
dida a correlação “intenso/extenso” estrutura o conjunto das
modalidades. Seja qual for a modalidade considerada, uma vez
que seja tomada como um valor e não apenas como fragmento
de competência e simples pressuposto do fazer, obedece à mes-
ma lei dos valores descritivos. Como nos lembra oportunamente
o adágio popular – “Quem muito quer, nada tem” –, todo valor
modal que aumenta em extensidade perde em intensidade, na
medida em que fragmenta e dispersa esta última; querer muitas
coisas é querê-las fracamente; um poder que se estende é um
poder que se dilui etc.
O caso do saber é particularmente interessante, visto que
os dois regimes lhe são aplicados de modo bem contrastado; se é
considerado apenas sob o ângulo da competência (acumulação
de conhecimentos ou de savoir-faire), a correlação entre extensi-
dade e intensidade é conversa: um saber amplo é um saber supe-
rior. Mas logo que seja considerado como um valor, capaz
notadamente de fundar um projeto de vida, de caracterizar a iden-
tidade de um sujeito, a correlação se inverte: o saber amplo se
torna um saber superficial e a restrição do campo de conhecimen-
to permitirá, por exemplo, aplicar-lhe os sistemas axiológicos da
“especialização” ou da “erudição”, posteriomente depreciados
como “coisas vãs” em nome da outra valência (a extensidade).

242
MODALIDADE

Quanto ao crer, também ele obedece a essa distinção: consi-


derado como simplesmente necessário ao fazer, sua extensão em
nada contribui para sua eficácia. Mas, assim que o crer é submeti-
do a uma avaliação axiológica, a correlação se inverte mais uma
vez: crer em tudo é ser crédulo e, em conseqüência, dar mostras de
uma fé sem valor, diluída e enfraquecida. O paradoxo do crédulo é
justamente o de não podermos mais confiar nele, já que suas cren-
ças não são seletivas. Ao contrário, aquele que crê por demais in-
tensa e seletivamente se vê logo criticado por seu “sectarismo” ou
seu “fanatismo”, em nome da extensidade.
Quanto às modalidades puramente “instrumentais”, volta-
das ao fazer, o que lhes é característico é não obedecer a nenhu-
ma correlação, escapar por discretização da tensividade; em
contrapartida, os valores modais, que nos interessam aqui mais
de perto, supõem uma correlação tensiva, inversa ou conversa,
que instala uma diferença de potencial entre duas valências. É
por isso que a avaliação das modalidades promove freqüente-
mente a concentração modal e deprecia correlativamente a di-
luição e a dispersão, mas também por vezes sanciona a restrição
e a seletividade.
O segundo tratamento nos é sugerido, em essência, por
Jean-Marie Floch, nas suas pesquisas sobre os valores da socieda-
de de consumo13 . Com efeito, ele propõe distinguir quatro tipos
de valores capazes de articular a comunicação no que tange aos
produtos de consumo: valores míticos, lúdicos, técnicos e práticos.
Esses tipos de valores descritivos na verdade se baseiam nas
modalizações dominantes: o poder-fazer subjaz aos valores “prá-
ticos”, o saber-fazer, aos valores “técnicos”, o querer-fazer, aos
valores “lúdicos” e, por fim, o crer, a partir dos exemplos dados
por J.-M. Floch, responderia pelos valores “míticos”. O inventário
modal é incompleto, mas o que importa é o princípio subjacente

13
Sémiotique et marketing. Sous les signes, les stratégies. Paris, P.U.F., 1990.

243
MODALIDADE

que gostaríamos de salientar: na perspectiva adotada por J.-M.


Floch, as modalidades são acima de tudo características do pro-
dutor (no caso, a empresa ou a marca); a tecnicidade, por exem-
plo, é em princípio indicativa do saber-fazer de um destinador, e
o objeto que ele propõe ao destinatário está investido no plano
figurativo desse saber-fazer, reformulado como “tecnicidade”.
Poderíamos dizer em suma que o valor modal dominante, que
caracteriza a identidade do destinador, é transmitido ao destina-
tário sob a forma de um valor descritivo; do ponto de vista do
destinatário, os valores descritivos, na medida em que investem
os objetos de busca, ativam de maneira diferenciada esta ou aquela
modalidade: por exemplo, a “tecnicidade” do objeto vai solicitar
o saber-fazer do destinatário, ou então, seu caráter “lúdico” vai
solicitar-lhe o querer-fazer. Vale dizer que o programa de base
que os convoca será preferencialmente submetido a um dado tipo
de programa de uso (conforme o poder, o querer, o crer etc.).
Enfim, o destinador comunica valores modais a um destinatário
pelo intermédio de objetos de valor de tipo “descritivo”.
Os dois tratamentos aqui propostos permitem compreen-
der (i) por que os valores descritivos e os valores modais podem
ser convertidos uns nos outros e (ii) de que modo, no próprio
movimento da circulação dos valores, os valores modais podem
ocupar a linha de frente da cena narrativa se a busca de identida-
de prevalecer sobre a busca de objetos.
No entanto, a conversão das modalidades da competência
em valores modais, inscritos nos dispositivos modais caracterís-
ticos da identidade dos sujeitos, suscita outras dificuldades, em
particular a da coerência do dispositivo modal durante todo o
percurso de um sujeito. Essa questão pode evidentemente ser
abordada, como o propunha Greimas em Du sens II, pelas con-
frontações entre os diversos quadrados modais. Mas as confron-
tações não permitem explicar, no caso por exemplo do acento
incidir sobre determinada modalidade da cadeia, como uma ou-
tra será enfraquecida, invertida ou simplesmente suspensa.

244
MODALIDADE

Isso se esclarece um pouco mais se levarmos em conta o


alcance sintáxico das modalidades. De fato, se em lingüística a
modalidade sobredetermina um predicado, isso quer dizer, em
semiótica e por transposição, que ela afeta um enunciado de jun-
ção ou um enunciado de fazer. Podemos então considerar que a
modalização pode incidir sobre o objeto, sobre a própria junção
ou ainda sobre o sujeito. O princípio básico continua sendo o da
transferência da modalização do objeto para o sujeito, passando
pela junção. Mas cada um desses “alcances” modais adquire uma
certa autonomia, bastando para isso que uma perspectiva subje-
tiva disponha as modalidades em diversos planos de profundida-
de, a tal ponto que possam chegar a se contradizer umas às ou-
tras. Por exemplo, o despeito amoroso se organiza em torno de
três modalizações divergentes: o objeto é indispensável, a conjun-
ção se tornou impossível, e o sujeito converteu seu desejo, no
melhor dos casos, em indiferença.
Uma outra abordagem é possível e, para isso, é preciso
observar de início que, do ponto de vista da estrita competência
(puramente instrumental frente ao fazer), a questão não se põe
assim: seja qual for a intensidade ou a extensão por exemplo de
um querer, as das outras modalidades da competência não serão
afetadas, em particular a intensidade e a extensão do dever e do
poder. Mas quando a perspectiva é a dos valores modais, isto é,
de modalidades que participam das axiologias e definem a iden-
tidade dos sujeitos, logo aparecem tensões entre os diversos pa-
péis modais do sujeito. Para ficar no mesmo tipo de exemplo, se
o querer é um fator de identidade para um sujeito, ele vai concor-
rer com o dever: o sujeito que atribui valor à intensidade ou à
extensão do seu querer resistirá às injunções e prescrições tão
mais fortemente quanto maior for esse valor. Também é bastante
conhecido o caso dos asmáticos14 , que se atribuem um querer

14
Cf. FONTANILLE, J. “Les passions de l’asthme”, Nouveaux Actes Sémiotiques, 6. Limoges,
PULim, 1989.

245
MODALIDADE

intenso, e que explicam desse modo as crises que os deixam em


estado de incapacidade (não-poder).
Mas a correlação pode ser também conversa, se uma moda-
lidade extensa impuser sua intensidade às outras modalidades,
como no caso do querer e do dever, que têm propensão a reger
todo o dispositivo. Por exemplo, o chamado sujeito “resoluto”,
“decidido”, “enérgico”, ou ainda, sob certos aspectos, o sujeito
corneliano (“quero, logo posso”), todos eles são dotados de um
querer-fazer que conduz de alguma forma o poder-fazer na mes-
ma direção. O caso é particularmente revelador, uma vez que,
conforme a definição do dicionário, “resoluto” é aquele “que sabe
tomar com audácia uma decisão e sustentá-la firmemente”; em-
bora a correlação entre querer e poder seja conversa, ela é no
entanto tensiva, pois a intensidade do querer permite atravessar
todos os obstáculos encontrados e nutre portanto o poder que,
em contrapartida, sustenta a “firmeza” do querer. A modulação
“cursiva” (isto é, a que sustenta o curso de um devir) do poder
assume, de algum modo, as funções da modulação “de abertura”
do querer, e assegura a continuidade do percurso. Estamos, as-
sim, diante de um complexo modal tensivo.
A sintaxe inter-modal se baseia, pois, para o caso dos dis-
positivos modais característicos da identidade dos sujeitos, nas
correlações tensivas entre a intensidade e extensidade corres-
pondentes às diferentes modalidades que os compõem.

3 CONFRONTAÇÕES

A lingüística15 classifica hoje a modalização entre as opera-


ções que caracterizam o foco enunciativo, a saber: a aspectualiza-
ção, a perspectiva ou topicalização, a diátese e a modalidade.
Podemos assim declinar um mesmo processo (“eu danço”) sob a

15
Cf. POTTIER, B. Sémantique générale. Paris, P.U.F., 1992, p. 204-23.

246
MODALIDADE

forma de quatro focos enunciativos diferentes: (i) o foco aspectual:


eu me ponho a dançar; (ii) a perspectivização: sou eu quem dança;
(iii) a orientação da diátese: a música me faz dançar; (iv) o foco
modal: eu sei dançar.
O foco em perspectiva (a topicalização) e o foco diatésico
(ativo, passivo, factitivo etc.) dizem respeito à orientação infor-
mativa ou actancial do processo, e modulam em conseqüência o
“fluxo de atenção” de um sujeito de enunciação considerado
como uma instância perceptiva, ao mesmo tempo caracterizada
pela direção (o ponto de vista que ele adota) e pela intensidade e
tempo de seu foco (as modulações do fluxo de atenção). O foco
modal, assim como o aspectual, são focos mediatos, parciais e
indiretos do processo. Uns e outros baseiam-se na imperfeição e
no efeito particularizante de todo “foco”, a aspectualização e a
modalização ainda mais do que os dois primeiros.
Com efeito, a perspectiva temática e a diátese escolhem
um “primeiro plano” para fixar a atenção, mas as outras grande-
zas, mantidas no plano de fundo, não desaparecem da cena atua-
lizada em discurso. Em contrapartida, a aspectualização desiste
de tratar o processo como um todo, e segmenta-o para realizar
apenas uma fase, ficando as outras potencializadas (quando são
“requisitadas” pela primeira) ou então virtualizadas (quando são
excluídas pela primeira), conforme o caso. Quanto à modaliza-
ção, ela se baseia mais particularmente na potencialização do
processo, na medida em que a consideramos não sob o ângulo
de sua realização em discurso, mas sob o das condições prévias
desta realização: “eu devo dançar” suspende de fato a atualiza-
ção do processo em si, em proveito de um de seus pressupostos,
a condição deôntica.
A sobredeterminação lingüística dos predicados pelas mo-
dalidades implica, por decorrência, como para a semiótica narra-
tiva, uma forma particular de intencionalidade. Nesse caso, um
observador-enunciador focaliza um processo enunciável, e o défi-

247
MODALIDADE

cit de ser (incompletude) que ele verifica é então um déficit de


atualização discursiva. Esse foco instala de um lado um “efeito
sujeito” (fonte) e de outro um “efeito objeto” (alvo, preenchimen-
to condicional). O próprio fato de enunciar a condição modal do
processo instala uma defasagem entre o foco modal e o processo
em si mesmo, de modo que o foco modal impõe uma orientação,
um devir que leva da condição à realização.
Uma das mais interessantes interpretações em lingüística
cognitiva (Talmy, Sweetser) consiste em supor um dispositivo
conflitual subjacente a partir do qual nasceriam tanto a aspectua-
lidade quanto a modalidade. O verbo “conseguir” (parvenir à,
em francês) é característico desse tipo de funcionamento, visto
que supõe (i) uma série de obstáculos implícitos; (ii) uma apreen-
são modal do processo sob o ângulo poder/querer fazer que per-
mite superar os obstáculos; e (iii) uma apreensão “terminativa”
do processo. Mais genericamente, só captamos um processo sob
o ângulo de sua modalização e de sua aspectualização se pressu-
pomos que ao mesmo tempo forças contrárias se interpõem à
sua realização e desenvolvimento completo. No limite, até mes-
mo um desenrolar cômodo e sem obstáculos de um processo só
ganha sentido se não perdemos de vista uma avaliação (justa ou
falaciosa) que minimiza o contra-programa.
Se nos atemos apenas às correlações entre valências modais,
constatamos por exemplo que: (i) se o querer e o poder forem con-
vergentes, os progressos do fazer serão “encorajadores”, no senti-
do de que as duas modalidades sustentam-se, intensificam-se mu-
tuamente; (ii) se o querer e o poder forem divergentes, os progres-
sos do fazer serão “desencorajadores”, no sentido de que as duas
modalidades se neutralizam entre si, gerando desse modo ou a
impotência ou o desgosto.
Entre “eu danço” e “eu devo dançar”, a primeira diferença
vem de que a segunda versão (versão modalizada) é indiferente
ao fato de eu “dançar” ou “não dançar” (do ponto de vista da

248
MODALIDADE

implicação narrativa). Mas a análise em termos de pressuposição


não basta, visto que, do ponto de vista do ato de enunciação,
neste caso, não podemos enunciar a versão modalizada a não ser
que reconheçamos ao mesmo tempo a possibilidade de “não fa-
zer” tanto quanto a de “fazer”. Isso significa que atualizamos o
processo com base no processo contraditório ou contrário e que,
na impossibilidade de atualizar o processo visado, atualizamos
indiretamente a estrutura conflitual subjacente, com o predicado
modal. O “déficit de atualização” implica enfim, quanto ao pro-
cesso, uma estrutura tensiva e agonista e, quanto à enunciação,
uma polifonia.
Em outras palavras, o “déficit de atualização” (isto é, para nós, a
“potencialização”), fica interpretado aqui como resultado de um certo
equilíbrio (ou desequilíbrio) entre forças antagonistas: forças coesivas,
favoráveis ao acabamento do processo; forças dispersivas, desfavorá-
veis a tal acabamento. Do lado da aspectualização, isso permite, por
exemplo, eliminar a ambigüidade entre as duas versões da
terminatividade: uma, “interruptiva”, pela qual o processo é interrom-
pido antes de seu término, consagra a vitória das forças antagonistas;
a outra, “acabada”, pela qual o processo chega a termo, consagra a
vitória das forças agonistas: a pseudo-sinonímia se deixa analisar, de
fato, como uma contrariedade.
O mesmo poderia ser dito das modalidades; por exemplo, as
duas (pelo menos) acepções da modalidade dever, em português, a
chamada acepção deôntica e a chamada acepção epistêmica, não
se diferenciam, nesse particular, a não ser pelo tipo de equilíbrio
entre as forças antagonistas que a elas subjazem. Num exemplo
como “creio que ele deve vir hoje” (acepção “epistêmica”), tornamos
implícitos e atualizamos certos fatores dispersivos, os diversos
obstáculos que tornam a coisa simplesmente plausível, mas que se
caracterizam (i) mais por sua extensidade que pela intensidade, e
(ii) pelo fato de não serem previsíveis. Por seu turno, em “ele deve
vir, se quer receber” (acepção deôntica), os eventuais obstáculos são

249
MODALIDADE

considerados (i) exclusivamente sob o ângulo da intensidade, (ii)


previstos e calculados e (iii) neutralizados pelo menos no simula-
cro modal, e por antecipação, isto é, virtualizados. Por trás de
cada aspectualização ou modalização lingüística, toda a história,
a memória e o devir das relações agonísticas se desenham em
filigrana.
Além disso, a concepção guillaumiana da modalização como
obstáculo à atualização do predicado – e que faz eco à concepção
semiocognitiva da chamada estrutura agonal –, permite apreen-
der esse obstáculo de duas maneiras diferentes e complementa-
res. De fato, a resistência à atualização pode ser compreendida
tanto a partir de um contra-programa que torna duvidosa ou mais
difícil a realização do programa em pauta, quanto a partir de
uma polifonia conflitual – o “obstáculo” é então enunciativo. Neste
último caso, supomos que o foco enunciativo, caracterizado pela
concorrência entre ao menos duas vozes (dois pontos de vista
diferentes sobre o processo), modaliza o predicado em função da
força relativa dos dois pontos de vista que ele compõe: logo, a
realização se tornará tanto mais certa e previsível quanto o pon-
to de vista “otimista” prevalecer sobre os outros. Sabe-se que, na
imanência, as duas formas se pressupõem mutuamente, mas a
realização discursiva, sob pena de parecer ambígua, é em geral
obrigada a escolher entre as duas. Por exemplo, e fora de contex-
to, no que se refere ao enunciado “O antigo ministro poderia reaver
sua cadeira de deputado”, poderíamos debater indefinidamente para
saber se a modalização epistêmica manifesta um certo grau de
possibilidades de êxito ou a capacidade do sujeito de enunciação
de avaliar essas mesmas possibilidades: em geral o contexto
discursivo permite decidir isso.
Enfim, a modalização abre um “imaginário”, na medida em
que a convivência dos dois tipos de forças multiplica as tramas
possíveis. Com efeito, um enunciado descontextualizado como
“eu danço”, atualizando o processo, não deixa lugar a mais que

250
MODALIDADE

uma só trama, a que se realiza; enquanto “eu quero dançar” dei-


xa aberta uma infinidade de tramas possíveis, até mesmo do ponto
de vista das variedades previsíveis da própria realização. Claro
está que não existem, nos discursos concretos, enunciados do
tipo “eu danço” em estado “puro”, na medida em que toda reali-
zação mantém a memória das modalizações por que o processo
passou. Por exemplo, “eu danço”, enquanto realização do proces-
so, produz efeitos divergentes conforme o saber fazer tenha sido
ou não apropriado de imediato, conforme o querer seja “de bom
grado” ou “de resignação” etc.
Desse ponto de vista, a modalização, explícita ou implíci-
ta, pontual ou cumulativa, aparece como a instância de controle
de um imaginário sintáxico posto à disposição do sujeito do dis-
curso. De um ponto de vista estritamente lingüístico, a diferença
entre a versão modalizada e a versão não modalizada do proces-
so pode ser compreendida como uma diferença de estatuto
veridictório: a versão não modalizada do processo pode ser ava-
liada como verdadeira ou falsa, conforme a transformação tenha
ocorrido ou não; em contrapartida, no caso da versão modalizada,
seria preciso considerar a avaliação veridictória de todas as tra-
mas possíveis e, como elas são em número infinito, o valor
veridictório do processo modalizado é indefinível, enquanto não
for atualizado.
As análises do modo verbal em Guillaume procedem da mes-
ma maneira, visto que para ele, de um lado,

“o modo é função do contato ou do não-contato do foco com a atua-


lidade”16

e que, de outro, a distância que separa o que ele denomina “foco”


e a “atualidade”, sempre segundo ele, é função da proporção en-

16
Op. cit., p. 37.

251
MODALIDADE

tre as “capacidades” e “incapacidades” de atualidade de uma gran-


deza, isto é, em nossos termos, do número de tramas possíveis,
que se supõe cada vez mais restrito, na passagem da virtualiza-
ção à realização. Poderíamos dizer em suma que, com as modali-
dades virtualizantes, o imaginário se desdobra e, depois, se re-
trai pouco a pouco até se acantonar na única trama realizada.
Todas essas observações permitem compreender por que a
modalização foi muito cedo considerada como uma operação
enunciativa, na medida em que a extensão desse “imaginário
modal” é função, para o sujeito da enunciação, da sua capacidade
de realizar em discurso as figuras que convoca. A enunciação
deitiza e modaliza o enunciado, e as diversas modalidades utili-
zadas pelo sujeito da enunciação permitem caracterizar seu pró-
prio percurso, distinto do encadeamento dos processos e, por
conseguinte, independente do percurso dos sujeitos do enuncia-
do: ele sabe, ele crê, ele pensa, duvida, supõe...
As diferentes propriedades da modalização lingüística (foco
enunciativo, déficit de atualização, dispositivo conflitual subja-
cente, abertura de um imaginário) permanecem pertinentes em
semiótica narrativa, e explicam além disso, como tentamos mos-
trar, por que o desenvolvimento da teoria semiótica das modali-
dades desembocou na das paixões.
Gostaríamos também aqui de mencionar algumas das conse-
qüências e dificuldades ligadas à aproximação, que evocamos mui-
tas vezes, entre as modalidades, de um lado, e os modos de exis-
tência e as valências, de outro. Com efeito, o “déficit de atualiza-
ção” é uma das “imperfeições” que fundam a intencionalidade
semiótica: assim como as imperfeições da coerência semântica, da
consistência merológica, ou da estesia, a imperfeição da predicação
tem por correlato uma demanda de plenitude, uma tensão para a
completude ou a perfeição. Por conseguinte, tal imperfeição pode
ser gradualizada e segmentada em diferentes modos de existência,
caracterizados por sua “densidade de presença”; reencontramos

252
MODALIDADE

aqui o traço distintivo adotado por Greimas e Courtés, e que G.


Guillaume já definira da seguinte maneira:

“ No [regime do] possível, lemos no vocabulário filosófico de Goblot,


as chances de ser e de não ser são iguais; quanto ao provável, é um
possível que tem mais chances de ser que de não ser. O termo
‘chances de ser’, empregado nessa dupla definição, pode ser subs-
tituído por outro, equivalente e mais estrito: capacidade de atuali-
dade. Pois ser, é possuir a realidade; ora, a realidade supõe a atua-
lidade, que é o ponto preciso onde o virtual passa ao real.”17

Mas os graus da presença comportam hoje um modo que


nem Guillaume nem Greimas no Dicionário de semiótica conce-
bem, a saber, o “potencializado”. Retomemos em caráter
indicativo a série completa (cf. o capítulo “Presença”):

Realizado Virtualizado

Atualizado Potencializado

Se a distribuição das modalidades em três deles está já fi-


xada, a que corresponde ao quarto modo de existência, o poten-
cializado, ainda está por determinar. Semiótica das paixões define a
potencialização a partir da não-disjunção, prévia à asserção que
leva à conjunção (e ao sujeito realizado)18 ; os autores levantam
também a hipótese de que a modalidade correspondente poderia
ser o crer, sem apresentar quanto a isso um argumento decisivo19.

17
Temps et verbe, op. cit., capítulo III: “La réalisation de l’image verbale dans le temps in
fieri ”, p. 32-3.
18
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 52.
19
Op. cit., p. 54.

253
MODALIDADE

Falta na série das modalidades básicas (querer, dever, saber


e poder) uma das condições da realização; de fato, não basta que
o sujeito disponha de todas as competências virtualizantes e
atualizantes para que aja e se realize. É preciso também que ele
creia querer, creia dever, creia saber e creia poder; em suma, que
creia em sua competência e, de modo mais geral, creia no siste-
ma de valores em cujo seio sua ação vai se inscrever.
Obviamente, nem todos os sujeitos que agem crêem obri-
gatoriamente no que são e no que fazem; na verdade, aquilo que
em tais casos substitui essa “crença” é particularmente revelador.
Pascal propõe por exemplo, ao libertino, que retorne à igreja,
que faça o sinal da cruz, que recite as preces, para que adquira ou
readquira a fé: a ritualização do fazer substitui a crença na identi-
dade modal do sujeito; ademais, ela pode aparecer tanto como
uma degradação da crença (como uma “automatização” que a
dessemantizaria) quanto como um procedimento de restauração
da crença. De igual modo, em Proust, Swann, antes da descober-
ta da pequena frase de Vinteuil e, portanto, antes da restauração
da crença, só conhecia programas ritualizados, atrações estereo-
tipadas e repetitivas. A repetição, a fixação, a ritualização produ-
zem “tipos” (aqui, “estereótipos” e “ritos”) disponíveis a todo
momento para o sujeito nutrir sua programação discursiva. Para
nós, literalmente, trata-se de grandezas sintáxicas “potencializa-
das” (cf. o capítulo “Práxis enunciativa”) que não estão nem
“virtualizadas”, nem “atualizadas”, porque já foram realizadas
em uso, nem mesmo propriamente “realizadas”, dado que estão
de algum modo “postas em memória”, à disposição dos sujeitos
de enunciação. A comutação é clara e probante: quando a crença
já não cumpre mais, ou ainda não cumpre, seu ofício de
potencialização, o rito, o hábito, o estereótipo, produtos de usos
discursivos, podem também desempenhar esse papel. A “crença”
seria qualquer coisa como a versão “tônica” e “intensiva” do modo
potencializado, enquanto o “tipo” e o “rito” seriam sua versão
“átona” e “extensiva”.

254
MODALIDADE

Além disso, para que o sujeito se realize, a competência


modal deve ser por ele ancorada na fidúcia, a mesma da qual
emergem os valores que ele visa. Muitas inibições, muitos fra-
cassos aparentemente inexplicáveis vêm do fato de que o sujei-
to não está em condições de perceber a coerência entre sua com-
petência e os valores a que ela deve facultar o acesso. Aquilo
que chamamos cotidianamente “falta de autoconfiança” procede
raramente de falta de competência, e menos ainda de um senti-
mento de incompetência, pelo menos antes do fracasso; dizemos
de modo geral, a respeito de um sujeito que tem “segurança”,
que ele “acredita em si mesmo”. Compreendamos: ele crê em seu
ser modal. O crer é então a modalidade que corresponde para
nós ao modo potencializado, primeira etapa da construção da
competência, a partir da qual todas as outras modalidades pode-
rão se desdobrar.
Essa proposição está de acordo com a análise que faremos
adiante da fidúcia, pois trata-se, para o sujeito prestes a agir, de
perceber (ou de sentir) sua competência não como simples com-
petência, mas como “eficiência” (cf. capítulo “Fidúcia”), assim como
Perrette, em La Fontaine, põe-se a crer na eficiência sem limites
dos objetos modais de que está dotada. Essa crença pode tomar
duas formas: a primeira é uma crença que, do ponto de vista do
caráter predicativo, será endógena e, do ponto de vista tensivo,
abertura: é a assunção (o sujeito assume sua competência como
uma eficiência sentida como que “do interior” ou, de todo modo,
com plena “autonomia”); a segunda é uma crença exógena e, do
ponto de vista tensivo, fechamento: é a adesão (o sujeito adere à
sua competência como uma eficiência sentida “do exterior”;
estamos então diante da “heteronomia”).
A série completa dos modos de existência fica agora vincu-
lada à das modalidades, como a seguir:

255
MODALIDADE

Potencializada Virtualizada Atualizada Realizada


Endógena ASSUMIR QUERER SABER SER
Exógena ADERIR DEVER PODER FAZER
(crenças) (motivações) (aptidões) (efetuações)

Os modos de existência engendram pois a tabela máxima


das modalidades simples, pela mera projeção da alternância en-
tre modalizações endógenas e modalizações exógenas, isto é,
pela mera combinação com o parâmetro da perspectiva predica-
tiva e actancial. Em conseqüência, os modos de existência po-
dem ser considerados como proto-modalizações, as quais pode-
mos considerar como modalizações existenciais.
Mas tal posição levanta uma nova dificuldade. Com efeito,
durante o longo tempo em que o ser e o fazer ficaram fora do
campo modal, as quatro modalidades admitidas podiam passar
por modalidades do fazer e do ser. Mas, a partir do momento em
que o ser e o fazer são considerados de mesma classe que as
outras modalidades, coloca-se a seguinte questão: o que então
as modalidades modalizam? E, mais precisamente, o que as mo-
dalidades existenciais modalizam? A resposta se encontra no
capítulo “Presença”, em que os diferentes modos de existência
são caracterizados em termos de “densidade de presença”. As mo-
dalizações existenciais modalizariam pois a presença, isto é, uma
predicação diretamente saída do ato perceptivo (cujo correlato
lingüístico é o chamado predicado de “existência”: cf. “Há alguém”).
Dessa forma, tais modalizações da presença podem ser interpre-
tadas como diferentes equilíbrios do desdobramento da intensi-
dade e da extensidade num campo perceptivo, considerado como
coextensivo a um “domínio” semântico ou um “universo” semió-
tico. Se as modalizações existenciais são formas tensivas, as mo-
dalidades que lhes correspondem não podem ser encaradas sim-
plesmente como categorias fixas ocupando, de maneira discreta,
casas fechadas e inamovíveis numa rede definicional.

256
MODALIDADE

Reencontramos aqui, portanto, a questão da gradação das


modalidades, já postulada a propósito das correlações tensivas
que as unem nos dispositivos passionais. Para uma teoria discur-
siva das modalidades, isso implica que seu caráter gradual ou
discreto, tensivo ou massivo, depende concretamente do instru-
mental do analista: conforme esteja equipado para isolar unida-
des modais ou para estabelecer correlações, ele as tratará como
entidades discretas ou como entidades graduais.
Além disso, o “obstáculo à atualização”, na teoria guillau-
miana do modo, está associado a um retardamento da atualiza-
ção: noutros termos, a modalização afeta o “tempo operativo”,
qual seja, para Guillaume, o tempo gasto para conceber e atuali-
zar o processo em discurso; pois o lingüista, a partir da idéia de
que “o modo é essencialmente um problema de foco”, propõe
que se leve em conta20 :

“um quantum q, apreciável, que representa a distância que o foco


teria ainda a percorrer antes de atingir a linha de atualidade.”21

Nesse caso, não se trata de uma simples distância espacial


entre a “linha” de foco e a “linha” de atualidade, mas, como a
primeira é tomada no desdobramento do “tempo operativo”, tra-
ta-se de uma distância ou espessura que refreia, em maior ou
menor medida, o tempo do foco enunciativo. De qualquer modo, a
modalização retarda mais ou menos (ou acelera, se for sincopada)
o processo enunciativo. Para esclarecer esse ponto, tomemos como
exemplo este diálogo extraído de Rhinocéros, de Ionesco:

Jean: ...Bon. N’en parlons plus.


Béranger: Vous êtes bien gentil.
Jean: Et alors?

20
Op. cit., p. 30.
21
Op. cit., p. 36.

257
MODALIDADE

Béranger: Je tiens quand même à vous dire que je regrette


d’avoir soutenu avec acharnement, avec entêtement, avec
colère, ...oui, bref, bref, j’ai été stupide.
Jean: Ça ne m’étonne pas de vous.22

O empilhamento de modalizações é aqui particularmente


notável na última réplica de Béranger, já que contamos aí pelo
menos cinco níveis: “soutenir” (“afirmar”) modaliza o conteúdo
das proposições evocadas; “avec acharnement, avec entêtement,
avec colère” (“com obstinação, com teimosia, com cólera”)
modalizam “afirmar”; “je regrette” (“lamento”) modaliza tudo o
que precede; “tenir à” (“fazer questão de”) modaliza “dire” (“di-
zer”), e “quand même” (“mesmo assim”) modaliza “tenir à”. O
retardamento imposto à atualização do predicado é tanto mais
evidente uma vez que, nesse caso extremo, a proposição de base,
encarregada de suportar todo o peso dessa modalização, não é
sequer mencionada, como se isso fosse esquecido no fim de uma
interminável cadeia de modalizações.
A modalização torna mais lento, pois, o processo de enun-
ciação, ao introduzir mediações, vários estratos predicativos que
segmentam e estendem o foco do sujeito, ao distender em suma
a interação, introduzindo pouco a pouco as condições de um foco
comum. Concretamente, no próprio plano da expressão, essa
desaceleração do processo de enunciação pode até mesmo se
manifestar, como por vezes para Béranger, sob a forma de auto-
correções, por meio das quais ele desdobra “em tempo real” (isto
é, em tempo mensurável da expressão) o tempo lento das diferen-

22
[N. dos T.]:
Jean: ... Bem, não falemos mais nisso.
Béranger: Você é muito gentil.
Jean: E então?
Béranger: Faço questão de dizer, mesmo assim, que lamento ter afirmado com obstina-
ção, com teimosia, com cólera, ... sim, quer dizer, enfim, fui estúpido.
Jean: Não me espanta isso vindo de você. (In: Rhinocéros. Paris, Le Livre de Poche, p.
140-1).

258
MODALIDADE

tes operações enunciativas. Ao contrário, a raridade da modaliza-


ção no discurso de Jean aparece no caso como uma aceleração,
um atalho enunciativo, mesmo porque a única modalização utili-
zada (o espanto) implica um tempo mais rápido, tempo que, além
do mais, está conjugado à negação, o que anula de fato qualquer
instante mínimo para a surpresa.
Mas, se observamos mais de perto, notamos que Béranger
não dispende todos os seus esforços para apagar a incongruência
de voltar a uma discussão declarada encerrada pelo outro, que
acaba justamente de dizer: “N’en parlons plus” (“Não falemos mais
nisso”). “Tenir à...” manifesta um querer intenso que parece moti-
var a transgressão. “Quand même” é a forma concessiva que ao
mesmo tempo reconhece a regra rompida e anuncia que ela não
será respeitada. Béranger se vê então pego entre dois percursos:
no primeiro, que corresponde à espera manifesta de Jean (“N’en
parlons plus”), ele parece ter ultrapassado o limite “terminativo”.
No segundo percurso, ele se põe em posição “durativa”, até mes-
mo “iterativa”, visto que já o disse uma vez. A modalização tra-
duz aqui o esforço de postergar o fechamento da discussão, evi-
tando romper o fio da conversação com Jean. A distorção entre os
dois percursos é, pois, ao mesmo tempo aspectual (terminativo/
durativo) e modal (não dever dizer/querer dizer). Nesse sentido, a
modalização aparece como um meio de ajustar uma diferença de
potencial, de distender uma valência inversa entre dois gradien-
tes e de atenuar a velocidade de transição entre o percurso espe-
rado e o percurso proposto. Em suma, seja-nos perdoada a metá-
fora, a espera frustrada sobremodalizada estaria para a espera
frustrada simples assim como o plano inclinado está para o des-
nivelamento puro. Aliás, Béranger se perde nos meandros de suas
modalizações e, para acabar, adota uma enunciação mais “abrup-
ta” (“Bref, j’ai été stupide” [“Enfim, fui estúpido”]), cujo aspecto
rápido é até mesmo sublinhado pelo comentário “bref ”, e que
recebe de volta um enunciado de mesmo tipo, semelhante a um

259
MODALIDADE

“corte” (“Ça ne m’étonne pas de vous” [“Não me espanta isso


vindo de você”]).
As variações de tempo ligadas à modalização não são, pois,
acrescentadas aos valores modais, ao contrário, são os valores
modais que têm a incumbência de negociar e ajustar a tensão
inerente ao foco predicativo: quer acelerem, quer tornem lento o
foco, eles exprimem e modulam um “tempo interno” da predicação,
independente da temporalidade própria ao desenvolvimento do
processo, mas também diferente de direito, quando não de fato,
do tempo da enunciação. Por conseguinte, na perspectiva de uma
apresentação global da instância da enunciação, conviria inscre-
ver de início o tempo da predicação, o qual receberia em seguida
as determinações dêiticas, de um lado, e as modais, do outro.
Esse exemplo mostra fartamente que as modalizações não
são simples “pressupostos” do fazer, a não ser numa certa distân-
cia dos fenômenos predicativos, distância suficiente para impedir
de distinguir a imbricação da modalização com a aspectualização
e com o tempo da predicação. Se tomarmos distância suficiente,
não vemos mais o que liga a transformação e as aquisições modais.
Mas a análise discursiva, “rente aos fatos”, constata, como no
exemplo que precede, que o poder de um dos actantes pode bas-
tar para apressar um fechamento, que o querer do outro lhe per-
mite retardar um pouco o efeito desse decreto terminativo, e en-
fim que a incidência das modalizações sobre uma ou outra fase
aspectual do processo determina as variações profundas do tem-
po.
Paralelamente, os efeitos de sentido passionais são o “chei-
ro”, o “perfume”, como se diz, dos arranjos modais: do mesmo
modo que o perfume emana não da estrutura da matéria, mas de
combinações provisórias entre moléculas, a paixão é um efeito
de sentido não das estruturas modais, mas de seus arranjos pro-
visórios. De fato, não são as estruturas modais, enquanto estru-
turas – por exemplo o quadrado semiótico do “querer fazer” ou

260
MODALIDADE

do “poder ser” –, que estão em pauta, mas antes as intersecções,


as combinações e as correlações tensivas entre diferentes estru-
turas modais. Por exemplo, um efeito de sentido passional pode-
rá nascer da combinação (simultânea ou seqüencial, conforme o
caso) de um “querer ser”, de um “não poder ser” e de um “saber
não ser”; um outro poderá ser construído a partir de um “dever
ser” e de um “não querer ser” etc. Do mesmo modo, uma interação
conversacional em que circulam simulacros modais dos parceiros
só se torna passional se as modalizações de um são correlatas às
do outro: então, a intensidade do querer de um acarreta, por
exemplo, o enfraquecimento do poder do outro, e os efeitos pas-
sionais entram em cena.
Assim, a dinâmica modal das paixões não está inscrita nas
estruturas modais: é um efeito de seu uso. É o uso que determina,
numa dada cultura, quais são as combinações modais aceitáveis,
quais delas têm efeito de sentido passional e qual é o princípio
pelo qual as modalidades que os compõem se transformam umas
nas outras no curso do processo passional. É notório efetivamente
que, se as modalidades são universais ou generalizáveis, as pai-
xões são por sua vez características de áreas ou épocas culturais
bem determinadas. Por exemplo, é em decorrência do uso que,
no caso da obstinação, um “não poder fazer” induz a um reforço
e uma reafirmação do “querer fazer”, uma vez que tal efeito não
é diretamente calculável apenas a partir da definição geral dessas
duas modalidades. Do mesmo modo, é também por efeito de um
uso que a “impulsividade” aparece como forma particular de “que-
rer & poder”, afetada por um traço /incoativo/ e por um traço /
intensivo/: com efeito, nada permite prever, no nível próprio das
estruturas modais, que essa combinação modal deva ser acompa-
nhada desses dois traços tensivos e aspectuais.
O produto do uso seria, por conseguinte, um dispositivo
modal estereotipado, apresentando correlações e síncopes entre
as modalidades, e sobredeterminado pelos perfis de intensidade

261
MODALIDADE

e pela aspectualidade. Somos pois levados a considerar que as


combinações modais, responsáveis pelos efeitos de sentido
passionais, constituem uma espécie de “estoque” de blocos fi-
xos, de que os sujeitos podem lançar mão para manifestar as
paixões da cultura à qual pertencem. Mas logo notamos que as
modalidades por si sós não bastam: assim como elas, são tam-
bém estocadas outras grandezas, de tipo tensivo e aspectual, que
lhes permitem engendrar umas às outras, entrar em choque, re-
forçar-se ou combater-se no interior de um mesmo “bloco”, de
uma mesma paixão, ou até mesmo de uma interação.
Chamaremos “estilo semiótico” o conjunto dos traços
aspectuais, existenciais e tensivos que acompanham as moda-
lidades nos dispositivos fixos, por pouco que esses traços sejam
recorrentes e característicos de uma paixão-efeito de sentido.
Por exemplo: o /incoativo & intensivo/ para a “impulsividade”.
O estilo semiótico aparece, dessa forma, como uma modulação
coerente, aplicada ao processo passional, e identificável sob a
forma de fenômenos rítmicos, aspectuais e quantitativos, entre
outros, ao longo do percurso do sujeito. Nos termos do próprio
Hjelmslev, as modalidades seriam os “constituintes” da sintaxe
modal, e o estilo semiótico, o conjunto de seus “expoentes”,
formando uma “modulação”. De acordo com a proposta indicada
no capítulo “Esquema”, é a modulação tensiva que esquematiza as
configurações passionais.
Os estilos semióticos, na medida em que trazem aos esque-
mas passionais sua dimensão sensível, têm virtudes heurísticas
nada desprezíveis, já que permitem uma identificação imediata
dos papéis passionais, notadamente nas estratégias da interação.
A dimensão passional dos discursos aparece então como uma
espécie de “perfil prosódico” do conteúdo modal, em que estão
inscritas as variações de intensidade dos afetos e das emoções.

262
FIDÚCIA

FIDÚCIA

1 RECENSÃO

O S DICIONÁRIOS não dão grande importância à fidúcia: para


o Littré como para o Robert, ela apenas concerne ao voca-
bulário jurídico; “fiduciário” é mais bem tratado, já que sua defi-
nição depreende a ligação entre valor e confiança: “diz-se dos
valores fundados na confiança depositada naquele que os emi-
te”. Como sempre em semiótica, a interrogação não incide sobre
os termos, mas sobre a predicação que os capta em conjunto:
será que os valores estariam todas as vezes sob o controle da
confiança? Qual a significação dessa relação intersubjetiva? Seria
essa relação intersubjetiva, por sua vez, dependente de uma rela-
ção reflexiva, isto é, da confiança em si?
Se a confiança tem por verbo pivô crer, o campo da fidúcia se
torna também o da fé, isto é, da relação entre destinador e destinatá-
rio. Mas como o crer remete a um fazer-crer, os papéis temáticos do
tolo e do trapaceiro, tais como aparecem na literatura antiga e
notadamente no teatro, chamam também a atenção, como se a tra-
paça e a astúcia fossem, diante dos privilégios do poder, instrumen-
tos, programas de uso de uma justiça imanente: já que o mestre
dispõe legalmente do monopólio da força, o trapaceiro recebe aplau-
sos de um público cuja simpatia soube conquistar.
O campo da fidúcia parece de fato coextensivo ao campo
semiótico desde que admitamos que concerne ao valor e, conse-
qüentemente, às condições de sua emergência e circulação: en-
tendemos com isso que a fidúcia é inerente às linguagens-obje-
to, mas igualmente às metalinguagens, embora estas tendam a
pensar que a “cientificidade” é medida pela distância tomada e
conservada perante o crer, enquanto a verdadeira cientificidade
consiste talvez em conseguir admitir que o crer se mantém à cus-
ta de constantes deslocamentos e dissimulações, tal como Greimas

263
FIDÚCIA

sugere no artigo brilhantemente intitulado O saber e o crer: um


mesmo universo cognitivo1 .

2 DEFINIÇÕES

2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Oscilando entre a “simples opinião” e a “convicção profun-


da”, é tamanha a dispersão e polarização axiológica da fidúcia
que, para a maioria dos comentadores, um modelo único seria
pouco apropriado. Admitindo a instalação da tensividade fórica
na estrutura profunda, podemos supor que a cisão protoactancial
obedece a duas opções: a alteridade, que engendra a distinção
entre o sujeito e o objeto, ou a ipseidade, que produz a distinção
entre o sujeito e o outro. Esse dispositivo mínimo – um objeto e
dois sujeitos –, que supõe ao menos um foco possível, já se fun-
da assim na fidúcia, que se manifesta em duas versões: a confian-
ça para a relação intersubjetiva, e a crença para a relação sujeito/
objeto. Haveria de fato três regimes diferentes da fidúcia, confor-
me o alcance que lhe seja atribuído: (i) o regime neutro, ou áto-
no, comprometeria apenas o próprio sujeito (alcance subjetivo),
o que é testemunhado em francês, por exemplo, pela construção
direta do verbo crer – “Je te crois”, “Il croit que p” –, considerada
de imediato como uma modalidade enunciativa subjetiva; (ii) o
regime diferenciado, ou tônico, introduziria quer a relação do
sujeito com o objeto (alcance objetivo), e seria então a crença –
em francês: “je crois à...” –, quer a relação intersubjetiva, e esta-
ríamos diante da confiança – em francês: “je crois en lui”2 . Essa
definição baseia-se num dispositivo de três actantes: um objeto e
1
GREIMAS, A. J. “Le savoir et le croire: un seul univers cognitif ”, in Du sens II, op. cit., p.
115-33.
2
[N. dos T.]: Pela ordem: “Acredito em você”, “Ele acredita que p” (dar crédito a; ter
como verdadeiro), “Creio em...”, “Creio nele” (no sentido de “crença num objeto” e
“confiança intersubjetiva”).

264
FIDÚCIA

dois sujeitos, em que o valor do objeto seria condicionado por


uma certa relação entre os dois sujeitos. A fidúcia seria, desse
ponto de vista, um espaço de acolhimento das valências, conce-
bidas como “condições do valor”. Seja pois:

Fidúcia
(S)

Confiança Crença
(S1/S2) (S/O)

Antes de examinarmos as relações entre esses dois siste-


mas, convém esboçar-lhes as articulações elementares. Examina-
remos primeiramente o sistema da crença. Se nos limitarmos,
para comodidade da exposição, às operações e seu resultado es-
tabilizado ou em via de estabilização, chegaremos a esse quadro
simplificado:

A fir m a r N eg a r
(c er tez a ) (n iilis m o )

C re r D u v id a r
(co n vic çã o ) (c eticis m o )

O crer é uma das seqüências de um complexo discursivo


que compreende também o conhecer e o saber: conhecer + saber
+ crer. Situamos o conhecer num espaço cognitivo onde um sujei-
to, modalizado pela curiosidade e a atenção, e que se atribui ou
a quem é atribuída certa perspicácia, dispõe-se a “penetrar” um
objeto que considera – ou que é considerado – como misterioso
e mal conhecido. Do ponto de vista discursivo, esse sujeito, ao

265
FIDÚCIA

cabo de sua investigação, acrescenta ou retira um predicado p,


ou então substitui o predicado p por um predicado p’. O saber, por
sua vez, depende da acessibilidade desse conhecimento e, por
conseguinte, das interdições ou facilidades que o sujeito encon-
trará: o enunciado a que o conhecimento chegou, será protegido
ou revelado? Por fim, o crer, que com razão foi identificado a um
“ter por verdadeiro”3 , acrescenta ou não um valor de verdade cuja
base é fiduciária. A partir disso, uma tipologia dos discursos de-
veria se empenhar em reconhecer, num discurso-objeto, o jogo
dos componentes respectivamente heurístico (conhecer), esotérico
(saber) e fiduciário (crer).
A tipologia do crer proposta acima é uma representação
simplificada, visto que não distingue o sujeito do fazer do sujeito
de estado, e que não leva em conta as configurações instáveis da
suspeição, da hesitação e até mesmo do questionamento. Para nós,
trata-se apenas de pôr em relevo a especificidade do crer.
O caso da confiança é, ao menos num primeiro momento,
diferente do da crença, já que a confiança está manifestamente
face a face diante do temor, de modo que ela se instala diretamen-
te na dimensão patêmica. Na configuração passional que se dese-
nha então, é preciso observar de imediato o papel organizador
de uma figura proprioceptiva, a agitação, cuja emergência ou su-
pressão decidem o “estado de espírito” do sujeito e respondem
pelo “estilo tensivo” da confiança (cf. o capítulo “Paixão”). Os es-
tados extremos, a saber, a inquietação e a firmeza, são relativos à
presença e à ausência da agitação, enquanto os subcontrários, cada
qual conforme seu “estilo”, portam os graus intermediários da agi-
tação: a serenidade informa que o sujeito está em disjunção com a
agitação ou desprendeu-se dela, ao passo que o medo mostra um
sujeito tomado pela agitação. Notemos de passagem que a agita-
ção concerne também, ou antes de tudo, a um componente prosódico
3
Encyclopédie philosophique universelle, tome 1. Paris, P.U.F., 1990, p. 522. [N. dos T.]:
Estamos traduzindo esse “crer” (vide nota anterior) por “acreditar”.

266
FIDÚCIA

do conteúdo, e em especial às estruturas que P. Aa. Brandt qualifi-


cou judiciosamente de “nervosas”. Atingimos as estruturas elemen-
tares da confiança pela somatização, isto é, pelo plano da expres-
são, mas, mesmo assim, não estamos fora da abordagem semióti-
ca, uma vez que as formas da somatização são correlatas a efeitos
de sentido passionais.
Tomando por fio condutor a agitação expressa pelas defini-
ções dos dicionários [colocadas entre colchetes], chegamos às se-
guintes estruturas elementares tímicas:

Inquietação Firmeza
[agitação decorrente do [qualidade daquele que não
temor] se abala]

Medo Serenidade
[emoção decorrente da [estado tranqüilo, sem
tomada de consciência de agitação]
um perigo]

O fato de que a agitação se apresenta como uma grandeza


que circula entre os papéis patêmicos parece indicar que a dire-
ção em pauta é a do tempo e da intensidade, como bem demons-
tra um texto de Malebranche:

“ [o temor] impõe ao espírito abalos imprevistos que o atordoam e


perturbam: penetram logo até o mais secreto da alma e derrubam a
razão de seu trono, proferem juízos de erro ou iniqüidade sobre
todos os assuntos, para favorecer sua loucura e sua tirania.”4

4
Malebranche, Recherche de la vérité, V, 12. Esta citação é tirada da Encyclopédie philosophique
universelle, tome 1, op. cit., verbete “Crainte”, p. 503.

267
FIDÚCIA

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS DA CONFIANÇA

Não tentaremos aqui surpreender a gênese da confiança e


da desconfiança. Podemos nos contentar com um levantamento
sincrônico a partir dos estados e dos vaivéns patêmicos vividos
pelos sujeitos. Trata-se agora da relação com o outro, isto é, da
comparação entre dois simulacros, aquele que o outro procura
fazer prevalecer e aquele que eu mesmo, informado desse querer-
parecer do outro, tento estabelecer da forma mais exata. Cada
posição do percurso fiduciário é, pois, construída como um duelo
entre o simulacro do outro – sua força ilocutória, se se preferir –
e a resposta do ego – o efeito perlocutório – que será menciona-
da, no esquema a seguir, entre colchetes. A categoria da agitação
conserva aqui seus direitos, mas desta vez ela é o desafio das
“gesticulações” fiduciárias dos dois parceiros.

Ameaçador Benevolente
[→ inquieto] [→ tranquilo]
ü

Impiedoso Confortante
[→ assustado] [→ confortado]

Esquematizamos aqui apenas a versão mais simples do


percurso fiduciário, mas podemos imaginar sem dificuldade
interações em que o ego responderia por exemplo à ameaça com
a maior tranqüilidade. Mas nesse caso, trata-se ou de um fracasso
da manipulação (não se crê na ameaça, ela não é “levada a sé-
rio”), ou então de uma contra-manipulação: à primeira ameaça se
opõe, como ameaça maior, a firmeza do ego. A intersubjetividade

268
FIDÚCIA

se desdobra, desse modo, a partir das diferentes confrontações


possíveis5 entre o quadrado que define as posições do destinador
da confiança e o que define as posições de seu destinatário. O
quadrado proposto acima corresponde apenas às “conformida-
des”; a rotação dos dois quadrados, um por relação ao outro,
exibe além disso as “complementaridades”, as “incompatibilida-
des” e as “contradições”. Embora formalmente calculáveis, as po-
sições do destinatário não são, pois, direta e ingenuamente
induzidas pelas do destinador.

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS DA CRENÇA

Para Greimas, a determinação dos valores veridictórios na


intersubjetividade tem por pivô o que chama de “contrato
veridictório” 6 . Tal contrato permite estabilizar a interação
fiduciária, notadamente introduzindo um coeficiente veridictório
nos simulacros de cada parceiro. Para que o contrato funcione, é
preciso, com efeito, no caso em que o outro aparece benevolente
ou ameaçador, que o ego esteja seguro de que o outro é efetiva-
mente benevolente ou ameaçador.
Para pôr em destaque as definições restritas, retornaremos
aos papéis temáticos do trapaceiro e de seu tolo, e admitiremos
que o fazer crer do trapaceiro é um “iludir”, mas contentando-nos
com o primeiro grau; o segundo grau é aquele em que o tolo,
prevenido ou particularmente perspicaz, começaria por sua vez a
“trapacear” seu trapaceiro. O iludir elementar do trapaceiro se
apresenta assim:

5
Cf. GREIMAS, “De la modalisation de l’être”, Du sens II, op. cit., p. 89-90, onde está
definido o princípio das confrontações.
6
GREIMAS, A. J. “Le contrat de véridiction”, Du sens II, op. cit., p. 103-13.

269
FIDÚCIA

Revelar Iludir
[→ olhos abertos ] [→ estar iludido]

Desiludir Dissimular
[→ estar desiludido] [→ estar cego]

Assim, no exemplo escolar, a “raposa” revelada, isto é, pre-


cedida por sua deplorável reputação, esforça-se por cegar o tolo
escolhido para, em seguida, iludi-lo. O percurso do tolo se inscre-
ve no mesmo espaço, mas na outra direção.
Também nesse caso, a resposta é, de direito, independente
da manipulação; contra-manipulações são sempre previsíveis. O
tolo pode certamente deixar-se ludibriar por completo pelos pla-
nos do trapaceiro, mas, quer porque o trapaceiro se traia, quer
por se beneficiar com informações seguras vindas de terceiros
dignos de fé, pode entrar na fase da suspeita, ser desiludido e a
partir daí começar a desmascarar o trapaceiro, mascarando-se por
sua vez... Observemos de passagem que Molière, em seu Tartufo,
depois de instalar Orgon no papel de tolo e Tartufo no de trapa-
ceiro, inverte os papéis fiduciários a partir do quarto ato: Tartufo,
traído por sua paixão, torna-se um trapaceiro logrado e Orgon,
pela intervenção de Elmira, um tolo “trapaceador”. Orgon, víti-
ma de Tartufo, se torna seu duplo.

2.2.3 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS CANÔNICAS DA CRENÇA E DA CONFIANÇA

Em sua análise da promessa, Brandt usa conjuntamente a


fórmula da inferência (“se...então”) e o par prótase/apódose:

“Numa primeira fase, de manipulação, um Enunciador propõe a fór-


mula condicional a um Enunciatário: ‘se você fizer isso, eu faço aqui-
lo’. Podemos dizer que esse ato linguageiro constitui uma arqui-

270
FIDÚCIA

promessa (que, num outro nível, poderá se dividir em promessa e


ameaça).”7

O enunciador aciona um fazer-crer ao qual responde ou não


um crer do enunciatário: se a “boa vontade” fiduciária vier a fal-
tar, então, segundo Brandt, surge a ameaça, mas ficamos assim
mesmo dentro do espaço fiduciário, visto que o enunciatário deve
decidir, por sua conta e risco, se tal ameaça é “séria” ou não. Mas
a fórmula da inferência só tem aparência de raciocínio formal.
Com efeito, a implicação (“se...então”) apóia-se numa dependên-
cia, mas admite igualmente a crença numa eficiência. Sob o regi-
me ambivalente da promessa e da ameaça, estabelecer a depen-
dência entre dois enunciados é torná-la eficiente.
Para ampliar a perspectiva, examinemos de igual modo a
imbricação entre a promessa e o sacrifício. Tanto quanto a ascese,
o sacrifício é uma renúncia que se torna condição da oferenda,
numa relação de troca gentil e interessada:

“‘Dá-me e dar-te-ei. Estende-te para mim e estender-me-ei para ti.


Apresenta-me uma oferenda e apresentar-te-ei uma oferenda’. É as-
sim que o sacrificador se dirige ao deus numa fórmula védica. Esse
ato de dar e de tomar contém apenas a necessidade recíproca que
une o homem e o deus e que os liga na mesma medida e no mesmo
sentido.”8

No caso da promessa-ameaça, de acordo com Brandt, um


destinador manipula um destinatário para reduzir uma disjunção
e chegar a uma conjunção. No caso do sacrifício, é o inverso que
se produz, na medida em que uma disjunção que se tornou
irreversível – o sacrifício – permite ao destinatário obter em troca
que o destinador, por sua vez, aceite disjuntar-se da oferenda.

7
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Sémiotique, II, op. cit. p. 48.
8
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, tome 2, op. cit., p. 263.

271
FIDÚCIA

Torna-se possível propor um sistema que compreenda al-


gumas das grandes categorias fiduciárias. O par promessa-amea-
ça conjuga a intensidade da espera de junção e uma orientação: (i)
a espera de junção é evidentemente mais intensa na promessa
que na ameaça, visto que, nesta, aparece um risco de disjunção
para cada um dos parceiros; a ameaça vem de alguma maneira
preencher um déficit na espera da junção; (ii) a orientação do
dispositivo actancial vai do destinador ao destinatário que ele
manipula. Mas no sacrifício, essa orientação fica invertida e po-
demos admitir que, nesse outro caso, o destinatário se empenha
em manipular o destinador. A promessa e a ameaça procedem do
mandamento e o sacrifício, de sua parte, da súplica. Se aceitamos
ver no sacrifício uma súplica indireta, então falta identificar a sú-
plica direta, isto é, o quarto termo da proporção: nada mais é do
que a prece, nos próprios termos de Cassirer. Com efeito, para
este, assim como para Lévi-Strauss:

“A prece está destinada a superar o abismo que separa o homem de


seu deus.”9

O programa de uso não é mais aqui a oferenda, mas a eficá-


cia da palavra. O sistema que articula conjuntamente ameaça,
promessa, sacrifício e prece apresenta-se, pois, assim:

MANDAMENTO SÚPLICA
(manipulação do destinatário (manipulação do destinador
pelo destinador) pelo destinatário)

Tensão para a conjunção Promessa Prece

Tensão para a disjunção Ameaça Sacrifício

9
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, tome 2, op. cit., p. 268.

272
FIDÚCIA

Em termos de valências, isto é, de correlações entre gra-


dientes tensivos, o mandamento e a súplica funcionam ao inver-
so um do outro. Ambos associam a força de uma condição – a
criada pela implicação – e a de uma confiança. Do ponto de vista
do manipulador, no mandamento, a condição é forte e a confian-
ça, fraca, de modo que a primeira aparece como uma pressão
exercida para compensar a fragilidade da segunda. Em contrapar-
tida, na súplica, a condição é relativamente moderada e a fé, in-
tensa.
Mas do ponto de vista do sujeito manipulado, essas corre-
lações podem a todo momento inverter-se, em função da credibi-
lidade que ele atribui ao manipulador: abaixo de um certo limiar,
a força da promessa ou da ameaça pode crescer no mesmo senti-
do que a confiança; para além desse limiar de credibilidade, tor-
na-se excessivamente forte a condição que, imagina-se, o
manipulador seja capaz de suportar. Por isso, ela não parece mais
verossímil, e a correlação se inverte: a partir desse limiar, quanto
maior a promessa ou a ameaça, menor a confiança. Inversamen-
te, no caso do sacrifício e da prece, a condição deve ultrapassar
um certo limiar para suscitar a confiança, na medida em que ela
será realizada antes que o destinador manipulado tenha de res-
ponder.
A combinação desses dois pontos de vista permite inter-
pretar a progressividade das estratégias: por um aumento gra-
dual da condição, o manipulador pode, ao mesmo tempo, testar
a confiança de seu parceiro e tentar recuar o limiar da credibilida-
de que lhe é atribuída.

3 CONFRONTAÇÕES

Na introdução de Des dieux et des hommes, Greimas estabe-


lece uma correspondência entre crença e complexidade:

273
FIDÚCIA

“Como o crer é uma atitude relativa e não categórica, o grau de


crença atribuído a um ou outro relato é bastante variável. De outro
lado, o crer se manifesta freqüentemente sob a forma de termos
complexos, o que significa que as pessoas têm tendência a crer e a
não crer simultaneamente num fato ou num dizer”10

No texto intitulado “Le contrat de véridiction”, que já men-


cionamos, Greimas retomava o liame entre crença e complexidade,
mas aproximando as noções de complexidade e pacto:

“Como interpretar esse fenômeno do crer ambíguo que se apresenta


como a coincidência dos contrários, como o termo complexo que
reúne certeza e improbabilidade, senão pelo fato de que pertence a
dois contextos ideológicos incompatíveis e, em última análise, a
duas epistemes coexistentes?”11

Mas, ao lado dessa complexidade elementar, convém reser-


var um lugar para outras espécies de complexidade de tipo
aspectual. A primeira diz respeito à confiança nas coisas e, de
maneira geral, à confiabilidade: chama-se de “confiável”, segundo
os dicionários,

“um material no qual podemos ter confiança, cuja probabilidade de


quebrar ou de deixar de funcionar é muito pequena”

Examinemos de perto a confiabilidade dos materiais, isto


é, a solidez: ela se baseia nas alterações de equilíbrio entre as
forças de coesão, que perenizam, e as forças de dispersão, que
destroem, de modo que os termos da categoria emergem como
formas aspectuais:

10
GREIMAS, A. J. Des dieux et des hommes. Paris, P.U.F., 1985, p. 22.
11
GREIMAS, A. J. Du sens II, op. cit. p. 112-3.

274
FIDÚCIA

Efêmero Durável

Precariedade
{ } Solidez

Frágil Resistente

A fragilidade e a resistência são sempre graduáveis e um


dos eixos do fazer tecnológico consiste justamente em fazer cres-
cer a resistência dos materiais, isto é, deslocar o ponto de equilí-
brio entre as forças antagonistas. Como o salienta M. Hammad,

“[...] a inscrição dos valores modais na matéria só é interessante


porque a matéria é estável. Noutros termos, é apenas por ser desti-
tuída de um querer próprio que a matéria tende a não mudar por si
mesma e a perseverar no seu ser, e que o actante encarregado do
controle da fronteira pode aí inscrever seu próprio querer a ser
transmitido”12

Mas esse estudo mostra igualmente que a simples questão


de confiabilidade de um “estado de coisas” deriva para uma ques-
tão de confiança num “estado de alma”, isto é, que a natureza
acaba por receber obrigações, suscitando expectativas, decepções,
alívios...
Entretanto, o exame atento de certas estruturas modais
parece indicar que os sujeitos estão, eles também, em busca de
uma “confiabilidade passional”, isto é, de sua perseverança pas-
sional: como garantir a estabilidade de uma paixão? Quanto a
essa questão singular, Semiótica das paixões apresenta alguns ele-
mentos para resposta, indicando, a propósito da avareza:

12
HAMMAD, M. “La privatisation de l’espace”, Nouveaux Actes Sémiotiques, 4-5. Limoges,
Trames/PULim, 1989, p. 40.

275
FIDÚCIA

“três segmentos definicionais: (1) o apego excessivo ao dinheiro, (2)


a paixão de acumular e (3) a paixão de reter as riquezas.”13

Separemos o primeiro segmento, que está ligado à proble-


mática dos pontos de vista: “excessivo” procede do redator do
dicionário, pois, se o avarento fosse interrogado, provavelmente
acharia que o excesso não é dele, e sim da incrível leviandade da
conduta dos outros, que “jogam dinheiro fora”. O segundo e o
terceiro segmentos são disjuntos e conjuntos: são disjuntos na
medida em que o segundo segmento refere-se à apreensão, ao até
agora, enquanto o terceiro concerne ao foco, isto é, a partir de
agora. Por outro lado, eles são literalmente conjuntos na medida
em que se juntam, “tocam-se” no presente precisamente a fim de
assegurar essa continuidade passional essencial:

“[...] tudo se passa como se a eficácia da competência passional


dependesse de sua aspectualização: com efeito, a paixão do avaro só
se exerce e só é reconhecível em razão do caráter iterativo da con-
junção e do caráter continuativo da não-disjunção.”14

A certeza de uma permanência passional estaria, pois, na


dependência de uma transitividade singular que faria do agora
não um termo duplamente negativo, isto é, neutro, mas um ter-
mo complexo, que compreende o último termo da apreensão
conjuntiva e o primeiro termo do foco não disjuntivo. O avaro só
acumula para guardar, e só guarda o que acaba de acumular: esse
encavalamento, ou melhor, esse encadeamento sem hiato entre a
apreensão e o foco, essa “espessura” aspectual do instante pas-
sional não deixa de evocar a concepção guillaumiana do presen-
te, como complexo de decadência e ascendência.

13
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 102.
14
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Sémiotique des passions, op. cit., p. 116. [N. dos T.]:
Neste trecho, recorremos ao original.

276
FIDÚCIA

O “nascimento” e a “morte” de uma paixão – muitas vezes


considerados tão incompreensíveis um quanto o outro – toma-
riam a forma, do ponto de vista do objeto, de crises aspectuais e,
do ponto de vista do sujeito, de crises fiduciárias, tanto umas
quanto as outras assegurando ou não a continuidade passional.

277
EMOÇÃO

EMOÇÃO

1 RECENSÃO

S E FOSSE PRECISO prova suplementar para o fato de que


uma disciplina em via de constituição tem por verdadei-
ros objetos justamente aqueles que, de início, exclui de suas
preocupações, o destino reservado à emoção traria essa prova.
Para a lingüística e para a semiótica, o significado não é, por
certo, o conceito, mas é muito semelhante; assim como ele, dei-
xa transparecer uma desconfiança diante do sensível e da emo-
ção que é, por assim dizer, a unidade elementar do sensível. Mais
que isso, uma tradição intelectual serve-se de um certo uso das
modalidades veridictórias para desaconselhar sua investigação:
o conhecimento é desperdício, só o mistério é gratificante. Se
mais ninguém pensa seriamente em negar a significação das emo-
ções e das paixões, fica a questão de saber se a semiótica da
emoção se conformará às aquisições já consolidadas, ocupando
aí alguma lacuna, ou se levará a um reexame, e, nessa hipótese,
qual a extensão desse reexame.
Entretanto, pormenores à parte, não poderíamos empreen-
der este estudo sem assinalar que, também para outras aborda-
gens, a emoção é concebida como portadora de significação: para
Sartre, por exemplo, na esteira da fenomenologia, a emoção é
uma resposta, se não uma solução, a uma situação vivida como
problemática, ou mesmo insuportável. Retomaremos isso. Sabe-
mos ainda que a emoção tem hoje seu lugar nas pesquisas
cognitivas, sempre compreendida como resposta adaptativa, mas
também é reconhecida como fundamento de nossa representa-
ção do mundo natural, notadamente por meio da metáfora, como
propõe Lakoff1 .
1
LAKOFF, G. & KOVÉCSES “The cognitive model of Anger inherent in American English”,
in HOLLAND, D. & QUINN, N. (Eds.). Cultural models in Language and Thought. Cambridge,
Cambridge University Press, 1987.

279
EMOÇÃO

A tradição semiolingüística nos legou a “função expressi-


va” (K. Bühler) e a “função emotiva” (R. Jakobson). A posição de
Jakobson2 é no fundo bem próxima da cognitivista, uma vez que
sua “função emotiva” é concebida como transmissão direta de
informação sobre o destinador da mensagem; a natureza even-
tualmente afetiva dessa informação não recebe qualquer trata-
mento especial. Em contrapartida, K. Bühler3 menciona já dois
modos de “expressão” do sujeito da fala: a “ressonância” e o “ín-
dice”. Trata-se de dois modos de expressão (isto é, de manifesta-
ção semiológica) da interioridade do sujeito da enunciação. Para
Bühler, apenas o segundo, o índice de interioridade, comparável
ao sintoma, pertenceria verdadeiramente ao domínio semiológi-
co; de fato, a “ressonância”, na qual se manifesta indiretamente
toda a “profundidade” dos estratos discursivos, e sobre a qual
Bühler diz pouca coisa, deveria atrair muito mais nossa atenção.
Assinalemos enfim que D. Savan4 realizou uma releitura
magistral da obra de Peirce sob o ângulo das emoções. A partir
da teoria do interpretante, a emoção pode ser considerada sob
três aspectos diferentes: (i) como hipótese imediata, pura quali-
dade sem valor representativo; (ii) como afeto dinâmico, reme-
tendo a um sentimento: a emoção é vista aqui como um
representamen; e (iii) como uma norma, lei ou princípio de expli-
cação sistemática dos comportamentos humanos. Vemos assim
que a emoção é tratada como um signo, signo de si própria ou
signo de outra coisa, e é desse modo que ela tem sentido, ou
sentidos. Seja qual for o interesse dessa exploração da tipologia
semiótica das emoções, ela continua sendo cognitiva, isto é, só
tem significação se for traduzida numa linguagem que já não é

2
JAKOBSON, R. “Lingüística e poética”, in Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix,
1969.
3
Notadamente em BÜHLER, K. Ausdruckstheorie. Das System an der Geschichte
aufgezeigt. Stuttgart, Fischer Verlag, 1933.
4
SAVAN, D. “La théorie sémiotique de l’émotion selon Peirce”, Nouvelle Revue
d’Ethnopsychiatrie, 11, 1988, p. 127-46.

280
EMOÇÃO

mais a sua. Sob esse aspecto, a abordagem peirciana da emoção


está para a própria emoção assim como a descrição estrutural da
metáfora está para a metáfora. Em outras palavras, trata-se de
uma interpretação, interpretação de uma figura já traduzida, cujo
efeito em discurso e em ato já está portanto perdido. Cabe agora
abordar o “sensível”, não como algo a ser traduzido em “inteligí-
vel”, mas como algo que deve ser apreendido na tensão que o
liga ao inteligível.

2 DEFINIÇÕES

A emoção partilha com alguns outros termos da metalin-


guagem o incômodo privilégio de pertencer à língua natural e de
ter recebido aqui e ali múltiplas definições em diversas discipli-
nas5 . Em francês6 , o termo “emoção” (= “estado afetivo intenso,
caracterizado por brusca perturbação física e mental”) pertence a
uma nomenclatura de estados afetivos, em cujo seio se distingue
da “paixão” (= “viva inclinação para um objeto que alguém per-
segue e ao qual se apega com todas as forças”), do “sentimento”
(= “estado afetivo complexo, bastante estável, bastante durá-
vel”), da “inclinação” (= “movimento afetivo, espontâneo, para
um objeto ou um fim”), da “disposição” (= “tendência a”) ou do
“temperamento” (= “conjunto de caracteres inatos numa pes-
soa, complexo psicofisiológico que determina seus comporta-
mentos”). É um conforto para o semioticista perceber que essa
nomenclatura se constrói em torno de algumas grandes catego-
rias semióticas: (i) modais: o querer e o poder, assim como o saber
relativo a essas modalidades; (ii) aspectuais: o contínuo e o
descontínuo, o singulativo e o iterativo, o acabado e o não aca-
bado; (iii) factitivas: o fazer-fazer; (iv) estruturais: a complexida-

5
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões, op. cit., p. 83-7.
6
[N. dos T.]: As considerações a seguir podem em geral ser estendidas ao português.

281
EMOÇÃO

de e a estabilidade; (v) prosódicas, enfim, com a intensidade e a


subitaneidade.
A questão se formula por si própria: tais categorias forma-
riam ou não um sistema, uma estrutura, isto é, conforme
Hjelmslev, “uma entidade autônoma de dependências internas”?
Tal estrutura estaria em condições de produzir uma morfologia e
uma sintaxe suficientes, capazes de acolher os usos, os estilos
próprios de cada cultura?

2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

Houve quem tentasse resolver a dificuldade reduzindo-a à


dualidade de um confronto entre a emoção e a paixão, como o
lembra H. Parret:

“Menciona-se sempre a distinção entre a paixão e a emoção prove-


niente da Antropologia de Kant: ‘A emoção age como água que
rompe seu dique, a paixão como torrente que cava mais e mais
profundamente seu leito. A emoção é como uma embriaguez que
se dissipa; a paixão, como uma doença resultante de uma consti-
tuição viciada ou de um veneno ingerido.’”7

Th. Ribot desenvolve a metáfora kantiana opondo o “agudo”


e o “crônico”, o “choque brusco e violento” e a “obsessão perma-
nente ou intermitente”8 . Se falta à emoção o traço /duratividade/,
este se inscreve firmemente na paixão. Podemos admitir que a
emoção se transforma em paixão quanto ela molda o percurso
inteiro do sujeito.
Embora plausível, essa redução não é perfeita. Primeiramen-
te, está longe de integrar o conjunto das categorias assinaladas

7
PARRET, H. Les Passions. Essai sur la mise en discours de la subjectivité. Liège, Mardaga,
1986, p. 124-5.
8
Citado por PARRET, H., op. cit., p. 125.

282
EMOÇÃO

mais acima. Em seguida, baseia-se numa dupla petição de princí-


pio: supõe o que se trata precisamente de demonstrar, isto é, que
não haveria nada “além” ou “aquém” dos dois termos considera-
dos, e também nada “entre” eles. Mas isso é insistir na insuficiên-
cia comum do binarismo. Para chegarmos a uma integração que
não estabeleça prematuramente o número de possíveis, devem ser
introduzidas certas premissas, de modo a conjugar a aspectualida-
de, a modalidade e a tensividade.
Todas essas definições trazem como elemento constante a
afirmação da existência de um liame funcional entre dois comple-
xos: um complexo modal e um complexo fórico. O complexo modal
associa duas dimensões: a dimensão do querer, patêmica, dividida
entre o desejo e o apego, e uma dimensão do poder, dividida entre
a impotência, a inibição, de um lado, e a aptidão, a mobilização
para um fazer, do outro. A foria estaria ligada ao mundo e às suas
perguntas, e a modalidade, ao sujeito e às respostas que enuncia.
É a partir da dimensão do poder que a emoção entra em relação
com o fazer: o horror, sempre avaliado como um ápice afetivo,
pode provocar a náusea tanto quanto a fuga: no primeiro caso, a
energia é, segundo Freud, “desviada” para a somatização e a anu-
lação de programas; no segundo caso, a emoção fica regida pela
mobilização e desencadeia um fazer do qual, para um observador,
ela se torna uma explicação racional.
O complexo “fórico” compõe-se igualmente de duas dimen-
sões: a do tempo, que varia entre rapidez e lentidão, e a da dura-
ção, que varia entre o alongamento e a brevidade; o complexo
fórico admite ainda o ritmo como termo mediador entre os ter-
mos extremos que são a subitaneidade “tônica” e uma duração
“átona”. Assim, podemos compreender que a paixão, também
situada em posição mediana, seja afetada por um ritmo, uma
escansão e uma pulsação – numa palavra, um “estilo tensivo” (cf.
capítulo “Paixão”) –, enquanto a emoção, nesse aspecto, não pas-
saria de uma explosão, um “golpe” ou um acento.

283
EMOÇÃO

No interior de cada complexo, assim como entre os com-


plexos, uma correlação associa, dois a dois, os gradientes concor-
rentes das diversas dimensões. É claro que no caso da nomencla-
tura passional do francês (e do português), essa correlação entre
valências é inversa. Admitindo que as denominações sejam boas
aproximações da interação das valências, podemos introduzir um
sistema que organize as evoluções correlatas, não necessariamente
sincrônicas, das diferentes dimensões tomadas:

subitaneidade EMOÇÃO
sem duração

INCLINAÇÃO
ritmo de uma
duração
PAIXÃO

SENTIMENTO

lentidão do desejo (querer) apego


estado durativo

impotência (poder) aptidão

Torna-se possível agora precisar a significação imanente,


figural, do que poderíamos denominar – sem desprezar as conse-
qüências dessa transferência terminológica – as fases de um es-
quema afetivo elementar que se baseia em valores ao mesmo tem-
po antagonistas e solidários:
a) Do ponto de vista da “foria”, a emoção se define pelo regime
da subitaneidade, que podemos interpretar como “produto” da
rapidez e da intensidade que, por sua vez, evoluem nesse caso de
maneira conversa.
b) Do ponto de vista aspectual, a emoção corresponde à síncope
da duratividade.

284
EMOÇÃO

c) Do ponto de vista modal, a preponderância das valências de


inibição sobre as valências de impulsão constitui a razão da sur-
presa: à subitaneidade própria do complexo fórico corresponde a
surpresa no complexo modal.
De modo global, constatamos que as valências tônicas do
tempo e da intensidade resultam afinal num enfraquecimento das
valências durativas e modais. Entretanto, a correlação inversa
não é generalizável: num ou noutro idioleto, até mesmo numa
teoria das emoções adaptativas, a subitaneidade estará associa-
da à mobilização das energias com vistas ao fazer, enquanto o
sentimento estendido na duração estará associado à diminuição
das energias e da capacidade de reagir. Isso significa, no caso,
que a correlação entre o complexo fórico e a modalidade do poder
será conversa. Se pensarmos na dimensão volitiva, o caso é mais
raro, mas possível de direito.

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

Não temos condições de dizer, por certo, se as quatro dimen-


sões indicadas (tempo, ritmo, poder, querer) são suficientes para dar
conta do esquema afetivo e dos diversos usos possíveis que ele é
capaz de produzir. Mas podemos, ao menos provisoriamente, conce-
ber a sintaxe dos afetos como a travessia, parcial ou total, do “esque-
ma afetivo” e, a partir do diagrama proposto, como um percurso no
arco que o representa. Logo, as questões não têm nada de original:
o arco é percorrido de uma extremidade a outra? Ou antes fase
por fase? Se um sujeito, individual ou coletivo, adota uma dire-
ção afetiva, a fixação numa fase do esquema seria assimilável a
um “estilo afetivo”? Além do mais, ser-lhe-ia possível adotar a
direção contrária, desejá-la sem alcançar, alcançá-la sem dese-
jar?
A primeira questão será tratada nas definições amplas, a
segunda e a terceira, nas definições restritas.

285
EMOÇÃO

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Admitiremos, pois, que o sentido de um afeto se deixa iden-


tificar à fase atravessada pelo sujeito, respectivamente fase
emotiva, tendencial, passional ou permanente. Antes de avan-
çar, precisemos que essa solução significa aplicar o ponto de
vista chamado “extensional”, tal como é apresentado na Catego-
ria dos casos9 de Hjelmslev, aplicá-lo a um “continuum”, a uma
“substância”, o que os Prolegômenos não parecem ter previsto...
O complexo nascido da agregação de um complexo fórico e um
complexo modal pode apresentar-se sob certas condições no es-
tado concentrado e, em outras condições, no estado difuso. A con-
centração e a difusão são para os afetos aquilo que os estados da
matéria, reconhecidos como extremos nas condições normais, são
para a matéria em si: um sistema de “variedades” sensíveis e no
entanto acessíveis ao conhecimento.
Instalando-nos na isotopia amorosa, a definição sintagmá-
tica ampla nos põe na presença da configuração do “amor à pri-
meira vista”. Do ponto de vista semiótico, este se deixa ver como
um sincretismo das fases, ou antes, como um percurso instantâ-
neo – num átimo, conforme pensam alguns – de todas as fases
que distinguimos, percurso que neutraliza os prazos que suas
morfologias impõem. A leitura da passagem em que o cavaleiro
Des Grieux encontra Manon, em Manon Lescaut, mostra que as
diferentes dimensões examinadas são percorridas com a maior
velocidade possível:

(i) para o complexo fórico que conjuga a rapidez e a intensidade:

“Ela me pareceu tão charmosa que eu, que jamais havia pensado na
diferença dos sexos, nem reparado numa jovem com algum cuidado,

9
HJELMSLEV, L. La catégorie des cas, op. cit., p. 95-104.

286
EMOÇÃO

pois bem, eu, cuja sabedoria e prudência todos admiravam, eu me vi


inflamado de repente até o êxtase.”10

(ii) para a dimensão volitiva, que vai do desejo ao apego:

“Tinha o defeito de ser excessivamente tímido e fácil de desconcer-


tar; mas, longe de ser detido por essa fraqueza, avancei para a dona
do meu coração.”

(iii) para a dimensão potestiva:

“Eu lhe assegurava que, se ela quisesse fiar-se na minha honra e na


ternura infinita que já me inspirava, daria a vida para livrá-la da
tirania de seus pais, e para fazê-la feliz. Fiquei mil vezes pasmo,
pensando nisso, de onde me vinha então tanta audácia e facilidade
para me exprimir, mas não se faria do amor uma divindade, se ele não
operasse tantos prodígios.”

O momento da emoção reduz a duração narrativa a um


“ponto”, e reorganiza o conjunto do percurso em torno do cen-
tro dêitico e sensível. De fato, o momento presente é sensibili-
zado porque compõe uma apreensão, isto é, um “já”, e um foco,
isto é, um “doravante”. Tal sincretismo inibe a possibilidade da
debreagem narrativa, a história de um amor é “vivida” num ins-
tante, o da dêixis, ao invés de ser desdobrada e relatada num
espaço-tempo narrativo: é assim que poderíamos compreender,
em ato e em discurso, o que Semiótica das paixões chama de
“reembreagem sobre o sujeito tensivo”11 .
Em suma, a definição ampla opera na simultaneidade, “de
uma só vez”, enquanto as definições restritas procedem “passo

10
Esse trecho, bem como os que seguem, foram tirados das primeiras páginas do
romance.
11
GREIMAS, A. J. & Fontanille, J., op. cit., p. 72-3 e 137-9.

287
EMOÇÃO

a passo”, contabilizando a emoção. Na definição ampla sobre-


vém uma contração dos programas previstos, contração à qual a
fidúcia vem dar seu aval. No entanto, coloca-se a questão: para
um sujeito aprisionado pelo afeto, como pode a sucessão dar
margem à simultaneidade? A mudança de tempo que se dá é ape-
nas um elo da explicação. O comentário deve estar à altura de
seu objeto, ou seja, da revolução que convulsiona o sujeito e lhe
dá condições de convocar num só ponto de seu percurso todas as
fases que o compõem.
Mas para pensar essa revolução, convém voltarmos ao divór-
cio entre o sensível e o inteligível. Quanto a isso, Cassirer sublinha
que, para muitos espíritos, as entidades, as partes sensíveis prece-
dem o sistema inteligível, e ele preconiza a inversão da direção:

“ [...] o todo não é adquirido a partir das partes, e [...] toda posição de
uma parte implica a posição do todo; não certamente no seu conteú-
do, mas na sua estrutura e forma gerais. Cada singularidade, nesses
domínios, faz parte originariamente de um determinado complexo,
cuja regra exprime.”12

Constatando que essa função não recebeu denominação


válida, Cassirer propõe designá-la como “função de integração”,
a qual permite a uma dada parte retomar incessantemente o
todo que a precede:

“[...] toda percepção encerra um certo ‘caráter de direção’ e de


mostração ao qual ela remete para além do seu aqui e agora. Na
qualidade de simples diferencial da percepção, ela não deixa de con-
ter a integral da experiência.”13

A apreensão sensível e simultânea das diferentes fases da


afetividade seria da mesma ordem que essa catálise fulgurante, e

12
CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques, tome 1, op. cit., p. 45.
13
Op. cit., tome 3, p. 230.

288
EMOÇÃO

portanto afetante para o sujeito, do todo a partir de uma das


partes, catálise autorizada por essa “função de integração” que,
segundo Cassirer, é prerrogativa da consciência.

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

A passagem que leva de uma fase a outra, por exemplo da


emoção à inclinação, pode ser descrita como uma transição de
fase, mais precisamente, como uma desconcentração, uma ex-
plosão controlada, e essa descrição pode intervir convocando as
dimensões constitutivas da figuralidade. Na perspectiva do tem-
po e da intensidade, se a emoção comporta o traço /brusco/, a
inclinação comporta apenas o traço /espontâneo/. Do ponto de
vista da duração, a emoção, definida pela “perturbação”, é des-
provida de duração, tal como a linha, em geometria, não apre-
senta espessura, nem o ponto, extensão; com a inclinação, é
introduzida a duração, já que comporta o traço /movimento/. Na
perspectiva da espacialidade, a emoção é localizada, visto que o
sujeito e o objeto ainda se confundem, ao passo que a inclinação
já pressupõe uma cisão actancial e uma orientação do sujeito
para o objeto.
Assim, a desaceleração, do ponto de vista do tempo, e a
atenuação, do ponto de vista da intensidade, as quais determi-
nam a transformação da emoção em inclinação, são expressas
pela restauração da duração através da espera e pela reconstitui-
ção de uma identidade modal; um objeto desejável é então iden-
tificado e o sujeito projeta os meios e os programas com vistas a
se conjuntar em seguida a esse objeto.
Conduzida a partir da figuralidade, essa descrição dispõe,
entre a emoção e a inclinação, o sentido de uma operação, um
operador e grandezas operadas determináveis. O sentido da
operação é essencialmente uma desconcentração; o operador é
hoje o “corpo-próprio” – tempos atrás, era o “coração” –, como

289
EMOÇÃO

sede do sentir, isto é, como instância de medida das tensões; as


grandezas operadas são as valências aferentes às diversas di-
mensões mencionadas acima.
A questão anunciada mais acima (o arco deve ser percorrido
de uma extremidade à outra?) diz respeito ao sujeito apaixonado.
É sua prerrogativa deixar as virtualidades e as tensões do pro-
grama seguirem ou não seu curso; neste último caso, cabe ao
sujeito obstruí-lo, parar numa dada fase e manter-se aí pela ati-
vação dos programas cabíveis. Um estilo afetivo se caracteriza,
pois, pela fase que elege no dispositivo, e pela decisão, implícita
ou explícita, de manter-se no regime afetivo inicial, ou então de
deixar os atratores operarem a próxima desconcentração.
A confrontação de Dom Juan e de Elvira, em Molière, pare-
ce-nos aqui exemplar. O percurso afetivo de Dom Juan leva-o da
emoção à inclinação, mas detém-se no limiar da paixão. A emo-
ção é expressa pelo “encanto” do instante mágico,

“Para mim, a beleza me encanta onde quer que a encontre, e eu


cedo facilmente a essa doce violência com que ela nos arrasta”14

e do desejo ainda sem objeto; o “encanto” cede a vez à inclina-


ção, à projeção de um objeto por conquistar. Mas o percurso de
Dom Juan exclui a duratividade da paixão e, com maior razão, o
apego:

“Mas, uma vez que a conquistamos, nada mais há a dizer, nada a


desejar; toda a beleza da paixão se foi [...].”15

A duração que Dom Juan consente é apenas um prazo, o


“não-ainda” da junção; ele não aprecia a duração em si de um

14
MOLIÈRE. Don Juan, ato 1, cena 2.
15
Loc. Cit.

290
EMOÇÃO

sentimento que evolui, mas apenas o “tempo gasto para” elimi-


nar a distância entre o sujeito e o objeto: a duração está, portan-
to, excluída do foco.
O percurso seguido por Elvira é complementar ao de Dom
Juan: ela parte da paixão para atingir o sentimento. Por certo,
Elvira declara:

“Para mim, já não tenho por ti a mínima sombra de apego”

mas confessa, no entanto, um sentimento fundado na duração:

“Mas, neste retiro, sentiria uma dor extrema se alguém que eu


quis com ternura se tornasse um exemplo funesto da justiça do
Céu.”16

Assim, nesse ponto do desenvolvimento da peça, Dom Juan


e Elvira recusam ambos a paixão, mas de modo diferente: sendo
a orientação de referência a que vai da concentração para a difu-
são, Dom Juan fica aquém da paixão. Na dimensão do querer, Dom
Juan é desde o início sensível à “impetuosidade de [seus] dese-
jos” ou, segundo a expressão de R. Char, ao “desejo perpetuado
como desejo”; na dimensão do poder, a aptidão de Dom Juan
não é outra senão o saber/poder fazer adquirido pelo sedutor.
Quanto a Elvira, ela se situa para além da paixão. Na dimensão
volitiva, ela mesma denuncia os “enlevos de uma paixão conde-
nável”; na dimensão potestiva, reencontrou o domínio de si, vis-
to que menciona os “desvios de [sua] conduta”, em conformida-
de com os cânones clássicos.
Além disso, a estrutura subjacente à emoção permite com-
preender certos paradoxos afetivos. Um estilo afetivo apresenta-
ria dois componentes. Em primeiro lugar, é identificável à pre-

16
Op. cit., ato 4, cena 6.

291
EMOÇÃO

ponderância atribuída a uma ou outra fase afetiva: o sujeito po-


derá ser considerado “sensível” se se atém à emoção, “atraído”
se sente uma inclinação, “passional” se cultiva a paixão, “terno”
se atinge o sentimento. Em segundo lugar, o estilo afetivo com-
porta uma decisão implícita, relativa à transitividade das fases:
por exemplo, é freqüente que o sujeito “passional” recuse trans-
formar-se em sujeito “terno”. E para isso, se sua convicção é
forte, isto é, se seu coeficiente fiduciário pessoal é forte, não
hesitará em sacrificar o objeto que busca, a fim de permanecer na
fase afetiva que escolheu para sua existência. La Rochefoucauld
menciona sempre essas reviravoltas:

“As paixões engendram não raro seus contrários: a avareza produz por
vezes a prodigalidade e a prodigalidade, a avareza; somos freqüente-
mente firmes por fraqueza, e audaciosos por timidez.” (Máxima 11)
“A avareza é mais oposta à economia que a liberalidade.” (Máxima 167)

Uma das regras da gramática afetiva estipularia portanto a


possibilidade de subordinar o ter e o fazer ao ser: para continuar
sendo aquele que sou, ao menos aquele que creio ser, do ponto
de vista das afeições, não hesito em substituir o programa prati-
cado até agora por um programa oposto. A fidelidade a mim
mesmo, isto é, a meu regime afetivo, me impõe essa mudança
segundo o ser. Essa dialética da direção e do programa reencon-
tra um dos temas da “metapsicologia” freudiana, a saber, a “con-
versão no contrário”17 .

3 CONFRONTAÇÕES

Ver o item “Confrontações” do próximo capítulo, “Paixão”.

17
FREUD, S. Métapsychologie. Paris, Gallimard, Idées, 1976, p. 25.

292
PAIXÃO

PAIXÃO

1 RECENSÃO

O TEMA das paixões concerne tradicionalmente à filosofia e


à psicologia, mas a extensão desses dois domínios e a ex-
trema diversidade das acepções sobre a paixão, que encontramos
aí, pouco contribui para uma recensão sistemática. De maneira
global, paixão se opõe a entendimento, a cognição, ou, mais cor-
rentemente, a razão. A psicologia tenderia a reservá-la a discipli-
nas distintas: psicologia das emoções ou psicanálise (distintas da
psicologia cognitiva). A filosofia, em contrapartida, explora ge-
ralmente as perturbações induzidas no entendimento por meio
da classificação dos universos passionais, fundando-se até mes-
mo por vezes num prejulgamento negativo da vida passional.
Com efeito, são raros os sistemas que põem a paixão no cerne da
reflexão sobre a “natureza humana”. Desse ponto de vista, o
freudismo constitui na modernidade uma exceção, mas é preciso
desde já moderar o seu alcance: por um lado, a noção de paixão
em si não é explorada por Freud, e temos de nos contentar em
reconhecê-la indiretamente no “destino das pulsões”, seja como
“reversão” da relação ao objeto em seu contrário, seja como “re-
torno contra a própria pessoa”1 . Por outro lado, a correspondên-
cia com a definição semiótica da paixão só pode ser parcial, na
medida em que, segundo Freud, o destino das pulsões transcorre
à margem das modalidades que definem os sujeitos, quando não
contra elas.
Não obstante, o exame das definições filosóficas, conside-
radas como pano de fundo cultural de toda a reflexão sobre o
sentido da paixão, permite reconstituir a “base classemática” dessa

1
Cf. ZILBERBERG, C. “Les passions chez Freud”, Actes Sémiotiques, Bulletin, 9, 1976,
p. 46-8.

293
PAIXÃO

noção, para retomar uma expressão de H. Parret. A paixão seria


legível nas nossas culturas, lembra-nos ele, sobre o fundo de uma
oposição forte entre o pathos e o logos, oposição que se traduziria
em dois imaginários distintos: o imaginário “lógico”,

“[...] o da razão, da vida, da clareza, do cosmo, da harmonia, do


celeste, da universalidade, da regularidade, da distintividade”

e o imaginário “pático”, o

“[...] da loucura, da morte, da obscuridade, do caos, da desarmonia,


do subterrâneo, da variabilidade, da particularidade, da irregularida-
de, do indistinto.” 2

Mas em nome dessa própria divisão imaginária, a paixão


opõe-se também à ação, de vez que a perturba, confunde seu
sentido, ou a perverte. Tanto na filosofia do conhecimento, como
na filosofia da ação, a paixão é abordada como anti-objeto, a ser
combatido, a ser reduzido ou sublimado, e raramente a ser ex-
plorado como tal. Sobram os dois paradigmas imaginários, fei-
xes de figuras reunidas em dois “estilos” axiológicos coerentes,
cuja remanescência nas nossas culturas vai muito além do domí-
nio passional, visto podermos encontrá-la em parte tanto na re-
flexão de Wölfflin sobre os estilos clássico e barroco quanto nos
“regimes” imaginários de G. Durand.
É para escapar desse dilema que a semiótica rompeu o elo
com as definições tradicionais. Afinal, quando precisas, as defi-
nições filosóficas e psicológicas da paixão não oferecem real-
mente base classemática estável3 ; quando homogêneas, são ge-
rais o bastante para caracterizar estilos de relação do homem

2
Esses paradigmas são estabelecidos por PARRET, H. em Les passions. Essai sur la mise en
discours de la subjectivité, op. cit., p. 9-15.
3
É de certo modo a conclusão de PARRET, H., op. cit., p. 15.

294
PAIXÃO

com o mundo ou consigo mesmo ou, noutros termos, para en-


volver o imaginário por inteiro, e não apenas a paixão propria-
mente dita.
A abordagem semiótica filia-se, de início, à lingüística da
enunciação. Para esta, com efeito, a afetividade provém do com-
ponente modal, complementar ao componente dêitico: por exem-
plo, os chamados adjetivos “afetivos”, bem como as conotações
passionais, fazem parte da classe dos “modalizadores”.
Entretanto, mesmo no domínio semiótico, a noção de pai-
xão só se impôs tardiamente, tendo sido descartada nos anos 60
e 70 pelas exclusões próprias do estruturalismo: o Dicionário de
semiótica não comporta o verbete “paixão”; no segundo volume
desse dicionário4 , a paixão vem definida, sob a assinatura de F.
Marsciani, como “uma organização sintagmática de estados de
alma, entendendo com isso a vestimenta discursiva do ser
modalizado dos sujeitos narrativos”5 e exclusivamente presa aos
“atores”. No mesmo verbete, P. Aa. Brandt propõe uma definição
intersubjetiva da paixão, como modalizações estratégicas da tro-
ca, as quais não teriam “recebido a devida análise em termos de
narratologia das ações”6 . Essas restrições – restrição ao domínio
dos atores, restrição à troca intersubjetiva, restrição ao que ul-
trapassa o quadro da ação – impediam que a teoria da paixão se
apresentasse pelo menos em pé de igualdade com a teoria da
ação.
É apenas em Semiótica das paixões que vemos aparecer uma
definição suficientemente abrangente para permitir um desdo-
bramento teórico sistemático: a “paixão” se distingue agora da
“ação”, não como resíduo da análise narratológica, mas como
mudança de ponto de vista. A paixão é então considerada (i)

4
[N. dos T.]: GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Sémiotique, II, op. cit.
5
Op. cit., p. 162-3.
6
Op. cit., p. 163.

295
PAIXÃO

sobre o fundo de uma problemática tensiva e sensível; (ii) como


uma organização sintagmática, modal e aspectual; e (iii) como
matéria de investigação da práxis enunciativa sob a forma de
taxionomias conotativas. Doravante a semiótica das paixões não
aparece mais como um complemento da semiótica da ação: ela a
engloba e a compreende, sob seu próprio ponto de vista.
Para apreciar a pertinência de um ponto de vista teórico, é
necessário ao menos avaliar sua coerência. Do ponto de vista da
ação, a paixão é apenas um efeito superficial, até mesmo uma
perturbação, é da ordem da exceção ou do excesso; nesse senti-
do, a paixão é o “irredutível” da ação, e o irredutível é, no limite
e por definição, incognoscível. Do ponto de vista da paixão, a
ação é um caso particular submetido a regras de restrição:
discretização dos enunciados, orientação exclusiva segundo o
fazer, reconstrução das modalidades por estrita pressuposição a
partir da performance etc. Nessa segunda perspectiva, definida a
ação a partir da paixão e submetida a um pequeno número de
condições redutoras, fica salvaguardada a coerência de conjun-
to do dispositivo teórico.
A história da teoria das paixões, no domínio semiótico, po-
deria ser resumida sob a forma de uma série de deslocamentos:
a) da taxiomia à sintaxe: sendo a taxionomia submetida às varia-
ções culturais, somente a sintaxe passional pode ter pretensões
à universalidade;
b) da sintaxe à modalização: ao mesmo tempo que a sintaxe narra-
tiva se torna uma sintaxe modal, em parte independente dos
investimentos axiológicos nos objetos de busca, a modalização
passa a ser considerada como o fundamento dos efeitos
passionais;
c) da modalização à aspectualização: a identidade modal dos
sujeitos aparece daí em diante como sobredeterminada por
traços aspectuais e rítmicos que caracterizam os tipos passio-
nais;

296
PAIXÃO

d) da aspectualização à intensidade: in fine, os fenômenos passio-


nais parecem regular a intensidade no discurso.
Em suma, passamos da sintaxe narrativa à sintaxe tensiva.
Mas, por outro lado, do ponto de vista do método, outro deslo-
camento foi levado a efeito. Durante os anos 80, a análise das
paixões era uma análise dos lexemas ou dos papéis passionais: a
cólera, o desespero, a nostalgia, a indiferença, a avareza ou o
ciúme. No curso dos anos 90, ela se consagra cada vez mais ao
estudo da dimensão passional do discurso, e notadamente às
manifestações passionais não-verbais, ou “não verbalizadas”,
como por exemplo a do “vivenciado” feita por A. Hénault7 .

2 DEFINIÇÕES
2.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS

2.1.1 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS AMPLAS

Uma paixão é antes de mais nada uma configuração


discursiva, caracterizada ao mesmo tempo por suas propriedades
sintáxicas – é um sintagma do discurso – e pela diversidade dos
componentes que reúne: modalidade, aspectualidade,
temporalidade etc. Com as paixões, a semiótica deve obter meios
de tratar de conjuntos heterogêneos e de dar conta da sua coe-
rência.
Se comparamos esse tipo de sintagma com os sintagmas
propriamente narrativos, como os da manipulação, percebemos
que os chamados sintagmas narrativos são obtidos por redução
a apenas um de seus componentes, o modal, ao passo que os
sintagmas passionais associam várias dimensões. Desse ponto
de vista, o efeito passional residiria antes nas correlações entre

7
HÉNAULT, A. Le pouvoir comme passion. Paris, P.U.F., Formes Sémiotiques, 1994.

297
PAIXÃO

diferentes dimensões: a semiótica da ação escolheu a simplicida-


de, para reduzir o domínio de pertinência e aumentar a inteligi-
bilidade da lógica da ação propriamente dita, enquanto o ponto
de vista da semiótica das paixões é o da complexidade, isto é, o
das correlações entre dispositivos e dimensões provenientes de
diversos níveis do percurso gerativo.
A associação de diversas dimensões correlatas entre si no
seio de um sintagma discursivo constituiria em suma um pri-
meiro núcleo de definição da paixão. Ao cabo dessa tarefa, pare-
ce:
1. que as dimensões envolvidas seriam de dois tipos: modais e
fóricas;
2. que as modalidades implicadas se referem tanto à existência
(modalidades existenciais) quanto à competência (querer, dever,
saber, poder e crer);
3. e que a foria conjuga essencialmente a intensidade e a extensi-
dade, com seus efeitos induzidos por projeção no espaço e no
tempo, os efeitos de tempo e de ritmo.
Um complemento se impõe de imediato: tais correlações
são isotopantes para o discurso, tendo em vista que sensibilizam
a manifestação discursiva e atualizam nele as isotopias fóricas,
em particular a proprioceptividade. Com efeito, as correlações
entre intensidade e extensidade induzem tensões que, por sua
vez, afetam o corpo próprio e se traduzem por manifestações
proprioceptivas em discurso. Uma paixão é, pois, uma configura-
ção – tal como definida acima – em que as correlações são ao
mesmo tempo inteligíveis e sensíveis.
Na verdade, a partir do momento em que deixamos de lado
uma abordagem moralizada da paixão, somos levados a ficar com
tal definição e a abandonar as oposições clássicas entre a razão e
a paixão (a paixão é uma forma de racionalidade discursiva), en-
tre a ação e a paixão (a ação é uma redução da complexidade
discursiva) e mesmo entre a natureza (passional) e a cultura. O

298
PAIXÃO

efeito de sentido passional é de fato, na perspectiva que defende-


mos, eminentemente cultural, repertoriado numa “enciclopédia”
específica do domínio passional peculiar a cada cultura. De certo
modo, vivenciar uma paixão seria mesmo conformar-se a uma
identidade cultural e buscar a significação de nossas emoções e
afetos na sua maior ou menor conformidade às taxionomias acu-
muladas em nossa própria cultura.
Por conseguinte, não pode haver configuração passional
sem observador culturalmente competente: uma emoção ou um
afeto exigem apenas um corpo que sente, e são por isso simples
acidentes do devir proprioceptivo, um fazer reativo ou adaptativo
de primeiro grau. Já uma paixão é um “acontecimento” em sen-
tido estrito, isto é, uma transformação apreendida e reconhecida
por um observador. O não reconhecimento dos signos da paixão
é um dos motivos mais estereotipados de todas as histórias de
amor. Todos os sinais, todas as condições podem estar reunidas,
mas é necessário que os parceiros se entendam sobre o lugar
desse conjunto na taxionomia passional própria à sua cultura, e
até mesmo que eles identifiquem e pronunciem de comum acor-
do o nome dessa paixão. Tal é provavelmente o papel da “decla-
ração” de amor, como também a razão de seu poder programático:
como teme o conde Mosca, em A cartuxa de Parma, uma vez pro-
nunciado o nome, o sintagma evolui, e a paixão virtual se reali-
za, como uma lição bem aprendida. Em suma, é a práxis
enunciativa que decide in fine o que é paixão e o que não é, por
meio de uma espécie de sanção intersubjetiva e social, uma
intencionalidade que deve ser reconhecida e partilhada para ser
operante.
Isso significa que, assim que uma paixão é identificada e
denominada, não estamos mais na ordem da dimensão passional
viva, mas na dos estereótipos culturais da afetividade. Não pode-
mos portanto começar a descrição das paixões identificando “uni-
dades” ou “signos” passionais, sobretudo lexicais, pois tal identi-

299
PAIXÃO

ficação está de imediato submetida ao crivo cultural do observa-


dor; em compensação, é lícito passar pelo campo intermediário
de seus “efeitos de sentido em discurso”. De fato, a paixão em
discurso será caracterizada pela natureza e pelo número de di-
mensões correlatas, como também pelos formantes sintáxicos
capazes de sensibilizar a manifestação discursiva.

2.1.2 DEFINIÇÕES PARADIGMÁTICAS RESTRITAS

“Paixão” foi escolhido como termo genérico do conjunto


da problemática e extraído para isso de uma nomenclatura que já
evocamos no capítulo dedicado à emoção. Sem retornar a essa
escolha tática, podemos contudo procurar o lugar da paixão no
conjunto das manifestações “afetivas”. O gradiente já proposto a
partir da correlação entre a dimensão modal e a dimensão fórica
(limitando-se aqui a foria à intensidade) dispõe as principais ma-
nifestações afetivas da seguinte maneira:

emoção - inclinação - paixão - sentimento

Do ponto de vista da dimensão fórica, a emoção e a inclina-


ção são tônicas; do ponto de vista da dimensão modal, são áto-
nas. A paixão e o sentimento, do ponto de vista da foria, são
átonos e, do ponto de vista modal, tônicos. Conseqüentemente,
o conjunto do complexo modal e fórico toma a forma de um “es-
quema tensivo canônico” no qual a emoção e a inclinação ocupa-
riam o lugar da “somação” e a paixão e o sentimento, o da “reso-
lução”.
Isso quer dizer que, se quisermos apreender as correlações
entre dimensões, conforme a definição que demos do “ponto de
vista passional”, somos obrigados a escolher a região intermediá-
ria do esquema afetivo “decadente”, em que os complexos fórico e
modal estão igualmente manifestados. Como em todo esque-

300
PAIXÃO

ma tensivo, a zona central se impõe como zona genérica, aquela


em que as dimensões concorrentes atingem seu equilíbrio. Do
ponto de vista das modalidades, a paixão e o sentimento permi-
tem especialmente a identificação das isotopias modais domi-
nantes, tanto quanto a dos dispositivos modais: a competência
dos sujeitos se exprime aí de maneira distinta, enquanto, no caso
da emoção, ela fica violentamente “compactada”, ou suspensa, e
em todo o caso, ilegível. Do ponto de vista da foria, a paixão e o
sentimento dão lugar à duração e ao ritmo; a conseqüência prin-
cipal disso é seu poder isotopante no discurso. Ao contrário, a
emoção é um puro hápax: nem mesmo sua repetição permite
constituir uma isotopia. Cada manifestação, mesmo desviante ou
transformada, de uma paixão ou de um sentimento vem reforçar
a homogeneidade do percurso discursivo; em contrapartida, cada
manifestação de uma mesma emoção, se não puder ser inscrita
numa paixão permanente, é ao contrário apenas uma ocorrência
irredutivelmente singular, cujo efeito de “fratura” discursiva é
sempre igualmente vivo.
Entretanto, a paixão não pode ser definida sem o valor que
visa. Foi demonstrado em várias ocasiões, notadamente a propó-
sito da avareza8, que a paixão não estava fixada ao conteúdo
semântico do objeto (a avareza não é a cupidez, a cobiça do di-
nheiro), mas às determinações tensivas impostas ao valor desses
objetos, determinações que houvemos por bem chamar de
“valências”.
Uma primeira distinção vem então à mente, a que decorre
dos dois grandes tipos de valores identificados atrás, a saber, os
valores de absoluto e os valores de universo: obteríamos assim
paixões de absoluto (como por exemplo o ciúme) e paixões de
universo (como o amor ao próximo, seja qual for). Tal distinção
se baseia, como sabemos, no caráter exclusivo ou participativo,

8
Semiótica das paixões, op. cit., Segundo capítulo.

301
PAIXÃO

concentrado ou extenso da valência; além disso, a distinção diz


respeito tanto às valências (intensivas e extensivas) do sujeito
quanto às do objeto. É assim que a avareza escolhe os valores de
absoluto, já que visa à concentração e, pela recusa da troca que
implica, nega os valores de universo.
Mais precisamente, será a correlação entre a intensidade
afetiva investida no objeto, por um lado, e sua quantidade ou ex-
tensão, por outro, que definirão o “tipo axiológico” da paixão. Na
correlação conversa, quanto mais encontramos objetos numa pai-
xão, mais ela é intensa, e reciprocamente. Via de regra, tal profu-
são de objetos constitui uma classe genérica (cf. o título de Truffaut,
O homem que amava as mulheres), e esse tipo de paixão é considera-
do, em língua portuguesa, como um “pendor”. A intensidade de
um pendor é medida pela quantidade de objetos cobiçados, isto é,
pelo seu poder de propagação: por exemplo, quanto mais se bebe,
mais o pendor pelo álcool é grande.
Na correlação inversa, a restrição a um objeto único, fixo e
exclusivo, caracteriza as paixões maníacas, pois são então particu-
larmente intensas; na outra ponta do arco de correlação, a difusão
da paixão num grande número de objetos a enfraquece. Se tal difu-
são ocorrer em simultaneidade, falaremos em português de “pro-
pensão” (seria de uma forma ou outra a versão átona do pendor);
se ocorrer numa sucessão de objetos diferentes, falaremos, como
Lacan o fez para o desejo, de paixão “lábil”. Essas posições, que
compõem um foco intensivo e uma apreensão extensiva, apare-
cem no seguinte diagrama:
+ manias paixões
propagativas e
habituais

INT.

(pendores)
propensões ou
paixões paixões lábeis
– pontuai s
– +
EXT.

302
PAIXÃO

2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS

A sintaxe passional pode ser apreendida de dois pontos de


vista complementares: quer como dimensão discursiva, eventual-
mente esquematizável (definição sintagmática ampla), quer no
interior dos limites de um sintagma passional, que se apresenta
essencialmente como um dispositivo modal (definição sintagmá-
tica restrita).

2.2.1 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS AMPLAS

Do mesmo modo que as definições paradigmáticas amplas


distinguem dois grandes tipos de dimensões, a dimensão modal
e a dimensão fórica, assim também a sintaxe da paixão será ca-
racterizada por duas dimensões: a dimensão modal lhe propor-
ciona os constituintes, os dispositivos modais, e a dimensão fórica,
os expoentes, os dispositivos tensivos que se aplicam aos prece-
dentes.
Os primeiros serão estudados como sintaxe da constituência,
e os segundos, como sintaxe da consistência.
A sintaxe da constituência passional introduz uma série de
fases cujo teor proporciona a cada paixão sua definição. Com efei-
to, as definições por classificações esbarram sempre nos limites
das taxionomias culturais; adotando decididamente um procedi-
mento sintáxico, a semiótica se obriga a buscar os formantes dos
sintagmas passionais e, portanto, a se situar aquém das paixões
efeitos-de-sentido: a partir de uma série de formantes modais,
cada cultura, individual ou coletiva, seleciona aqueles que lhe
são necessários para constituir seus próprios sintagmas passionais.
O modelo geral dessa sintaxe é o de um encaixe de esque-
mas:

303
PAIXÃO

Pi
Pii
P1, P2, P3,.............Piii ..........Pn
Piv
... Px

Semiótica das Paixões oferece um exemplo de realização


desse modelo, a respeito do ciúme9 , notando-se que cada fase é
a denominação de um dispositivo modal bem definido:

inquietude
Apego exclusivo → Desconfiança arredia → suspeita → Amor/ Ódio

visão exclusiva
emoção

moralização

O princípio do encaixe de uma micro-seqüência no interior


de uma macro-seqüência permite prever a organização das pai-
xões complexas e, sobretudo, reservar um lugar aos precedentes
e subseqüentes passionais da paixão examinada. Assim, cada
paixão, em si mesma analisável como uma micro-seqüência, vem
precedida e é seguida de outras paixões, que lhe fornecem o con-
texto no qual adquire seu sentido. O ciúme se compõe de
inquietude, de suspeita etc., mas pressupõe o apego exclusivo e
a desconfiança arredia, sem o que não pode ser compreendido.
Mas é preciso observar que o desdobramento detalhado da micro-
seqüência, aplicado aqui à forma canônica da crise de ciúme, po-
deria ser igualmente aplicado a cada uma das três outras posi-
ções da macro-seqüência, se fossem estas, por sua vez, o objeto
central da análise. É certo que o conjunto não corresponderia
9
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Sémiotique des passions, op. cit., p. 268. [N. dos T.]:
Neste trecho, recorremos ao original.

304
PAIXÃO

mais ao que reconhecemos geralmente como sendo o “ciúme”,


mas essa abordagem caracteriza-se justamente por tentar livrar-
se das limitações do léxico, multiplicando as possibilidades de
expansão e de condensação.
A sintaxe da consistência, por sua vez, obedece globalmente
à esquematização tensiva, isto é, à alternância entre o esquema
ascendente [desdobramento → somação] e o esquema decadente
[somação → resolução]. A somação responderia, no próprio seio
da paixão, pelo momento da crise, e até mesmo da emoção; a
resolução asseguraria seu desdobramento e difusão e,
notadamente, seu poder isotopante, no conjunto do percurso
de um sujeito. Alguns dos conselhos distribuídos prodigamente
por Sêneca para lutar contra a cólera são particularmente
esclarecedores quanto a isso:

“ O melhor remédio para a cólera é o adiamento. Pede-lhe de início


não para perdoar, mas para refletir. São os primeiros ímpetos que
são graves: ela cessará, se houver espera. Não tentes suprimi-la de
uma só vez; tu a vencerás inteira, arrancando-a por pedaços.”10

Quando sentimos aumentar a irritação, diz ele em essên-


cia, é necessário imediatamente adiar suas conseqüências e ma-
nifestações, evitar a todo custo a explosão, ou até mesmo dispor
as etapas devidamente calculadas de uma eventual réplica. Nos
próprios termos do capítulo sobre os esquemas, tal estratégia
consiste em antecipar a resolução e em sincopar a somação: se a
resolução intervém antes do pivô do componente modal, que
permite a passagem ao ato, a somação perde algo de sua eficiên-
cia. Ora, a “resolução” é aqui explicitamente descrita como (i)
cognitiva e (ii) extensiva; (i) trata-se de refletir, e até de calcular –
e o De ira é prolixo quanto aos meios de tornar “inteligível” o
pano de fundo da cólera, como atesta a seguinte dedução:
10
SÉNÈQUE. Dialogues, I, De Ira, Livre II, XXIX, 1, p. 54.

305
PAIXÃO

“ Se o adiamento pedido não produzir qualquer efeito, isso provará


que então obedecemos ao juízo, e não à cólera.” 11

(ii) trata-se ao mesmo tempo de fragmentar, de “arrancar por pe-


daços”, ou seja, de desdobrar em extensão, de restaurar os direi-
tos da quantidade e da resolução onde antes se impunham a in-
tensidade e a somação. Eis uma validação inesperada, com a pátina
da tradição, do eterno conflito entre intensidade e extensidade
no seio do esquema tensivo!
Ora, os remédios propostos por Sêneca se baseiam num
conhecimento do esquema tensivo da cólera, longamente ex-
posto em outros trabalhos, mas que justifica por si só a escolha
do remédio: estruturalmente, de alguma maneira, a cólera se
caracteriza por crescer violentamente, por arrastar tudo que está
no seu caminho, e também por declinar com a mesma rapidez.
Esse esquema “prosódico” é até um dos argumentos de Sêneca
contra Aristóteles: não, a cólera não pode servir para punir a in-
justiça, pois

“ [...] começa com ímpeto, em seguida enfraquece, fatigada antes do


tempo e, depois de meditar apenas crueldades e suplícios extraordi-
nários, quando chega a hora de castigar, ei-la abatida e tíbia.” 12

A cólera para Sêneca tem, pois, um “perfil tensivo”, o perfil


dos equilíbrios e desequilíbrios sucessivos entre a intensidade e
a extensidade. Esse perfil corresponde ao que vimos chamando
de “estilo tensivo” da paixão. No caso da cólera, a sucessão de

11
Op. cit., Livre III, XII, 4, p. 78. O interesse da concepção estóica para a semiótica vem
do fato de que não estabelece uma fronteira categórica entre paixão e razão. Como
explica o próprio Sêneca: “Repito: paixão e razão não ocupam lugares particulares e
separados, são apenas modificações do espírito, para o bem e para o mal.” (Op. cit.,
Livre I, VIII, 3, p. 11). Daí a facilidade com que podemos reconhecer um esquema que
associa o sensível e o inteligível na sua descrição da cólera.
12
Op. cit., Livre I, XVII, 5, p. 21.

306
PAIXÃO

uma prótase e de uma apódose se explica de certo modo pela


correlação entre intensidade e extensidade:
1. Durante a prótase passional, intensidade e extensidade refor-
çam-se mutuamente: a violência que está aumentando se nutre
da quantidade de queixas que se acumulam, e multiplica por sua
vez as medidas de retaliação (imaginárias, ao menos).
2. Passado um certo limiar (que poderia ser característico de indi-
víduos, ou de situações), a relação se inverte: a violência se esvai
num gasto extensivo, consome-se nas múltiplas “crueldades” e
“suplícios” que inspirou: trata-se da apódose, quando a extensidade
continua a aumentar mas a intensidade diminui.
Propomos generalizar esta concepção: o “estilo tensivo” de
uma paixão é um esquema cujo perfil seria diretamente calculá-
vel a partir das mudanças no equilíbrio e na direção da correlação
entre a intensidade e a extensidade passionais.
Entretanto, a sintaxe da consistência não se limita ao es-
quema tensivo. O exemplo da cólera, descrita por Sêneca, ainda
nos será útil: falando de “adiamento”, Sêneca não se contenta
em manipular a intensidade e a extensão da violência; nesse sen-
tido, segundo ele, é como se, uma vez desencadeado, o proces-
so fosse irreversível e imutável. Em troca, a solução que adota
implica que esse esquema tensivo esteja inscrito no espaço e no
tempo: trata-se então de pôr em defasagem a duração própria da
paixão e a das ações, ou de desviar os efeitos dessa violência para
um lugar outro, diferente daquele em que produziria as mais gra-
ves conseqüências. Para nós, tal solução consiste, fazendo uso da
debreagem espaço-temporal, em dissociar a sintaxe modal, que
leva ao fazer, da sintaxe tensiva dos expoentes, que impõe à pri-
meira seu esquema imperioso. No entanto, quer se trate de adiar,
descartar ou dissociar as duas dimensões sintáxicas, a estratégia
supõe sempre que o perfil tensivo esteja relacionado a um espa-
ço e a um tempo, os do campo de presença do sujeito. As culturas
codificam esses tempi e esses prazos – por exemplo, a duração de

307
PAIXÃO

um luto – confirmando de certo modo seu papel na definição das


configurações culturais da paixão. Haveria aí o esboço de uma
“economia tensiva”, uma vez que as operações consistem nesse
caso em suspender, deslocar, retardar, sincopar, antecipar..., eco-
nomia tensiva de que Freud já se valia com a noção de “desloca-
mento”, mais decisiva para ele do que a de “condensação” 13 .
A projeção de um “estilo tensivo” sobre o campo de presen-
ça (centro, horizontes, fluxo espaço-temporal...) transforma-o em
“estilo semiótico”. Entendemos por essa expressão o conjunto dos
expoentes característicos de uma paixão: perfil tensivo, tempo,
ritmo e aspectualidade, fatores cuja consideração já permite iden-
tificar um efeito de sentido passional. Entretanto, mais geralmen-
te, é a identidade tensiva dos sujeitos que está em questão. A
fraseologia cotidiana fornece, a respeito, descrições bastante pi-
torescas: o estilo “pavio curto”, o estilo “lerdo” etc.14, são todos
especificações do esquema tensivo, cuja sutura ou modo de ex-
pansão tem sido particularmente afetado por certos usos recor-
rentes e estereotipados (cf. o capítulo “Esquema”).

2.2.2 DEFINIÇÕES SINTAGMÁTICAS RESTRITAS

A sintaxe restrita da paixão é também chamada de “sintaxe


intermodal”. Como foi longamente desenvolvida no capítulo
“Modalidade”, lembraremos aqui apenas os princípios e remete-
mos o leitor ao capítulo indicado para maiores precisões.
As modalidades podem ser tratadas quer como grandezas sim-
ples e discretas – e nesse caso seu domínio de validade é a descrição
da competência dos sujeitos narrativos – quer como grandezas com-
plexas e tensivas, caso em que entram na composição dos dispositi-
13
FREUD, S. Le rêve et son interprétation. Paris, Gallimard, Idées, 1977.
14
[N. dos T.]: Cf. o original “soupe au lait”, “long à la détente” e “esprit de l’escalier”. Esta
última expressão, de difícil tradução em português, designa o espírito de quem remói a
posteriori uma viva réplica que deixou de desferir na ocasião oportuna.

308
PAIXÃO

vos passionais. No segundo caso, trata-se de valores modais que


obedecem inteiramente à definição tensiva dos valores em geral.
Seu “valor” está condicionado por uma correlação, conversa ou in-
versa, entre sua intensidade e sua extensidade.
A sintaxe interna dos dispositivos passionais se explica ao
admitirmos que as diferentes modalidades que os compõem
entram em correlação, não por seu conteúdo modal propriamente
dito (querer, saber, poder, dever ou crer), mas por suas valências
intensivas e extensivas. Os dispositivos em questão não são pois
seqüências que acumulam apenas conteúdos modais (enfim, “se-
qüências” modais), mas configurações cuja sintaxe interna é as-
segurada pelo jogo das correlações tensivas.
Um exemplo permitirá explicitar o mecanismo interno
dessa sintaxe; trata-se de uma declaração de Ferrante, velho rei
de Portugal, em A rainha morta, de Montherlant:

“Para mim, tudo é retomada, refrão, ritornelo. Passo meus dias a


recomeçar o que já fiz, e a recomeçá-lo menos bem. Há trinta e
cinco anos que governo: é demais. Minha fortuna envelheceu. Es-
tou cansado de meu reino. Estou cansado de minhas justiças, e
cansado de minhas beneficências; estou farto de agradar a indife-
rentes. Tudo aquilo em que fui bem ou mal sucedido tem hoje para
mim o mesmo gosto. [...] Uma após outra, as coisas me abandonam.
[...]. E em breve, na hora da morte, o contentamento de dizer a mim
mesmo, pensando em cada uma delas: ‘Mais uma coisa que não
lamento’”15

A “lassidão” tem aqui todos os traços de uma configuração


passional, já que conjuga uma dimensão modal (não poder, não
querer, sobretudo) e uma dimensão fórica (atonia, extensão exces-
siva). O desgaste do poder se reconhece ao menos em duas indi-
cações: recomeçar menos bem e minha fortuna envelheceu; o desgas-

15
MONTHERLANT, H. de. La reine morte. Paris, Gallimard, 1947, Acte II, Scène 3, Folio,
p. 77.

309
PAIXÃO

te do querer está pressuposto no desaparecimento das lamenta-


ções: com efeito, só se lamenta aquilo que se quis e ainda se
quer. Globalmente, a desmodalização do sujeito se explica pela
repetição: banal conseqüência, em suma, da correlação inversa
entre a extensidade e a intensidade modais. Esta observação leva
a outra: para que sua intensidade seja assim afetada pela repeti-
ção, as modalizações devem ter o estatuto de valores modais.
Cabe aqui sugerir, do ponto de vista da semiótica das paixões,
que a aspectualidade é a expressão em discurso do devir das cor-
relações tensivas que caracterizam os valores modais. Isso expli-
caria que a repetição possa aparecer no texto, com certa evidên-
cia, como a causa da desmodalização. Do mesmo modo, as inter-
rupções (aspecto “não-acabado”) do esquema propostas por
Sêneca têm por objeto, conforme mostramos, a reversão precoce
e antecipada das correlações entre intensidade e extensidade pró-
prias à cólera.
Além disso, a mesma correlação inversa das valências degra-
da também, em Ferrante, os valores descritivos, que são apenas
“coisas”: as coisas me abandonam sanciona o desinvestimento
axiológico e passional dos objetos de valor associados ao exercício
do poder. Em conseqüência, os “objetos de valor” tornados “coi-
sas”, tendo perdido sua carga axiológica, não estão mais em condi-
ções de investir o sujeito com seu conteúdo semântico.
Mas uma outra questão permanece sem resposta: como pode
ocorrer que apenas algumas modalidades sejam afetadas pela
repetição? Por que somente o poder e o querer (lembremos que o
saber e o dever conservam a mesma força de antes)? Noutros ter-
mos, por que, ao diminuir a intensidade, apenas o poder e o que-
rer permanecem ligados um ao outro, e não ao saber nem ao de-
ver? Por que, em suma, esse rei fatigado e desgastado é, de fato,
um “entediado”? Resposta em quatro pontos:
1. Poder e querer estão aqui em correlação conversa: para Ferrante,
tudo o que alimenta o poder aumenta-lhe o querer, e qualquer

310
PAIXÃO

diminuição de um repercute no outro. Tudo seria diferente se a


correlação fosse inversa: a diminuição do poder, ao contrário, esti-
mularia o querer.
2. O poder em si, enquanto valor modal central em A rainha
morta, só diminui por ser demasiado extenso, e por ter sido
exercido durante tempo excessivo, estereótipo bem conhecido
em política.
3. A extensão do poder é avaliada por um observador (o próprio
Ferrante), incumbido de medir seus danos e de contar os “aban-
donos” sucessivos. A intensidade do poder está, na verdade, em
correlação inversa com a extensão do saber – digamos, da expe-
riência acumulada – que permite avaliar a extensão do poder e
sua diminuição.
4. A conjugação das correlações que precedem permite deduzir
uma última: a extensão do saber e a intensidade do querer tam-
bém se encontram em correlação inversa (o “desânimo”).
Em resumo: demasiado saber (a experiência de um velho)
enfraquece um poder exercido por tempo excessivo (um reinado
absoluto de trinta e cinco anos) e desanima (não querer) de con-
tinuar a exercê-lo. Eis a “lassidão” de Ferrante.
A seqüência modal [saber, não poder, não querer] descreve-
ria a identidade do sujeito passional, mas não a sintaxe interna
dessa identidade. Ora, o “segredo” semiótico das paixões reside
em parte na solidariedade estrutural entre as modalidades de
uma mesma seqüência, solidariedade que podemos agora des-
crever como um jogo de correlações entre gradientes. Além do
mais, do ponto de vista da sintaxe geral da identidade passional,
estaríamos vendo aqui a conversão de um papel em atitude: no
fim de seus dias, o velho rei se vê com efeito tentado a abando-
nar o papel (estabelecido por recorrência, em extensão) ditado
por seu passado, e a adotar uma atitude (fundada por um foco,
em intensidade) que daria uma outra significação à sua morte
próxima.

311
PAIXÃO

Outra configuração, de certo modo oposta à precedente, ocor-


re-nos: à lassidão geral (ou distonia), induzida pela repetição dos
papéis e sua distribuição na duração, o estoicismo contrapõe a eutonia
e a contenção passionais de cada atitude. Para sermos breves, pode-
mos identificar o princípio da eutonia estóica16 ao esforço que
mantém as tensões internas do sujeito estóico num equilíbrio que
não se desfaz. Para nós, isso significa que as diferentes modalida-
des constitutivas da identidade são consideradas solidárias, passí-
veis de evoluir de maneira inversa, e que a coesão dessa identidade
exige que nenhuma predomine sobre as outras. A todo momento,
e sobretudo em situação de crise trágica, o sujeito estóico deve ser
capaz de inventar sua “atitude” e de conter esse equilíbrio interior.
Assim, Hércules, herói estóico por excelência, no meio das chamas
de sua fogueira, consegue ainda bem dispor a lenha para que o
fogo seja eficaz, contínuo e bem feito.
Ao contrário, o furor e a cólera ignoram ou põem em xeque a
conciliatio, a coesão na identidade do sujeito, sob o efeito de uma
explosão, de uma dispersão e de um desequilíbrio que se acentua
por si próprio 17 . Isso quer dizer que o efeito de coerência no per-
curso de um sujeito apaixonado pode resultar de duas causas: (i)
no campo da sintaxe passional ampla, trata-se da sedimentação
dos papéis ou da perseverança das atitudes; (ii) no campo dos dis-
positivos modais localizados, trata-se da força e do equilíbrio das
tensões entre modalidades. Em ambos os casos, a coerência do
percurso depende da coesão sensível que a consistência (fórica)
proporciona à constituência (modal) e, reciprocamente, da
inteligibilidade que a segunda proporciona à primeira.

16
Expresso notadamente em Sêneca (De brevitate vitae. A. Bourgery, (Ed.). Paris, Les Belles
Lettres, Budé, 1980; Hercule furieux/Hercule sur l’Oeta. L. Nerrman, (Ed.). Paris, Les Belles
Lettres, Budé, 1967).
17
Esses diferentes aspectos do estoicismo foram enfatizados por Clara-Emmanuelle
Auvray em Folie et Douleur dans Hercule Furieux et Hercule sur l’Oeta, Recherches sur l’expression
esthétique de l’ascèse stoïcienne chez Sénèque. Frankfurt am Main-Bern, New York,
Paris, Peter Lang, 1989.

312
PAIXÃO

3 CONFRONTAÇÕES

A paixão não é concebível sem o valor: valor investido nos


objetos, axiologias descritivas, obviamente, mas sobretudo valo-
res modais e aspectuais, controlados pelas valências tensivas. Se
tomamos a dimensão passional do discurso por inteiro, ela se deixa
ver como globalmente dedicada à emergência, ao reconhecimen-
to e à circulação dos valores. Nessa perspectiva, a dimensão
passional dos discursos é indissociável do devir das axiologias. Mas
então introduz-se a questão do modo de acesso ao valor.
Para tal questão, duas vias são propostas: ou os valores são
dados a serem conhecidos pelo sujeito semiótico, por exemplo na
forma de um mandamento, sob a responsabilidade de um Destinador
cognitivo; ou então são apresentados à sua sensibilidade, são da-
dos a serem sentidos, sob modos figurativos. De um lado, o encon-
tro com o valor é mediatizado por um papel actancial específico; do
outro, o timismo difuso investido na figuratividade, e notadamente
nas suas qualidades sensíveis, faz seu trabalho. É assim que os dois
amigos do conto de Maupassant, analisado por Greimas, vão à pes-
ca literalmente empurrados pelo sol nascente que lhes esquenta as
costas; nas palavras mesmas de Greimas:

“É, no fim das contas, o ‘ar quente’ que completa a persuasão do


sujeito (‘termina de inebriá-lo’), criando a ilusão de um /poder fa-
zer/ capaz de passar à execução.”18

Claro que é sempre possível reconstruir em profundidade a


ação de um Destinador, nesta ocorrência o Sol, mas é igualmente
verdade, no plano do discurso, que o acesso aos valores (aqui,
deceptivo, segundo Greimas) é mediatizado pelo timismo investi-
do na figuratividade. Aristóteles já tinha identificado essa proprie-
dade:

18
GREIMAS, A. J. Maupassant, La sémiotique du texte: exercices pratiques, op. cit., p. 90.

313
PAIXÃO

“O ser se deixa apreender sob muitos sentidos; num sentido, signi-


fica o que é a coisa, a substância e, noutro sentido, significa uma
qualidade, uma quantidade, ou um dos demais predicados desse
tipo.”19
“Chama-se afecção (pathos), num primeiro sentido, a qualidade se-
gundo a qual um ser pode ser alterado, por exemplo, o branco e o
preto, o doce e o amargo, o peso e a leveza, e outras determinações
desse gênero.”20

Os valores passionais apresentar-se-iam em suma de duas


maneiras diferentes e complementares: pelo viés do conteúdo e
do saber, ou pelo da expressão e da sensibilidade.
Enfim – será preciso relembrar? – o discurso não é apenas
um agenciamento de palavras e, por conseguinte, a dimensão
passional do discurso não se reduz a seu léxico afetivo. O discurso
é uma ordenação dinâmica de forças em devir, em que emergem,
circulam e trocam-se valores, por vezes estabilizados sob a forma
de isotopias. Com maior razão, como já observamos, quando
estamos diante de um discurso não-verbal, a dimensão passional
deve ser buscada em outros lugares e não nas palavras.
A definição das paixões como resultantes da correlação
entre um complexo modal e um complexo fórico nos proporcio-
na de imediato uma estrutura: assim como o plano da expressão
conjuga expoentes e constituintes, no plano do conteúdo a di-
mensão passional associa a dimensão sensível (intensidade, ex-
tensidade, tempo etc.) e a dimensão inteligível (modalidade). Os
contornos prosódicos da consistência dizem respeito à primeira;
a sintaxe modal restrita e ampla, isto é, a constituência, concerne
à segunda. É por essa razão que pudemos dizer que a dimensão
passional acolheria a sintaxe modal, do lado dos “componentes”,
e os estilos semióticos da consistência, do lado dos “expoentes”.

19
ARISTOTE. Métaphysique, 1028a, 10-33.
20
Op. cit., 1022b, 15

314
PAIXÃO

Noutros termos, a estrutura modal da paixão se manifesta, para


um observador, sob a forma dos estilos semióticos que comen-
távamos acima. Entretanto, na ordem das pressuposições, é cla-
ro que o estrato “modal” pressupõe o estrato “fórico”, assim
como os constituintes fonemáticos pressupõem o contorno
prosódico e as modulações silábicas, e não o inverso. Isso expli-
ca que, na qualidade de estrato pressuposto, o estrato fórico se
manifesta em todos os casos, seja sozinho, seja por meio do
estrato modal.
Mas a questão da manifestação da paixão e da emoção
nos discursos não-verbais ainda está por resolver. Com efeito,
nos discursos verbais é possível escapar, com relativa facilida-
de, dos lexemas passionais e concentrar-se nos constituintes
modais da sintaxe passional; mas nos discursos não-verbais,
logo que tentamos sair das expressões passionais figurativas,
representadas por exemplo num quadro ou fotografia, coloca-
se imediatamente a questão da ancoragem plástica das emo-
ções. O problema é duplo: é preciso perguntar-se ao mesmo
tempo qual é, no caso, o equivalente das modalidades, e em
que lugar residem as tensões de que se nutrem, por definição,
as paixões.
Dizíamos que as modalidades modulam o retardamento
imposto a um processo cuja realização ficou suspensa; reduzidas
a seu princípio geral, e independentemente de seus diferentes
conteúdos específicos (querer, poder etc.), elas medem as diferen-
ças de potencial, e especialmente as tensões existenciais, entre as
fases do processo discursivo. Se admitimos que a organização
plástica de um objeto visual é regida por um processo discursivo,
entre os diversos formantes do componente plástico da imagem
também aparecem diferenças de potencial, interpretáveis como
valores modais. Supondo-se, por exemplo, que a organização cro-
mática de um quadro manifesta uma transformação cromática e
axiológica, então as diferentes fases desse processo corresponde-

315
PAIXÃO

rão a diferentes valores modais, em função da magnitude da dife-


rença de potencial que os separa da fase final21 . No domínio
musical, E. Tarasti conseguiu dar um conteúdo explícito e opera-
tório às modalidades musicais, partindo da impulsão energética
(para o querer), do jogo de normas, gêneros e regras (para o de-
ver), do estoque de informações disponíveis e conhecidas numa
dada época (para o saber), da virtuosidade e da tecnicidade da
partitura (para o poder), e dos diferentes efeitos veridictórios (para
o crer)22 . Nem sempre será possível, talvez, uma identificação
assim tão completa nos discursos não-verbais, mas ao menos
parece que o plano do conteúdo das paixões não-verbais é aces-
sível, e que reside nas diferenças de potencial que modulam o
campo perceptivo.
Quanto à dimensão fórica – intensidade, extensidade, rit-
mo e tempo –, ela é imediatamente apreensível no plano da ex-
pressão das semióticas não verbais, como a outra face, por as-
sim dizer, dos valores modais: ritmos plásticos, intensidade mu-
sical, aspectualizações do espaço e do tempo, nada deixa de com-
parecer. Além disso, os próprios sistemas semi-simbólicos podem
ser tratados como correlações tensivas; se, por exemplo, “o pró-
ximo e o distante” têm como plano da expressão “o grande e o
pequeno”, é apenas por zelo de simplicidade que são tratados
geralmente como categorias discretas. Na verdade, a profundida-
de visual assenta numa correlação de gradientes: quanto menor
é X, mais ele está afastado, e a correlação semi-simbólica funcio-
na então como uma correlação tensiva.
A solução às vezes adotada por alguns semioticistas con-
siste em referir-se à psicanálise: a metapsicologia freudiana, so-
bretudo, daria os elementos necessários para abordar a paixão

21
Ver, a respeito, FONTANILLE, J. “Sans titre, ou sans contenu?”, in F. Saint-Martin (Ed.).
Nouveaux Actes Sémiotiques, 34-35-36, “Approches Sémiotiques sur Rothko”. Limoges,
PULim, 1994.
22
TARASTI, E. Sémiotique musicale. Limoges, PULim, 1996.

316
PAIXÃO

no discurso, em particular no discurso visual. A posição de F. Saint-


Martin, por exemplo, baseia-se na hipótese segundo a qual:

“a atividade de simbolização, como qualquer outra atividade vital, é


motivada pela busca de estados de equilíbrio, prazer ou felicidade.” 23

Depois, apoiando-se na teoria de M. Klein, segundo a qual


o processo de simbolização visa a estabelecer relações de “inclu-
são”, a autora esclarece:

“Os significantes de afetos eufóricos se apresentam como contínuo,


fusão, inclusão e encaixe [...] enquanto os significantes de afetos disfóricos
se revelam através das separações, disjunções, exclusões[...]” 24

A exploração dessas propostas teóricas na descrição confir-


ma o que já podíamos calcular a partir de seu próprio enunciado:
numa perspectiva psicanalítica, a partir do momento em que a
análise não tem mais o suporte das palavras – ainda que para ler
entre as palavras –, o afeto é diretamente inferido das tensões
internas da obra: tensões voltadas à fusão e à inclusão, tensões
de rompimento e dispersão. Por exemplo: as tensões entre as
formas que se aproximam das formas prototípicas, sob o efeito
da pressão gestáltica, e os processos de ruptura e subversão des-
sas mesmas formas. Com ou sem a autoridade da psicanálise, a
exploração da dimensão passional desse tipo de discurso não
pode prescindir de uma verdadeira semântica tensiva.
Permanece a questão de método: como construir a dimen-
são passional de um discurso sem se apoiar nos lexemas passio-
nais? A definição proposta no início deste capítulo, em termos de

23
SAINT-MARTIN, F. “La tragédie, l’extase et les autres émotions...”, op cit., p. 118.
24
Op. cit., p. 118.

317
PAIXÃO

correlações entre uma dimensão modal e uma dimensão fórica,


traz uma pista, não um método, pois trata-se doravante de iden-
tificar as figuras de manifestação capazes de dar acesso aos efei-
tos passionais, ao que A. Hénault denomina o “vivenciado”. O
vaivém entre a reflexão teórica e a prática de textos nos permite
reconhecer pelo menos oito dessas figuras de manifestação, agru-
padas em três blocos:
1. Provenientes do espaço tensivo e da foria: (i) os efeitos de cam-
po, sobretudo as variações de intensidade e extensidade dos fo-
cos e das apreensões (cf. o capítulo “Presença”); (ii) o tempo e o
ritmo (cf., acima, a sintaxe da consistência).
2. Provenientes do espaço semionarrativo: (i) o foco do dispositi-
vo actancial, sobretudo nas relações de junção, endereçamento e
mediação entre o sujeito, o outro e o objeto (cf. o capítulo “Mo-
dalidade”); (ii) as modalizações convertidas em valores modais e
correlatadas entre si (cf. o capítulo “Modalidade” e, acima, a sin-
taxe da constituência).
3. Provenientes do espaço discursivo: (i) as predicações concessi-
vas, que manifestam as correlações inversas, as mais propícias
aos efeitos passionais (cf. os capítulos “Modalidade” e “Práxis
enunciativa”); (ii) as aspectualidades, convertidas em valores
aspectuais, isto é, também submetidas à regulação das valências
tensivas; (iii) a figuratividade, visto que ela se manifesta por meio
de suas qualidades sensíveis, indissociáveis de seus efeitos
proprioceptivos; (iv) por fim, a própria somatização, o sobressal-
to ou o frêmito, o rubor ou a agitação, a náusea ou a aquietação,
que manifesta a recepção das tensões modais, actanciais e figura-
tivas pelo próprio corpo.
Todas essas figuras são isoladamente capazes de induzir
efeitos passionais, e levam a encatalisar as outras dimensões; além
disso, sua superposição no discurso é em geral uma boa indica-
ção das zonas segmentáveis do percurso passional. Numa boa
metodologia, o elenco das manifestações lexicais da afetividade

318
PAIXÃO

deveria ser levantado apenas por último: perceberíamos então (i)


que a maior parte das formas passionais assim construídas não é
denominável e (ii) que as propriedades atribuídas pelo discurso a
esta ou aquela paixão lexicalizável não seriam em nada previsí-
veis a partir da definição em língua.

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328
Índice Remissivo
(com exceção das noções que constituíram capítulos)

A dependência, interdependência
11, 12, 15, 22, 25, 29, 32, 36, 43,
acento, acentuação 66, 70, 74, 75, 76, 77, 78, 79,
19, 34, 107, 113, 115, 87, 88, 89, 90, 92, 101, 103, 109,
117, 118, 212, 215, 283 118, 124, 136, 147, 189, 190,
apódose 141, 270, 307 191, 271
apreensão, apreender diferença, diferencial 12, 22, 29,
19, 31, 32, 45, 64, 129, 130, 30, 34, 42, 43, 66, 76, 77, 78,
131, 132, 133, 134, 141, 142, 143, 79, 83, 89, 105, 133, 136, 140,
175, 176, 195, 209, 215, 216, 219, 189,
220 221, 223, 232, 248, 276, 287, dispersão, forças dispersivas
302, 318 44, 74, 94, 142, 150, 249, 274, 317
ascendência, ascendente
112, 113, 119, 120, 121, 138, 185, E
186, 187, 188, 194, 276, 305
atitude 311, 312 eficiência 148, 149, 271, 305
estilo
C 14, 33, 37, 82, 94, 95, 114, 136,
137, 147, 162, 165, 177, 204, 218,
catástrofe, catastrofista 223, 224, 225, 262, 266, 282, 283,
89, 90, 91, 229, 233, 235 285,290, 291, 292, 294, 306, 307,
coesão, forças coesivas 308, 314, 315
15, 94, 142, 143, 150, exclusão, exclusivo, exclusividade
249, 274, 312 27, 28, 29, 30, 32, 34, 45, 46,
48, 49, 50, 51, 52, 56, 57, 59,
complexo, complexidade 147, 156, 168, 210, 218, 301, 302,
12, 18, 32, 44, 45,47, 52, 66, 304
68, 67, 69, 71, 73, 74, 75, 76, 77, existência, modos de existência,
78, 79, 80, 81, 83, 84, 85, 88, 89, modalidades existênciais
91, 92, 101, 118, 123, 133, 140, 145, 9, 12, 24, 27, 105, 112, 123, 124,
208, 218, 273, 274, 276, 281, 283, 131, 132, 133, 134,155, 157, 158,
284, 285, 286, 288, 298, 300, 314 159, 173, 177, 194, 197, 201, 253,
concessão, concessivo 256, 262, 298
10, 43, 44, 75, 77, 88, 163, expoente
237, 238, 239, 318 19, 107, 117, 262, 303, 307, 308,
consistência 314
118, 156, 303, 305, 312, 318
constituência, constituinte F
93, 94, 107, 117, 118, 120,
262, 303, 312, 314, 315, 318 foco, focalizar
convocação, convocar 19, 29, 45, 73, 129, 130, 131,
27, 109, 174, 175, 191, 200, 132, 133, 134, 135, 141, 142, 143,
201, 202, 207, 208 175, 176, 195, 215, 216, 217, 219,
220, 221,223, 247, 248, 250, 251,
D 252, 257, 258, 260, 264, 276, 287,
291, 302, 311, 318
decadência, decadente foria, fórico
112, 113, 118, 119, 120, 121, 138, 102, 135, 151, 157, 158, 264, 283,
139, 186, 187, 188, 194, 276, 300,
305 329
284, 298, 300, 301, 303, 309, 318, 47, 52, 81, 82, 91, 121, 125, 126,
285, 286, 314, 315, 317 127, 128, 129, 130, 159, 162, 174,
177, 215, 216, 217, 222, 280, 316
G
prosódia, prosódico, prosodização
grupo de Klein 107, 118, 151, 217, 221, 262, 266,
70, 86, 87, 88 prótase
141, 270, 307
I protótipo
identidade, identitário 15, 22, 23, 64, 92, 93, 94, 181, 182
86, 128, 214, 224, 240, 241, 242, Q
244, 245, 246, 254, 299, 308, 311, 312
quantidade, quantificação, quantitativo,
implicação, implicativo, implicar quantificável
69, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 15, 16, 19, 32, 33, 48, 49, 63, 64,
80, 82, 86,209, 237, 238, 239, 65, 83, 106, 136, 137, 187, 195,
249, 271, 273 262, 302, 306, 314

L R

limiar rede
147, 155, 273 29, 67, 69, 70, 71, 74, 75, 78, 81,
limite, limitado, limitado, delimitação 83, 87, 88, 89, 92, 95, 101, 235,
15, 28, 29, 31, 32, 41, 44, 47, 49, 245, 247, 256, 261, 296
74, 130, 138, 140, 147, 215, regime
27, 28, 29, 33, 37, 46, 48, 49, 50, 51,
M 56, 59, 82, 103, 136, 145, 146,
merológico 165, 175, 177, 199, 201, 202,
31 206, 207, 208, 209, 210, 212, 213,
metáfora, metaforizar 214, 217, 222, 242, 264, 284, 290, 294
82, 127, 189, 279, 281 resolução, resolutivo
metonímia 89, 94, 95, 108, 109, 110, 111, 112,
82 113, 114, 116, 117, 118, 121, 122,
mistura 179, 182, 185, 202, 209, 300, 305, 306
29, 30, 33, 34, 36, 37, 47, retórica, figuras de retórica
49, 52, 53, 55, 82, 130, 10, 82, 94, 177, 223
211, 212, 213 reversibilidade, reversível
modulação, modular 43, 44, 91, 111, 115, 125
31, 80, 118, 133, 217, 232, 233, ritmo, rítmico
234, 246, 262 31, 137, 138, 192, 283, 285,
298, 301, 308, 316, 318
P
S
participação, participativo
27, 28, 29, 32, 49, 50, 51, 52, 56, 57, simbolização, dessimbolização,
242, 301 simbólico
praxema 183, 184,
175, 176, 177, 188, 189, 190, 213 síncope, sincopar
109, 110, 111, 114, 284, 305, 308
profundidade somação, somativo
18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 34, 73, 76, 94, 95, 97, 107, 108,

330
109, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 258, 259, 260, 267, 283, 285, 288,
117, 118, 119, 121, 122, 179, 289, 298, 307, 308, 314, 316, 318
182, 209, 300, 305, 306 tímico, timismo
18, 19, 20, 23, 166, 313
sutura triagem
109, 308 29, 30, 33, 36, 37, 47, 48, 49, 52, 53,
55, 82, 97, 130, 211, 212, 213
T
V
tempo
30, 31, 121, 147, 156, 158, 159, 160, veridicção
163, 166, 216, 221, 222, 247, 257, 79, 88, 161, 228, 238

331

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