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Feminismo como pensamento da diferença

valeska wallerstein

Resumo:

Pensando com o feminismo, a diferença deve aparecer


necessariamente. Entretanto, o feminismo não aparece
como uma prática ou como uma forma de pensamento
derivados do pós-modernismo, pós-estruturalismo e de
nenhum outro movimento do pensamento contemporâneo
– que se arrogam o status de pensamento da diferença.
Mesmo sem uma dívida de gratidão, muitas das questões
que o feminismo tratou antes da grande eclosão dos
discursos pós-modernos aparecem como solo comum.
Neste sentido, o feminismo, como modo de pensamento, é
uma espécie de movimento de vanguarda.

Palavras-chave: feminismos, pensamento da diferença,


pós-estruturalismo, vanguarda.

Como quem inicia...

Feminismo é uma palavra no plural. Algumas pessoas falam


em feminismos, gosto disto. Por outro lado, defendo que
seja da dinâmica do feminismo essa pluralidade de
perspectivas, posicionamentos, práticas e posturas que o
dissemina, multiplica, pluraliza, diferencia. Uso aqui a
palavra “diferencia” pra indicar que o feminismo comporta,
acolhe, hospeda dentro de si a diferença, isto é, articula a
diferença de um modo positivo. Meu lugar de fala hoje é a
filosofia, em função disto, vou tentar articular de que modo
o feminismo aparece como um pensamento da diferença.

Talvez uma coisa interessante a se fazer seja uma história


da diferença. A diferença vem sendo vista de diversos
modos na história ocidental. Certamente, ao chegarmos ao
modo como a diferença é vista hoje, não poderia faltar,
nesta história da diferença, o feminismo.

Gostaria de usar uma noção específica de diferença, vem


de uma das vertentes do assim chamado pós-modernismo
(enquanto movimento do pensamento, já que ele não é só
presente na teoria social), o pós-estruturalismo. Este é já
um solo múltiplo, diferenciado e cheio de encontros e
desencontros de singularidades. Gostaria de usar a
diferença no sentido de sem igual, isto é, uma diferença
singular, uma diferença sem matriz reguladora, uma
diferença que não necessite de uma referência. Não é uma
diferença de. É uma diferença intransitiva. Várias/os
autoras/es como Rosi Braidotti, Judith Butler, Julia Kristeva,
Joan Scott, Gayatri Spivak, Gilles Deleuze, Michel Foucault,
entre outras/os vem buscando articular um tipo de
pensamento que tente não mais entrar nas velhas querelas
que tentam hierarquizar a diferença em relação a uma
identidade.

Nem todo o feminismo é “pós”. Como eu já disse, ele é


plural. Várias tendências e posições estão ligadas a
movimentos políticos que tentam resgatar a imagem das
mulheres do esquecimento. Numa trilha de buscar as
mulheres da profundeza do apagamento, é necessário, para
estes grupos, batalharem por uma identidade da diferente,
uma identidade que dê visibilidade para as mulheres, que
na modernidade foram simplesmente esquecidas. Neste
sentido, esses movimentos identitários no feminismo
aparecem num combate a uma política do esquecimento do
feminino.

Heidegger afirma que o ser foi esquecido pela metafísica


ocidental e que isso não tenha sido problematizado pela
filosofia é um escândalo; mas talvez o grande
esquecimento da modernidade tenha sido o das mulheres.
E isso talvez seja o mais cruel dos escândalos para a
filosofia e para a cultura de um modo geral. Por isso, eu
não gostaria de me posicionar contra a as posturas
identitárias que atravessem o feminismo, nem desferir
contra elas nenhuma crítica, pois dentro de um contexto
histórico, o valor delas é inquestionavelmente grandioso.

Gostaria, nestas poucas linhas, de mostrar que o feminismo


aparece como uma das principais vertentes disto que
chamarei de pensamento da diferença, sem que por isso
ele seja um derivado, uma consequência do pós-
modernismo. Para isto passarei por alguns pontos que
tocam a ambos, pensando o feminismo como contribuição
para uma crítica de nosso tempo, como uma flecha no
coração do presente, como uma luta, uma narrativa que
tenta responder a pergunta nietzscheana “como nos
tornamos o que somos?”.

O feminismo é filho do pós-modernismo?

Essas imagens maternais são sempre castradoras. Ser


filha/o, significa colocar em jogo a mãe. Fiquemos sem
mães e filhas/os por enquanto (penso que a paternidade
conceitual – como neste caso, é um furto da idéia da
maternidade...). As discussões sobre pós-modernismo e
feminismo são antigas. Já grandes clássicos foram escritos
sobre isto. Não quero aqui resumir, reler, repassar ou fazer
qualquer coisa do tipo com relação a estas discussões.
Quero apenas levantar uma defesa do feminismo em
relação a uma “acusação” um tanto comum (de que o
feminismo seria o filho mais importante do pós-
modernismo).[1]

É sempre difícil entrar nos terrenos pós-modernos. Até


porque uma característica desses solos é serem nômades,
desterritorializados. O espaço pós-moderno é móvel, e essa
mobilidade às vezes se torna areia movediça. O pós-
moderno engole tudo o que passa por seu campo-móvel.
Regurgita, revê, inverte, re-joga para o social. Embora
pensadores como Habermas tentem dizer que Nietzsche é o
pai da pós-modernidade, acho que o pai (que também é já
morto!) é um pouco mais jovem: Jean-François Lyotard.
Quando evocava o termo “pós-moderno” para pensar uma
condição que as pessoas viveriam no presente, Lyotard
tinha algumas coisas em mente: a descrença nas
metanarrativas, descrença e deslegitimação das fontes
tradicionais que têm autoridade com relação ao
conhecimento (como a ciência e o Estado, por exemplo),
descrença em significados universalizantes, crença em uma
crise da representação, que coloca em questão a diferença
entre o real e o simulacro; fragmentação e descentramento
das identidades sociais, culturais e individuais. Claro que
Lyotard não criou a pós-modernidade, ele apenas forjou o
termo, para mapear um movimento do presente.

Porém, uma dessas vertentes (que já que não acredita em


significados universalizantes, não tem como acreditar em
continuidades, linearidades, e coisas afins), pós-
estruturalismo aparece enfatizando a questão das práticas
discursivas. Dessa forma, criar um termo não é apenas
criar uma palavra, mas introduzir um elemento no que se
costuma chamar de real. Se Lyotard não cria a pós-
modernidade, ele cria um certo tipo de condição pós-
moderna, ao cunhar este termo.

Entretanto, tudo isso é muito recente. A década de 1970 é


o auge da explosão dos discursos que originariam a
discussão sobre a pós-modernidade. Enquanto todo esse
movimento acontece de uma forma desorganizada e
fragmentária – como não poderia deixar de ser um início
pós-moderno – os movimentos feministas já vinham se
organizando há muito tempo. Eu poderia ousar dizer que
todas essas coisas que Lyotard tinha em mente ao escrever
sua La condition post-moderne eram já alvo de
preocupações de feministas que por muitos motivos
(sobretudo políticos) não se agregariam à pós-
modernidade.

Gostaria de pontuar com alguns exemplos que mostram


que as feministas, das mais variadas tendências já se
preocupavam com essas questões antes da discussão
iniciada por Lyotard.

- A descrença nas metanarrativas. Uma metanarrativa é um


tipo de explicação ou um sistema teórico que pretenda dar
explicações ou descrições completas, abrangentes ou
totalizantes do mundo. Autoras como Germaine Greer
(1971), Kate Millet (1969), Robin Morgan (1984) e Carole
Pateman (1993), em suas leituras críticas do patriarcado,
têm atenção para não transformar este patriarcado
criticado em uma estrutura naturalizada. Elas descrevem o
patriarcado como uma estrutura forjada atendendo a
alguns interesses; e que as sociedades nem sempre
funcionaram assim.

Se por um lado o patriarcado, enquanto categoria de


análise, aparece como uma tentativa de explicação que
abranja um certo recorte das relações sociais, ele está
longe de ser uma explicação totalizante do mundo ou
mesmo universalizante. Vale lembrar que o livro de Greer,
A mulher eunuco é de 1969/1970, que o livro de Millet,
Política Sexual é do final da década de 1960, e que os livros
de Morgan e Pateman não são do tipo que possamos
chamar de pós-modernos, nem no estilo e nem em
conteúdo, embora sejam mais recentes.

- Descrença e deslegitimação das fontes tradicionais que


têm autoridade com relação ao conhecimento. Uma olhada
rápida no primeiro volume de O segundo sexo nos mostra
como esta postura descrente já era forte em Simone de
Beauvoir (1980a). Suas discussões com a biologia,
psicanálise, com o então fortemente aceito materialismo
histórico desde um ponto de vista não-sacralizador
evidenciam uma relação tensa entre o pensamento
beauvoireano e a autoridade da ciência. Mesmo na parte
tensa, denominada História, onde a autora mantém uma
postura ora conservadora, ora ultra-inovadora, aponta para
essa visão desconfiada com relação à ciência. E essa
desconfiança já antecipa, de algum modo, uma tese cara
para Michel Foucault – décadas mais tarde – de que poder
e conhecimento estão intimamente imbricados em uma
rede multifacetada.

- Descrença em significados universalizantes. Uma teoria


tem sempre preensões de universalidade, mesmo quando
seus objetos são singulares. As feministas descobriram o
quanto isso é nocivo não desde o ponto de vista teórico
apenas, mas também desde a perspectiva da militância.
Judith Butler e Joan Scott afirmam que a teoria é um termo
altamente contestado no interior do discurso feminista
(Butler;Scott: 1992, xiii). Nos Estados Unidos,
principalmente, mas também na França, Ásia, América
Latina e África as mulheres perceberam que um movimento
de mulheres como o feminismo estava apenas afirmando
como “a mulher” um determinado segmento social.

Pensar as questões raciais, sociais e étnicas, tornou-se um


eixo de importância fundamental para o feminismo. Ser
mulher não significa a mesma coisa para uma latina, para
uma africana e para uma norte-americana de classe média
(cf. Davis: 1981). A afirmação “queremos o direito de
trabalhar e nos sustentar”, comum entre as últimas, é
praticamente sem sentido para uma latino-americana de
classe pobre ou africana, por exemplo. Não há, portanto,
uma teoria feminista que acolha tudo o que pode ser dito
sobre a mulher ou as mulheres, e nenhum enunciado do
discurso feminista tem a pretensão validade universal.

- Crença em uma crise da representação, que coloca em


questão a diferença entre o real e o simulacro. A questão
da representação nos remete diretamente ao duplo
essência-aparência, onde a essência é o representado.
Novamente de Beauvoir entra em cena. O início do primeiro
volume de O segundo sexo é uma pergunta: “O que é uma
mulher?” Por que se perguntar por algo que parece
evidente? Por que se perguntar por algo que as ciências já
decidiram o que é, que já tem toda uma fisiologia, uma
psicologia e uma ginecologia? Ao interrogar o que é uma
mulher, ela descobre que a mulher não tem essência. Isso
para a autora tem dois motivos: o primeiro é que a mulher
foi tida como “o outro” do homem, isto é, definida em
função deste; o segundo, é que ninguém nasce uma mulher
(De Beauvoir: 1980a).

Ser uma mulher é um processo de devir [E aqui notamos


aquilo que Deleuze e Guattari chamariam de devir mulher,
mais de trinta anos depois (conf Deleuze; Guattari: 1980)].
Depois desta segunda constatação, que motivaria a
ausência de essência na mulher, de Beauvoir então passa a
olhar algumas representações da mulher, desde um ponto
de vista fenomenológico, no segundo volume do Segundo
Sexo: a menina, a moça, a lésbica, a mulher casada, a
mãe, a prostituta e a amante, a idosa, e por fim a mulher
independente: representações de que? Representações de
um devir, de um movimento, de um processo e não de uma
essência (De Beauvoir: 1980b).

- Fragmentação e descentramento das identidades sociais,


culturais e individuais. Talvez este seja o ponto que mais
aproxima os discursos feministas aos discursos pós-
modernos. Com as discussões entre as feministas e a
psicanálise, acontece então a primeira grande cisão de
identidades. Juliet Mitchel (1975), Simone de Beauvoir
(1980a), Shulamith Firestone (1976), Gayle Rubin (1975),
entre outras, saem na vanguarda desta discussão. Se, por
um lado, a psicanálise naturaliza estruturas constituídas
culturalmente na história, por outro lado, ela racha o
sujeito.

Não há mais um sujeito único, fundante que é idêntico a ele


mesmo. A subjetividade é esfacelada. A identidade da
mulher se esvai pelo vento como a essência feminina
(ligada à passividade, fragilidade, maternidade e outros
“...ade” que tanta opressão trouxeram às mulheres). Como
a passagem da mulher pelo Édipo é já sempre
problemática, a subjetividade dela será sempre marcada
por uma busca irrefreada daquilo que ela é ciente de não
ter (enquanto o homem também não tem, mas tem a
ilusão de possuir): o falo/poder. Críticas marxistas,
existencialistas e pós-estruturalistas no interior dos
discursos feministas, deram outros rumos a esta discussão,
mas como saldo de tudo isto, sobrou um sujeito
fragmentado, um sujeito historicizado, um sujeito que
anseia por ser nômade (quando já não o é!).

Passados esses pontos, podemos ver que não há motivos


para afirmar que o feminismo deve sua existência ao pós-
modernismo. Há, entre os dois, uma relação de amizade e
problematização mútuas. Seguramente, poderíamos
afirmar que o pós-estruturalismo, e o pós-modernismo em
geral, devem muito ao feminismo. Muito das quebras de
evidências, certezas, do abalo à verdade estabelecida como
eterna, a-histórica e imutável se deve ao esforço incansável
de mulheres que buscavam outros espaços para si mesmas
na sociedade.
E a diferença?

Uma das marcas fortes deste ambiente pós-moderno e pós-


estruturalista é a discussão em torno da diferença. As
ciências, lidam com aquilo que elas julgam como regular,
constante, universal, previsível, dito de outra forma, com
aquilo que aparece como sendo sempre o mesmo. Com a
queda da legitimidade da autoridade da ciência sobre a
vida, este mesmo vai deixando de ser o cenário mais
importante. Em oposição a esse mesmo, surge não um
outro, que ainda tem um mesmo como referente, mas um
singular diferente.

E o feminismo, aparece neste cenário, como um dos


baluartes desta diferença, deste diferente. Já não temos
mais um feminismo que luta só pelas mulheres, mas de um
feminismo que lute pela diferença. E não uma diferença que
seja hierarquizada. A hierarquia entre o diferente e o
mesmo acontece apenas se estabelecermos algum
parâmetro pelo qual compararmos os dois. Não há a
oposição entre o diferente e o mesmo, mas o encontro de
diversos diferentes. Voltando a estes pontos que percorri
para desmentir a filiação do feminismo ao pós-modernismo,
podemos ver que o feminismo aparece como um dos
grandes discursos em prol da diferença, mesmo quando ele
não aparece como um feminismo pós-moderno (como é o
caso das feministas marxistas ou das feministas liberais
americanas).

Um dos grandes panos de fundo da discussão no feminismo


é a crítica ao binarismo instaurado pelo patriarcado que
divide o mundo em dois: um dominador – o masculino, e
um dominado – o feminino. A crítica a este binário que é
fundante na história ocidental, vai originar um efeito
dominó em outros binarismos totalitários na história
ocidental (como natureza/cultura; verdadeiro/falso;
razão/sensibilidade, etc.). Carol Gilligan (1982), por
exemplo, vai apontar que, desde o ponto de vista
psicológico de homens e mulheres, este binário é
construído na educação de homens e mulheres; e não um
aparecimento de uma estrutura psicológica originária.
Esta desconstrução de estruturas binárias que atravessam
o pensamento ocidental abala as estruturas do
conhecimento fundadas sobre binários. Talvez possamos
dizer que como o feminismo, comece a existir uma
epistemologia da diferença. É preciso ter cuidado ao falar
de uma epistemologia da diferença para que não estejamos
reificando a diferença para torná-la conhecível. Pelo
contrário, o que as epistemologias de influência feministas
tentam fazer é mostrar que conhecer o mundo não implica
em reduzi-lo a um conjunto mínimo (que acaba sendo
relacionado a um binário fundado no duplo “verdadeiro-
falso”) de proposições. A epistemologia feminista tem
mostrado, com os belos estudos de Sandra Harding (1986),
Carol Gilligan (1982), Donna Haraway (1986), entre outras,
que o mundo humano, sendo em grande parte construído
pelos próprios homens e mulheres, é multifacetado, plural,
múltiplo. Não há sentido em uma teoria do conhecimento
que tente reduzir o mundo a um conjunto mínimo de
categorias para compreendê-lo, muito menos escolher o
mesmo como referencial de conhecimento.

Também não é o caso conhecer o mundo pelo viés da


redução a uma diferença já viciada no mesmo. Segundo as
epistemologias feministas, conhecer o mundo é pluralizá-lo,
perceber as diferenças como amálgamas, sem tentar
reduzi-as a algum referencial. Conhecer o mundo é emergir
nas diferentes diferenças e a partir delas perceber o mundo
não mais como unidade de sentido, mas como produzido
por múltiplas matrizes de entendimento. Conhecer, desde
este ponto de vista, não é mais encontrar a representação
adequada, mas multiplicar olhares.

E essa multiplicação de olhares é politizada. Não há


conhecimento desinteressado. Todo conhecimento é uma
investida política no mundo. E enquanto atitude política,
não se pode aceitar qualquer coisa. Não há um relativismo
absoluto nas epistemologias feministas, justamente em
função de sua postura política. A epistemologia politizada,
que aparece com o feminismo, vai combater as formas de
opressão que surgem de um certo tipo de ciência que usa o
conhecimento como arma de controle. O conhecimento
deve evitar a violência, e não fomentá-la. Não basta
combater a opressão as mulheres, mas todo tipo de
opressão que se funde em algum tipo de hierarquização
entre diferenças. Toda hierarquização é uma relação de
forças, que não se justifica por si só, mas que tem suas
razões de ser vindas de uma vontade de dominar que
algumas pessoas possuem. Se pudermos pensar um
humanitarismo desligado de um ideal masculino, o
feminismo é um movimento humanitário, multiplamente
constituído.

Visto como pensamento da diferença, o feminismo aparece


como um grande revisor da história. As relações entre
feminismo e história são ricas, múltiplas e cheias de
caminhos. O feminismo tem mostrado como a história,
seguindo alguns interesses, apagou a mulher de suas
páginas, fazendo que ela aparecesse apenas como um
outro do homem. Imagens onde a mulher aparece
“produtivamente” são simplesmente esquecidas. Mas uma
das coisas que o feminismo nos mostra é que a história não
é o destino, assim como o corpo também não o é.

Afirmar que a história não é o destino quer dizer aqui que


ela não segue nenhum caminho necessário. A história é
construída. E como qualquer construção, ela é contingente,
pode ser de outra forma. Pode ser desfeita, re-feita, re-
construída de outros modos. O social que é o material da
história não é sagrado. Não precisamos ter por ele nenhum
tipo de reverência que nos impeça de tentar modificá-lo.

Uma das grandes conseqüências do pós-modernismo é uma


certa apatia política, que surge justamente em função
dessa relativização da verdade e de olhares sobre o mundo.
Se não há critérios, se não há garantias, se não há
certezas, só o que podemos fazer é mudar de
agenciamento para agenciamento, sem poder dizer se há
agenciamentos melhores. Isso vem gerando um certo
conformismo político em pensadores como Jacques Derrida.
Entretanto, para o feminismo esse problema não é
acentuado. Há um ponto político inicial que é inegociável: a
opressão contra as mulheres (e outros “diferentes”) deve
ser combatida. Isso não é uma verdade, mas um postulado
político, um ponto de partida de uma ação, um pressuposto
que é originado da experiência de sofrimento, dor e morte
que as mulheres vem sofrendo na história ocidental. Não há
como relativizar este ponto de partida ou dizer que em
alguns casos a opressão contra as mulheres possa ser
interessante.

Uma postura política afirma pontos e o pensamento pós-


moderno apresenta alguns problemas com relação a isto.
Mas nem por isso o feminismo deixa de ser autocrítico. Não
querer revisar o principio de combate à opressão às
mulheres não quer dizer que as formas como isso veio
sendo feito não seja objeto de crítica pelas próprias
feministas. Aquilo que ficou conhecido como segunda onda
do feminismo é um exemplo disto. Neste sentido, o
feminismo não aparece como um pensamento ou postura
dogmática, e não precisa por isto, deixar de ser visto como
um pensamento da diferença por partir de um ponto
político. Pelo contrário, o feminismo é uma tentativa de
pensar um mundo diferente, onde a diferença seria a
ausência de opressão. Desta forma, de maneira nenhuma o
feminismo sofreria a acusação do qual é objeto parte do
pós-modernismo, de conformismo.

Por outro lado, o feminismo, enquanto pensamento é a


figura do impasse. Primeiro porque historicamente as
mulheres foram desligadas do pensamento. As mulheres
são a paixão, o homem, a razão. Kant, no seu famoso texto
sobre a Aufklärung afirma que o Iluminismo é a saída do
homem da sua menoridade da qual ele mesmo é o culpado.
E penso que ele não tem a mulher como parte da
humanidade, pois ao se referir às mulheres, falava de “todo
o belo sexo” como componente desta menoridade
voluntária. Essa menoridade é a ausência do uso autônomo
da razão.

E esta imagem iluminista da razão ligada ao homem


persegue a ciência, a filosofia e a cultura em geral, de
algum modo, até hoje. Que o feminismo tenha se afirmado
como movimento do pensar é um impasse, uma quebra
nesta imagem de que as mulheres não “foram feitas para
pensar”. Busquemos nos currículos de História da Filosofia
e não encontraremos filósofas. Isso quer dizer que elas
nunca existiram? Se um certo modo sim, pois aquilo que
falta no registro histórico é visto como inexistente. Mas de
forma nenhuma isso indica que mulheres não tenham se
aproximado da filosofia.

Desde as pensadoras que caminhavam na escola pitagórica,


os trabalhos de Safo, Aspásia, Hipatia, Asiotéia, Hidelgarda,
Eloísa, Cristhine de Pisan, Mary Wollstonecraft, entre
muitas outras são simplesmente inexistentes em manuais
de história da filosofia. Que impressão temos quando
abrimos um livro que conta a história da filosofia e não
encontramos as mulheres? Dizemos: “elas não pensam”.
Mas nunca paramos para ver que o autor do livro fez
escolhas, e que essas escolhas, ao lado de uma tradição,
dita canônica, exclui as mulheres, por elas não serem
afeitas ao pensar. As mulheres, como aponta Simone de
Beauvoir são socialmente seus corpos. Como os corpos não
pensam, corpos não estão nos livros de história da filosofia.

O feminismo coloca essa posição em impasse. Ele não


apenas afirma que as mulheres pensam, mas que têm um
pensamento inquietante, um pensamento modificador, um
pensamento que abala as estruturas fixas e imóveis do
conhecimento viciado pelas estruturas opressoras. O
feminismo vem mostrando um aspecto positivo do
pensamento, um aspecto de reconstrução de um mundo
menos violento, menos agressivo, menos opressor. E tudo
isso feito através de um pensamento ferozmente crítico. O
pensamento feminista é um pensamento crítico na medida
em que ele desconfia das coisas que nos aparecem como
naturais. Se a junção mulher-corpo é natural, desconfiemos
dela. E ao desconfiar dessa naturalidade, estamos abalando
uma estrutura opressora que faz que essa junção pareça
natural, pois atende a interesses opressores. O feminismo
aparece assim como um pensamento da diferença que
promove a mudança. Uma crítica que não aceitando sequer
que o social ou o real sejam o limite, reinventa o mundo de
formas criativas e diferentes.
Nesse movimento de re-invenção do mundo, mesmo as
noções centrais para o feminismo no passado foram sendo
revisadas e criticadas, como o próprio conceito de gênero.
Em sua crítica aos binarismos, um dos binários que caem,
no desenvolvimento do pensamento feminista, é o binário
sexo-gênero (Conf. Butler: 2003). Eis a prova cabal de que
o feminismo é uma postura autocrítica diante do
pensamento e da ação.

Figuras novas surgem neste mundo pós-patriarcal


defendido pelas feministas, a/o excêntrica/o; a/o
forasteira/o, a/o nômade. Estas figuras mostram como a
relação das mulheres consigo mesmas, não são relações
modelares, o feminismo não está tentando oferecer
modelos para a ação, não está tentando dizer como deve
ser o mundo, não está descrevendo o mundo perfeito onde
a opressão não aconteça. Por outro lado, a excêntrica, a
forasteira, a nômade são marcas de figuras de sujeitos que
longe de saber o que são, de saber qual o caminho certo a
seguir, qual a referência correta, qual o verdadeiro mundo
melhor, são sujeitos errantes, sujeitos autocríticos, sujeitos
que desconfiam de identidades, que sabem que toda a
história é uma ficção, que não há diferença rígida entre
ficção e realidade. Que sabem que tudo é inventado. Os
seres humanos são inventores e inventoras. Praticamente
não há nada que exista fora do discurso e da ação humana.
E aquilo que escapa ao discurso e a ação é invisível para
as/os agentes humanos.

Num mundo re-inventado, sem Deus, sem normas


garantidas por um poder supremo, sem verdade absoluta,
sem garantias, somos responsáveis por nossas ações. Não
poderemos mais apelar para a natureza humana para nos
isentar de nossas responsabilidades. Um mundo onde
homens e mulheres não mais existam enquanto tais, mas
tendo o cuidado de quando mulheres não existam não fique
o referencial masculino. Sem hierarquias, sem dominação
opressiva, sem ancoragens violentas em conhecimentos
que agem sobre a ação da/o outra/o tomando-a/o por
posse. Um mundo onde a heterossexualidade não seja a
norma, um mundo onde sexo e reprodução não tenham
ligação unívoca. Um mundo diferente... O sonho e a
conquista de mulheres que com suas batalhas incansáveis
vem construindo, aos poucos, na nossa história.

Ao modo de inconclusão...

O pensamento feminista como pensamento da


diferença é, sobretudo, uma aposta política. Uma aposta na
mudança, na dissolução de diferenças rotuladas pelo
mesmo. A ligação do feminismo com movimentos
ecologistas vem mostrando que, longe de ser um
movimento ou discurso ressentido, é um movimento
inclusivo. Não acontece uma guerra pela supremacia da
identidade feminina. Há uma sim, uma batalha pelo fim das
identidades rígidas. O feminismo não é uma guerra das
mulheres pelas mulheres. Talvez o feminismo, enquanto
movimento e pensamento da diferença seja uma luta por
um mundo onde ser homem ou mulher não faça diferença
alguma. Ser diferente e que isso não faça diferença: o
sonho do feminismo. E isso não quer dizer que o feminismo
tente fazer iguais mulheres e homens. Pelo contrário. O
feminismo é a luta contra o enfeitiçamento dos discursos e
práticas que nos fazem pensar que há alguma vantagem
ser homem ou mulher.

Referências

A parte do feminismo que de maneira decisiva contribui


com o pós-estruturalismo, afirma que uma tática do
pensamento moderno é a argumentação linear que
mostrem as referências do pensamento, pois estariam
apenas conectando formulações já pensadas com o que
aquela/e que escreve, pensa. Porém, sou do tipo de
pensadora que tenta se desligar deste tipo de modo de
pensar e de escrever. Apesar de entender que uma
estratégia política de visibilidade das mulheres é mostrar o
que elas disseram, isso não precisa ser feito, reificando o
pensamento das autoras na forma de citações que apenas
objetificam um pensamento rico e múltiplo. Prefiro ter
essas autoras como ponto de partida do meu próprio
pensamento, e que elas não apareçam em meu texto
cercadas de aspas, mortas em palavras que terei que
comentar. Não creio que citar uma frase apenas de uma
autora, ilustrando o que eu mesma estou dizendo seja a
estratégia ideal. Entretanto, a bibliografia aparece aqui
como uma dívida de gratidão por palavras que atravessam
minha experiência como pensadora, como alguém que
aparece socialmente como mulher. Estrategicamente, esta
minha postura também tenta impedir aqueles/as
oportunistas que varrem os textos apenas em busca de
citações. Defendo uma política da leitura dos textos
completos. E aquelas/es que se interessarem pelas coisas
que tento discutir, podem ver em meu texto um convite.
Por isso, aqui estão as/os autoras/es, que junto comigo
escreveram este texto:

BIRULÉS, Fina. 1992. Filosofía y Género. Pamplona:


Pamiela Argitaletxea.

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Nota biográfica

Nascida na Áustria, em 1970, mas naturalizada brasileira, a


autora vive em Vitória - ES, onde cresceu, cursou letras e
filosofia. É mestra em filosofia política pela UFRJ e
aventureira solitária nos percursos feministas. Leciona
Filosofia Contemporânea e Introdução à filosofia, em várias
Instituições Superiores de Ensino do ES, onde tem como
um de seus principais focos de pesquisa, a visibilidade das
mulheres na história da filosofia.
[1] Ouvi de um professor de filosofia que participava de um
seminário sobre corpo e significações sociais no Instituto de
Medicina Social da UERJ que “o feminismo contemporâneo
deve sua existência ao pós-modernismo...” Esta afirmação
foi o motivo de minha investigação para este texto, de vez
que aparentemente todos concordaram com esta
afirmativa.

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