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Crianças e adolescentes foram e são, atualmente, objetos de diversos estudos e destinatários de políticas sociais no Brasil desde o final do século XIX. Na medida em que os conceitos científicos e as interpretações jurídicas se transformam ao longo da história, as representações sociais destes sujeitos também sofrem mudanças. Paralelamente, os paradigmas da sociedade brasileira também se transformam e geram desafios que necessitam de um amplo debate. O presente artigo tem por objetivo, realizar uma reflexão sobre as representações sociais de crianças e adolescentes nas legislações brasileiras que tratam da defesa de seus direitos. Mais especificamente, importa analisar as transformações no campo jurídico e na lógica das relações sociais empreendidas desde a primeira legislação destinada para a infância – o Código de Menores de 1927, até os dias atuais. Sobretudo, buscamos enfatizar a mudança trazida com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Neste sentido, com o relato da história das legislações específicas sobre estes sujeitos, juntamente com o levantamento bibliográfico do tema, analisaremos os desafios dos mesmos em conviver com representações sociais paradoxais – menores e crianças e adolescentes – no atual contexto pós-ECA
Titolo originale
"Menores, Crianças e Adolescentes": a história e os desafios dos "sujeitos de direitos" no Brasil - Danilo Viturino
Crianças e adolescentes foram e são, atualmente, objetos de diversos estudos e destinatários de políticas sociais no Brasil desde o final do século XIX. Na medida em que os conceitos científicos e as interpretações jurídicas se transformam ao longo da história, as representações sociais destes sujeitos também sofrem mudanças. Paralelamente, os paradigmas da sociedade brasileira também se transformam e geram desafios que necessitam de um amplo debate. O presente artigo tem por objetivo, realizar uma reflexão sobre as representações sociais de crianças e adolescentes nas legislações brasileiras que tratam da defesa de seus direitos. Mais especificamente, importa analisar as transformações no campo jurídico e na lógica das relações sociais empreendidas desde a primeira legislação destinada para a infância – o Código de Menores de 1927, até os dias atuais. Sobretudo, buscamos enfatizar a mudança trazida com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Neste sentido, com o relato da história das legislações específicas sobre estes sujeitos, juntamente com o levantamento bibliográfico do tema, analisaremos os desafios dos mesmos em conviver com representações sociais paradoxais – menores e crianças e adolescentes – no atual contexto pós-ECA
Crianças e adolescentes foram e são, atualmente, objetos de diversos estudos e destinatários de políticas sociais no Brasil desde o final do século XIX. Na medida em que os conceitos científicos e as interpretações jurídicas se transformam ao longo da história, as representações sociais destes sujeitos também sofrem mudanças. Paralelamente, os paradigmas da sociedade brasileira também se transformam e geram desafios que necessitam de um amplo debate. O presente artigo tem por objetivo, realizar uma reflexão sobre as representações sociais de crianças e adolescentes nas legislações brasileiras que tratam da defesa de seus direitos. Mais especificamente, importa analisar as transformações no campo jurídico e na lógica das relações sociais empreendidas desde a primeira legislação destinada para a infância – o Código de Menores de 1927, até os dias atuais. Sobretudo, buscamos enfatizar a mudança trazida com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Neste sentido, com o relato da história das legislações específicas sobre estes sujeitos, juntamente com o levantamento bibliográfico do tema, analisaremos os desafios dos mesmos em conviver com representações sociais paradoxais – menores e crianças e adolescentes – no atual contexto pós-ECA
MENORES, CRIANAS E ADOLESCENTES: A HISTRIA E OS DESAFIOS DOS SUJEITOS DE DIREITOS NO BRASIL
Danilo Jos Viturino Soares
JUIZ DE FORA 2014 2
DECLARAO DE AUTORIA PRPRIA E AUTORIZAO DE PUBLICAO
Eu, Danilo Jos Viturino Soares, portador do documento de identidade MG 17.078.195 e CPF 106.823.126-22, acadmico do Curso de Graduao Bacharelado Interdisciplinar em Cincias Humanas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, regularmente matriculado sob o nmero 201073024A, declaro que sou autor do Trabalho de Concluso de Curso intitulado MENORES, CRIANAS E ADOLESCENTES: A HISTRIA E OS DESAFIOS DOS SUJEITOS DE DIREITOS NO BRASIL, desenvolvido durante o perodo de 17 de maro de 2014 a 31 de agosto de 2014 sob a orientao de Marcella Beraldo de Oliveira, ora entregue UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (UFJF) como requisito parcial a obteno do grau de Bacharel, e que o mesmo foi por mim elaborado e integralmente redigido, no tendo sido copiado ou extrado, seja parcial ou integralmente, de forma ilcita de nenhuma fonte alm daquelas pblicas consultadas e corretamente referenciadas ao longo do trabalho ou daquelas cujos dados resultaram de investigaes empricas por mim realizadas para fins de produo deste trabalho. Assim, firmo a presente declarao, demonstrando minha plena conscincia dos seus efeitos civis, penais e administrativos, e assumindo total responsabilidade caso se configure o crime de plgio ou violao aos direitos autorais. Desta forma, na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Juiz de Fora a publicar, durante tempo indeterminado, o texto integral da obra acima citada, para fins de leitura, impresso e/ou download, a ttulo de divulgao do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Cincias Humanas e ou da produo cientifica brasileira, a partir desta data. Por ser verdade, firmo a presente.
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MENORES, CRIANAS E ADOLESCENTES: A HISTRIA E OS DESAFIOS DOS SUJEITOS DE DIREITOS NO BRASIL: Danilo Jos Viturino Soares 1
RESUMO: Crianas e adolescentes foram e so, atualmente, objetos de diversos estudos e destinatrios de polticas sociais no Brasil desde o final do sculo XIX. Na medida em que os conceitos cientficos e as interpretaes jurdicas se transformam ao longo da histria, as representaes sociais destes sujeitos tambm sofrem mudanas. Paralelamente, os paradigmas da sociedade brasileira tambm se transformam e geram desafios que necessitam de um amplo debate. O presente artigo tem por objetivo, realizar uma reflexo sobre as representaes sociais de crianas e adolescentes nas legislaes brasileiras que tratam da defesa de seus direitos. Mais especificamente, importa analisar as transformaes no campo jurdico e na lgica das relaes sociais empreendidas desde a primeira legislao destinada para a infncia o Cdigo de Menores de 1927, at os dias atuais. Sobretudo, buscamos enfatizar a mudana trazida com a promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente ECA. Neste sentido, com o relato da histria das legislaes especficas sobre estes sujeitos, juntamente com o levantamento bibliogrfico do tema, analisaremos os desafios dos mesmos em conviver com representaes sociais paradoxais menores e crianas e adolescentes no atual contexto ps-ECA. Palavras Chaves: Criana e adolescente. Infncia universal. Representaes sociais. Legislao. Sociedade.
ABSTRACT: Children and adolescents have been and are currently objects of many studies and recipients of social policies in Brazil since the late nineteenth century. To the extent that scientific concepts and legal interpretations become throughout history, the social representations of these subjects also undergo changes. In parallel, the paradigms of Brazilian society also transform and pose challenges that require a broad debate. This article aims at, perform a reflection on the social representations of children and adolescents on Brazilian laws which deal with the defense of their rights. More specifically, it is important to analyze the changes in the legal field and the logic of social relations undertaken since the first legislation for children - Juvenile Code, 1927, to the present day. Above all, we seek to emphasize the change introduced with the enactment of the Statute of the Child and Adolescent - SCA. In this sense, with the account of the history of specific laws on these subjects, along with bibliographical theme, we analyze the challenges of living with the same paradoxical social representations - smaller and children and adolescents - in the current context post-SCA. KEYWORDS: Children and adolescents. Universal childhood. Social representations. Legislation. Society.
INTRODUO: O presente artigo tem por objetivo, realizar uma reflexo sobre as representaes sociais de crianas e adolescentes nas legislaes brasileiras que tratam da defesa de seus direitos. Mais especificamente, importa analisar as transformaes no campo jurdico e na lgica das relaes sociais empreendidas desde a primeira legislao destinada para a infncia o Cdigo de Menores de 1927, at os dias atuais. Sobretudo, buscamos enfatizar a mudana trazida com a promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente ECA. Neste sentido, com o relato da histria das legislaes especficas sobre estes sujeitos, juntamente com o levantamento bibliogrfico do tema, analisaremos os desafios dos mesmos em conviver com representaes sociais paradoxais menores e crianas e adolescentes no atual contexto ps-ECA.
1 Aluno da graduao em Bacharelado Interdisciplinar em Cincias Humanas Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: danilo.viturino@gmail.com. 4
Desde 1980, o Brasil tem passado por diversas transformaes polticas, jurdicas e sociais. O fim da ditadura, a luta pela consolidao da democracia e o fortalecimento das prticas polticas e econmicas neoliberais no pas marcam esse perodo. A luta pela conquista dos direitos dos cidados exemplo das transformaes ocorridas, como a promulgao da Constituio Federal de 1988 e de leis que visam a proteo de direitos dos indivduos, como o Estatuto da Criana e do Adolescente 2 , o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso (Schuch, 2005). Entretanto, paralelamente, na medida em que se realizam esforos para a defesa dos direitos dos indivduos, os problemas sociais tambm se tornam maiores e mais complexos. A violncia, a intolerncia, as injustias e as violaes dos direitos humanos obrigam o surgimento de novos dispositivos com a finalidade de proteger e controlar a sociedade (Schuch, 2005). Nesse contexto de transformaes e surgimento de novos paradigmas, temos o debate da situao da criana e do adolescente 3 no Brasil. Numa sociedade que historicamente privilegiou os interesses de elites conservadoras em detrimento da expropriao poltica dos setores subalternos por meio da intensificao do controle sobre as mesmas (Vianna, W. 2004), a elaborao de um aparato jurdico capaz de proteger e regular a vida de crianas e adolescentes se tornou um importante objeto de estudos e discusses polticas no pas. Houve transformaes na legislao e na maneira de reconhecer o papel social da infncia e juventude. A revogao do Cdigo de Menores 4 e a promulgao do ECA, promoveram grandes conquistas, como a proteo integral e a prioridade absoluta na formulao de polticas sociais pblicas e destinao privilegiada de recursos pblicos 5 . Mas tambm ocorreu o surgimento de novos desafios, como a dificuldade de colocar em prtica uma legislao moderna, democrtica e de Primeiro Mundo (Schuch, 2005), que ao mesmo tempo em que tutela todos por meio de direitos universais, ainda continua mantendo elementos que hierarquizam as representaes sociais de crianas e adolescentes. A hiptese que ser fundamentada nas pginas a seguir a de que se mudou a forma de reconhecer a figura da criana e do adolescente no plano jurdico brasileiro ps-ECA, com o conceito de infncia universal; entretanto, essa mudana no teve impacto nas relaes sociais cotidianas desses sujeitos. Houve grandes transformaes conjunturais, mas no se realizou uma ciso com a estrutura de funcionamento das relaes sociais no pas. [...] a recente transformao legal, com a introduo da linguagem dos direitos, trouxe substantivas mudanas no domnio de ateno e controle da infncia e juventude no Brasil, ao mesmo tempo em que explicitou tendncias que vm desenvolvendo-se desde o incio da implantao dos primeiros aparatos jurdico-estatais para essa populao no Brasil. Apesar da nfase na noo de ruptura com antigos princpios, prticas e valores anteriores ao ECA, realizada pelos agentes envolvidos na implantao da lei, a anlise histrica de formao desse domnio permite inserir a promulgao do ECA e o novo regime discursivo que introduz a linguagem dos sujeitos de direitos numa economia geral dos discursos e prticas acerca da proteo e controle da infncia e juventude no pas. Crianas e adolescentes, em suas diversas categorias classificatrias - menores desvalidos, facnoras, delinquentes, abandonados, infratores, etc constituram-se enquanto um problema poltico e social h mais de um sculo, em paralelo ao investimento estatal na administrao e controle da populao brasileira e constituio de autoridades. A necessidade de diferenciar tipos de pessoas no nenhuma novidade histrica, mas se reveste de efeitos especficos, no contexto ps-ECA, no momento em que se associa com um privilgio da noo de infncia universal e de um contexto social de demandas punitivas. A potencial infncia universal que extrapola fronteiras nacionais, de raa, de sexo, de religio, de classe social - corresponde diferenciao contnua: menores e maiores, bons e maus, infratores e no infratores, com famlia e sem famlia, em perigo e perigosos, etc. (Schuch, 2005, p. 93).
2 ECA Lei N 8.069 de 13 de Julho de 1990. 3 Considera-se criana a pessoa at doze anos de idade incompleto, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. 4 Cdigo de Menores Decreto N 17.943-A de 12 de outubro de 1927. 5 ECA Artigos 3 e 4, incisos c e d. 5
A metodologia de pesquisa deste artigo consiste no levantamento histrico das transformaes no campo jurdico e nas representaes sociais de crianas e adolescentes no pas, e no levantamento bibliogrfico dos autores que abordam essa questo. Dessa forma, abordaremos aqui duas linhas de raciocnio que se complementam: A primeira a anlise da histria das transformaes no campo jurdico dos direitos das crianas e adolescentes, principalmente a passagem do menor em situao irregular (perodo pr-ECA) para o sujeito de direitos (perodo referente promulgao do ECA at os dias atuais). A segunda a reflexo sobre as validade, uso e aplicao das leis no Brasil, nos termos trazidos por DaMatta (1983), em que define a distino entre pessoas e indivduos atravs dos ritos de autoridade, como o Voc sabe com quem est falando?, que reforam a hierarquizao e a desigualdade na sociedade. Alm disso, importa analisar esta distino no campo das representaes sociais de crianas e adolescentes no Brasil contemporneo.
DO MENOR EM SITUAO IRREGULAR PARA O SUJEITO DE DIREITOS: A HISTRIA DO ESTATUTO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE ECA: A histria do ECA tem seu incio no sculo XX com a formulao do conceito de infncia, noo esta que foi sendo construda ao longo da histria da civilizao ocidental moderna como sendo um perodo de preparao para a vida adulta, tendo a educao e as instituies educacionais um papel fundamental (Aris, 1981). J no final do sculo XIX e incio do sculo XX havia preocupao dos governos com a crescente urbanizao, insegurana pblica, desenvolvimento industrial e a delinquncia no Rio de Janeiro e So Paulo (Schuch, 2005). Alm desses problemas frutos da modernidade, havia tambm uma preocupao parte sobre as polticas para a juventude, defendida principalmente por juristas com discurso de que havia uma necessidade de humanizar e modernizar o Direito (Rizzini, 1995). Mdicos higienistas tambm alertavam as autoridades sobre os grandes ndices de mortalidade infantil provocada pelas condies de vida na poca 6 (Costa, J. 1979). No contexto internacional, houve a criao de organizaes especializadas na promoo do bem estar da criana, como a Childrens Bureal (Estados Unidos, 1912) e o Instituto Interamericano Del Nio (sede em Montevidu, 1917). Apesar do surgimento dessas e demais outras organizaes, ainda no havia um acordo internacional que universalizasse o discurso das mesmas. Por consequncia, em 1924 aprovada pela Liga das Naes a Declarao de Genebra, contendo uma forte influncia norte americana afirmando a necessidade de haver uma proteo para as crianas, mas sem informar quem seria o responsvel por essa proteo. De outra maneira, podemos afirmar que neste momento surge a semente do conceito de infncia universal (Schuch, 2005). No Brasil, os juristas conseguiram criar o primeiro Juzo de Menores em 1924, incorporando aos debates diversos atores sociais, como a polcia, setores polticos, associaes caritativas e filantrpicas e as cruzadas mdicas. Em 1927, houve ento a promulgao do Cdigo de Menores, cujo objeto legal era uma categoria ambivalente, como afirma Schuch (2005, p. 59): O menor, como categoria de hierarquizao social, era o personagem social que abarcava uma ampla gama de substantivos e adjetivos diversos crianas desvalidas, miniaturas facnoras, etc. atribudas na prtica policial e jurdica queles indivduos definidos legalmente em situao de menoridade. Como uma vasta bibliografia sobre o assunto tem destacado, o menor era definido, primordialmente, em torno de sua situao de subordinao social pela pobreza. Pela contribuio da viso dos mdicos sanitaristas e o tratamento dado pelas autoridades judiciais e de segurana pblica, crianas e adolescentes pobres eram problemas de sade e segurana pblica. Ser
6 Os dados sobre mortalidade infantil no Brasil a partir de 1930 podem ser acessados em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/evolucao_perspectivas_mortalidade/evolucao_mortalidade.pdf. Acessado em 01/06/2014 6
menor era estar em estado de abandono ou delinquncia e que merecia as medidas de assistncia e proteo contidas no Cdigo de Menores 7 . A autoridade do Juiz de Menores passou a ser contestada, pois a sua funo contemplava o mbito judicial e tambm o executivo, sendo colocado em debate se a justia de menores tambm estava sendo uma justia assistencialista. Entrava em crise o lema de salvar as crianas (Schuch, 2005). Com a instaurao do regime do Estado Novo, houve a criao do Servio de Atendimento aos Menores (SAM), subordinado diretamente ao Ministrio da Justia, aumentando ainda mais os debates a respeito da finalidade do Juiz de Menores. Segundo Liberati (2002, p. 49): O SAM tinha como misso amparar, socialmente, os menores abandonados e infratores, centralizando a execuo de uma poltica de atendimento, de carter corretivo-repressivo- assistencial em todo territrio nacional. Na verdade, o SAM foi criado, para cumprir as medidas aplicadas aos infratores pelo Juiz, tornando-se mais uma administradora de instituies do que, de fato, uma poltica de atendimento ao infrator. Com a ampliao do SAM a partir de 1944 e a inflamao dos debates internacionais de 1950, d-se incio a introduo do conceito de defesa dos direitos do menor. Com a promulgao do Cdigo Pan Americano da Criana em 1948, o foco das discusses mudou da promoo do bem estar da criana pela trade criana- famlia-Estado, para a criana como sujeito de direitos. (Schuch, 2005) Em um contexto marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, a abordagem individualista tornou-se cada vez mais difundida em legislaes e acordos internacionais, cujas premissas esto no conceito de indivduo, em que Louis Dummont (1983, p. 37) o define como: o ser moral, independente, autnomo e, por conseguinte, essencialmente no social portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade. Com a criao da Organizao das Naes Unidas e a promulgao da Declarao Universal dos Direitos do Homem, fica esclarecido que a preocupao com a defesa dos direitos de cada indivduo passa a ser uma preocupao internacional, transpassando os limites das soberanias nacionais. Da mesma forma, os direitos da criana passaram tambm a receber uma conceitualizao universal, com a promulgao dos Direitos da Criana em 1959 pela ONU. [...] ganha fora a concepo de uma infncia universal: a infncia concebida como um perodo de vida dotado de universalidade, noo muito influenciada pelos saberes psi, que supem a universalidade da natureza humana. [...] Assim como a Declarao Universal dos Direitos do Homem, a Declarao dos Direitos da Criana enuncia um padro a que todos devem aspirar e se empenhar a construir. uma iniciativa fundamental para a legitimao internacional de um modo de administrao da infncia e juventude que tem, nos rgos de justia, os instrumentos privilegiados de governo. (Schuch 2005, p. 66) No Brasil, este debate ainda no havia se difundido. Com a instaurao da ditadura, a Doutrina de Situao Irregular sofreu reformas em 1979 8 , mantendo a mesma ideologia excludente, fortalecida pelo Instituto Del Nio, ligado Organizao dos Estados Americanos OEA, embasada na Doutrina de Segurana Nacional principal alicerce ideolgico das ditaduras latino americanas na poca (Arantes, 2003). neste perodo que surgem as instituies federais e estaduais do bem estar do menor FEBEMs e FUNABEMs que segundo Arantes (2003, p. 12): [...]tinham como eixo a poltica da centralizao das decises e das execues, da segregao dos menores em situao irregular, do monoplio estatal no trato da questo, e principalmente, dos muros contendores. Com o processo de redemocratizao do pas, a Doutrina de Proteo Integral foi recepcionada na Constituio Federal, em seu Artigo 227, regulado pela lei 8069/90, o Estatuto da Criana e do adolescente.
7 Cdigo de Menores de 1927 Art. 1. 8 Cdigo de Menores de 1979 Lei N 6.697 de 10 de Outubro de 1979. 7
Apesar de retardatria, esta reforma significa a interao de mltiplos agentes e instituies governos federal, estaduais e municipais, organizaes no governamentais (ONGs), instituies internacionais, agentes judiciais, militantes e ativistas que atuam na defesa dos direitos de crianas e adolescentes, bem como tambm um marco na forma de reconhecer os mesmos: se antes o menor era um caso de polcia, hoje a criana caso de poltica (Cendhec, 2009). Contudo, mesmo com os avanos, ainda existem grandes desafios no campo dos direitos da infncia e juventude: Salvar as crianas - defend-las, reform-las, control-las e ajud-las - vem sendo, ontem e hoje, um gesto de amor e um modo de governo. De um governo produtivo que, ao mesmo tempo em que gere a populao, produz autoridades para sua ateno e controle, atravs da definio de objetos ou alvos de ateno e saberes e agentes responsveis pela sua administrao e controle: os sujeitos de interveno e os sujeitos de ao. A definio de sujeitos de interveno d-se paralelamente a proposio de sujeitos de ao categorizao que instaura relaes complementares, embora assimtricas, entre essas duas posies sociais. Como uma constante ao longo dos anos, temos a vontade classificatria que diferencia, hierarquiza, separa, categoriza e instaura a desigualdade, definindo modos de ao e produzindo sujeitos distintos. (Schuch, 2005, p. 296) Temos ento o cerne de nosso artigo: se antes os problemas estavam centrados nos menores desvalidos, delinquentes e abandonados, hoje os autores de ato infracional, sujeitos de interveno e as vtimas da negligncia so o pblico alvo do dispositivo legal. Como j citado aqui, Schuch (2005) afirma que este um momento paradoxal, onde existe uma lei que prega, por meio de sua gide ontolgica, a universalizao da criana, mas que ao mesmo tempo categoriza e hierarquiza os destinatrios da lei as crianas que necessitam medidas de proteo e os adolescentes que necessitam de medidas scio educativas. Nosso objetivo entender a tal desigualdade que transportada do plano jurdico para as relaes sociais e que, ao mesmo tempo, contribui para a manuteno da mesma por meio de um ciclo histrico-estrutural de antigas representaes sociais. Este fenmeno de hierarquizao social, gerador de desigualdades entre pessoas e indivduos tambm est presente no contexto da infncia brasileira quando se diferencia os menores de crianas e adolescentes. Diferenciar as formas de representao social na infncia fez parte do nosso passado e tambm nos dias atuais, pois como afirma Lima (2014, p. 57), possvel observar, por exemplo, nos discursos pautados pela mdia, como nas manchetes que estampam alguns jornais a expresso: Menor mata adolescente. Dando destaque e causando uma ciso dentro da mesma faixa etria em questo. comum perceber essa distino no trato dessa faixa etria, contudo ambos so adolescentes. Porm tratados sob o jargo MENOR, aqueles que praticam o ato contra o outro, passam a sofrer um processo de rotulao sobre quem so fazendo a distino que existem adolescentes e existem os menores, os primeiros entendidos como normais e os outros, como marginais e infratores, portanto caso de polcia, merecedores de uma interveno do estado para soluo de sua questo. Para que se entenda a manuteno das diferentes representaes sociais destes sujeitos de direitos atualmente no Brasil, buscaremos nas reflexes de Roberto DaMatta as explicaes sobre a distino entre pessoas e indivduos.. A DIFERENCIAO ENTRE PESSOA E INDIVDUO, OS RITOS DE AUTORIDADE: Marx (1848) afirma que a histria da humanidade a histria das lutas de classes e isso serve de entendimento tanto para as sociedades do passado, quanto para as contemporneas. Mestres e escravos, nobres e vassalos, patres e empregados, ricos e pobres, dentre outras diversas formas dialticas norteiam o debate para entender a organizao das sociedades. 8
No Brasil, DaMatta (1983) busca entender a lgica das relaes partindo da anlise dos modos de enfretamento do conflito no cotidiano, cuja resoluo dos mesmos se d atravs dos ritos de autoridade, onde o autor os sintetiza pelo rito Voc sabe com quem est falando?, este que sempre implica uma separao radical e autoritria de duas posies sociais real ou teoricamente diferenciadas (DaMatta,1983, p. 139). Esta forma autoritria de se tratar o outro demonstra sempre uma situao de conflito e parece que nossa sociedade busca a qualquer custo evit-lo. No quer dizer que ele no existe, pelo contrrio, nossa sociedade possui diversos conflitos; entretanto, entre a existncia deles e o seu reconhecimento existe uma enorme distncia (DaMatta,1983). Quando se trata de crianas e adolescentes, o uso do Voc sabe com quem est falando? uma prtica habitual no cotidiano. A atitude de adjetivar esses sujeitos o prprio rito sendo usado de maneira camuflada, pois o menor sempre rotulado como pobre, delinquente, um problema social que precisa ser controlado, para que no existam crises onde ele tenha a oportunidade de impor certo tipo de autoridade, desequilibrando o esqueleto hierrquico da sociedade. Tal averso crise revela em nveis cotidianos que o Voc sabe com quem est falando? uma ferramenta de um sistema social que est sempre preocupado com a hierarquia e a autoridade, que tem seus aspectos conhecidos, mas no reconhecidos por seus membros (DaMatta,1983). Em um dos inquritos elaborados por DaMatta (1983) 9 respeito do emprego do Voc sabe com quem est falando?, uma pessoa provavelmente usar esta expresso quando: [...] (a) sua autoridade for diminuda; (b) desejar impor de forma definitiva e cabal o seu poder; (c) inconscientemente ou conscientemente perceber no seu interlocutor uma possibilidade de inferioriz-lo em relao ao seu status social; (d) ser pessoa interiormente fraca ou que sofre de complexo de inferioridade; (e) o interlocutor, de uma forma ou de outra, percebido como ameaa ao cargo que ocupa (DaMatta, 1983, p. 144). Essa expresso de autoridade revela que no Brasil buscamos resolver os conflitos por meio de uma tica de identidade e lealdade verticalizada, do que pelas ticas horizontais da sociedade moderna capitalista, com base na igualdade e na universalidade (DaMatta, 1983). O Voc sabe com quem est falando? ento um instrumento de uma sociedade que constitui o cerne das relaes pessoais na esfera moral (ou das moralidades) e que busca de diversas maneiras adentrar onde a esfera burocrtica (ou das Leis e do Estado) no ocupa. Sendo assim, ela [...] uma funo da dimenso hierarquizadora e da patronagem que permeia nossas relaes diferenciais e permite, em consequncia, o estabelecimento de elos personalizados em atividades basicamente impessoais. (DaMatta,1983) Alm disso, este rito possui outras expresses similares, como por exemplo, o Quem voc pensa que ?, Veja se me respeita!, Onde voc pensa que est?, V se te enxerga!, Ser que voc no tem vergonha na cara?, etc. Tais expresses possuem em ltima instncia, o mesmo significado: o de evitar o conflito aberto em virtude do estabelecimento (ou restabelecimento) da ordem e da hierarquia. Atualmente, este conflito que marcado pela sobreposio da pessoa em detrimento do indivduo que pode ocorrer tanto entre os estratos sociais; quanto tambm dentro de um mesmo tende a ser resolvido por meio da autoridade que a pessoa possui na lgica de funcionamento de nosso sistema. Para que fique mais claro, seguem os conceitos de indivduo e pessoa, respectivamente: [...] a noo empiricamente dada do indivduo como realidade concreta, natural, inevitvel, independente das ideologias ou representaes coletivas e individuais. [...] uma unidade social relevante e ativa numa formao social, capaz de gerar os ideais concomitantes de individualismo e igualitarismo, um fato social histrico, objetivamente dado, produto do desenvolvimento de uma formao social especfica: a civilizao ocidental. (DaMatta, 1983. p 171)
9 DaMatta, 1983, p. 142 9
A noo de pessoa pode ento ser sumariamente caracterizada como uma vertente coletiva da individualidade, uma mscara que colocada em cima do indivduo ou entidade individualizada (linhagem, cl, famlia, metade, clube, associao, etc.). Quando a sociedade atribui mscaras a elementos que deseja incorporar no seu bojo, o faz por meio de rituais, penetrando por assim dizer essa coisa que deve ser convertida em algo socialmente significativo. [...] como se a totalidade estivesse penetrando o elemento individualizado, para, no momento mesmo dessa penetrao, liquidar de vez com seu espao interno, incorporando-o definitivamente na coletividade e na totalidade (DaMatta, 1983. p 173). Ainda segundo Roberto DaMatta (1983, p. 154), [...] hoje se usa mais o Voc sabe com quem est falando? justamente porque a totalidade do sistema fundado no respeito, na honra, no favor e na considerao est a todo o momento sendo ameaada pelo eixo do econmico e da legislao esses mecanismos universalizantes que a velocidade dos meios de comunicao de massa torna cada vez mais legiferante. Mostram-se, ento, as demarcaes dos territrios de cada esfera: o respeito, a honra, o favor e a considerao so elementos da esfera moral; e a universalidade, a liberdade e a igualdade so os conceitos que demarcam a esfera burocrtica. O conflito entre pessoa e indivduo d-se nesse territrio, onde vence aquele que possui a autoridade encarnada na pessoa, impedindo certamente a tomada de conscincia social horizontal, igualitria (DaMatta, 1983). Em um dos exemplos para demonstrar o uso do Voc sabe com quem est falando?, est o caso que envolve um guardador de carros e um oficial do exrcito, dado por DaMatta (1983, p. 161): Num parque de estacionamento de automveis, o guardador diz a um motorista que no h mais vaga. O motorista, entretanto, insiste dizendo que as vagas esto ali. Diante da negativa firme do guardador, o motorista diz irritado: Voc sabe com quem est falando? e revela sua identidade oficial do exrcito. Existem os papis sociais universais motoristas, contribuintes, cidados, crianas, adolescentes etc. e as identidades sociais determinadas em termos de sistema ou domnio social guarda de trnsito, inspetor de alfndega, guardador de carros, etc. . Entretanto, o que nos intriga o surgimento inesperado de novas identidades sociais daqueles que procuram destruir o anonimato com o objetivo de no sofrerem punio por algum erro ou infrao cometida. Aquele que se considera agredido acaba se tornando o agressor. Aquele que era aparentemente fraco torna-se mais forte e mais conhecido, devido ao seu papel desempenhado na sociedade (DaMatta, 1983). Diante disso, DaMatta (1983, p. 169) define o modo de funcionamento da sociedade brasileira, onde O sistema [...] opera em dois nveis distintos: um que particulariza at o nvel biogrfico e outro, chamado por muitos de legiferante, que atua por meio de leis globais, evitando a todo o momento o contato direto com os indivduos. [...] como se tivssemos duas bases atravs das quais pensssemos o nosso sistema. No caso das leis gerais e da represso, seguimos sempre o cdigo burocrtico ou vertente impessoal e universalizante, igualitria, do sistema. Mas no caso das situaes concretas, daquelas que a vida nos apresenta, seguimos sempre o cdigo das relaes e da moralidade pessoal, tomando como vertente do jeitinho, da malandragem, e da solidariedade como eixo de ao. Na primeira escolha, nossa unidade o indivduo; na segunda, a pessoa. A pessoa merece solidariedade e um tratamento diferencial. O indivduo, ao contrrio, o sujeito da lei, foco abstrato para quem as regras e a represso foram feitos. Dessa separao, muitas consequncias importantes se derivam. No caso do Brasil, o Voc sabe com quem est falando? permite a sada do anonimato (que indica a igualdade e o universalismo) para uma posio de reconhecimento (que indica a hierarquia e a pessoalizao). Se antes era desconhecido, sendo apenas mais um na multido, passa a ser uma pessoa que deve ter procedncia sobre a outra. [...] em outras palavras, o Voc sabe com quem est falando? permite estabelecer a pessoa onde antes s havia um indivduo (DaMatta, 1983. p 171). 10
A DISTINO ENTRE MENORES E CRIANAS E ADOLESCENTES NO BRASIL CONTEMPORNEO: Trazendo essa discusso para o campo temtico proposto neste artigo, isto , as representaes sociais de crianas e adolescentes na sociedade brasileira, podemos dizer que o conceito de menor articulado ao conceito de criana e adolescente, traz problemas na vivncia cotidiana destes sujeitos. Nos dois planos de organizao e representao social propostos por DaMatta (1983) no particular e no universal, estes sujeitos so classificados de acordo com sua posio nas classes sociais. Se for pobre e marginalizado, atribuda a categoria menor; se pertencente a uma classe mais privilegiada, tratado como criana e adolescente. H ento uma diviso na representao social destes sujeitos. Podemos definir os menores como: [...] um grupo social, portador de patologias, anormalidades, perversidades, portanto perigosos e desajustados vida em sociedade, passiveis da punio e ao estatal para defesa da sociedade (Lima, 2014, p.60). Este grupo social uma construo histrica da realidade brasileira, fruto da desigualdade social e de outros demais problemas que estruturam o atraso em nossa sociedade por meio de elementos pr-modernos, como por exemplo, as heranas da escravido, a manuteno do latifndio e a presena do homem-cordial nas relaes sociais e institucionais brasileiras (Holanda, 1969; Vianna, O. 1995). O menor, enquanto categoria social receptculo de vrios estigmas como se fosse portador de alguma deformao social. Do mesmo tambm ecoam diversos mitos dentro da sociedade, sendo ele responsabilizado, muita das vezes, pela sensao de insegurana, que estampada nos veculos de comunicao cotidianamente (Lima, 2014), estes que na sociedade contempornea possuem uma grande importncia na formao da opinio pblica. No que diz respeito a violncia, em especial, a violncia urbana, a mdia parcial. Os meios de comunicao no se limitam a informar. Tomam partido, julgam, condenam. Ao assim fazerem, aprofundam o temor e a ignorncia do pblico que deveriam informar, usando mensagens e cdigos profundamente estereotipados. O preconceito alimenta-se dos esteretipos e gera estigmas (Mello, 1999. p. 138). O menor representante da esfera burocrtica definido como indivduo: o annimo, o invisvel (Costa, 2004) para o qual as leis, a autoridade, as regras, a represso e o Voc sabe com quem est falando? foram feitos (DaMatta, 1983). H os que criticam o sistema judicirio (pilar da esfera burocrtica) por acobertar os delinquentes e mant-los nas ruas provocando o medo e a insegurana na sociedade. O Voc sabe com quem est falando? surge nos momentos onde as fronteiras do conflito esto demarcadas: o menor o indivduo que necessita de controle, vigilncia e punio e a sociedade so as pessoas que esto merc da delinquncia, que perdem seus entes queridos por meio da violncia estampada nos noticirios. Temos o exemplo da argumentao feita por um radialista, divulgada na internet por meio de sua pgina pessoal: O menor que estupra, espanca, trafica e assassina protegido pelo Estatuto do Menor e da Adolescncia, uma lei dita de "primeiro mundo". Grande besteira. No primeiro mundo o menor criminoso julgado como adulto e punido de acordo com o seu crime. L, um assassino um assassino. [...] Aqui chegamos a um ponto em que a sociedade no tem como se proteger dos criminosos menores de idade. Eles raramente so presos, pois a polcia sabe que em poucos minutos estaro de volta s ruas. [...] O assunto urgente e precisa ser debatido j. Muitas famlias j perderam seus filhos, pais, parentes e amigos, assassinados por menores que saram rindo da delegacia. Outras famlias so ameaadas diariamente pelos criminosos de menor idade. Mulheres so estupradas e pessoas sequestradas sem que se possa punir o bandido devido sua idade 10 . No pretendemos aqui adentrar na discusso sobre a reduo da maioridade penal, apesar deste tema tambm ser de relevante importncia. Nos termos de Foucault (2010, p.72) na citao a seguir, pode-se fazer
10 Disponvel em: http://www.marcelleal.com/art/menor.htm. Acessado em 03/07/2014. 11
uma relao com a ideia de que o menor pode ser considerado uma parcela doente da sociedade, uma espcie de sub-raa: O que vemos como polaridade, como fratura binria na sociedade, no o enfrentamento de duas raas exteriores uma a outra; o desdobramento de uma nica e mesma raa em uma super-raa e uma sub-raa. Ou ainda: o reaparecimento, a partir de uma raa, de seu prprio passado. Em resumo, o avesso e a parte de baixo da raa que aparece nela. Entretanto, a esfera moral lhe atribui outros valores sociais, no pejorativos como o dos menores, mas substituindo-o pelos termos criana e adolescente, atribuindo valores positivos que os demarquem como bons frutos da sociedade. O rapaz e a moa de famlia (Lima, 2014), por exemplo, so as figuras que representam a outra faceta da representao social destes sujeitos, onde os valores positivos da esfera das relaes pessoais marcadas pela honra, famlia, respeito e honestidade- so revelados (DaMatta, 1983). Percebemos que estes sujeitos so os receptores das mais variadas formas de representao social. Menores, crianas e adolescentes esto sujeitos s mais diversas formas de individualizao e pessoalizao das relaes sociais no Brasil. O Voc sabe com quem est falando? um rito de uso negado aos inferiores estruturais (DaMatta, p. 146), ou seja, os menores, por ser uma porta para a visibilidade social, na tentativa de negarem sua posio de subjugao frente aos adultos. Tais ritos servem para manter a ordem, a hierarquia e a organizao verticalizada da estrutura social, fazendo da pessoa o homem de bem, o apresentador de televiso que utiliza a linguagem tcnica, por exemplo o agente sentenciador daqueles que merecem a punio por meio da lei, logo, os delinquentes, assassinos em miniatura, menores. Em nossa sociedade, a lei se curva para os privilegiados e estes se apoderam da autoridade. Logo, a lei serve para os indivduos: os que vivem no anonimato, na invisibilidade pblica (Costa, 2004), sujeitos passivos de represso e controle (DaMatta, 1983). Podemos citar como exemplo da complexidade dessa estrutura e os problemas que ela envolve a reportagem 11 publicada no Jornal Folha de So Paulo (edio eletrnica) do dia 12/03/2014, com o caso de uma garota de 14 anos, morta pelo namorado de 17, no Distrito Federal com a manchete: Menor mata ex-namorada, filma crime e divulga imagens, diz polcia. (enfatizamos aqui as pessoas/indivduos, a interpretao da lei, instituies pblicas, dentre outros atores sociais de grande importncia que esto envolvidos na reportagem, como a mdia): Um dia antes de completar 18 anos, um jovem do Distrito Federal matou a ex-namorada, de 14 anos, com um tiro no rosto. O adolescente, de acordo com a Polcia Civil, filmou o crime e divulgou o vdeo entre seus amigos por um aplicativo de troca de mensagens. [...] O rapaz, que no pode ter sua identidade revelada por ser menor de idade no dia do crime, foi preso ontem pela manh, e por isso responder pelo crime de acordo com o Estatuto da Criana e do Adolescente. [...] Segundo o ECA, o assassino ficar internado por no mximo trs anos. Se tivesse mais de 18 anos, poderia ser condenado pelo crime de homicdio qualificado e poderia pegar at 30 anos de priso (Folha de So Paulo, edio eletrnica, publicada em 12/03/2014). Percebemos ento a intensa necessidade de represso e controle autoritrio sobre os menores, pois estes so um perigo para as crianas e adolescentes e para o restante da sociedade; alm do papel influenciador da opinio pblica que a mdia possui a respeito do Estatuto da Criana e do Adolescente, subjulgando ser uma lei que privilegia menores assassinos ao ficarem internados por um perodo mximo de trs anos. Molda-se tambm a suposta ineficincia do trabalho da Polcia, que no pode divulgar as informaes pelo fato do acusado ter idade inferior a dezoito anos. Entendemos aqui a mdia como um ator social difuso, que ao mesmo tempo criadora e porta voz da opinio social. De um lado precisamos levar em considerao as polticas de comunicao quais as motivaes das agncias de comunicao ao veicular a criminalidade de determinada forma
11 Disponvel em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1424294-menor-mata-ex-namorada-filma-execucao-e-poe-imagens-na- internet.shtml. Acessado em 25/06/2014. 12
-, de outro lado, no podemos esquecer que a imprensa uma expresso da populao. A imprensa no cria essa dramatizao por sua livre e espontnea vontade. Ela a expresso de profundos sentimentos populares, que de certo modo dramatizam a criminalidade, e tem certa relao de identidade com essa dramatizao e com o modo como a criminalidade veiculada [grifo meu] (Adorno, 1999, p.188). Podemos entender que as diversas representaes sociais de crianas e adolescentes no Brasil contemporneo perpassam por paradigmas histricos que se arrastam at os dias atuais, por meio da manuteno de uma estrutura hierarquizadora e autoritria que funciona paralelamente com outra estrutura que universaliza e individualiza as relaes sociais (DaMatta, 1983). Alm disso, existem os elementos da atualidade que contribuem de maneira difusa para a superao dos desafios da representao social destes sujeitos de direitos. A mdia um deles: ao mesmo tempo em que produtora de opinio, e informao, tambm a locutora da opinio pblica (Adorno, 1999).
CONCLUSO: Vimos que a desigualdade no trato da infncia e juventude no Brasil transportada historicamente do campo jurdico para as relaes sociais. O menor revogado das legislaes do Brasil e tratados internacionais, dando espao para o conceito universal de crianas e adolescentes. Porm, o menor ainda sobrevive na sociedade juntamente com as crianas e adolescentes, sendo smbolo social da violncia urbana e da delinquncia juvenil. Superar esse paradigma talvez seja o maior desafio destes sujeitos de direitos no sculo XXI. Procuramos demonstrar, por meio da histria do ECA, com seu incio entre o final do sculo XIX e comeo do sculo XX o paradoxo de nosso atual momento sobre o contexto das representaes sociais de crianas e adolescentes na atualidade brasileira. A categoria social menor uma construo histrica de nossa sociedade, formulada primeiramente nos inquritos policiais e autos judiciais do perodo imperial e transportada para a vida cotidiana, sendo sinnima de uma parte da sociedade que possui uma espcie de patologia social, anormalidade, configurada como um problema de segurana e sade pblica que necessita de interveno autoritria e controle (Costa, J. 1979; Foucault 2005; Lima, 2014; Rizzini 1995 e Schuch, 2005). Paralelamente, os debates sobre as polticas de interveno social sobre estes sujeitos ocorriam no Brasil e no exterior. A preocupao com o bem estar da criana foi o pilar para o surgimento de diversos organismos internacionais, debates e tratados assinados por diversos pases com intuito de proteger e salvar as crianas. No Brasil, a criao do Cdigo de Menores 1927 foi um marco importante na legislao especfica para a infncia, com o surgimento do Juizado de Menores, a criao do SAM e das FEBEMs e FUNABEMs. (Arantes, 2003; Liberati, 2002 e Schuch, 2005;). Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o surgimento da ONU e a ampliao dos debates com foco no indivduo (Dummont, 1983), a infncia passa a ser enxergada por uma nova gide ontolgica, pautada na universalidade do indivduo. No Brasil, o fim da ditadura militar abre as portas para esse novo debate e a promulgao do ECA em 1990 o smbolo de rompimento com a doutrina de situao irregular, pilar do revogado Cdigo de Menores reformulado em 1979. Neste contexto, fica tambm revogado das legislaes e das instituies do Estado o termo e representao social menor, dando lugar a criana e adolescente, portadores da proteo integral e prioridade absoluta na formulao de Poltica Pblicas e Oramento Pblico. (Schuch, 2005) A anlise bibliogrfica que realizamos neste artigo parte deste atual perodo ps-ECA, que possui a seguinte dualidade: um momento em que o termo menor suprimido das legislaes, mas sua representao social permanece nas relaes cotidianas juntamente com as crianas e adolescentes, por meio de uma organizao sociolgica que funciona em duas esferas a moral e a burocrtica onde uma busca a todo o momento controlar a outra por meio da desigualdade e da autoridade, evitando os conflitos por meio dos ritos. Nos termos de DaMatta (2001, p. 13): Abraamos a letra do universalismo poltico, mas no abrimos mo dos particularismos que permeiam os nossos sabe com quem est falando? e o nosso jeitinho (Grifo meu). 13
Alm disso, o advento do ECA trouxe consigo a bandeira de uma legislao moderna, de primeiro mundo e inovadora, mas que no fundo, no rompeu com a estrutura de desigualdades presente no pas e manteve a tradio de usar ferramentas de Governo de crianas e adolescentes que diferenciaram estes sujeitos. Sobretudo, h a influncia das complexidades oriundas do papel ambguo da grande mdia. (Adorno, 1999; DaMatta, 1983 e Schuch, 2005). Toda esta problemtica consiste no fato de que, historicamente, o Estado foi o agente protagonista nas reformas da sociedade, com o objetivo de superar o atraso provocado por elementos pr-capitalistas (Vianna W. 2004). Esta uma caracterstica dos pases latino americanos. [A] Amrica Latina, em contraste com os pases europeus, centrou-se exclusivamente no Estado e no universo do poltico, para corrigir o seu atraso, o que se espera quando se fala em reforma do Estado mais uma redefinio das agncias pblicas do ponto de vista formal, burocrtico e externo do que uma proposta efetiva de mudana de comportamento. (DaMatta, 2001, p. 4)
Explicam-se ento os motivos do no abandono completo da representao social do menor na realidade da vida cotidiana. O que ocorreu foi uma reforma na semntica legislativa, na organizao institucional e nas ferramentas de governo, a criana e o adolescente (trazida com o conceito de infncia universal). A retrica da ruptura vem acompanhando um processo de reforma institucional, funcional e de programas e projetos de atendimento infncia e juventude que no apenas o resultado de consensos humanitrios nacionais e internacionais em torno da proteo dos direitos dessa populao, mas tambm uma ferramenta de governo. s nobres preocupaes crticas em torno do menor como categoria social, [...] adiciona-se a necessidade de uma racionalizao no modo de governo da infncia e juventude, vigente no Brasil at por volta da dcada de 1960 (Schuch, 2005 p. 299).
Os elementos que configuram o atraso brasileiro no foram suprimidos de nossa sociedade. A injustia social, poltica e econmica perpetua e juntamente com ela as suas mazelas: a fome, a pobreza, a desigualdade estrutural, a violncia estrutural, dentre outros diversos problemas aos quais as crianas e adolescentes pobres, rotulados pejorativamente como menores, sobrevivem. Ora sendo culpabilizados, ora sendo vitimizados (pela lei, como crianas e adolescentes em situao de vulnerabilidade social 12 ; e pela sociedade entre as pginas de jornal e programas de jornalismo investigativo na televiso), mas sempre controlados por meio da tica burocrtica, que usa o Voc sabe com quem est falando? por meio de diversas maneiras, para manuteno do esqueleto hierarquizante tpico da sociedade brasileira. (Schuch, 2005; DaMatta, 1983) Enfim, longe de poder apresentar aqui uma soluo para o paradoxo dos menores, crianas e adolescentes, acreditamos que a reduo da desigualdade em suas mais diversas formas e um debate sobre o Racismo Biolgico-Social (Foucault, 2005) e sobre os limites da universalizao da infncia (Schuch 2005) esta que, ao ser levada em demasia, cria uma distncia entre a legislao e a realidade so extremamente necessrios para superar os desafios das representaes sociais destes sujeitos de direitos no Brasil.
12 Embora o Estatuto da Criana e Adolescente no defina diretamente as situaes de risco pessoal e social, estas so entendidas pela negligncia, explorao, violncia, crueldade e opresso em relao criana ou ao adolescente, promovendo um deslocamento da situao de irregularidade da criana para outras instncias da sociedade, seja famlia, escola, Estado... No entanto, ao focar-se a criana/adolescente como alvo especfico de interveno desconsidera-se, de certo modo, a (ir)responsabilidade na atuao destas outras instncias. Pode-se dizer que ao predizer futuros para estes jovens em funo do que so hoje, muitas vezes eles so culpabilizados pelo que se supe que possam tornar-se, aplicando-se medidas corretivas por antecipao, retornando o foco da irregularidade para o indivduo. (Hning e Guareschi, 2002, p. 50) 14
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