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ORDEM

LIVRE
ENSAIOS

Ordem Livre | Herbert Spencer 1


Reunião de Ensaios Disponíveis no Site
www.ordemlivre.org

Organização: Igor C. Franco


Índice

VÍCIOS NÃO SÃO CRIMES: UMA VINDICAÇÃO DA LIBERDADE MORAL ..................................................... 4


LYSANDER SPOONER

O DIREITO DE IGNORAR O ESTADO ........................................................................................... 20


HEBERT SPENCER

OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO G OVERNAMENTAL ............................................................................. 25


JOHN STUART MILL

QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES DEMOCRÁTICAS ............................................ 27


SOBRE O SOCIALISMO ........................................................................................................... 30
ALEXIS DE TOCQUEVILLE

POR QUE NÃO SOU CONSERVADOR .......................................................................................... 36


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE ................................................................................. 47
F. A. HAYEK

AS TENDÊNCIAS NOS ASSUNTOS HUMANOS ................................................................................ 55


MILTON E ROSE FRIEDMAN

OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE .......................................................................... 59


LIVRE COMÉRCIO ................................................................................................................. 63
LUDWIG VON MISES
VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

VÍCIOS NÃO SÃO CRIMES: UMA VINDICAÇÃO DA


LIBERDADE MORAL
LYSANDER SPOONER

I.

Vícios são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a si mesmo ou sua propriedade. Crimes são aqueles
atos pelos quais um homem prejudica a pessoa ou a propriedade de outrem.

Vícios são simples erros cometidos por um homem em sua busca pela felicidade. Ao contrário dos crimes, eles
não implicam nenhuma malícia em relação aos outros e nenhuma interferência em suas pessoas ou
propriedades.

Nos vícios, a própria essência do crime — isto é, o desejo de prejudicar a pessoa ou a propriedade de outrem
— inexiste.

É uma máxima da lei a de que não é possível haver crime sem intento criminoso; isto é, sem o intento de
invadir a pessoa ou a propriedade de outrem. Porém, ninguém jamais pratica um vício com tal intento
criminoso. Pratica-se um vício visando-se a própria felicidade tão-somente, e não por qualquer malícia em
relação aos outros.

A não ser que essa clara distinção entre vícios e crimes seja feita e reconhecida pelas leis, não é possível que
existam na terra quaisquer direitos, liberdades ou propriedades individuais; quaisquer direitos de um homem
de controlar sua pessoa e propriedade, e o correspondente e igual direito de outro homem de controlar sua
pessoa e propriedade.

Quando um governo declara que um vício é um crime, e o pune como tal, há uma tentativa de falsear a própria
natureza das coisas. É tão absurdo quanto seria uma declaração de que uma verdade é uma mentira ou de que
uma mentira é uma verdade.

II.

Todo ato voluntário da vida de um homem ou é virtuoso, ou é vicioso. Isto significa dizer que eles estão de
acordo ou em conflito com as leis naturais da matéria e da mente, sobre as quais sua saúde física, mental e
emocional e bem-estar dependem. Em outras palavras, todo ato de sua vida tende a levar, pelo todo, a sua
felicidade ou a sua infelicidade. Nem um único ato em toda a sua existência é indiferente.

Além disso, cada ser humano difere de todos os outros seres humanos em sua constituição física, mental e
emocional, e também pelas circunstâncias pelas quais é envolvido. Portanto, muitos atos que são virtuosos e
tendem a levar à felicidade no caso de uma pessoa são viciosos e tendem a levar à infelicidade no caso de
outra.

Similarmente, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de um homem, num dado
momento, sob um conjunto de circunstâncias, são viciosos e tendem à infelicidade no caso do mesmo homem,
em outro momento, sob outras circunstâncias.

III.

Saber quais ações são virtuosas e quais são viciosas — em outras palavras, saber quais ações tendem a levar,
no todo, à felicidade, e quais tendem a levar à infelicidade — no caso de cada um dos homens, em cada uma

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das situações nas quais eles se encontrem, é o estudo mais profundo e complexo ao qual a maior mente
humana já pôde ou jamais poderá se dedicar. É, contudo, o estudo constante ao qual todos os homens — tanto
o mais humilde em intelecto quanto o maior — são necessariamente levados pelos desejos e necessidades de
sua própria existência. É também o estudo do qual todas as pessoas, desde seus berços até seus túmulos,
precisam tirar suas próprias conclusões; porque ninguém mais sabe ou sente, ou pode saber ou sentir, o que
outro homem sabe ou como ele se sente, os desejos e necessidades, as esperanças e medos, os impulsos da
natureza de outra pessoa ou a pressão das circunstâncias à que ela está submetida.

IV.

Freqüentemente não é possível dizer que aqueles atos que são chamados de vícios realmente o sejam, exceto
em grau. Isto é, é difícil dizer que quaisquer ações, ou cursos de ação, que são chamadas de vícios, são
realmente vícios se paradas antes de certo ponto. A questão da virtude ou do vício, portanto, em todos esses
casos, é uma questão de quantidade e grau, e não do caráter intrínseco de qualquer ato único, por si mesmo.
Este fato se soma à dificuldade, para não dizer à impossibilidade, para qualquer um — exceto para o próprio
indivíduo — estabelecer uma linha exata, ou qualquer coisa como uma linha exata, entre a virtude e o vício;
isto é, dizer onde acaba a virtude e começa o vício. E esta é outra razão por que toda essa questão da virtude e
do vício deva ser deixada para cada pessoa decidir por si mesma.

V.

Vícios são normalmente prazerosos, pelo menos no momento em que se passa, e freqüentemente não se
revelam como vícios, por seus efeitos, senão depois de serem praticados por muitos anos, talvez por uma vida
inteira. Para muitos, talvez para a maioria, daqueles que os praticam, eles jamais se revelam como vícios
durante a vida. As virtudes, por outro lado, freqüentemente parecem tão duras e severas, requerem o sacrifício
de tanta felicidade presente, e os resultados, os quais provam que elas são virtudes, estão freqüentemente tão
distantes e obscuros, tão absolutamente invisíveis às mentes de muitos, especialmente às dos jovens, que, pela
própria natureza das coisas, não pode haver conhecimento universal, ou mesmo geral, de que são virtudes. Na
verdade, estudos de profundos filósofos foram empreendidos — senão totalmente em vão, certamente com
resultados bem pouco expressivos — para delimitar a fronteira entre as virtudes e os vícios.

Então, se é tão difícil, quase impossível, na maioria dos casos, determinar o que é e o que não é um vício; se é
tão difícil, em quase todos os casos, determinar onde termina a virtude e começa o vício; e se essas questões,
às quais ninguém pode realmente e verdadeiramente resolver senão para si mesmo, não devem permanecer
livres e abertas para experimentação por todos, cada pessoa é privada do maior de seus direitos como ser
humano, a saber: seu direito de inquirir, investigar, raciocinar, experimentar, julgar e determinar por si mesmo
o que é, para si, uma virtude, e o que é, para si, um vício; em outras palavras: o que, no todo, conduz à sua
felicidade, e o que, no todo, conduz à sua infelicidade. Se este grande direito não permanecer livre e aberto a
todos, então todos os direitos do homem, como seres humano racionais, à "liberdade e à busca pela felicidade"
são negados.

VI.

Todos nós vimos ao mundo em ignorância de nós mesmos e de tudo a nossa volta. Por uma lei fundamental de
nossa natureza, todos somos constantemente impelidos pelo desejo de alcançar a felicidade e pelo medo
sofrer a dor. Mas nós temos tudo a aprender quanto ao que pode nos trazer a felicidade e evitar a dor.
Nenhum de nós é totalmente igual a outra pessoa, física, mental ou emocionalmente; ou, conseqüentemente,
em nossos requerimentos físicos, mentais ou emocionais para a aquisição da felicidade e para a evasão da
infelicidade. Nenhum de nós, portanto, pode aprender essa indispensável lição da felicidade e da infelicidade,
da virtude e do vício, através de outra pessoa. Cada um deve aprender por si mesmo. Para aprendê-la, o
indivíduo precisa ter liberdade de tentar todas as experiências que são recomendadas por seu julgamento.
Algumas de suas experiências terão sucesso e, por conta desse sucesso, são chamadas de virtudes; outras
falham e, por causa dessa falha, elas são chamadas de vícios. Ele acumula conhecimento tanto através de suas
falhas quanto através de seus sucessos; tanto através de seus vícios quanto de suas virtudes. Ambos são

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necessários para sua aquisição do conhecimento — de sua própria natureza, do mundo que o envolve e de suas
adaptações ou não-adaptações um com o outro — que mostrará a ele como a felicidade é alcançada e a dor
evitada. E, a não ser que ele possa tentar essas experiências para sua própria satisfação, sua aquisição de
conhecimento é restringida e, conseqüentemente, também o é a busca do grande propósito e dever de sua
vida.

VII.

Um homem não tem obrigação alguma de aceitar a palavra de alguém, ou de dar autoridade a alguém, numa
questão tão vital para si mesmo, em relação à qual ninguém mais tem ou pode ter tanto interesse quanto ele.
Ele não pode seguramente confiar nas opiniões de outros homens, porque ele vê que as opiniões dos outros
homens não são as mesmas. Certas ações ou cursos de ação têm sido praticadas por muitos milhões de
homens, através de sucessivas gerações, e foram consideradas por eles como sendo, no todo, conducentes à
felicidade e, portanto, virtuosas. Outros homens, em outras eras ou países, ou sob outras condições,
consideraram, como resultado de suas experiências e observações, que essas ações conduziam, no todo, à
infelicidade e que, portanto, eram viciosas. A questão da virtude e do vício, como já se notou numa seção
anterior, também tem sido, na maioria das mentes, uma questão de grau; isto é, da extensão à qual certas
ações devem ser executadas, não do caráter intrínseco de qualquer ato individual em si. As questões da virtude
e do vício, assim, têm sido tão variadas e, de fato, tão infinitas quanto as variedades da mente, dos corpos e
das condições dos diferentes indivíduos que habitam o mundo. E a experiência das eras deixou um número
infinito dessas questões não resolvidas. Na verdade, mal se pode dizer que alguma tenha sido resolvida.

VIII.

No meio dessa infindável variedade de opiniões, que homem ou conjunto de homens tem o direito de dizer,
em relação a qualquer ação ou curso de ação particular "Nós fizemos esse experimento e resolvemos todas as
questões envolvidas nele. Nós as resolvemos não apenas para nós mesmos, mas para todos os homens. E todos
aqueles que forem mais fracos que nós serão coagidos a agir em obediência a nossa conclusão. Não serão
feitas mais quaisquer experiências ou pesquisas por ninguém, e, conseqüentemente, não haverá mais
aquisição de conhecimento por ninguém"?

Quais os homens que têm o direito de dizer isso? Certamente não há nenhum. Os homens que de fato dizem
isso são grandes impostores e tiranos que impediriam o progresso do conhecimento e usurpariam o absoluto
controle sobre as mentes e os corpos dos outros homens; deve-se, portanto, resistir a eles imediatamente e
até o fim; eles são demasiado ignorantes em relação às próprias fraquezas e em relação às suas relações com
os outros homens para serem dignos de algo que não piedade ou desprezo.

Nós sabemos, porém, que existem tais homens no mundo. Alguns deles tentam exercer seus poderes somente
dentro de uma pequena esfera: sobre seus filhos, sobre seus vizinhos, sobre aqueles que moram em sua cidade
e sobre seus compatriotas. Outros tentam exercê-lo numa maior escala. Por exemplo, um velho homem em
Roma, auxiliado por alguns poucos subordinados, tenta decidir todas as questões sobre virtudes e vícios; isto é,
sobre a verdade e a falsidade, especialmente em questões religiosas. Ele diz saber e poder ensinar que idéias e
práticas religiosas são conducentes ou fatais à felicidade do homem, não apenas neste mundo, mas também
naquele que está por vir. Ele diz ter sido milagrosamente inspirado para executar tal trabalho; ele reconhece
assim, sensatamente, que nada além de uma inspiração milagrosa poderia qualificá-lo para isso. Essa
inspiração, no entanto, tem sido inútil para capacitá-lo para resolver mais que algumas poucas questões até
aqui. O máximo que os mortais comuns podem ter é uma crença implícita em sua (do papa) infalibilidade! E,
em segundo lugar, que os piores vícios de que eles podem ser culpados são o de acreditar e o de declarar que o
papa é apenas um homem como todos os outros!

Foram necessários quinze ou dezoito séculos para que ele fosse capaz de alcançar conclusões definitivas
quanto a esses dois pontos vitais. No entanto, parece que o primeiro deles deve ser preliminar à resolução de
quaisquer outras questões, porque, até que sua própria infalibilidade seja estipulada, ele não possui autoridade
decidir nada. Ele tem, entretanto, até hoje tentado ou fingido resolver algumas outras questões. E ele pode,
talvez, tentar ou fingir resolver algumas outras no futuro, se continuar a encontrar pessoas que o escutem. Mas

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seu sucesso, até aqui, certamente não encoraja a crença de que ele será capaz de resolver todas as questões
sobre a virtude e o vício, mesmo em seu peculiar departamento religioso, em tempo de responder às
necessidades da humanidade. Ele, ou seus sucessores, sem dúvida serão compelidos, num dia não muito
distante, a reconhecer que ele assumiu uma tarefa à qual toda a sua inspiração milagrosa era inadequada; e
que, necessariamente, todo ser humano deve ser deixado para resolver todas as questões desse tipo por si
mesmo. Não é despropositado esperar que todos os outros papas, em esferas diferentes e mais baixas, terão
motivos para chegar à mesma conclusão. Ninguém, certamente, sem alegar ter inspirações sobrenaturais,
deveria assumir uma tarefa à qual obviamente nada menos que essa inspiração seja necessária. E, claramente,
ninguém deveria abdicar de seu próprio julgamento em favor dos ensinamentos dos outros, a não ser que
estivesse convencido de que esses outros possuem mais do que o conhecimento normal do assunto em
questão.

Se essas pessoas, que consideram possuir tanto o poder quanto o direito de punir os vícios dos outros,
voltassem seus pensamentos para si mesmas, elas provavelmente veriam que têm muito trabalho para fazer
em casa; e que, quando esse trabalho for completado, eles não terão disposição para fazer mais do que deixar
que os outros conheçam os resultados de suas experiências e observações. Nesta esfera, seus esforços podem
ser úteis; mas na esfera da infalibilidade e da coerção, elas, por razões bem conhecidas, provavelmente terão
ainda menos sucesso no futuro do que tiveram os homens do passado.

IX.

É óbvio agora, pelas razões já apresentadas, que o governo seria completamente impraticável se fosse tomar
conhecimento dos vícios e puni-los como crimes. Todo ser humano tem seus próprios vícios. Quase todos os
homens têm muitos. E eles são de todos os tipos; fisiológicos, mentais, emocionais; religiosos, sociais,
comerciais, industriais, econômicos, etc., etc. Se o governo deve tomar conhecimento de quaisquer desses
vícios e puni-los como crimes, então, para ser consistente, deve tomar conhecimento de todos eles e puni-los
imparcialmente. A conseqüência seria a de que todos estariam na prisão por seus vícios. Não haveria ninguém
livre para trancar as portas daqueles que estivessem atrás das grades. De fato, não existiriam suficientes cortes
para processar os réus, nem prisões suficientes para abrigá-los. Toda a empreitada humana de aquisição de
conhecimentos, e até mesmo de aquisição dos meios de subsistência, seria eliminada: pois todos nós seríamos
constantemente processados e estaríamos sempre aprisionados por nossos vícios. Mas mesmo se fosse
possível aprisionar todos os viciosos, nosso conhecimento da natureza humana nos diz que, via de regra, eles
seriam muito mais viciosos na prisão do que jamais foram fora dela.

X.

Um governo que puna todos os vícios imparcialmente é uma impossibilidade tão óbvia que ninguém jamais foi,
ou jamais será, tolo o suficiente para propô-lo. O máximo que alguns propõem é que os governos devessem
punir algum, ou no máximo alguns, vícios considerados mais grosseiros. Mas essa discriminação é
completamente absurda, ilógica e tirânica. Que direito tem qualquer conjunto de homens de dizer "Os vícios
dos outros homens nós puniremos, mas nossos próprios vícios ninguém punirá. Nós impediremos que os
outros homens busquem sua própria felicidade de acordo com suas convicções, mas ninguém poderá nos
impedir de buscar nossa própria felicidade de acordo com nossas próprias convicções. Nós impediremos que
outros homens adquiram qualquer conhecimento experimental do que é conducente ou necessário às suas
próprias felicidades, mas ninguém poderá nos impedir de adquirir conhecimento experimental daquilo que é
conducente ou necessário à nossa própria felicidade"?

Ninguém além de tratantes ou estúpidos jamais tem pretensões absurdas como essas. E, no entanto,
evidentemente, é somente com esse tipo de pretensão que uma pessoa pode alegar ter o direito de punir os
vícios dos outros e, ao mesmo tempo, alegar ser ela mesma isenta da punição.

XI.

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Algo como um governo, formado por uma associação voluntária, nunca teria sido imaginado se o objetivo
proposto tivesse sido a punição de todos os vícios imparcialmente; porque ninguém deseja tal instituição ou
estaria disposto a se submeter voluntariamente a ela. Mas um governo, formado por uma associação
voluntária, para a punição de todos os crimes é uma idéia razoável; porque todos desejam para si proteção
contra todos os crimes cometidos pelos outros, e também reconhecem a justiça de sua punição, se cometem
um crime.

XII.

É uma impossibilidade natural que o governo tenha o direito de punir os homens por seus vícios; porque é
impossível que um governo tenha quaisquer direitos, exceto aqueles que os indivíduos que o compõem tinham
anteriormente, enquanto indivíduos. Eles não poderiam delegar a um governo quaisquer direitos que eles
próprios não possuíssem. Eles não poderiam contribuir ao governo com quaisquer direitos, exceto com aqueles
que eles mesmos possuíam como indivíduos. Agora, ninguém, a não ser um tolo ou um impostor, pretende ter,
como indivíduo, o direito de punir outros homens por seus vícios. Mas todos têm um direito natural, enquanto
indivíduos, de punir os outros homens por seus crimes; pois todos têm um direito natural não apenas de
defender suas pessoas e propriedades de agressores, mas também de assistir e defender todos os outros cujas
pessoas ou propriedades sejam invadidas. O direito natural de cada indivíduo de defender sua própria pessoa e
propriedade contra uma agressão, e de ir em assistência e em defesa dos outros que têm suas pessoas ou
propriedades invadidas, é um direito sem o qual nenhum homem poderia existir na terra. E o governo não tem
existência legítima, exceto quando incorpora e é limitado por esse direito natural dos indivíduos. Mas a idéia de
que cada homem tem um direito natural de decidir o que são virtudes e o que são vícios — isto é, o que
contribui para sua felicidade e o que não contribui —, e que deve ser punido por tudo aquilo que faz que não
contribui para sua felicidade, é algo que ninguém jamais teve a impudência ou a estupidez de dizer. Somente
aqueles que alegam que o governo tem algum poder legítimo, o qual nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos
jamais delegou ou poderia delegar a ele, alegam que o governo tem qualquer poder legítimo de punir vícios.

É suficiente para um papa ou para um rei — que diz ter recebido sua autoridade diretamente do Paraíso para
governar os outros homens — alegar possuir o direito, como enviado de Deus, de punir os homens por seus
vícios; mas é um gritante e completo absurdo que qualquer governo que alegue derivar seu poder do
consentimento de seus governados, pretender ter tal poder; porque todos sabem que os governados nunca
poderiam concedê-lo. Eles o concederem seria uma absurdidade, porque seria a concessão de seus próprios
direitos de buscar suas próprias felicidades, uma vez que ceder o direito de julgar o que é conducente para suas
felicidades é o mesmo que abrir mão de todo o direito de buscar a própria felicidade.

XIII.

Nós agora podemos ver quão simples, fácil e razoável é um governo que puna crimes, em comparação a um
que puna vícios. Crimes são poucos, e facilmente distinguíveis de todos os outros atos; e a humanidade
geralmente concorda quanto a quais atos são crimes. Em contraste, vícios são inúmeros; e não há duas pessoas
que concordem, exceto em comparativamente poucos casos, quanto a o que são vícios. Além disso, todos
desejam ter suas pessoas e propriedades protegidas contra a agressão de outros homens. Mas ninguém deseja
ter sua pessoa e propriedades protegidas contra si mesmo; porque é contrário às leis fundamentais da
natureza humana que alguém deseje prejudicar a si próprio. O indivíduo só deseja promover sua própria
felicidade e ser seu próprio juiz quanto a o que promoverá, e pode promover, sua felicidade. Isso é o que todos
desejam e a que têm direito como seres humanos. E embora nós todos cometamos muitos erros, e
necessariamente devamos cometê-los dada a imperfeição de nosso conhecimento, esses erros não são
argumento contra o direito, porque eles todos tendem a nos dar o próprio conhecimento de que precisamos,
que buscamos e que não podemos adquirir de outra forma.

Logo, o objetivo de punir crimes não só é totalmente diferente do objetivo de punir vícios, mas se opõe
diretamente a ele.

A punição de crimes pretende assegurar a todo homem a maior liberdade de que ele possa desfrutar — em
consistência com os iguais direitos dos outros — para buscar sua própria felicidade através do uso de seu

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próprio julgamento e de sua própria propriedade. Por outro lado, a punição de vícios pretende privar todo
homem de seu direito e de sua liberdade naturais de buscar sua própria felicidade através do uso de seu
próprio julgamento e de sua propriedade.

Estes dois objetivos, portanto, estão em direta oposição um ao outro. Eles se opõem tão diretamente quanto a
luz e a escuridão, a verdade e a mentira ou a liberdade e a escravidão. São completamente incompatíveis um
com o outro, e a pretensão de que os dois sejam adotados pelo mesmo governo é uma absurdidade, uma
impossibilidade. Seria como pretender que os cidadãos de um governo cometessem crimes e impedissem
crimes; que destruíssem a liberdade individual e protegessem a liberdade individual.

XIV.

Finalmente, sobre a liberdade individual: todo homem deve necessariamente julgar e determinar para si o que
é conducente e necessário a seu próprio bem-estar e o que o destrói; pois, se ele se omite da realização desta
tarefa para si mesmo, ninguém mais pode realizá-la. E ninguém mais tentaria realizá-la para ele, a não ser em
alguns poucos casos. Papas, padres e reis pretenderão realizá-la para ele em certos casos, se tiverem permissão
para isso. Mas eles só a realizarão de forma que, ao fazê-la, possam auxiliar no cometimento de seus vícios e
crimes. Em geral, eles somente a realizarão para fazerem o homem de idiota ou para o tornarem seu escravo.
Pais, com melhores motivos que os outros, sem dúvida, também tentam freqüentemente fazer o mesmo
trabalho. Quando coagem ou obrigam uma criança a se abster de fazer algo que não seja realmente perigoso
para ela, lhe fazem um mal, não um bem. É uma lei da Natureza a de que, para adquirir conhecimento e para
incorporar esse conhecimento em sua pessoa, cada indivíduo deve obtê-lo por si próprio. Ninguém, nem
mesmo seus pais, podem lhe dizer qual é a natureza do fogo, de maneira que ele a conheça. Ele precisa
experimentá-lo, ser queimado pelo fogo, antes que possa conhecer sua natureza.

A Natureza sabe, mil vezes melhor que qualquer pai, a que ela tornou apto cada indivíduo, que conhecimento
ele requer e como ele deve obtê-lo. Ela sabe que os processos que utiliza para comunicar esse conhecimento
não são apenas os melhores, mas os únicos que podem ser efetivos.

As tentativas dos pais de tornarem virtuosos seus filhos em geral nada mais são que tentativas de mantê-los
em ignorância dos vícios. Nada mais são que tentativas de ensinar seus filhos a conhecer e preferir a verdade
mantendo-os na ignorância das mentiras. Nada mais são que tentativas de impeli-los a buscar e apreciar a
saúde mantendo-os na ignorância das doenças e de tudo o que causa doenças. Nada mais são que tentativas
de fazer seus filhos amarem a luz mantendo-os na ignorância da escuridão. Ou seja, nada mais são que
tentativas de tornar seus filhos felizes mantendo-os na ignorância de tudo o que os torna infelizes.

Que os pais auxiliem seus filhos na busca destes pela felicidade, ao dar-lhes simplesmente os resultados de
seus raciocínios e experimentos, é correto, natural e apropriado. Mas a prática da coerção em questões nas
quais as crianças são razoavelmente competentes para julgar por si mesmas é apenas uma tentativa de mantê-
las na ignorância. E esta é uma tirania tão grande, e uma violação tão grave do direito das crianças de adquirir
conhecimento por si mesmas da forma que desejarem, quanto é a mesma coerção praticada sobre pessoas
mais velhas. Tal coerção, praticada sobre crianças, é uma negação do direito delas ao desenvolvimento das
faculdades que a Natureza lhes concedeu e do direito delas a serem o que a Natureza lhes capacitou para ser. É
uma negação do direito delas a si mesmas e ao uso de suas próprias capacidades. É uma negação dos direitos
delas à aquisição do mais valioso de todos os conhecimentos, a saber, o conhecimento que a Natureza, a
grande professora, está pronta a conceder-lhes.

Esta coerção não torna as crianças sábias ou virtuosas, mas as faz ignorantes e, conseqüentemente, fracas e
viciosas; tal coerção perpetua através das crianças, de era para era, a ignorância, as superstições, os vícios e os
crimes de seus pais. Isto é provado por toda página da história mundial.

Os que sustentam opiniões contrárias a estas são aqueles cujas teologias falsas e viciosas, ou cujas idéias
viciosas em geral, os ensinaram que a raça humana é naturalmente inclinada ao mal em vez do bem, ao falso
em vez do verdadeiro; que a humanidade não volta naturalmente seus olhos para a luz, que ama a escuridão
em vez da luz; que encontra sua felicidade apenas naquelas coisas que levam à sua miséria.

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XV.

Mas estes homens que dizem que o governo deveria usar seu poder para impedir os vícios dirão, ou costumam
dizer: "Nós reconhecemos o direito de um indivíduo a buscar sua felicidade à sua maneira e,
conseqüentemente, o direito de ser tão vicioso quanto lhe aprouver; nós apenas defendemos que o governo
proíba a venda para ele daqueles artigos usados por ele para cometer seus vícios."

A resposta a isto é que a simples venda de qualquer artigo — independentemente do uso que é feito dele —
legalmente é um ato perfeitamente inocente. A qualidade do ato de venda depende totalmente da qualidade
do uso para o qual a coisa é vendida. Se o uso de determinada coisa é virtuoso e lícito, então a venda dessa
coisa, para esse uso, é virtuoso e lícito. Se o uso que se faz dela é vicioso, então sua venda é também viciosa. Se
seu uso é criminoso, então sua venda, para esse uso, é criminoso. O vendedor é, no máximo, um cúmplice no
uso que é feito do artigo vendido, seja ele virtuoso, vicioso ou criminoso. Quando o uso que se faz é criminoso,
o vendedor é cúmplice de um crime e é punível como tal. Mas quando seu uso somente é vicioso, o vendedor é
somente cúmplice de um vício e, portanto, não é punível.

XVI.

Mas se perguntará: "Não há o direito, da parte do governo, a impedir as ações daqueles que se inclinam à
autodestruição?"

A resposta é que o governo não tem quaisquer direitos na questão, dado que essas pessoas que são chamadas
viciosas permaneçam sãs, compos mentis, capazes de exercer discernimento racional e autocontrole; pois,
enquanto permanecerem sãs, elas devem poder julgar e decidir por si mesmas se o que se considera que são
seus vícios são de fato vícios; se eles realmente as estão levando à destruição; e se, no todo, elas serão
destruídas ou não. Quando se tornarem insanas, non compos mentis, incapazes de discernimento racional ou
autocontrole, seus amigos ou vizinhos, ou o governo, devem cuidar delas e protegê-las de males e de todos
aqueles que lhes infligiriam danos, da mesma maneira que fariam caso a insanidade lhes tivesse acometido por
qualquer outra causa que não os supostos vícios.

Porém, da suposição, por parte de seus vizinhos, de que um homem está no caminho da autodestruição, por
causa de seus vícios, não se segue que ele seja insano, non compos mentis, incapaz de discernimento racional e
autocontrole, de acordo com o significado legal destes termos. Homens e mulheres podem ser dados a vícios
dos mais repugnantes, e a muitos deles — tais como a gula, o alcoolismo, a prostituição, a jogatina, as brigas, a
mastigação de tabaco, o fumo, o uso do rapé, do ópio, o uso de espartilhos, a apatia, o desperdício, a avareza,
a hipocrisia, etc., etc. —, e ainda assim serem sãos, compos mentis, capazes de discernimento racional e
autocontrole, dentro do significado legal. E, enquanto forem sãos, devem poder controlar a si mesmos e suas
propriedades, e serem seus próprios juízes quanto a onde seus vícios os levarão ao fim. Os observadores
podem esperar, em cada caso individual, que o vicioso veja o fim para o qual ele tende e que seja induzido a
modificar suas ações. Mas se ele escolher continuar no caminho chamado de destruição por outros homens,
ele deve poder fazer isso. E tudo que se pode dizer sobre ele, em relação a sua vida, é que ele cometeu um
grande erro em sua busca pela felicidade, e que os outros fariam bem em tomá-lo como exemplo. Em relação a
sua condição em outra vida, esta é uma questão teológica com a qual a lei, neste mundo, não tem mais a ver
do que tem com qualquer outra questão teológica relacionada com uma vida futura.

Caso se pergunte como determinar a sanidade ou a insanidade de um homem vicioso, a resposta será: pelos
mesmos tipos de evidência que determinam a sanidade ou insanidade daqueles que são chamados virtuosos, e
de nenhuma outra forma. Isto é, pelos mesmos tipos de evidência pelos quais os tribunais legais determinam
se um homem deve ser mandado a um asilo de lunáticos ou se ele tem competência para tomar decisões ou
dispor de suas propriedades. Quaisquer dúvidas devem pesar em favor de sua sanidade, como em todos os
casos, e não de sua insanidade.

Se uma pessoa realmente se tornar insana, non compos mentis, incapaz de discernimento racional ou
autocontrole, então é um crime que outros homens dêem ou vendam a ela os meios pelos quais ela pode ferir
a si mesma.1 Não há crimes mais facilmente puníveis, não há casos nos quais os júris estariam mais prontos a

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condenar, que aqueles nos quais uma pessoa sã vende ou dá a um insano um artigo pelo qual este último
provavelmente ferirá a si próprio.

XVII.

Mas será dito que alguns homens se tornam, por conta de seus vícios, perigosos a outras pessoas; que um
bêbado, por exemplo, às vezes é briguento e perigoso para sua família e outras pessoas. Perguntar-se-á: "Não
tem a lei nada a dizer neste caso?"

A resposta é: se, por conta de sua bebedeira ou por qualquer outra causa, um homem for de fato perigoso a
sua família ou a outras pessoas, não apenas ele pode ter suas ações legitimamente reprimidas, tal como requer
a segurança das outras pessoas, mas todas as outras pessoas — que sabem ou têm bases razoáveis para
acreditar que ele é perigoso — podem ter reprimidos quaisquer de seus atos que forneçam os meios que
podem torná-lo perigoso.

Só que do fato de que um homem se torna briguento e perigoso após ingerir bebidas alcoólicas, e do fato de
ser um crime dar ou vender bebidas a tal homem, não se segue que seja um crime vender bebidas a centenas
de milhares de outras pessoas, que não se tornam briguentas ou perigosas ao bebê-las. Antes que um homem
possa ser condenado de um crime por vender bebidas alcoólicas a um homem perigoso, deve-se demonstrar
que aquele certo homem para quem se vendeu as bebidas era perigoso e que o vendedor sabia, ou tinha bases
razoáveis para supor, que o homem se tornaria perigoso ao bebê-las.

A presunção da lei é, em todos os casos, de que a venda é inocente; e o ônus da prova do crime, em todo caso
particular, está com o governo. E o caso particular deve ser provado criminoso independentemente de todos os
outros.

A partir destes princípios, não há dificuldades em condenar e punir os homens pela cessão de quaisquer artigos
a um homem que se torne perigoso pelo uso deles.

XVIII.

Freqüentemente se diz que alguns vícios são transtornos (públicos ou privados), e que transtornos podem ser
condenados e punidos.

É verdade que qualquer coisa que de fato e legalmente for um transtorno (público ou privado) pode ser
condenado e punido. Mas não é verdade que os meros vícios privados de um homem sejam, em qualquer
sentido legal, transtornos a outros homens, ou ao público.

Nenhum ato de uma pessoa pode ser um transtorno a outra, a não ser que obstrua ou interfira de alguma
forma na segurança e tranqüilidade do uso ou gozo do que é legitimamente dela.

O que quer que obstrua uma via pública é um transtorno e pode ser condenado e punido. Mas um hotel onde
sejam vendidas bebidas, uma loja de bebidas ou mesmo um botequim não obstruem mais uma via pública do
que um armazém comum, uma loja de jóias ou um açougue.

O que quer que envenene o ar, o torne ofensivo ou insalubre é um transtorno. Mas nem um hotel, nem uma
loja de bebidas, nem um botequim envenenam o ar ou o tornam ofensivo ou insalubre a outras pessoas.

O que quer que obstrua a luz à qual um homem tem o direito legal é um transtorno. Mas nem um hotel, nem
uma loja de bebidas, nem um botequim obstruem a luz de qualquer pessoa, a não ser nos casos em que uma
igreja, uma escola ou uma residência igualmente a obstruem. Neste sentido, portanto, os primeiros não são
transtornos maiores do que seriam os últimos.

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VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

Algumas pessoas têm o hábito de dizer que uma loja de bebidas é perigosa da mesma forma que um armazém
de pólvora é perigoso. Mas não há nenhuma analogia entre os casos. O armazém pode explodir
acidentalmente, e especialmente por incêndios como os que freqüentemente ocorrem nas cidades. Por essas
razões ele é perigoso para as pessoas e propriedades em sua vizinhança imediata. Mas bebidas não podem
explodir dessa maneira, e portanto não são perigosos transtornos à sociedade como são os armazéns de
pólvora nas cidades.

Mas se diz, novamente, que locais para se beber freqüentemente estão cheios de homens barulhentos e
violentos que perturbam a quietude da vizinhança e o sono do resto dos vizinhos.

Isso pode ser verdade ocasionalmente, embora não freqüentemente. Mas quando isso ocorrer, em qualquer
caso, o transtorno poderá ser suprimido pela punição do proprietário e de seus consumidores, e, se necessário,
pelo fechamento do estabelecimento. Mas uma reunião de bebedores não é um transtorno maior que
qualquer outra reunião barulhenta. Um beberrão alegre ou jovial não perturba mais a quietude de uma
vizinhança que a gritaria de um fanático religioso. Uma reunião de beberrões barulhentos não é um transtorno
maior que uma reunião de fanáticos religiosos barulhentos. Ambos são transtornos quando perturbam o
descanso, o sono ou a quietude de seus vizinhos. Até mesmo um cachorro latindo, e assim perturbando o sono
ou a quietude de uma vizinhança, é um transtorno.

XIX.

Diz-se que incitar outra pessoa a cometer um vício é um crime.

Isso é absurdo. Se qualquer ato particular é somente um vício, então um homem que incita outro a cometê-lo é
simplesmente um cúmplice de um vício. Ele evidentemente não comete qualquer crime, porque o cúmplice
não pode cometer ofensa maior que o responsável principal.

Presume-se que toda pessoa sã, compos mentis, dotada de discernimento racional e autocontrole, seja
mentalmente competente para julgar por si mesma a validade de todos os argumentos, prós e contras, que lhe
sejam dirigidos para persuadi-la a fazer alguma coisa, dado que não seja empregada fraude para enganá-la. E
se ela for persuadida ou induzida a executar o ato, o ato então é seu; e embora o ato possa vir a ser danoso a
ela própria, ela não pode reclamar que a persuasão ou os argumentos, aos quais ela assentiu, foram crimes em
si mesmos.

Quando a fraude é praticada, o caso é, obviamente, diferente. Se, por exemplo, eu ofereço veneno a um
homem assegurando-o de que é uma bebida segura e saudável, e ele, de boa-fé, o ingere, meu ato é um crime.

Volenti non fit injuria é uma máxima do direito. A quem consente não se comete injúria. Isto é, nenhuma
infração legal. E toda pessoa sã, compos mentis, capaz de discernimento racional ao julgar a validade ou a
falsidade dos argumentos aos quais assente, está "consentindo", aos olhos da lei; ela toma para si toda a
responsabilidade por seus atos quando nenhuma fraude intencional foi exercida sobre si.

Este princípio, de que a quem consente não se comete injúria, não tem limites, a não ser em caso de fraudes ou
no de pessoas incapazes de discernimento racional para o julgamento do caso particular. Se uma pessoa
dotada de discernimento racional e não enganada por fraude consente à prática do mais grosseiro vício,
impondo a si, dessa forma, os maiores sofrimentos morais ou físicos ou as maiores perdas pecuniárias, ela não
pode alegar que sofreu uma injúria legal. Para ilustrar este princípio, tome-se o caso do estupro. Possuir uma
mulher contra a vontade dela é o maior crime, a seguir do assassinato, que lhe pode ser cometido. Mas possuí-
la com o consentimento dela não é crime; é, no máximo, um vício. E normalmente se sustenta que uma menina
de não mais que dez anos de idade tem o discernimento requerido para que seu consentimento, embora
incitado por recompensas ou promessas de recompensas, seja suficiente para converter o ato, que de outra
forma seria um grave crime, num simples vício.2

Nós observamos o mesmo princípio no caso dos boxeadores. Se eu pousar meus dedos sobre outro homem
contra a vontade dele, não importa quão levemente e quão pouco ele tenha sido injuriado, o ato é um crime.

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VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

Mas se dois homens concordarem em dar suas caras a bater até que elas fiquem deformadas, isso não é um
crime, é somente um vício.

Nem mesmo duelos são considerados crimes, em geral, porque todo homem é dono da própria vida, e as
partes concordam que uma pode tirar a vida da outra, se puder, pelo uso das armas acordadas e em
conformidade com certas regras mutuamente aceitas.

E esta é a avaliação correta da questão, a não ser que se diga (embora provavelmente não seja possível) que a
"raiva é uma loucura" que tanto priva o homem de sua razão a ponto de torná-lo incapaz de qualquer
discernimento.

O jogo é outra ilustração do princípio de que a quem consente não se comete injúria. Se eu tomar um único
centavo da propriedade de outro homem sem seu consentimento, o ato é criminoso. Mas se dois homens, que
estejam compos mentis, dotados de razoável discernimento para julgar a natureza e os prováveis resultados de
seus atos, se reúnem e voluntariamente apostam dinheiro nos dados, fazendo com que um deles perca todas
as suas terras (não importando quão grandes sejam), isso não é um crime, mas somente um vício.

Não é um crime nem mesmo auxiliar uma pessoa a cometer suicídio, se ela estiver de posse de sua razão.

É uma idéia um tanto comum a de que o suicídio é, em si mesmo, uma evidência conclusiva de insanidade.
Porém, embora possa ser normalmente uma evidência bastante forte de insanidade, não é conclusiva em
todos os casos. Muitas pessoas, de posse, sem dúvidas, de suas faculdades racionais, já cometeram suicídio
para escapar à exposição pública de seus crimes ou para evitar alguma outra grande calamidade. O suicídio,
nesses casos, pode não ter sido o ato mais sábio, mas certamente não foi prova de qualquer tipo de
insanidade.3 Estando dentro dos limites do discernimento racional, não foi um crime que outras o auxiliassem,
através do fornecimento dos instrumentos necessários ou de qualquer outra forma. E se, em tais casos, não
seria um crime auxiliar um suicídio, quão absurdo seria dizer que é um crime auxiliar algum ato
verdadeiramente prazeroso e considerado útil por grande parte da sociedade?

XX.

Algumas pessoas têm o hábito de dizer que as bebidas alcoólicas são a maior fonte de crimes; que "elas
enchem nossas prisões de criminosos", e que este é motivo suficiente para proibir sua venda.

Aqueles que dizem isso, se falam sério, são cegos e tolos. Eles evidentemente pretendem dizer que uma grande
percentagem de todos os crimes que são cometidos entre os homens são cometidos por pessoas cujas paixões
criminosas estão excitadas, no momento, pela ingestão de bebidas, em conseqüência da ingestão de bebidas.

Essa idéia é totalmente absurda.

Em primeiro lugar, os grandes crimes cometidos no mundo são incitados pela avareza e pela ambição.

O maior de todos os crimes são as guerras engendradas pelos governos para saquear, escravizar e destruir a
humanidade.

Os outros grandes crimes cometidos no mundo são igualmente incitados pela avareza e pela ambição; e são
cometidos não por uma paixão repentina, mas por homens calculistas que mantêm suas mentes calmas e
claras, e que não pretendem ir para a prisão para pagar por eles. São cometidos não tanto por homens que
violam as leis, mas por homens que, direta ou indiretamente, fazem as leis; por homens que se uniram para
usurpar o poder arbitrário e para mantê-lo pelo uso da força e da fraude, e cujo objetivo ao usurpá-lo e mantê-
lo, através de legislações injustas e desiguais, é assegurar para si mesmos vantagens e monopólios que os
permitam controlar e explorar o trabalho e as propriedades dos outros homens, empobrecê-los e, assim,
aumentar suas riquezas e poderes.4 As injustiças cometidas por esses homens, em conformidade com as leis —
isto é, suas próprias leis —, são como montanhas em relação a montículos, quando comparadas com os crimes
cometidos por todos os outros criminosos, em violação das leis.

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VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

Mas, em terceiro lugar, há um grande número de fraudes, de vários tipos, cometidas em transações comerciais,
cujos praticantes, com sua frieza e sagacidade, escapam do funcionamento das leis. E somente suas mentes
frias e racionais poderiam habilitá-los a fazer isso. Homens sob a excitação de bebidas tóxicas não têm a
disposição ou a constância necessárias para a prática bem sucedida dessas fraudes. Eles são os mais
imprudentes, mal sucedidos, ineficientes e inofensivos de todos os criminosos com os quais as leis têm que
lidar.

Quarto. Os tais ladrões, salteadores, bandoleiros, falsários, fraudadores e vigaristas que assolam a sociedade
podem ser qualquer coisa, mas não são beberrões descuidados. O ramo de atuação deles é perigoso demais
para admitir os riscos em que a bebida os poria.

Quinto. Os crimes que se pode dizer serem cometidos sob a influência de bebidas alcoólicas são assaltos e
pilhagens, não muito numerosos e em geral não muito graves. Alguns outros crimes leves, como pequenos
furtos ou outras pequenas invasões de propriedade, são às vezes cometidos sob a influência da bebida por
pessoas de mente fraca, em geral não dadas ao crime. São poucas as pessoas que cometem esses crimes. Não
se pode dizer que elas "enchem nossas prisões"; ou, se for possível dizer tal coisa, devemos ser parabenizados
por precisar de tão poucas e pequenas prisões para mantê-los.

O Estado de Massachusetts, por exemplo, tem um milhão e meio de pessoas. Quantas dessas estão presas
agora por terem cometido crimes — não pelo vício da intoxicação, mas por crimes — contra pessoas ou
propriedades instigadas por bebidas fortes? Eu duvido que haja uma em dez mil, isto é, cento e cinqüenta
entre todas as pessoas; e os crimes pelos quais elas estão presas são infrações bem pequenas, em sua maioria.

E eu acho que se verá que se deve apiedar desses homens muito mais do que puni-los, pois foi a pobreza e a
miséria, não a paixão pela bebida ou pelo crime, que os levaram a beber e a cometer seus crimes sob a
influência do álcool.

A acusação de que a bebida "enche nossas prisões de criminosos" é feita, penso eu, apenas por aqueles
homens que não são capazes de fazer mais do que chamar um bêbado de criminoso, e que não têm melhores
fundamentos para suas acusações que o vergonhoso fato de sermos pessoas tão brutais e insensíveis a ponto
de condenar pessoas tão fracas e infelizes quanto os alcoólatras, como se eles fossem criminosos.

Os legisladores que autorizam e os juízes que praticam atrocidades como essas são intrinsecamente
criminosos, a não ser que a ignorância deles seja tão grande — como provavelmente não é — que os desculpe.
E, fossem eles punidos como criminosos, haveria mais razão em nossa conduta.

Um juiz policial em Boston certa vez me disse que tinha o hábito de julgar alcoólatras (mandando-os para a
prisão por trinta dias — eu acho que esta era a sentença estereotipada) à taxa de um a cada três minutos!, e às
vezes mais rápido do que isso; condenando-os assim como criminosos e mandando-os à prisão sem piedade e
sem investigar as circunstâncias, por uma enfermidade que os faria merecer compaixão e não punição. Os
verdadeiros criminosos nesses casos não foram os homens que foram enviados à prisão, mas o juiz e seus
auxiliares, que os mandaram para lá.

Eu recomendo a essas pessoas, que estão tão perturbadas com a lotação de criminosos das prisões de
Massachusetts, que empreguem ao menos alguma parte de sua filantropia para evitar que nossas prisões
sejam ocupadas por pessoas que não cometeram crimes. Eu não lembro de já ter ouvido que as simpatias delas
tenham sido exercidas nesse sentido. Pelo contrário, elas parecem ter uma paixão tão grande pela punição de
criminosos que mal se preocupam em investigar se um candidato particular a punição é de fato um criminoso.
Tal paixão, asseguro-as, é muito mais perigosa, e digna de muito menos caridade, moral e legal, que a paixão
por bebidas alcoólicas.

Parece estar em muito maior conformidade com o caráter impiedoso desses homens enviar um homem infeliz
para a prisão por beber, e, assim, destruí-lo, degradá-lo, abatê-lo e arruinar sua vida, do que estaria alçá-lo da
condição de pobreza e miséria que o levaram a se tornar um alcoólatra.

Somente essas pessoas que têm pouca capacidade ou disposição para esclarecer, incentivar ou auxiliar a
humanidade são possuídas pela paixão violenta de governar, comandar e punir. Se, em vez de apenas

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VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

observarem e darem consentimento e sanção a todas as leis pelas quais o fraco é explorado, oprimido,
desencorajado e, então, punido como criminoso, elas voltassem sua atenção para o dever de defender os
direitos dele e de melhorar sua condição, de fortalecê-lo e permitir que ele ande com as próprias pernas,
suportando as tentações que o rodeiam, elas teriam, penso eu, pouca necessidade de falar sobre leis e prisões
para vendedores ou bebedores de rum, ou mesmo para qualquer outra classe de criminosos comuns. Se, em
suma, esses homens, que estão tão ansiosos para suprimir o crime, suspendessem por um tempo seus pedidos
de auxílio ao governo para que ele suprima os crimes dos indivíduos, para então pedir auxílio ao povo para
suprimir os crimes do governo, eles demonstrariam maior sinceridade e bom senso do que demonstram agora.
Quando as leis forem todas tão justas e eqüitativas a ponto de permitirem que todos os homens e mulheres
vivam honestamente, virtuosamente, confortáveis e felizes, haverá muito menos ocasiões do que ora há para
acusá-los de viver desonesta ou viciosamente.

XXI.

Mas se dirá, novamente, que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar as pessoas à pobreza, tornando-as assim
um fardo para os contribuintes, e que esta é razão suficiente por que a venda delas deveria ser proibida.

Há várias respostas a esse argumento.

1. Uma resposta é a de que se o fato de que o uso de bebidas leva à pobreza e à miséria for razão suficiente
para proibir a venda delas, então é razão igualmente suficiente para a proibição do uso delas; pois é o uso, não
a venda, que leva à pobreza. O vendedor é, no máximo, um cúmplice do bebedor. E é uma regra do direito e da
razão a de que se o responsável principal de qualquer ato não é punível, o cúmplice não pode ser.

2. Uma segunda resposta ao argumento é a de que, se o governo tem o direito e o dever de proibir qualquer
ato — que não seja criminoso — apenas porque ele supostamente leva à pobreza, então, pela mesma regra,
ele tem o direito e o dever de proibir todo e qualquer outro ato — não criminoso — que, na opinião do
governo, tende a levar à pobreza. E, a partir deste princípio, o governo não apenas teria o direito, mas o dever,
de investigar cuidadosamente os assuntos privados de todo homem e os gastos pessoais de todas as pessoas,
para determinar quais deles tenderam e quais não tenderam à pobreza, e proibir e punir todos aqueles da
primeira classe. Um homem não teria direito de gastar um centavo de sua propriedade de acordo com sua
vontade ou julgamento, a não ser que a legislatura fosse da opinião de que aquele gasto não o levaria à
pobreza.

3. Uma terceira resposta ao mesmo argumento é a de que se um homem é levado à pobreza, ou mesmo à
extrema miséria — por suas virtudes ou por seus vícios — o governo não tem qualquer obrigação de auxiliá-lo,
a não ser que deseje. Ele pode deixá-lo perecer nas ruas ou depender da caridade privada, se assim quiser. Ele
pode usar de seu livre arbítrio e julgamento na questão, pois ele está acima de qualquer responsabilidade legal
no caso. Não é, necessariamente, um dever do governo auxiliar os pobres. Um governo — isto é, um governo
legítimo — é simplesmente uma associação voluntária de indivíduos que se une para aqueles propósitos, e
apenas para aqueles propósitos, que consideram apropriados. Se auxiliar os pobres — sejam eles virtuosos ou
viciosos — não for um desses propósitos, então o governo, enquanto governo, não tem maior direito ou
obrigação de ajudá-los do que uma companhia bancária ou ferroviária.

A despeito de quaisquer reclamações morais à caridade que um homem pobre — sendo ele virtuoso ou vicioso
— possa ter em relação aos outros homens, ele não tem reclamações legais para com eles. Ele deve depender
totalmente da caridade deles, se eles desejarem. Ele não pode exigir, como direito legal, que eles o alimentem
ou o vistam. Ele não tem maiores reclamações legais ou morais em relação a um governo — que não é senão
uma associação de indivíduos — do que ele tem para com os indivíduos enquanto indivíduos privados.

Assim, tanto quanto um homem pobre — virtuoso ou vicioso — não tem maior reclamação legal ou moral a
comida e vestimentas em relação ao governo do que tem para com os indivíduos privados, um governo não
tem maior direito que um indivíduo privado a controlar ou proibir os gastos ou as ações de um indivíduo com
base no fato de que o levam à pobreza.

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VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

O sr. A, enquanto indivíduo, claramente não tem nenhum direito de proibir quaisquer atos ou gastos do sr. Z
por um medo de que esses atos ou gastos tendam a levar Z à pobreza, o que faria com que Z,
conseqüentemente, em algum futuro incerto, fosse até A em desespero pedir caridade. E se A não tem o
direito, enquanto indivíduo, de proibir quaisquer atos ou gastos da parte de Z, então o governo, que é uma
mera associação de indivíduos, não pode ter tal direito.

Certamente nenhum homem, que esteja compos mentis, sustenta seu direito de dispor e de usar sua
propriedade por qualquer título sem valor que permitisse a qualquer um ou a todos os seus vizinhos —
chamando a si mesmos pelo nome governo ou não — interferir e proibi-lo de fazer quaisquer gastos exceto
aqueles que não o levassem à pobreza e a se tornar um esmoléu a implorar pela caridade deles no futuro.

Se um homem, que esteja compos mentis, vier a ficar pobre por suas virtudes ou vícios, nenhum homem ou
conjunto de homens pode ter qualquer direito de intervir em suas questões com base no fato de que poderá
haver apelos futuros às suas caridades em favor dele; porque, se houvesse tais apelos, eles têm perfeita
liberdade tanto de agir de acordo com suas próprias vontades ou discrições quanto de atender às solicitações.

Este direito de recusar caridade aos pobres — sendo estes últimos virtuosos ou viciosos — é um direito sempre
usado pelos governos. Nenhum governo faz mais provisões para os pobres do que deseja. Por conseqüência, os
pobres dependem, em grande medida, da caridade privada. Em verdade, eles freqüentemente sofrem de
doenças, e até mesmo morrem, porque nem a caridade pública nem a privada vêm em auxílio. Quão absurdo é
dizer, então, que um governo tem o direito de controlar o uso de um homem de sua propriedade pelo medo de
que ele venha a empobrecer e suplicar por caridade.

4. Uma quarta resposta ao argumento é a de que o grande e único incentivo que cada indivíduo tem a
trabalhar e a criar riqueza é que ele possa dispor dela de acordo com suas vontades e discrições, para a
promoção de sua própria felicidade e da felicidade daqueles que ama.5

Embora um homem possa freqüentemente, por inexperiência ou mal julgamento, gastar alguma porção dos
produtos de seu trabalho de maneira imprudente, de uma forma que não promova seu maior bem-estar, ele
ganha sabedoria, da mesma forma que em todas as outras questões, através da experiência; por seus erros
tanto quanto por seus sucessos. E essa é a única maneira pela qual ele pode adquirir sabedoria. Quando ele se
convence de que fez um gasto tolo, ele aprende a não mais fazê-lo. Ele precisa poder tentar seus próprios
experimentos, e tentá-los para sua própria satisfação, nesta tanto quanto noutras questões; pois caso contrário
ele não terá maior motivo para trabalhar ou criar riquezas.

5. Uma quinta resposta ao argumento é a de que se o dever do governo é vigiar os gastos de uma pessoa
individual — que esteja compos mentis e não seja uma criminosa — para ver quais deles levam à pobreza e
quais não, para proibir e punir os primeiros, então, pela mesma regra, ele deve vigiar os gastos de todas as
outras pessoas, e proibir e punir todos aqueles que, em seu julgamento, tendam a levar à pobreza.

Se tal princípio fosse executado imparcialmente, o resultado seria o de que todas as pessoas estariam tão
ocupadas na vigia dos gastos umas das outras, e no testemunho, no processo e na punição de todos aqueles
que tendessem a levar à pobreza, que não teriam tempo para criar qualquer riqueza. Todos aqueles capazes de
trabalho produtivo estariam na prisão ou estariam ocupados exercendo os papéis de juízes, jurados,
testemunhas ou carcereiros. Seria impossível criar cortes suficientes para os processos ou construir prisões
suficientes para prender os transgressores. Todo trabalho produtivo cessaria; e os tolos que tanto desejavam
evitar a pobreza não só seriam levados eles próprios à pobreza, à prisão e à fome, como levariam todos os
outros à pobreza, à prisão e à fome.

6. Se for dito que um homem pode, ao menos, ser legitimamente compelido a sustentar sua família e,
conseqüentemente, se abster de fazer gastos que, na opinião do governo, tendam a incapacitá-lo a exercer seu
dever, várias respostas podem ser dadas. Mas esta é suficiente, a saber: nenhum homem, a não ser um tolo ou
um escravo, reconheceria que qualquer família fosse a sua, se esse reconhecimento se tornasse uma desculpa,
para o governo, para privá-lo de sua liberdade pessoal ou do controle de sua propriedade.

Quando se permite a um homem desfrutar de sua liberdade natural e do controle de sua propriedade, sua
família é, normalmente, quase universalmente, o objeto maior de seu orgulho e afeição; e ele empregará, não

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apenas voluntariamente, mas com o maior prazer, seus maiores poderes mentais e físicos não só para prover a
ela as necessidades e os confortos normais da vida, mas também para esbanjar sobre ela todos os luxos e
regalias que seu trabalho puder adquirir.

Um homem não tem obrigação moral ou legal de fazer nada em favor de sua esposa ou de seus filhos, a não ser
aquilo que ele possa fazer em conformidade com sua própria liberdade pessoal e com o seu direito natural de
controlar sua propriedade de acordo com as próprias vontades.

Se um governo pode interferir e dizer a um homem — que esteja compos mentis e que esteja cumprindo seus
deveres para com sua família, da forma que ele os encara, de acordo com seu melhor julgamento, apesar de
suas imperfeições — "Nós (o governo) suspeitamos que você não esteja empregando seu trabalho para o maior
bem de sua família; nós suspeitamos que seus gastos e sua disposição de sua propriedade não são tão sensatos
quanto poderiam ser, para o bem de sua família; portanto nós (o governo) colocaremos você e sua propriedade
sob nossa vigilância especial e prescreveremos a você o que você pode e o que não pode fazer consigo próprio
e com sua propriedade; sua família de agora em diante terá que procurar a nós (o governo), não a você, para
ter suporte" — se um governo pode fazer isso, todo o orgulho, toda a ambição e toda afeição de um homem
para com sua família seriam esmagados até o ponto em que a tirania humana pode esmagá-los; ele preferiria
jamais ter uma família (que ele publicamente reconhecesse ser sua) ou preferiria arriscar tanto sua
propriedade quanto sua vida para derrubar tal absurda, ultrajante e intolerável tirania. E qualquer mulher que
desejasse que seu marido — estando ele compos mentis — se submetesse a tal afronta e injustiça não merece
seu afeto ou qualquer outra coisa que não nojo e desprezo. E ele provavelmente logo a faria entender que, se
ela escolhesse depender do governo, e não dele, para seu sustento e para o sustento de seus filhos, ela deveria
depender exclusivamente do governo.

XXII.

Uma resposta diferente e definitiva ao argumento de que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar à pobreza é
a de que, via de regra, ele coloca o efeito à frente da causa. Ele assume que é o uso de bebidas que causa a
pobreza, em vez de ser a pobreza que causa o uso de bebidas.

A pobreza é a mãe natural de quase toda a ignorância, todo o vício, todo o crime e toda a miséria que há no
mundo.6 Por que é que uma parte tão grande da população trabalhadora da Inglaterra é bêbada e viciada?
Certamente não é por que os trabalhadores são de natureza pior que a dos outros homens. É porque a pobreza
extrema a que eles estão submetidos os mantêm em ignorância e servidão, destrói suas coragens e respeitos
próprios, os sujeita a constantes insultos e injustiças, a amargas e incessantes misérias de todos os tipos, e
finalmente os leva a tal desespero que a pequena trégua que a bebida e outros vícios possibilitam é, por ora,
um alívio. Essa é a causa principal do alcoolismo e dos outros vícios de que sofrem os trabalhadores da
Inglaterra.

Se aqueles trabalhadores da Inglaterra, que ora são bêbados e viciosos, tivessem as mesmas chances na vida
que as classes mais afortunadas tiveram; se tivessem sido criados em lares confortáveis, felizes e virtuosos, em
vez dos lugares esquálidos, desgraçados e viciosos nos quais cresceram; se houvessem tido aquelas
oportunidades de adquirir conhecimento e propriedades, de se tornarem inteligentes, felizes, independentes e
respeitáveis, de assegurar para si próprios todos os prazeres intelectuais, sociais e domésticos a que as
honestas e justamente recompensadas indústrias permitissem — se eles pudessem ter tido tudo isso em vez de
terem uma vida de trabalho sem esperanças e sem recompensas, com a certeza de morte na fábrica, eles
estariam tão livres de seus presentes vícios e fraquezas quanto estão aqueles que agora os reprovam.

É inútil dizer que o alcoolismo, ou qualquer outro vício, apenas piora suas situações; pois tal é a natureza
humana — a fraqueza da natureza humana, se assim você desejar — que os homens podem agüentar não mais
que um certo nível de miséria antes que sua esperança e coragem desapareçam e que eles cedam a quase
qualquer coisa que prometa alívio, embora ao custo de uma miséria ainda maior no futuro. Pregar moralidade
ou temperança para tais infelizes pessoas, em vez de aliviar seus sofrimentos ou melhorar suas condições, é um
insulto à condição delas.

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VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

Será que aqueles que costumam atribuir a pobreza dos homens a seus vícios, em vez dos vícios à pobreza —
como se toda pessoa pobre, ou a maioria delas, fosse especialmente viciosa —, nos dirão que toda a pobreza
do último ano e meio7 foi imposta repentinamente — como se fosse num momento — a pelo menos vinte
milhões de pessoas como conseqüência natural do alcoolismo ou de quaisquer outros vícios delas próprias?
Teria sido o alcoolismo ou outro vício que paralisou, como um raio, todas as indústrias pelas quais elas viviam e
que eram tão prósperas alguns dias antes? Teriam sido seus vícios que desempregaram os adultos dentre
aqueles vinte milhões de pessoas, compeliram-nos a consumir suas parcas economias, se tinham alguma, e os
obrigaram a se tornar pedintes — pedintes de trabalho e, fracassando, pedintes de pão? Teriam sido seus
vícios que, simultânea e repentinamente, encheram suas casas de necessidades, miséria, doenças e morte?
Não. Claramente não foi o alcoolismo nem qualquer outro vício dos trabalhadores que os levou à ruína e à
desgraça. E se não foi isso, o que foi?

Este é o problema que deve ser respondido; pois ele é recorrente, se coloca constantemente ante nós, e não
pode ser ignorado.

De fato, a pobreza de grande parte da humanidade, em todo o mundo, é o grande problema mundial. Que essa
extrema e quase universal pobreza exista em todo o mundo, e que tenha existido durante todas as gerações
passadas, prova que ela se origina em causas as quais a natureza humana comum daqueles que sofrem com ela
não foi até hoje capaz de superar. Mas os que sofrem estão, ao menos, começando a ver essas causas e
decidindo-se por eliminá-las, custe o que custar. E aqueles que imaginam que não têm nada a fazer além de
atribuir a pobreza das pessoas a seus vícios, e repreendê-las por isso, então despertarão para o dia em que
toda essa conversa estará no passado. E a questão então não mais será sobre quais são os vícios dos homens,
mas quais são seus direitos?

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VÍCIOS NÃO SÃO C RIMES

NOTAS:
[1] Dar a um homem insano uma faca, ou qualquer outra arma ou coisa pela qual ele provavelmente se ferirá, é
um crime.

[2] O livro de estatutos de Massachusetts estipula que dez anos seja a idade na qual se presume que uma
menina tenha discernimento suficiente para ser possuída com virtude. Mas o mesmo livro de estatutos estipula
que nenhuma pessoa, homem ou mulher, de qualquer idade, de qualquer grau de sabedoria ou experiência,
tem discernimento para poder comprar e beber um copo de bebida álcoólica por seu próprio julgamento! Que
grande ilustração da inteligência legislativa de Massachusetts!

[3] Catão cometeu suicídio para não cair nas mãos do César. Quem jamais suspeitou que ele fosse louco?
Brutus fez o mesmo. Colt cometeu suicídio pouco mais de uma hora antes de ser enforcado. Ele fez isso para
evitar a desgraça do enforcamento a seu nome e ao de sua família. Este, sendo um ato sábio ou não,
claramente foi executado dentro das suas faculdades mentais normais. Alguém supõe que a pessoa que
forneceu a ele o instrumento necessário foi um criminoso?

[4] Uma ilustração deste fato é encontrada na Inglaterra, cujo governo, por mais de mil anos não tem sido mais
que um bando de ladrões, tendo conspirado para monopolizar as terras e, tanto quanto possível, todas as
outras riquezas. Esses conspiradores, chamando a si mesmos de reis, nobres ou freeholders, tomaram para si,
através da força e da fraude, todos os poderes civis e militares; eles se mantêm no poder somente pela força,
pela fraude e pelo uso corrupto de suas riquezas; eles empregam seus poderes exclusivamente para o roubo e
para a escravização da grande massa de seu próprio povo, e para o espólio e escravização de outros povos. O
mundo sempre esteve, e está atualmente, cheio de exemplos substancialmente similares. E o governo de nosso
país não difere tanto dos outros neste aspecto quanto alguns de nós imaginam.

[5] É a este incentivo somente que devemos toda a riqueza que já foi criada pelo trabalho humano e
acumulada para o benefício da humanidade.

[6] Excetuando-se aqueles grandes crimes os quais alguns poucos, chamando a si mesmos de governos,
praticam sobre a maioria, por meio de tirania e extorsão organizadas e sistemáticas. E é somente a pobreza, a
ignorância e a conseqüente fraqueza da maioria que permite que uma minoria unida e organizada adquira e
mantenha tal poder sobre ela.

[7] Isto é, de 1º de setembro de 1873 a 1º de março de 1875.

Ordem Livre | Lysander Spooner 19


O DIREITO DE IGNORAR O E STADO

O DIREITO DE IGNORAR O ESTADO


HEBERT SPENCER

Como corolário à proposição de que todas as instituições devem ser subordinadas à lei da igual liberdade, nós
não temos escolha além de admitir o direito do cidadão de adotar uma condição de proscrição voluntária. Se
todo homem tem a liberdade de fazer o que desejar, desde que não infrinja a igual liberdade de qualquer outro
homem, então ele é livre para abandonar ligações com o estado — para recusar sua proteção e para se negar a
custear seu suporte. É auto-evidente que, ao agir dessa forma, ele de forma alguma agride a liberdade dos
outros, pois sua posição é passiva, e, enquanto passivo, ele não pode se tornar um agressor. É igualmente auto-
evidente que ele não pode ser compelido a continuar a fazer parte de uma corporação política sem uma
transgressão da lei moral, vendo que a cidadania envolve o pagamento de impostos; e tirar a propriedade de
um homem contra sua vontade é uma violação de seus direitos. O governo sendo apenas um agente
empregado em comum por um número de indivíduos para lhes assegurar certas vantagens, própria da ligação
com ele implica que cada um deva dizer se ele vai ou não empregar esse agente. Se qualquer um se determinar
a ignorar essa confederação de segurança mútua, nada pode ser dito a não ser que ele perde todo direito a
seus bons serviços e expõe a si mesmo ao perigo dos maus tratos — algo que ele tem a liberdade de fazer, se
quiser. Ele não pode ser coagido a entrar numa combinação política sem uma transgressão da lei da igual
liberdade; ele pode abandoná-la sem cometer tal transgressão e, portanto, ele tem o direito de fazer isso.

"Nenhuma lei humana é de qualquer validade se contrária à lei da natureza; e essas são válidas pois derivam
todas as suas forças e suas autoridades mediata ou imediatamente deste original." Assim escreve Blackstone
(1), a quem deixe que toda honra seja dada por ter se adiantado tanto às idéias de seu tempo e, de fato,
podemos dizer de nosso tempo. Um bom antídoto, este, para as superstições políticas que tão amplamente
prevalecem. Uma boa restrição ao sentimento de veneração do poder que ainda nos induz erradamente a
aumentar as prerrogativas dos governos constitucionais, como já nos induziu a aumentar o dos monarcas.
Deixe os homens aprenderem que uma legislatura não é "nosso Deus sobre a terra", embora, pela autoridade
que atribuem a ela e as coisas que esperam dela, eles parecem pensar que é. Deixe-os aprender, em vez disso,
que ela é uma instituição servindo a um propósito puramente temporário, cujo poder, quando não usurpado,
é, no máximo, emprestado.

Além disso, de fato, nós não vimos que o governo é essencialmente imoral? Não é ele o descendente do mal,
trazendo todas as marcas de sua origem? Ele não existe porque o crime existe? Ele não é forte — ou, como
dizemos, despótico — quando o crime é grande? Não há mais liberdade — isto é, menos governo — quando o
crime diminui? E não deve o governo cessar quando cessa o crime, pela própria falta de objetos sobre os quais
executar sua função? O poder autoritário não existe apenas por causa do mal, mas através do mal. A violência
é empregada para mantê-lo, e toda violência envolve criminalidade. Soldados, policiais e carcereiros; espadas,
cassetetes e correntes são instrumentos para infligir dor; e toda inflição de dor é, em abstrato, errada. O
estado emprega armas más para subjugar o mal e é igualmente contaminado pelos objetos com o qual lida e
pelos meios com o qual trabalha. A moralidade não pode reconhecê-lo, pois a moralidade, sendo simplesmente
uma afirmação da lei perfeita, não pode aprovar nada que nasça e viva através de transgressões dessa lei. Por
conseguinte, a autoridade legislativa não pode nunca ser ética — ela precisa sempre ser meramente
convencional. Portanto, há uma certa inconsistência na tentativa de determinar a posição, estrutura e a
condução corretas de um governo pelo apelo aos princípios fundamentais da retidão. Pois, como foi apontado,
os atos de uma instituição a qual é tanto em natureza quanto em origem imperfeita não pode se adequar a lei
perfeita. Tudo o que podemos fazer é determinar, em primeiro lugar, em quais atitudes uma legislatura precisa
ter em relação à comunidade para evitar que sua existência seja apenas uma incorporação do errado; em
segundo lugar, de qual forma ela precisa ser constituída para exibir a menor incongruência possível com a lei
moral; e, em terceiro lugar, a qual esfera suas ações devem ser limitadas para evitar que ela multiplique
aquelas transgressões da eqüidade que ela foi estabelecida para impedir.

A primeira condição a ser preenchida antes que uma legislatura possa ser estabelecida sem violar a lei da igual
liberdade é o reconhecimento do direito agora em discussão — o direito de ignorar o estado.(2)

Ordem Livre | Herbert Spencer 20


O DIREITO DE IGNORAR O E STADO

Os partidários do puro despotismo podem naturalmente acreditar que o controle do estado seja ilimitado e
incondicional. Eles, que afirmam que os homens são feitos para os governos e não os governos para os
homens, podem consistentemente sustentar que ninguém possa se retirar do âmbito da organização política.
Mas aqueles que sustentam que as pessoas são a única fonte legítima de poder — que a autoridade legislativa
não é original, mas delegada — não podem negar o direito de ignorar o estado sem dizer um absurdo.

Pois, se a autoridade legislativa é delegada, se segue que aqueles por quem ela o é são os mestres daqueles
para quem ela é conferida; se segue, além disso, que, como mestres, eles conferem a dita autoridade
voluntariamente; e isso implica que eles podem dá-la ou retirá-la como lhes aprouverem. Chamar de delegação
aquela que é desviada dos homens, quer queiram, quer não, não faz sentido. Mas o que aqui é verdade para
todos coletivamente é igualmente verdadeiro para cada um separadamente. Como um governo somente pode
agir pelo povo quando seu poder é concedido por ele, então só pode também agir pelo indivíduo quando seu
poder é concedido por ele. Se A, B e C debatem se devem empregar um agente para executar para eles certo
serviço, e se embora A e B concordem com isso, C discorde, C não pode ser equitativamente tornado uma parte
no acordo a despeito de si mesmo. E isto precisa ser igualmente verdade para trinta como para três; e se de
trinta, por que não trezentos, três mil ou três milhões?

Das superstições políticas a que foram aludidas, nenhuma é tão universalmente difundida como a noção de
que as maiorias são onipotentes. Sob a impressão de que a preservação da ordem sempre requererá que o
poder seja dominado por algum partido, o senso moral de nosso tempo sente que tal poder não pode ser
devidamente conferido para ninguém além da maior parte da sociedade. Ela interpreta literalmente o dito de
que "a voz do povo é a voz de Deus", e, transferindo para um a sacralidade do outro, ela conclui que da
vontade do povo — isto é, da maioria — não pode haver apelação. Contudo, esta crença é errônea.

Suponha, pelo argumento, que, atingida por algum pânico malthusiano, a legislatura devidamente
representando a opinião pública decretasse que todas as crianças nascidas durante os próximos dez anos
devessem ser afogadas. Alguém pensa que esse decreto seria justificável? Se não, há evidentemente um limite
ao poder da maioria. Suponha, novamente, que de duas raças vivendo juntas — os celtas e os saxões, por
exemplo —, a mais numerosa determinasse que os outros devessem ser seus escravos. Seria válida a
autoridade do maior número em tal caso? Se não, há algo a qual sua autoridade deve ser subordinada.
Suponha, uma vez mais, que todos os homens que tenham rendimentos abaixo de 50 libras por ano
resolvessem reduzir todos os rendimentos acima daquela quantia ao nível deles e que os excessos fossem
apropriados para propósitos públicos. Essa resolução poderia ser justificada? Se não, precisa ser pela terceira
vez confessado que há uma lei à qual a voz popular precisa se curvar. Qual, então, é essa lei senão a lei da pura
eqüidade — a lei da igual liberdade? Essas limitações, que todos colocariam à vontade da maioria, são
exatamente as limitações estabelecidas por aquela lei. Nós negamos o direito da maioria de matar, escravizar
ou roubar, simplesmente porque o assassinato, a escravização e o roubo são violações daquela lei — violações
grosseiras demais para serem negligenciadas. Mas se grandes violações dela são erradas, então também são as
menores. Se a vontade dos muitos não pode sobrepor-se ao primeiro princípio da moralidade nesses casos,
não pode em nenhum. De forma que, insignificante como for a minoria e desimportante como seja a violação
de seus direitos, nenhuma violação desse tipo é permissível.

Quando nós tornarmos nossa constituição puramente democrática, pensa para si o sincero reformador, nós
teremos colocado o governo em harmonia com a justiça absoluta. Tal crença, embora talvez necessária para
esta era, é profundamente errada. De forma alguma a coerção pode ser tornada justa. A forma mais livre de
governo é apenas a forma menos questionável. O domínio dos muitos pelos poucos chamamos de tirania; o
domínio dos poucos pelos muitos também é tirania, embora de um tipo menos intenso. "Você deve agir como
nós desejamos, não como você deseja" é em todo caso a declaração; e se os cem a fazem para os noventa e
nove, em vez dos noventa e nove para os cem, é apenas uma fração menos imoral. Dos dois partidos, qualquer
um que faça essa declaração necessariamente fere a lei da igual liberdade: a única diferença sendo que num
caso é ferida pelas pessoas que fazem parte das noventa e nove, enquanto no outro, pelas pessoas das cem. E
o mérito da forma democrática de governo consiste somente nisso, que ele viole os direitos do menor número.

Ordem Livre | Herbert Spencer 21


O DIREITO DE IGNORAR O E STADO

A própria existência de maiorias e minorias é indicativa de um estado imoral. O homem cujo caráter se
harmoniza com a lei moral nós vemos ser aquele que pode obter a completa felicidade sem diminuir a
felicidade dos outros (cap. III). Mas a aplicação de arranjos públicos pelo voto implica uma sociedade consistida
de homens que, caso contrário, seriam constituídos de outra forma; implica que os desejos de alguns não
podem ser satisfeitos sem o sacrifício dos desejos dos outros; implica que em sua busca pela felicidade a
maioria inflige uma certa infelicidade sobre a minoria; implica, portanto, uma imoralidade orgânica. Assim, de
outro ponto de vista, nós novamente percebemos que mesmo em sua forma mais eqüitativa é impossível para
o governo se dissociar do mal; e, além disso, que a não ser que o direito de ignorar o estado seja reconhecido,
seus atos devem ser essencialmente criminosos.

Que um homem seja livre para abandonar os benefícios e os encargos da cidadania pode-se inferir das
admissões das existentes autoridades e da opinião corrente. Despreparados como provavelmente estão para
uma doutrina tão extrema como a aqui mantida, os radicais de nossos dias inconscientemente professam suas
crenças numa máxima que obviamente incorpora esta doutrina. Nós não continuamente os ouvimos citar a
asserção de Blackstone de que "nenhum súdito da Inglaterra pode ser forçado a pagar quaisquer contribuições
ou impostos mesmo para a defesa do reino ou para o sustento do governo, tais são impostos por seu próprio
consentimento, ou pelo consentimento de seu representante no parlamento"? E o que isso significa? Significa,
dizem eles, que todos os homens deveriam ter um voto. Verdade: mas significa muito mais. Se existe qualquer
sentido nas palavras ele é uma distinta enunciação do próprio direito agora defendido. Ao afirmar que um
homem não possa ser taxado a não ser que tenha dado direta ou indiretamente seu consentimento, ele afirma
que pode se recusar a ser taxado; e se recusar a ser taxado é cortar toda conexão com o estado. Talvez seja
dito que esse consentimento não é específico, mas geral, e que deve-se entender que o cidadão assentiu a
tudo que seu representante fizer quando votou nele. Mas suponha que ele não votou nele; e, pelo contrário,
fez tudo que era capaz para eleger algum outro que sustenta opiniões opostas — o que ocorre? A resposta
provavelmente será que, tomando parte em tal eleição, ele tacitamente concordou em obedecer às decisões
da maioria. Mas como, se ele não votou? Por que então ele não pode justificadamente reclamar de qualquer
imposto, vendo que ele não fez nenhum protesto contra sua imposição. Então, curiosamente, parece que ele
deu o seu consentimento por qualquer forma que agiu — se disse sim, se disse não ou se permaneceu neutro!
Uma esquisita doutrina, esta. Aqui temos um infeliz cidadão a quem se pede que dê dinheiro a uma certa
vantagem oferecida; e se ele empregar ou não os únicos meios para expressar sua recusa, nos é dito que ele
praticamente concorda; se apenas o número de outros que concordam é maior que o número daqueles que
discordam. E assim nós somos introduzidos ao original princípio de que o consentimento de A a alguma coisa
não é determinado pelo que A diz, mas pelo que B venha a dizer!

Aqueles que citam Blackstone devem escolher entre esse absurdo e a doutrina demonstrada anteriormente.
Ou sua máxima implica o direito de ignorar o estado ou não faz o menor sentido.

Há uma estranha heterogeneidade em nossas crenças políticas. Sistemas que tiveram seus apogeus e que estão
começando lá e aqui a ver a luz do dia são improvisados com noções modernas completamente diferentes em
qualidade e cor; e os homens seriamente mostram esses sistemas, os vestem e vivem neles sem consciência da
grotesquidão deles. Este estado de transição em que estamos, que compartilha igualmente do passado e do
futuro, dá origem a teorias híbridas exibindo a mais estranha união dos antigos despotismos e da liberdade
vindoura. Aqui há tipos da antiga organização curiosamente disfarçados de germes da nova — peculiaridades
demonstrando adaptação a um estado precedente modificados por rudimentos que profeciam algo que está
por vir —, fazendo uma mistura tão totalmente caótica de relacionamentos que não há como dizer a que classe
esses nascimentos da nossa era devem ser referidos.

Como as idéias precisam necessariamente carregar a marca do tempo, é inútil lamentar o contentamento com
o qual essas crenças incongruentes são sustentadas. Caso contrário, pareceria infeliz que os homens não
seguissem até o fim as cadeias de raciocínio que levaram a essas modificações parciais. No caso presente, por
exemplo, a consistência os forçaria a admitir que, em outros pontos além daquele que acabou de se notar, eles
sustentam opiniões e usam argumentos nos quais o direito de se ignorar o estado está envolvido.

Pois qual é o significado de Discordância? Já se foi o tempo em que a crença de um homem e seu modo de
culto fossem tão determinados pela lei quanto seus atos seculares; e, de acordo com as provisões existentes

Ordem Livre | Herbert Spencer 22


O DIREITO DE IGNORAR O E STADO

em nosso livro-estatuto, ainda são. Graças ao crescimento de um espírito Protestante, entretanto, nós
ignoramos o estado nesta questão — totalmente em teoria e parcialmente na prática. Mas como fizemos isso?
Assumindo uma atitude a qual, se consistentemente mantida, implica um direito de ignorar o estado
totalmente. Observe as posições das duas partes. "Este é o seu credo", diz o legislador, "você deve acreditar e
abertamente professar o que está aqui estabelecido." "Eu não farei nada do tipo", responde o não-conformista,
"eu prefiro ir para a prisão." "Suas ordens religiosas", prossegue o legislador, "devem ser as que prescrevemos.
Você deve ir às igrejas que dotamos e adotar as cerimônias delas." "Nada me induzirá a fazer isso", é a
resposta, "eu nego totalmente seu poder de ditar a mim essas questões, e pretendo resistir até o fim."
"Finalmente", adiciona o legislador, "nós requereremos que você pague tais somas de dinheiro para o suporte
destas instituições religiosas como acharmos apropriado." "Nenhum centavo você terá de mim", exclama nosso
resoluto Independente, "mesmo se eu acreditasse nas doutrinas de sua igreja (nas quais eu não acredito), eu
ainda assim me rebelaria contra sua interferência; e se você me tomar minha propriedade, isso será feito com
o uso da força e sob protestos."

Agora, a que esse procedimento equivale quando considerado em abstrato? Ele equivale a uma afirmação pelo
indivíduo do direito de exercer uma de suas faculdades — o sentimento religioso — sem permissão ou
impedimento, e sem qualquer limite além daquele estabelecido pelas iguais reclamações dos outros. E o que
significa ignorar o estado? Simplesmente uma afirmação do direito similar de exercer todas as suas faculdades.
Um é apenas uma expansão do outro — tem a mesma base que o outro — e deve ter validade ou não junto
com o outro. Os homens de fato falam de liberdades civis e religiosas como se fossem coisas diferentes: mas a
distinção é arbitrária. Elas são partes do mesmo todo e não podem ser filosoficamente separadas.

"Sim, podem", interpõe um opositor, "a afirmação de uma é imperativa por ser um dever religioso. A liberdade
de cultuar Deus da forma que parece correto é uma liberdade sem a qual o homem não pode executar o que
acredita ser comandos Divinos e, portanto, a consciência requer que ele a mantenha." Nada mais verdadeiro;
mas e se o mesmo puder ser asseverado com relação a todas as outras liberdades? E se a manutenção delas
também for uma questão de consciência? Nós não vimos que a felicidade é a vontade Divina — que apenas
exercendo nossas faculdades essa felicidade é alcançável — e que é impossível exercê-las sem a liberdade?
(cap. IV) E se essa liberdade para o exercício das faculdades for uma condição sem a qual a vontade Divina não
puder ser executada, a preservação da qual é, pelo que diz nosso opositor, um dever. Ou, em outras palavras,
parece que não apenas a manutenção da liberdade de ação pode ser uma questão de consciência mas deve sê-
la. E assim é demonstrado claramente que as reivindicações de ignorar o estado em matérias religiosas e
seculares são em essência idênticas.

A outra razão comumente atribuída para a não-conformidade admite similar tratamento. Além de resistir ao
que o estado ditar em abstrato, o discordante resiste a ele através da desaprovação das doutrinas ensinadas.
Nenhuma injunção legislativa o fará adotar o que ele considera ser uma crença errônea; e, tendo em mente
seu dever para com os outros homens, ele se recusa a ajudar através de suas riquezas a disseminação dessa
crença errônea. Essa posição é perfeitamente inteligível. Mas ela é uma posição a qual ou faz com que seus
defensores também defendam a não-conformidade civil ou os deixa num dilema. Pois por que eles se recusam
a auxiliar a disseminação do erro? Porque o erro é adverso à felicidade humana. E sobre quais bases qualquer
parte da legislação secular é desaprovada? Pela mesma razão — porque é pensada como adversa à felicidade
humana. Como então pode-se mostrar que o estado deve ser resistido num caso e não no outro? Alguém
afirmará deliberadamente que se o governo exigir nosso dinheiro para ajudar a ensinar o que consideramos a
produção do mal, nós devemos nos recusar, mas que se o dinheiro for para o propósito de fazer o que
pensamos que produzirá o mal, nós não devemos resistir? E, no entanto, tal é a proposição daqueles que
reconhecem o direito de ignorar o estado em questões religiosas, mas o negam em questões civis.

A substância deste capítulo novamente nos lembra da incongruência entre uma lei perfeita e um estado
imperfeito. A praticidade do princípio aqui mostrado varia diretamente em relação à moralidade social. Numa
comunidade totalmente viciosa, sua admissão produziria uma anarquia. Numa comunidade completamente
virtuosa sua admissão seria tanto inócua quanto inevitável. O progresso em direção a uma condição de saúde
social — uma condição, isto é, na qual as medidas curativas da legislação não serão mais necessárias — é um
progresso rumo a uma condição na qual essas medidas curativas serão deixadas de lado e a autoridade que as
prescreve será desconsiderada. As duas mudanças são de necessidade coordenada. Esse sistema moral cuja

Ordem Livre | Herbert Spencer 23


O DIREITO DE IGNORAR O E STADO

supremacia fará a sociedade harmônica e o governo desnecessário é o mesmo senso moral o qual faz com que
cada homem afirme sua liberdade ao ponto mesmo de ignorar o estado — é o mesmo senso moral o qual,
detendo a maioria de coagir a minoria, eventualmente tornará o governo impossível. E como as meras
manifestações diferentes do mesmo sentimento devem ter uma relação constante umas com as outras, a
tendência de repudiar os governos crescerá apenas no mesmo ritmo que os governos se tornarem
desnecessários.

Que ninguém fique alarmado, portanto, com a promulgação da doutrina acima mencionada. Há muitas
mudanças para serem feitas antes que ela possa começar a exercer muita influência. Provavelmente um longo
tempo vai passar antes que o direito de ignorar o estado seja geralmente admitido, mesmo em teoria.
Demorará ainda mais antes que ela receba reconhecimento legislativo. E mesmo nesse momento, haverá
muitas limitações sobre o exercício prematuro dela. Uma experiência áspera instruirá suficientemente aqueles
que possam cedo demais abandonar a proteção legal. Existe, na maior parte dos homens, um tal amor pelos
arranjos já experimentados e um pavor tão grande de experimentos que eles provavelmente não exercerão
esse direito até que seja seguro fazê-lo.

Tradução por Erick Vasconcellos do capítulo 19 de Social Statics, de 1851,"The Right to Ignore the State".

NOTAS:
[1] [N.T.] Sir William Blackstone (1723-1780), jurista inglês que escreveu o famoso tratado sobre a common law
em quatro volumes Commentaries on the Laws of England (1765-1769).

[2] Daí pode se tirar um argumento pela taxação direta; porque somente quando a taxação é direta a
repudiação do fardo estatal se torna possível.

Ordem Livre | Herbert Spencer 24


OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL

OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL


JOHN STUART MILL

O objeto deste Ensaio é defender como indicado para orientar de forma absoluta as intervenções da sociedade
no individual, um princípio muito simples, quer para o caso do uso da força física sob a forma de penalidades
legais, quer para o da coerção moral da opinião pública. Consiste esse princípio em que a única finalidade
justificativa da interferência dos homens, individual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a
autoproteção. O único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma
comunidade civilizada contra a sua vontade é impedir dano a outrem. O próprio bem do indivíduo, seja
material seja moral, não constitui justificação suficiente.
As objeções à interferência governamental, quando ela não envolve desrespeito à liberdade, podem ser de três
gêneros.

O primeiro gênero é relativo a coisas mais adequadas a serem feitas pelos indivíduos do que pelo governo. Em
geral, ninguém está mais em condições de conduzir um negócio, ou de determinar como e por quem deva ser
conduzido, do que os pessoalmente interessados nele. Esse princípio condena as interferências, outrora tão
comuns, da Legislatura, ou dos funcionários governamentais, nos processos ordinários da indústria. Essa parte
do assunto, porém, foi suficientemente explanada por autores de economia política, e não se relaciona
particularmente com os princípios deste ensaio.

A segunda objeção é ligada mais de perto com o nosso assunto. Há muitos casos nos quais, embora os
indivíduos, em regra, não possam fazer a coisa em apreço tão bem como os funcionários governamentais, é,
entretanto, desejável que seja feita por eles, antes que pelo governo, como um meio para a sua educação
mental – um modo de robustecer as suas faculdades ativas, exercitando o seu discernimento, e
proporcionando-lhes familiaridade com os assuntos cujo trato lhes é assim deixado. Esta é, não a única, mas
uma das principais razões que recomendam o julgamento pelo júri (em casos não políticos), as instituições
locais de caráter livre e popular; a condução dos empreendimentos industriais e filantrópicos por associações
voluntárias. Essas questões não são de liberdade, e só por tendências remotas se ligam ao assunto; mas são
questões de desenvolvimento. Esta não é a ocasião de se demorar nessas coisas como aspectos da educação
nacional, como constituindo, na verdade, o treinamento peculiar de um cidadão, a parte prática da educação
política de um povo livre, o que tira para fora do círculo estreito do egoísmo pessoal e familiar, e o acostuma à
compreensão dos interesses coletivos – habituando-o a agir por motivos públicos e semipúblicos e a guiar a
conduta por alvos que unem hábitos e poderes, uma constituição livre não pode ser cumprida nem preservada,
como se exemplifica pela natureza muito freqüentemente transitória da liberdade política em países nos quais
ela não repousa sobre uma base suficiente de liberdades locais. A administração dos negócios puramente
locais pelas localidades, e dos grandes empreendimentos industriais pela união daqueles que voluntariamente
fornecem os meios pecuniários, é, ademais, recomendada por todas as vantagens atribuídas neste ensaio à
individualidade de desenvolvimento e à diversidade dos modos de ação. As operações governamentais tendem
a ser, por toda a parte, semelhantes. Com os indivíduos e as associações voluntárias, ao contrário, há ensaios
diversos, e uma infinda variedade de experiência. O que o Estado pode utilmente fazer é tornar-se um depósito
central da experiência resultante dos muitos ensaios, e um ativo fator da sua circulação e difusão. O que lhe
compete é habilitar cada experimentador a se beneficiar das experiências alheias, ao invés de não tolerar
outras experiências senão as próprias.

A terceira e mais eficaz razão para limitar a interferência do governo é o grande perigo de lhe aumentar
desnecessariamente o poder. Toda função que se acrescente às já exercidas pelo governo difunde mais
largamente a influência deste sobre as esperanças e os temores, e converte, cada vez mais, a parte mais ativa e
ambiciosa do público em pingentes do governo, ou de algum partido que visa tornar-se governo. Se as
estradas, as ferrovias, os bancos, os escritórios de seguros, as grandes sociedades anônimas, fossem ramos do
governo; se, ademais, as corporações municipais e conselhos locais, com tudo que hoje recai sob a sua alçada,
se tornassem departamentos da administração central; se os empregados de todos esses diversos
empreendimentos fossem nomeados e pagos pelo governo, e deste dependessem para cada ascensão na vida;

Ordem Livre | John Stuart Mill 25


OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO GOVERNAMENTAL

nem toda a liberdade de imprensa e toda a constituição popular da legislatura poderiam fazer deste, ou de
outro país, países livres senão em seu nome.

Ordem Livre | John Stuart Mill 26


QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES DEMOCRÁTICAS

QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES


DEMOCRÁTICAS
ALEXIS DE TOCQUEVILLE

Observei, durante minha temporada nos Estados Unidos, que uma situação social semelhante à dos
americanos poderia oferecer singulares facilidades à implementação do despotismo, e mostrei, ao regressar à
Europa, como a maior parte dos nossos príncipes já se tinham servido das idéias, dos sentimentos e das
necessidades que essa mesma situação social fazia surgir, para estender a esfera do seu poder. Isso me levou a
crer que as nações cristãs talvez acabassem por sofrer alguma opressão, semelhante à que outrora pesou sobre
vários povos da Antiguidade. Um exame mais detalhado do assunto e cinco anos de meditações novas não
diminuíram em nada os meus temores, mas mudaram o seu objeto.

Jamais se viu, nos séculos passados, um soberano tão absoluto e tão poderoso que tenha tentado administrar
sozinho e sem recorrer a poderes secundários, todas as partes de um grande império; nem sequer um tentou
submeter indistintamente todos os seus súditos aos detalhes de uma norma uniforme, nem desceu até junto
de cada um deles, para regê-lo e conduzi-lo. A idéia de semelhante empreendimento jamais se apresentara ao
espírito humano, e se a algum homem terá ocorrido concebê-la, a insuficiência de luzes, a imperfeição de
processos administrativos e, sobretudo, os obstáculos naturais que a desigualdade suscita o teriam logo detido
na execução de desígnio tão vasto.

Sabemos que, na época do maior poder dos Césares, os diferentes povos que viviam no mundo romano tinham
ainda conservado costumes e hábitos diversos: embora sujeitas ao mesmo monarca, a maior parte das
províncias era administrada separadamente; eram cheias de municipalidades poderosas e ativas e, embora
todo o governo do império estivesse concentrado apenas nas mãos do imperador, e ele continuasse sempre,
quando necessário, árbitro de todas as coisas, os detalhes da vida social e da existência individual fugiam
ordinariamente ao seu controle. É verdade que os imperadores possuíam um poder imenso e sem
contrapartida, que os permitia entregar-se livremente aos caprichos dos seus pendores e a empregar para
satisfazê-los toda a força do Estado; muitas vezes, ocorreu-lhes abusar desse poder para arbitrariamente tirar
de um cidadão os bens ou a vida; a sua tirania pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia
sobre um grande número; prendia-se a alguns objetivos principais maiores e esquecia o resto; era violenta e
contida.

Parece que, se o despotismo viesse a se estabelecer nas nações democráticas de hoje, teria outras
características: Seria mais amplo e mais brando, e desagradaria os homens sem atormentá-los. Não duvido
que, nos séculos de luzes e de igualdade, como os nossos, os soberanos mais facilmente consigam concentrar
todos os poderes públicos em suas mãos apenas, e penetrar mais habitual e mais profundamente no círculo
dos interesses privados, como jamais o pode fazer qualquer daqueles da Antiguidade.

Mas essa mesma igualdade, que facilita o despotismo, torna-o mais suave; já vimos como, à medida que os
homens se tornam mais semelhantes e mais iguais, os costumes públicos passam a ser mais humanos e mais
suaves; quando nenhum cidadão tem um grande poder ou grandes riquezas, a tirania, de certa forma, fica sem
ocasião ou teatro de ação. Como todas as fortunas são medíocres, as paixões são naturalmente contidas, a
imaginação limitada, os prazeres simples. Essa moderação universal se faz sentir no próprio soberano e detém
dentro de certos limites o impulso desordenado dos seus desejos.

Independentemente dessas razões, tiradas da própria natureza da situação social, poderia acrescentar muitas
outras, fora de meu tema; desejo, porém, manter-me dentro dos limites que me fixei.

Os governos democráticos poderão tornar-se violentos e cruéis em certos momentos de grande efervescência
e de grandes perigos; mas essas crises serão raras e passageiras. Quando penso nas pequenas paixões dos
homens de hoje em dia, na brandura dos seus costumes, na extensão das suas luzes, na pureza da sua religião,

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 27


QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES DEMOCRÁTICAS

na brandura da sua moral, nos seus hábitos laboriosos e ordenados, na austeridade em que se mantêm quase
todos, no vício como na virtude, não temo que encontrem em seus chefes tiranos, mas antes tutores.

Não creio, pois, que a espécie de opressão de que povos democráticos se acham ameaçados se assemelhe a
algo do que a precedeu no mundo; nossos contemporâneos não poderiam encontrar na lembrança a sua
imagem. Em vão procuro uma expressão que reproduza exatamente a idéia que tenho e que a encerre; as
antigas palavras, despotismo e tirania não convêm de maneira alguma. O fenômeno é novo; é preciso, pois,
defini-lo, já que não posso dar-lhe um nome.

Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo; vejo uma multidão
inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à procura de
pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que
estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a
espécie humana, quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os
sente; existe apenas em si e para si mesmo, e, se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não
mais tem pátria.

Acima destes, eleva-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir o seu prazer e velar
sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria os homens para a idade viril;
mas, ao contrário, só procura fixá-los irrevogavelmente na infância; agrada-lhe que os cidadãos se rejubilem,
desde que não pensem senão em rejubilar-se. Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o
seu único agente e árbitro exclusivo; provê à sua segurança, prevê e assegura as suas necessidades, facilita os
seus prazeres, conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as
suas heranças; que lhe alta tirar-lhes inteiramente, senão o incomodo de pensar e a angústia de viver?

É assim que, todos os dias, torna menos útil e mais raro o emprego do livre arbítrio; é assim que encerra a ação
da vontade num pequeno espaço e, pouco a pouco, tira a cada cidadão até o emprego de si mesmo. A
igualdade preparou os homens para todas essas coisas, dispondo-os a sofrer e muitas vezes até a considerá-las
como um benefício.

Depois de ter tomado cada um por sua vez, dessa maneira, e depois de o ter petrificado sem disfarce, o
soberano estende o braço sobre a sociedade inteira; cobre a sua superfície com uma rede de pequenas regras
complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas
não seriam capazes de vir à luz para ultrapassar a multidão; não esmaga as vontades, mas as enfraquece,
curva-as e as dirige; raramente força a agir, mas constantemente opõe resistência à ação; nunca destrói, mas
impede de nascer, nunca tiraniza mas comprime, enfraquece, prejudica, extingue e desumaniza, e afinal reduz
cada nação a não ser mais que rebanho de animais tímidos e diligentes, dos quais o governo é o pastor.

Sempre acreditei que essa espécie de servidão regulada e pacífica, cujo retrato acabo de traçar, poderia
conjugar-se mais facilmente do que imaginamos com algumas das formas exteriores da liberdade, e que não
lhe seria impossível estabelecer-se à própria sombra da soberania do povo. Nossos contemporâneos são
constantemente trabalhados por duas paixões inimigas: sentem eles a necessidade de ser conduzidos e o
desejo de permanecer livres. Não podendo destruir nem um nem outro desses instintos contrários, esforçam-
se por satisfazer ao mesmo tempo a ambos. Imaginam um poder único, tutelar, todo-poderoso, mas eleito
pelos cidadãos. Combinam a centralização e a soberania do povo. Isso lhes dá algum descanso. Consolam-se
por ser tutelados, pensando que eles mesmos escolheram seus tutores. Todo indivíduo suporta ser fixado,
porque vê que não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo, que segura a ponta da corrente.

Nesse sistema, os cidadãos por um momento abandonam a dependência, para indicar o seu senhor, e depois
voltam a ela. Hoje em dia, há muitas pessoas que se acomodam muito facilmente a essa espécie de
compromisso entre o despotismo administrativo e a soberania do povo, e que pensam ter garantido
suficientemente a liberdade dos indivíduos, quando é ao poder nacional que a entregam. Mas isso não me
basta. A natureza do senhor me importa muito menos que a obediência.

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 28


QUE ESPÉCIE DE DESPOTISMO DEVEM TEMER AS NAÇÕES DEMOCRÁTICAS

Entretanto, não quero negar que semelhante constituição seja infinitamente preferível àquela que, depois de
ter concentrado todos os poderes, viesse a colocá-los nas mãos de um homem ou de um corpo irresponsável.
De todas as diferentes formas que o despotismo democrático poderia tomar, essa seria sem dúvida a pior.
Quando o soberano é eleito ou vigiado de perto por uma legislatura realmente eletiva e independente, a
opressão que faz com que os indivíduos sofram às vezes é maior; mas é sempre menos degradante, porque
cada cidadão, enquanto contido e reduzido à impotência, pode ainda imaginar que, obedecendo, só se
submete a si mesmo, e que é a uma das suas vontades que sacrifica todas as demais. Compreendo igualmente
que, quando o soberano representa nação e depende dela, as forças e os direitos que se tiram a cada cidadão
não servem somente ao chefe do Estado, mas aproveitam ao próprio Estado, e que os particulares tiram algum
fruto do sacrifício que fizeram da sua independência a bem do público. Criar uma representação nacional num
país muito centralizado é, pois, diminuir o mal que a extrema centralização pode produzir, mas não é destruí-
lo.

Bem sei que, dessa maneira, conserva-se a intervenção individual nas questões mais importantes; ela não é
menos suprimida nas pequenas e nas particulares. Esquecemo-nos de que é sempre no detalhe que é perigoso
escravizar os homens. Por minha parte, seria levado a julgar a liberdade menos necessária nas grandes que nas
menores coisas, se pensasse que jamais se poderia ter a certeza de uma sem possuir a outra.

A sujeição nas pequenas questões se manifesta todos os dias e se faz sentir indistintamente a todos os
cidadãos. Embora não os leve ao desespero, contraria-os constantemente e os leva a renunciar ao uso da
vontade. Pouco a pouco, oblitera o seu espírito e enfraquece a sua alma, ao passo que a obediência, que é
devida apenas em reduzido número de circunstâncias muito graves, mas muito raras, só de longe em longe
denota a servidão, e só a faz pesar sobre certos homens. Em vão encarregaríamos aqueles mesmos cidadãos
que tornamos tão dependentes desse poder central de escolher de vez em quando os representantes desse
poder; esse uso tão importante, mas tão curto e tão raro, do seu livre arbítrio, não impedirá que percam pouco
a pouco a faculdade de pensar, de sentir e de agir por si mesmos, e que não venham a cair assim,
gradualmente, abaixo do nível da humanidade.

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 29


SOBRE O SOCIALISMO

SOBRE O SOCIALISMO
ALEXIS DE TOCQUEVILLE

Nada poderemos ganhar ao não discutir questões que põem em dúvida as raízes de nossa sociedade, questões
essas que, mais cedo ou mais tarde, deverão ser enfrentadas. No fundo do projeto que está em discussão,
talvez sem o conhecimento de seu autor – mas eu a percebo claramente – , está a questão do socialismo.
[Longa excitação – murmúrios da esquerda.]

Sim, cavalheiros, mais cedo ou mais tarde, a questão do socialismo, que todos parecem temer e que ninguém
até agora ousou debater, deverá ser discutida, e essa assembléia deverá decidi-la. Somos obrigados a
esclarecer essa questão, que pesa sobre o peito da França. Confesso ser esse o meu principal motivo para subir
à tribuna hoje: que a questão do socialismo seja finalmente resolvida. Eu preciso saber, a Assembléia nacional
precisa saber, toda a França precisa saber – a Revolução de Fevereiro é uma revolução socialista ou não?
[“Excelente!”]

Não é minha intenção analisar aqui os diferentes sistemas que possam ser classificados como socialistas.
Apenas quero tentar revelar características comuns a todos eles e verificar se podemos dizer que a Revolução
de Fevereiro as apresentou.

A primeira característica de todas as ideologias socialistas, creio eu, é um apelo vigoroso, extremo, às todas as
paixões materiais dos homens. [Sinais de aprovação.]

Assim, alguns disseram: “Vamos reabilitar o corpo”; outros, que “o trabalho, mesmo os mais pesados, não deve
ser apenas útil, mas prazeroso”; outros dizem que “os homens devem ser pagos não de acordo com seu mérito,
mas de acordo com sua necessidade”; por fim, disseram aqui que o objetivo da Revolução de Fevereiro, do
socialismo, seria proporcionar riquezas infinitas para todos.

Uma segunda característica, sempre presente, é um ataque, direto ou indireto, ao princípio da propriedade
privada. Desde o primeiro socialista que disse, há 50 anos, que “a propriedade é a origem de todos os males do
mundo”, ao socialista que falou dessa tribuna e que, menos generoso que o primeiro, passando da propriedade
para seu proprietário, exclamou que “propriedade é roubo,” todos os socialistas, insisto, todos, atacam, direta
ou indiretamente, a propriedade privada. [”É verdade, é verdade.”] Não pretendo afirmar que todos que o
fazem agem da forma franca e brutal que um de nossos colegas adotou. Mas digo que todos os socialistas, por
meios mais ou menos diretos, se não destroem o princípio sobre o qual ela se baseia, transformam-no,
diminuem-no, obstruem-no, limitam-no e moldam-no como algo completamente estranho ao que nós
conhecemos e com que nos familiarizamos, desde o começo dos tempos, como propriedade privada. [Sinais de
concordância.]

Agora, a terceira e final característica, a qual, aos meus olhos, melhor descreve os socialistas de todas as
escolas e nuances, é a profunda oposição à liberdade individual e o desprezo à liberdade de pensamento, ou
seja, um total desrespeito ao indivíduo. Eles incessantemente tentam mutilar, restringir, obstruir a liberdade
individual de toda e qualquer maneira. Afirmam que o Estado não deve agir apenas como diretor da sociedade,
mas ser o mestre de cada homem, e não apenas o mestre, mas o guardião e instrutor. [ “Excelente.”] Por medo
de permitir ao homem que erre, o Estado deve se colocar para sempre a seu lado, acima dele e em torno dele,
para melhor guiá-lo e preservá-lo, ou seja, para confiná-lo. Na verdade, eles clamam pelo confisco da liberdade
humana, em graus maiores ou menores, [Mais sinais de aprovação.], de forma que, se eu estivesse tentando
resumir o que é o socialismo, diria que ele é simplesmente um novo sistema de servidão. [Grande aprovação.]
Não entrarei na discussão dos detalhes desses sistemas. Apenas indiquei o que é o socialismo, apontando suas
características universais. Elas são suficientes para permitir sua compreensão. Em qualquer lugar que você
encontrar essas características, certamente encontrará o socialismo, e onde quer que o socialismo esteja, essas
características são encontradas.

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 30


SOBRE O SOCIALISMO

Cavalheiros, será que o socialismo, como tantos disseram, é a continuação, a conclusão legítima, o
aperfeiçoamento da Revolução Francesa? Será que ele é, como fingem alguns, o desenvolvimento natural da
democracia? Não, ele não é um nem outro. Lembrem-se da Revolução! Reexaminem as impressionantes e
gloriosas origens da nossa história moderna. Como insistia ontem um orador, foi através do apelo às
necessidades materiais do homem que a Revolução Francesa realizou aqueles grandes atos que maravilhou
todo o mundo? Vocês acreditam que a Revolução falava de salários, de bem estar, de riquezas ilimitadas, de
satisfação das necessidades materiais?

Cidadão Mathieu: Eu não disse nada desse tipo.

Cidadão de Tocqueville: Você acredita que, ao falar dessas coisas, toda uma geração de homens se levantaria
para lutar por elas nas fronteiras, se exporia aos riscos da guerra, enfrentariam a morte? Não, cavalheiros. A
Revolução realizou aquilo tudo por falar sobre coisas grandiosas, sobre o amor a um país, sobre honrar a
França, por falar de virtude, generosidade, abnegação, glória. Estejam certos, cavalheiros, que apenas através
do apelo aos sentimentos mais nobres que se pode alcançar as alturas mais elevadas. [ “Excelente, excelente.” ]
E em relação à propriedade, cavalheiros: é verdade que a Revolução Francesa resultou em uma guerra dura e
cruel contra alguns proprietários. Porém, em relação ao princípio da propriedade privada, a Revolução sempre
o respeitou. Ela o colocou no topo da lista em suas constituições. Nenhum povo tratou esse princípio com
maior respeito. Ele estava gravado na fachada de suas leis.

A Revolução Francesa fez ainda mais. Não apenas consagrou a propriedade privada, ela a universalizou. A
Revolução viu um número ainda maior de pessoas terem acesso à propriedade. [ Exclamações variadas.
“Exatamente o que queremos!”]

É graças a isso, cavalheiros, que hoje não precisamos temer as conseqüências fatais das idéias socialistas que
estão espalhadas por todo o país. É porque a Revolução Francesa povoou o território francês com dez milhões
de proprietários que nós podemos, sem perigo, permitir que essas doutrinas apareçam entre nós. Elas podem,
sem dúvida, destruir a sociedade, mas graças à Revolução Francesa, elas não prevalecerão e não nos causarão
danos. [ “Excelente.” ]

E finalmente, cavalheiros, a liberdade. Há uma coisa que me choca mais do que qualquer outra. É que o Antigo
Regime, que sem dúvida diferia em muitos aspectos do sistema de governo que os socialistas reivindicam (e
precisamos compreender isso), estava, em sua filosofia política, muito mais próximo do socialismo do que se
pensa. Muito mais próximo do que estamos hoje. Na verdade, o Antigo Regime assegurava que somente o
Estado era sábio e que os cidadãos são seres fracos e debilitados que devem ser eternamente guiados pela
mão para que não se machuquem. Afirmava que era necessário obstruir, conter e restringir a liberdade
individual; que, para assegurar a abundância dos bens materiais, era imperativo organizar a indústria e impedir
a livre competição. Sob esse aspecto, o Antigo Regime propunha as mesmas coisas que os socialistas de hoje.
Foi a Revolução Francesa que negou isso.

Cavalheiros, o que foi isso que quebrou as correntes que, de todos os lados, impediam a livre movimentação
dos homens, dos bens e das idéias? O que restabeleceu a individualidade do homem, que é a sua verdadeira
grandeza? A Revolução Francesa! [ Aprovação e clamor ] Foi a Revolução Francesa que aboliu todos esses
obstáculos, que arrebentou as correntes que vocês trariam de volta sob um novo nome. E não foram apenas os
membros dessa assembléia imortal – a Assembléia Constituinte, a assembléia que fundou a liberdade, não
apenas na França, mas em todo o mundo – que rejeitaram as idéias do Antigo Regime. Foram os homens
eminentes de todas as assembléias que a seguiram!

E após essa grande revolução, o resultado será aquela sociedade que os socialistas nos oferecem, uma
sociedade formal, organizada, fechada, onde o Estado é responsável por tudo, onde o indivíduo não conta,
onde a comunidade acumula todo o poder, toda a vida, onde o fim designado para um homem é apenas o seu
bem estar material – essa sociedade em que o próprio ar sufoca e em que a luz mal consegue penetrar? Foi
para essa sociedade de trabalhadores incansáveis, antes animais capacitados do que homens livres e
civilizados, que a Revolução Francesa aconteceu? Foi por isso que tantos homens morreram no campo de

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 31


SOBRE O SOCIALISMO

batalha, na forca, que tanto sangue nobre molhou a terra? Foi por isso que tantas paixões foram inflamadas,
que tanta inteligência, tanta virtude andou por essa terra?

Não! Eu juro pelos homens que morreram por essa grande causa! Não foi por isso que morreram. Foi por algo
muito maior, mais sagrado, que merecia mais dedicação, deles e da humanidade. [“Excelente.”] Se ela
aconteceu apenas para criarmos um sistema como esse, a Revolução foi um desperdício terrível. Um Antigo
Regime aperfeiçoado teria servido adequadamente. [Clamor prolongado.]

Mencionei agora há pouco que o socialismo fingia ser a continuação legítima da democracia. Não pesquisei
pessoalmente, como alguns de meus colegas fizeram, pela etimologia real dessa palavra, a democracia. Não
vou revirar o jardim das raízes gregas, como foi feito ontem, para procurar a origem dessa palavra. [Risos.]
Procuro pela democracia onde eu a vi, viva, ativa, triunfante, no único país da terra onde ela existe e no único
lugar onde ela possivelmente poderia ter-se estabelecido com estabilidade no mundo moderno – na América.
[Sussurros.]

Lá se encontra uma sociedade na qual as condições sociais são ainda mais iguais do que entre nós; em que a
ordem social, os costumes, as leis, são todas democráticas; onde todos os tipos de pessoas entraram e onde
cada indivíduo ainda possui uma completa independência, mais liberdade do que se tem notícia em qualquer
outro lugar ou tempo; um país essencialmente democrático, as únicas repúblicas completamente democráticas
que o mundo já conheceu. E nessas repúblicas procurar-se-á em vão o socialismo. Não apenas as teorias
socialistas não cativaram a opinião pública, como possuem um papel tão insignificante na vida intelectual e
política dessa grande nação que não se poderia nem ao menos dizer que as pessoas as temem.

Os Estados Unidos são, hoje, o único país no mundo onde a democracia é completamente soberana. Além
disso, é o país onde as idéias socialistas, as quais os senhores presumem estar de acordo com a democracia,
tiveram menor influência, o país onde aqueles que apóiam as causas socialistas estão, por certo, um uma
posição de desvantagem. Eu, pessoalmente, não acharia inconveniente, se fossem para lá propagar sua
filosofia, mas para seu próprio bem, eu não os aconselharia. [Risos]

Um deputado: As mercadorias deles estão sendo vendidas agora.

Cidadão de Tocqueville: Não, cavalheiro. A democracia e o socialismo não são conceitos interdependentes. Eles
não são apenas diferentes, mas filosofias opostas. É compatível com a democracia instituir um governo
intrometido, superabrangente e restritivo, desde que ele tenha sido escolhido pela população e aja em nome
do povo? Será que o resultado não seria a tirania, sob o disfarce de um governo legítimo que, ao se apropriar
dessa legitimidade asseguraria para si o poder e a onipotência que de outra forma lhe faltaria? A democracia
expande a esfera da independência pessoal; o socialismo a confina. A democracia valoriza o que o homem tem
de melhor; o socialismo faz de cada homem um agente, um instrumento, um número. A democracia e o
socialismo só possuem uma coisa em comum – a igualdade. Mas percebam bem a diferença. A democracia visa
a igualdade através da liberdade. O socialismo busca a igualdade pela força e a servidão. [ “Excelente,
excelente.”]

Dessa forma, a Revolução de Fevereiro não deve ser “social”, e se é exatamente isso que ela não deve ser,
devemos ter a coragem de dizê-lo. Se ela não deve ser isso, devemos ter energia para proclamar em voz alta
que ela não deveria sê-lo, como faço agora. Quando alguém se opõe aos fins, deve se opor aos meios pelos
quais se chega a esses fins. Quando alguém não possui nenhum desejo em relação ao fim, não deve entrar pelo
caminho que levará até ele. O que foi proposto hoje foi a nossa entrada nesse caminho.

Não deveremos seguir aquela filosofia política que Baboeuf abraçou com tanto entusiasmo [gritos de
aprovação] – Baboeuf, o avô de todos os socialistas modernos. Não devemos cair na armadinha que ele
indicou, ou melhor, sugeriu, através de seu pupilo e biógrafo Buonarotti. Ouça às palavras de Buonarotti. Elas
merecem atenção, mesmo depois de cinqüenta anos.

Um deputado: Não há babovistas aqui.

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 32


SOBRE O SOCIALISMO

Cidadão de Tocqueville: “A abolição da propriedade individual e o estabelecimento da Grande Economia


Nacional era o objetivo final de seus [de Baboeuf] trabalhos. Mas ele compreendeu bem que tal ordem não
poderia ser estabelecida imediatamente após a vitória. Ele acreditava que seria essencial que o Estado agisse
de tal forma que todas as pessoas aboliriam a propriedade privada através da realização de suas próprias
necessidades e interesses.” Aqui estão os principais métodos que ele concebeu para realizar seu sonho. (Veja
bem, ele é seu próprio panegirista, estou apenas citando.) “Para estabelecer, através das leis, uma ordem
pública na qual os proprietários, provisoriamente autorizados a manter seus bens, descobririam que não
possuiriam riquezas, nem o direito de dispor de seus bens ou receber por eles, em que, forçados a gastar uma
grande parte de sua renda em investimentos ou impostos, esmagados sob o peso da tributação progressiva,
afastados das questões públicas, privados de qualquer influência, formando, dentro do Estado, nada além de
uma classe de estranhos suspeitos, seriam forçados a deixar o país, abandonar os seus bens ou limitar-se a
aceitar o estabelecimento da Economia Universal.”

Um deputado: Nós já estamos nesse ponto!

Uma voz da esquerda: Sim! [ “Não! Não!” (interrupção)]

Cidadão de Tocqueville:: Aqui está, senhores, o programa de Baboeuf. Espero sinceramente que esse não seja o
programa da República de Fevereiro. Não, a República de Fevereiro deve ser democrática e não socialista.

Uma voz da esquerda:Sim! [ “Não! Não!” (interrupção)]

Cidadão de Tocqueville: E se não for socialista, o que ela deverá ser?

Um deputado da esquerda: Monarquista!

Cidadão de Tocqueville (se virando para a esquerda): Ela poderá ser, talvez, se o Sr. deixar que isso aconteça, [
grande aprovação], mas ela não será.

Se a Revolução de Fevereiro não é socialista, o que, então, ela é? Será ela, como muitas pessoas dizem e
acreditam, um mero acidente? Será que ela não necessariamente acarreta uma mudança completa no governo
e nas leis? Eu acho que não.

Quando discursei em janeiro na Câmara dos Deputados, na presença da maioria dos delegados, que
murmuravam em suas mesas, embora por diferentes razões, da mesma forma que vocês murmuravam agora a
pouco – [ “Excelente, excelente”]

(O orador se vira à esquerda)

– eu lhes disse: cuidem-se. A Revolução está no ar. Será que vocês não conseguem senti-la? A Revolução se
aproxima. Será que vocês não conseguem vê-la? Estamos sentados sobre um vulcão. Ficará registrado que eu
disse isso. E por quê? – [Interrupção vinda da esquerda.]

Será que eu tive a fraqueza mental de supor que a revolução se aproximava porque esse ou aquele homem
estava no poder, ou porque esse ou aquele acontecimento provocaram a raiva política da nação? Não,
cavalheiros. O que me fez acreditar que a revolução se aproximava, o que realmente produziu a revolução, foi
isso: eu vi a negação básica dos princípios mais básicos que a Revolução Francesa espalhou pelo mundo. O
poder, a influência, as honras, e por que não, a própria vida, estavam sendo confinados dentro dos limites
estreitos de uma só classe, como nenhum outro país do mundo antes fizera.

Foi isso que me fez acreditar que a revolução estava à nossa porta. Eu vi o que aconteceria a essa classe
privilegiada, o que sempre acontece quando existem aristocracias pequenas e exclusivas. O papel de estadista
não existia mais. A corrupção crescia a cada dia. A intriga tomou o lugar da virtude pública e tudo se
deteriorou.

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 33


SOBRE O SOCIALISMO

Como a classe mais alta.

E entre as classes mais baixas, o que estava acontecendo? Cada vez mais se libertando, tanto intelectual
quanto emocionalmente, daqueles cuja função era liderá-los, o povo em sua maioria se encontrou
naturalmente inclinado em direção àqueles que lhes eram amigáveis, entre os quais estavam demagogos
perigosos e utopistas inúteis daquele tipo com o qual temos nos ocupado aqui.

Por eu ter visto essas duas classes, uma pequena, outra numerosa, separando-se pouco a pouco uma da outra
– uma imprudente, insensível e egoísta, outra cheia de inveja, resistência e raiva, por eu ter visto essas duas
classes isoladas e avançando em direções opostas, eu disse – e tinha razões para isso – que a revolução estava
levantando a sua cabeça e logo estaria sobre nós. [ “Excelente!”]

Era para estabelecer algo parecido com isso que a Revolução de Fevereiro aconteceu? Não, cavalheiros.
Recuso-me a acreditar nisso. Tanto quanto qualquer um de vocês, acredito no contrário. Desejo o oposto, não
apenas pelos interesses da liberdade, mas também pela segurança pública.

Eu admito que não trabalhei pela Revolução de Fevereiro, porém, tendo ela ocorrido, desejo que ela seja uma
revolução séria e comprometida, porque desejo que seja a última. Sei que apenas revoluções dedicadas
perduram. Uma revolução que não defende nada, que, contaminada com a esterilidade desde seu nascimento,
que destrói sem construir, não faz nada além de dar à luz novas revoluções. [Aprovações.]

Assim, desejo que a Revolução de Fevereiro tenha um significado, claro, preciso e grande o suficiente para que
todos vejam.

E qual é esse significado? Em resumo, a Revolução de Fevereiro deve ser uma continuação real, uma execução
sincera e honesta daquilo que a Revolução Francesa defendia, deve ser a atualização daquilo que nossos pais
ousaram sonhar. [ Grande concordância.]

Cidadão Ledru-Rollin: Peço permissão para falar.

Cidadão de Tocqueville: É isso que a Revolução de Fevereiro deve ser, nem mais nem menos. A Revolução
Francesa defendia a idéia que, na ordem social, não deve haver classes. Ela nunca incentivou a divisão dos
cidadãos em proprietários e proletários. Não se encontrará essas palavras, carregadas de ódio e guerra, em
nenhum dos grandes documentos da Revolução Francesa. Pelo contrário, ela foi baseada na filosofia de que,
politicamente, não devem existir classes; a Restauração, a Monarquia de Julho, defendiam o oposto. Devemos
permanecer com nossos pais.

A Revolução Francesa, como já disse, não possuía a pretensão absurda de criar uma ordem social que colocava
nas mãos do Estado o controle sobre o destino, o bem estar, a afluência de cada cidadão, que substituía a
altamente questionável “inteligência” do Estado pela inteligência prática e útil dos governados. Ela acreditava
que essa tarefa era grande o suficiente para garantir a cada cidadão esclarecimento e liberdade. [“Excelente”.]
A Revolução teve essa crença firme, nobre, orgulhosa, de que vocês parecem carecer, que é suficiente para
homens corajosos e honestos ter essas duas coisas, esclarecimento e liberdade, e para não pedir nada mais
daqueles que o governam.

A Revolução foi baseada nessa crença. Ela não determinava tempo ou meios de viabilizá-la. É nosso dever
permanecermos com ela e, dessa vez, cuidar para que ela se realize.

Por fim, a Revolução Francesa desejava – e foi isso que a fez não apenas ser beatificada, mas santificada aos
olhos da população – introduzir a caridade na política. Ela concebeu a noção de dever em relação aos pobres,
aos que sofrem, algo mais extenso, mais universal do que qualquer coisa já implementada. É essa idéia que
deve ser recapturada, não, repito, trocando a inteligência individual pela do Estado, mas agindo para ajudar
aqueles que têm necessitades, aqueles que, após ter esgotado seus recursos, seriam jogados à miséria caso
não lhes fosse oferecido auxílio, através de meios que o Estado já possui à sua disposição.

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 34


SOBRE O SOCIALISMO

Essencialmente, é isso que a Revolução Francesa buscava, e é o que nós devemos fazer.

Então, eu pergunto?

Será que isso é socialismo?

Grito da esquerda: Sim! Sim, o socialismo é exatamente isso.

Cidadão de Tocqueville: De forma alguma!

Não, isso não é socialismo, mas cristianismo aplicado à política. E não há nada que...

(Interrupção...)

Cidadão Presidente: Você não pode ser ouvido. É obvio que você não possui a mesma opinião. Você
terá a sua chance de falar da tribuna, mas não interrompa.

Cidadão de Tocqueville: Não há nada que dê aos trabalhadores o direito de fazer reivindicações ao Estado. Não
há nada na Revolução que force o Estado a colocar-se no lugar da do cuidado individual, no lugar do mercado,
no lugar da integridade individual. Não há nada que autorize o Estado a interferir nas questões industriais ou a
impor suas regras à indústria, a tiranizar o indivíduo para governá-lo melhor, ou, como se afirma
audaciosamente, para salvá-lo de si mesmo. Não há nada além do cristianismo aplicado à política.

Sim, a Revolução de Fevereiro deve ser cristã e democrática, mas ela não deve ser, sob qualquer circunstância,
socialista. Essas palavras resumem o que eu penso e encerro aqui o que eu tinha a dizer.

Ordem Livre | Alexis de Tocqueville 35


POR QUE NÃO SOU C ONSERVADOR

POR QUE NÃO SOU CONSERVADOR


F. A. HAYEK

1. O conservadorismo não oferece nenhum objetivo alternativo

Numa época em que a maioria dos movimentos considerados progressistas advoga uma invasão cada vez
maior da esfera da liberdade individual (2), aqueles que prezam a liberdade tendem a resistir a essa invasão
com toda as suas energias. Ao fazê-lo, geralmente se encontram lado a lado com os que costumam resistir às
mudanças. Em questões de política corrente, eles praticamente não têm outra escolha, hoje, senão apoiar os
partidos conservadores. Contudo, embora a posição que tentei definir também seja muitas vezes tida como
“conservadora”, é bem diferente daquela à qual tradicionalmente se costuma atribuir o termo. Uma situação
em que os defensores da liberdade se unem aos verdadeiros conservadores em sua oposição comum a
mudanças que ameaçam igualmente seus ideais diferentes é muito perigosa. Por essa razão, é importante
distinguir claramente a posição que tomamos aqui daquela que sempre foi conhecida – talvez com maior
propriedade – como conservadora. O verdadeiro conservadorismo é uma atitude legítima, provavelmente
necessária, e com certeza bastante difundida, de oposição a mudanças drásticas. Desde a Revolução Francesa,
representa um papel importante na política européia. Até o surgimento do socialismo, o oposto do
conservadorismo era o liberalismo. Este conflito não encontra equivalente na história dos Estados Unidos da
América, porquanto o que na Europa se chamava “liberalismo” aqui representava a tradição comum, sobre a
qual fora constituído o Estado americano: assim, o defensor da tradição americana era um liberal no sentido
europeu (3). A confusão piorou com a recente tentativa de transplantar para a América o tipo europeu de
conservadorismo, que, por ser alheio à tradição americana, assumiu caráter de certo modo singular. E, além
disso, os radicais e socialistas americanos já haviam começado a se denominar “liberais”. Não obstante,
continuarei, por enquanto, a chamar de liberal a posição que defendo e que, acredito, difere tanto do
verdadeiro conservadorismo quanto do socialismo. Contudo, devo esclarecer, desde já, que o faço com
crescente apreensão e que mais tarde terei de considerar qual seria a denominação mais adequada para o
partido da liberdade. Isto ocorre não apenas de o termo “liberal” nos Estados Unidos ser, hoje, causa de
constantes equívocos, como também de, na Europa, o tipo predominante de liberalismo racionalista já muito
tempo abrir caminho para o socialismo.

Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria natureza, o
conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos seguindo. Por resistir às
tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como não indica outro caminho, não pode
impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido invariavelmente deixar-se
arrastar por um caminho que não escolheu. A luta pela supremacia entre conservadores e progressistas só
afeta o ritmo, não o rumo dos acontecimentos contemporâneos, mas, embora seja necessário “frear o curso do
progresso” (4), pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Antes de mais nada, os liberais
devem perguntar não a que velocidade estamos avançando, nem até onde iremos, mas para onde iremos. De
fato, o liberal difere muito mais do coletivista radical dos nossos dias do que o conservador. Enquanto este
geralmente representa uma versão moderada dos preconceitos de seu tempo, o liberal dos nossos dias deve
opor-se, de maneira muito mais positiva, a alguns dos conceitos básicos que a maioria dos conservadores
compartilha com os socialistas.

2. A relação triangular dos partidos

O quadro geralmente apresentado da posição relativa dos três partidos contribui muito mais para confundir do
que para esclarecer suas verdadeiras relações. Habitualmente a representação é a de posições diferentes numa
linha imaginária, com os socialistas à esquerda, os conservadores à direita e os liberais mais ou menos ao
centro. Nada mais errôneo. Se utilizássemos um diagrama, a figura mais apropriada seria a de um triângulo,
com os conservadores ocupando um ângulo, os socialistas puxando para o segundo e os liberais para o
terceiro. Contudo, como os socialistas há muito tempo exercem maior pressão, o que ocorreu foi que os
conservadores tenderam a ser arrastados pelo pólo socialista mais que pelo pólo liberal e, sempre que lhes

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convinha, adotaram as idéias que a propaganda radical fazia parecer respeitáveis. Comumente foram os
conservadores que fizeram mais concessões ao socialismo, chegando mesmo a empunhar suas bandeiras.
Defensores da política de centro (5), desprovidos de objetivos próprios, os conservadores sempre se pautaram
pelo princípio de que a verdade está entre os extremos – e conseqüentemente mudam sua posição toda vez
que um movimento mais radical surge em qualquer um dos lados.

A posição que em determinada época podemos definir corretamente como conservadora depende, portanto,
do rumo das tendências existentes no momento. Como, nessas últimas décadas, a evolução tem seguido em
geral o rumo do socialismo, pode parecer que tanto conservadores quanto liberais se tenham preocupado
basicamente em freá-la. Contudo, a verdade é que, fundamentalmente, o liberalismo quer tomar outro
caminho, e não permanecer parado. Embora hoje possa, às vezes, subsistir a impressão contrária, porque
houve uma época em que o liberalismo era mais amplamente aceito e alguns de seus objetivos estavam mais
próximos de ser alcançados, nunca foi uma doutrina retrógrada. Jamais existiu período em que os liberais
tivessem encontrado sua realização plena e em que o liberalismo não esperasse um aperfeiçoamento ainda
maior das instituições. O liberalismo não é contrário à evolução e à mudança; e, nos casos em que
transformações espontâneas são asfixiadas pelo controle governamental, advoga profundas reformas na
política de governo. No que diz respeito à maioria das atividades governamentais, no mundo de hoje, os
liberais não têm por que preservar a situação como está. Na verdade, o liberal acredita que o mais urgente e
necessário em quase todo o mundo seja a eliminação completa dos obstáculos à evolução espontânea.

O fato de nos Estados Unidos ainda ser possível defender a liberdade individual defendendo as instituições
mais antigas não nos deve impedir de perceber a diferença entre liberalismo e conservadorismo. Para o liberal
estas instituições são preciosas não porque existem já muito tempo, ou porque são americanas, mas porque
correspondem aos ideais que tanto preza.

3. A diferença básica entre conservadorismo e liberalismo

Antes de considerar os pontos principais nos quais a atitude liberal se opõe de maneira definitiva à atitude
conservadora, devo salientar que os liberais poderiam ter aprendido e se beneficiado muito com as obras de
alguns pensadores conservadores. Devemos ao seu dedicado e reverente estudo do valor de algumas
instituições análises profundas (pelo menos fora da área econômica), que constituem verdadeiras
contribuições à nossa compreensão de uma sociedade livre. Por mais reacionários que possam ter sido na
política homens como Coleridge, Bonald, De Maistre, Justus Möses ou Donoso Cortès, eles mostraram uma
compreensão do significado das instituições que evoluíram espontaneamente, como por exemplo, o idioma, o
direito, a moral e as convenções, que antecipou as perspectivas científicas modernas, que poderia ter sido útil
aos liberais. Mas a admiração dos conservadores pela evolução espontânea geralmente se aplica apenas ao
passado. Em geral, falta-lhes a coragem de aceitas as mudanças não planejadas das quais surgirão novos
instrumentos da realização humana.

Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual as atitudes liberais e conservadoras diferem radicalmente.
Como muitas vezes os escritores conservadores reconheceram, uma das principais características da atitude
conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em relação ao novo enquanto tal (6), ao passo
que a posição liberal se baseia na coragem e na confiança, na disposição de permitir que as transformações
sigam seu curso, mesmo quando não podemos prever aonde nos levarão. Não haveria por que contestar os
conservadores se eles simplesmente não gostassem de mudanças muito rápidas nas instituições e na política
de governo; de fato, neste caso, justifica-se o cuidado e o lendo progresso. Mas os conservadores tendem a
utilizar os poderes do governo para impedir as mudanças ou limitar seu âmbito àquilo que agrada às mentes
mais tímidas. Ao contemplar o futuro, carecem de fé nas forças espontâneas de ajustamento, que levam os
liberais a aceitar mudanças sem apreensão, mesmo sem saber como as adaptações necessárias se efetivarão.
Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo econômico, as forças auto-
reguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os necessários ajustamentos às novas condições, embora
ninguém possa prever como farão isso no caso particular. Talvez não exista um fator que contribui mais para as
pessoas freqüentemente se mostrarem relutantes em deixar que o mercado funcione do que sua incapacidade
de conceber como, sem controle deliberado, pode surgir o equilíbrio necessário entre a oferta e a procura,

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entre as importações e as exportações, e assim por diante. O conservador só se sente seguro e satisfeito
quando tem a garantia de que alguma sabedoria superior observa e supervisiona as mudanças, somente
quando sabe que já uma autoridade encarregada de verificar que elas se dêem dentro da “ordem”.

Esse temor em confiar em forças sociais incontroladas está intimamente ligado a duas outras características do
conservadorismo: sua paixão pela autoridade e sua falta de compreensão das forças econômicas. Como não
confia nem em teorias abstratas nem em princípios gerais (7), não compreende as forças espontâneas nas
quais se baseia uma política de liberdade nem dispõe de bases para formular princípios de política de governo.
Para os conservadores, a ordem aparece como o resultado da atenção contínua da autoridade, à qual, para
tanto, se deve permitir tomar qualquer medida necessária em circunstâncias especificar, sem que se precise
ater-se a uma norma rígida. A aceitação de princípios pressupõe uma compreensão das forças gerais que
coordenam as ações humanas na sociedade; porém, é exatamente de tal teoria da sociedade e em especial da
teoria do mecanismo econômico que o conservadorismo evidentemente carece. O conservadorismo foi
completamente incapaz de elaborar um conceito geral sobre a maneira pela qual a ordem social consegue
sustentar-se, e seus modernos defensores, ao tentar construir uma base teórica, quase sempre acabaram
apelando quase exclusivamente para autores que se consideravam liberais. Macaulay, Tocqueville, Lord Acton
e Lecky certamente se consideravam liberais e com justiça; e mesmo Edmund Burke permaneceu um Whig da
velha guarda até o fim e estremeceria à simples idéia de ser considerado um Tory.

Voltemos, porém, ao assunto principal, que é a característica complacência dos conservadores com os atos da
autoridade estabelecida e sua preocupação primordial de que essa autoridade não seja enfraquecida e não de
que seu poder seja mantido dentro de certos limites. Isto não se concilia com a preservação da liberdade. Em
termos gerais, poderíamos afirmar que o conservador não se opõe à coerção ou ao poder arbitrário, desde que
utilizador para fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for confiado a homens probos, não
deve ser limitado por normas demasiado rígidas. Como se trata de indivíduo essencialmente oportunista e
desprovido de princípios, ele espera que os bons e os sábios governem, não meramente pelo exemplo, como
todos queremos, mas por uma autoridade a eles conferida e por eles exercida (8). Como o socialista, o
conservador preocupa-se menos com o problema de como deveriam ser limitados os poderes do governo do
que com o de quem irá exercê-los; e, como o socialista, também se acha no direito de impor às outras pessoas
os valores nos quais acredita. Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero com isso afirmar
que ele careça de convicção moral. O conservador típico é, de fato, geralmente um homem de convicções
morais muito fortes. O que quero dizer é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover,
junto com pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual todos possam seguir
suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que possibilita a coexistência de diferentes sistemas de
valores, a qual, por sua vez, permite construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força. Sua
aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não concordamos. Há muitos valores
conservadores que me atraem mais do que muitos valores socialistas, porém a importância que um liberal
atribui a objetivos específicos não lhe serve de justificativa suficiente para obrigar outros a submeter-se a eles.
Não duvido que alguns de meus amigos conservadores ficarão chocados com as “concessões” às opiniões
modernas que eu teria feito na Parte III deste livro. Contudo, embora possa não gostar, tanto quanto eles, de
algumas das medidas mencionadas e até votasse contra elas, não conheço nenhum princípio geral ao qual
recorrer para persuadir os que têm opinião diferente de que tais medidas são inaceitáveis na sociedade que eu
e eles desejamos. Para conviver com os outros é preciso muito mais do que fidelidade aos nossos objetivos
concretos. É necessário um comprometimento intelectual com um tipo de ordem em que, até nas questões
que um indivíduo considera fundamentais, os demais têm o direito de buscar objetivos diferentes.

É por esse motivo que para o liberal os ideais morais, bem como os ideais religiosos, não podem ser objeto de
coerção, enquanto conservadores e socialistas não reconhecem esses limites. Às vezes, penso que o atributo
mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do conservadorismo, quanto do socialismo, é a idéia de
que convicções morais quanto a questões de conduta que não interferem diretamente com a esfera individual
protegida pela lei não justificam a coerção dos demais. Isso também pode explicar por que parece muito mais
fácil para o socialista arrependido encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores do que entre os
liberais.

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Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de que, em qualquer sociedade, há indivíduos
reconhecidamente superiores, cujos valores, padrões e posições, sua herança espiritual, precisariam ser
protegidos, e que deveriam exercer maior influencia nos assuntos públicos do que os demais. Obviamente, o
liberal não nega que existam pessoas superiores; ele não é um defensor do igualitarismo. O que ele nega é que
qualquer um possa ter a autoridade de decidir quem são essas pessoas superiores. Enquanto os conservadores
tendem a defender uma determinada hierarquia estabelecida e pretendem que a autoridade proteja o status
daqueles que eles prezam, os liberais acreditam que não haja respeito por valores estabelecidos que justifique
o recurso ao privilégio ou ao monopólio ou a qualquer poder coercitivo do Estado para proteger estas pessoas
das forças da transformação econômica. Embora o liberal esteja plenamente cônscio do importante papel que
as elites culturais e intelectuais representaram no avanço da civilização, também crê que essas elites devem
dar provas da capacidade de manter sua posição obedecendo às mesmas normas aplicadas a todos os outros.

Intimamente ligada a isso é a atitude comum dos conservadores em relação à democracia. Já deixei claro
anteriormente que não considero o governo da maioria um fim em si mesmo, mas apenas um meio, ou talvez
mesmo a menos nociva das formas de governo existente. Mas penso que os conservadores enganam a si
próprios quando atribuem à democracia todos os males de nosso tempo. O mal maior é o governo ilimitado, e
ninguém tem o direito de fazer uso de um poder ilimitado (9). Os poderes de que a democracia moderna
dispõe seriam ainda mais intoleráveis nas mãos de alguma pequena elite.

Sem duvida alguma, foi somente quando o poder passou para as mãos da maioria que se julgou desnecessário
continuar limitando o poder do Estado. Nesse sentido, democracia e Estado com poderes ilimitados estão
intimamente ligados. Inaceitável não é a democracia, e sim o Estado com poderes ilimitados, e não vejo por
que os indivíduos não devam ter o direito de aprender a limitar o âmbito do governo da maioria bem como o
de qualquer outra forma de governo. Seja como for, as vantagens da democracia como método de mudança
pacífica e de educação política parecem tão imensas, se comparadas com as de qualquer outro sistema, que
não consigo simpatizar com a corrente antidemocrática do conservadorismo. Não é quem governa, mas o grau
de poder do governo, que me parece ser o problema essencial.

Está claramente demonstrado na esfera econômica que a oposição dos conservadores a um exagerado
controle governamental não constitui uma questão de princípio, mas visa aos objetivos específicos do governo.
Os conservadores geralmente se opõem às medidas coletivistas e dirigistas na área industrial e, neste caso, os
liberais freqüentemente encontrarão neles aliados. Mas, ao mesmo tempo, os conservadores adoram
comumente uma atitude protecionista e já, muitas vezes, apoiaram medidas socialistas na agricultura. De fato,
embora as restrições hoje feitas à indústria e ao comércio sejam principalmente conseqüência de opiniões
socialistas, as restrições igualmente importantes na área da agricultura foram em geral introduzidas pelos
conservadores, em época anterior. E, em sua tentativa de desacreditar a livre iniciativa, muitos líderes
conservadores rivalizaram com os socialistas (10).

4. A fraqueza do conservadorismo

Já me referi às diferenças entre conservadorismo e liberalismo no campo puramente intelectual; pretendo,


porém, retomar o tema porque, nele, a típica atitude do conservadorismo não apenas constitui uma séria
fraqueza como também tende a prejudicar qualquer movimento que a ele se alie. Os conservadores
instintivamente acreditam que, mais do que qualquer outro fator, são as novas idéias que ocasionam as
mudanças. Contudo, corretamente do seu ponto de vista, o conservadorismo teme novas idéias porque não
dispõe de princípios próprios para opor a elas; e, por desconfiar da teoria e faltar-lhe imaginação quanto a
qualquer conceito que a experiência ainda não tenha comprovado, o conservadorismo pauta seu
comportamento pelo conjunto de idéias herdadas em dado momento. E, como geralmente não acredita no
poder do debate, seu último recurso é, em geral, alegar uma sabedoria superior, fundamentada em uma
virtude elevada que ele próprio se atribui.

Este contraste se manifesta mais claramente nas diferentes atitudes de ambas as tradições em relação ao
avanço do conhecimento. Embora o liberal não considere toda mudança um progresso, ele encara o avanço do
conhecimento como uma das metas principais do esforço humano e confia em que lhe proporcione uma

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solução gradual para os problemas e dificuldades que esperamos poder resolver. Sem preferir o novo apenas
por ser novo, o liberal está consciente de que é da essência da realização humana produzir o novo; e está
preparado para conviver com o novo conhecimento, goste ou não de seus efeitos imediatos.

Pessoalmente, acho que o aspecto mais reprovável da atitude conservadora é sua tendência a rejeitar novos
conhecimentos, ainda que bem fundamentados, porque desaprova algumas das conseqüências que
aparentemente decorrem deles – ou, mais francamente, seu obscurantismo. Não nego que os cientistas, como
qualquer pessoa, são dados a modismos e excentricidades e que devemos ser cautelosos em aceitas as
conclusões às quais os levam suas teorias mais recentes. Mas os motivos de nossa relutância precisam ser
racionais e não devem ser condicionados pela consternação que sentimos quando as novas teorias abalam
nossas mais caras convicções. Sou pouco paciente com os que se opõem, por exemplo, à teoria da evolução ou
às chamadas explicações “mecanicistas” dos fenômenos da vida, simplesmente por causa de algumas
conseqüências morais que, a princípio, parecem decorrer dessas teorias, e ainda menos paciente com os que
consideram irreverente e ímpio indagar a respeito de certas questões. Ao recusar-se a enfrentar os fatos, o
conservador contribui para enfraquecer sua própria posição. Freqüentemente, as conclusões que a
mentalidade racionalista tira das novas interpretações científicas de modo algum decorrem delas. Contudo,
somente se tomarmos parte da avaliação das conseqüências da novas descobertas saberemos se elas se
adaptam ou ao à nossa visão de mundo, e, em caso afirmativo, como se adaptam. Caso se comprove que
nossas convicções morais dependem de pressupostos factuais errados, não seria moral defender tais
convicções recusando-nos a reconhecer os fatos.

Aliada à desconfiança dos conservadores em relação a tudo que é novo e incomum está sua hostilidade ao
internacionalismo e sua tendência a um nacionalismo exagerado. Isto também contribui para enfraquecer sua
posição na luta das idéias, e não pode alterar o fato de as concepções que estão modificando nossa civilização
não respeitarem fronteiras. Entretanto, a recusa de estudar novas idéias acaba simplesmente privando o
indivíduo do poder de opor-se efetivamente a elas quando necessário. A evolução das idéias é um processo
universal e somente os que participam ativamente dos debates poderão exercer uma influência significativa.
Não é válido argumentar que uma idéia é antiamericana, antibritânica ou antigermanica, tampouco um ideal
errôneo ou perverso é melhor somente por ter sido concebido por um de nossos compatriotas.

Muito mais poderia dizer da estreita relação entre conservadorismo e nacionalismo, mas não me deterei na
questão porque pode parecer que minha posição me impede de simpatizar com qualquer forma de
nacionalismo. Acrescentarei apenas que normalmente é a tendência nacionalista que leva o conservadorismo a
se aproximar do coletivismo: é muito pequena a distância que vai entre pensar em termos de “nossa” indústria
ou “nossos” recursos e exigir que esse patrimônio nacional seja administrado de acordo com o interesse
nacional. Contudo, quanto a esse aspecto, o liberalismo do continente europeu derivado da Revolução
Francesa praticamente não difere do conservadorismo. Não é necessário dizer que esse tipo de nacionalismo é
plenamente compatível com um profundo respeito pelas tradições nacionais. Porém, o fato de eu preferir e
mesmo reverenciar algumas tradições de minha sociedade não precisa obrigar-me a ser hostil a tudo que seja
incomum e diferente.

Somente à primeira vista parecer paradoxal que o antiinternacionalismo conservador seja tão freqüentemente
associado ao imperialismo. Na verdade, quanto mais uma pessoa não gosta do que é diferente e julga
superiores os seus métodos, mais tenderá a considerar sua missão “civilizar” os demais (11), não pelas relações
livres e voluntárias preferidas pelos liberais, mas proporcionando-lhes as graças de um governo eficiente. É
significativo que nesse aspecto habitualmente encontremos os conservadores de mãos dadas com os
socialistas, contra os liberais, não apenas na Inglaterra, conde os Webb (12) e seus fabianos (13) eram
francamente favoráveis ao imperialismo, ou na Alemanha, onde o socialismo de Estado e o expansionismo
colonial caminhavam lado a lado e encontravam apoio do mesmo grupo de “socialistas de cátedra”, mas
também nos Estados Unidos, onde, até durante o mandato de Theodore Roosevelt, se observou que “os
jingoístas e os reformadores sociais (14) se uniram e formaram um partido político que ameaçou tomar o
governo e utilizá-lo para seu programa de paternalismo cesarista, perigo que agora parece ter sido conjurado
somente pelo fato de que os outros partidos adotaram seu programa abrandando seu conteúdo e forma” (15).

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5. Racionalismo, anti-racionalismo e irracionalismo

Há um aspecto, porém, que podemos afirmar que o liberal ocupa uma posição de centro, a meio caminho
entre o socialista e o conservador: ele está tão distante do racionalismo primitivo do socialista, que pretende
reconstruir todas as instituições de acordo com um padrão prescrito por sua razão individual, quanto do
misticismo ao qual o conservador freqüentemente precisa recorrer. O que defini como a posição liberal tem em
comum com o conservadorismo uma desconfiança em relação à razão, na medida em que o liberal está muito
consciente de que não sabemos todas as respostas e não tem certeza de que as respostas de que dispõe sejam
de fato as certas ou mesmo se poderemos ter respostas para tudo. Além disso, o liberal não se recusa a buscar
o apoio de quaisquer hábitos ou instituições não racionais que revelaram válidos. O liberal difere do
conservador na disposição de aceitar esta ignorância e de admitir que sabemos muito pouco, sem reivindicar
uma autoridade de origem supranatural do conhecimento sempre que rua razão falhar. Deve-se admitir que o
liberal, em alguns casos, é fundamentalmente um cético (16) – mas aparentemente é necessário certo grau de
desconfiança para deixar que os outros busquem sua felicidade à sua maneira e para defender com coerência
esta tolerância, que é uma característica essencial do liberalismo.

Isto não significa necessariamente que um liberal não tenha uma convicção religiosa. Ao contrário do
racionalismo da Revolução Francesa, o verdadeiro liberalismo não é contrário à religião, e apenas posso
deplorar a militância anti-religiosa, essencialmente não liberal, que animou grande parte do liberalismo no
continente europeu no século XIX. No entanto, tal característica não é essencial ao liberalismo, como o
demonstram claramente seus ascendentes ingleses, os antigos Whigs, que, ao contrário, talvez simpatizem
demais com uma determinada crença religiosa. Nesse aspecto, o que distingue o liberal do conservador é que,
por mais profundas que sejam suas convicções espirituais, ele nunca se considerará no direito de impô-las aos
demais e o fato de, para ele, o espiritual e o temporal serem esferas distintas que não devem ser confundidas.

6. A denominação do partido da liberdade

O que afirmei até agora deveria bastar para explicar por que não me considero um conservador. Muitos
acharão, contudo, que essa posição dificilmente corresponde ao que costumavam chamar de “liberal”.
Portanto, verificamos agora se esta denominação ainda é adequada ao partido da liberdade. Já observei que,
embora durante toda minha vida eu me tenha definido um liberal, nos últimos tempos tenho feito isto com
crescente apreensão – não apenas porque nos Estados Unidos o termo liberal dá margem a constantes
equívocos, mas também porque me venho tornando cada vez mais consciente da grande distância existente
entre a minha posição e a do liberalismo racionalista do continente europeu ou mesmo a do liberalismo inglês
dos utilitaristas.

Ficaria extremamente orgulhoso de me definir um liberal, se liberalismo ainda tivesse o significado que lhe
atribuiu um historiador inglês que, em 1827, falava da revolução de 1688 como o “triunfo dos princípios que,
na linguagem de hoje, são chamados liberais ou constitucionais” (17), ou se ainda pudéssemos, com Lord
Acton, classificar Burke, Macaulay e Gladstone como os três maiores liberais, ou se fosse ainda possível, com
Harold Laski, considerar Tocqueville e Lord Acton “os liberais mais autênticos do século XIX” (18). Porém, por
mais que me sinta tentado a julgar o liberalismo desses pensadores um verdadeiro liberalismo, devo
reconhecer que os liberais do continente europeu, em sua maioria, defenderam idéias às quais aqueles
pensadores se opuseram firmemente e que foram motivados mais pelo desejo de impor ao mundo um padrão
racional preconcebido do que pela vontade de favorecer uma evolução espontânea. O mesmo ocorre como o
movimento que se denominou liberalismo na Inglaterra, pelo menos desde os tempos de Lloyd George.

É, portanto, necessário reconhecer que o que chamei de “liberalismo” pouca relação tem com qualquer
movimento político que hoje assim se denomina. Também se pode questionar se as associações históricas
evocadas atualmente por esse termo favorecem o êxito de qualquer movimento. É possível discordar quanto à
conveniência de, em tais circunstâncias, tentarmos resgatar o termo daquilo que consideramos seu emprego
incorreto. Pessoalmente, acredito cada vez mais que utilizá-lo sem longas explicações gera enorme confusão e
que, como rótulo, se tornou mais obstáculo do que força motriz.

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Nos Estados Unidos, onde se tornou quase impossível usar o termo “liberal” no sentido em que o utilizei,
emprega-se em seu lugar o termo “libertário”. Talvez esteja aí a resposta; no entanto, de minha parte,
considero-a particularmente sem atrativo. Na minha opinião, tem um excessivo sabor artificial, de sucedâneo.
Eu preferiria um termo que definisse o partido da vida, o partido que apóia o crescimento livre e a evolução
espontânea. Mas, por mais que me esforçasse, não consegui encontrar um termo descritivo e confiável.

7. Recorrendo aos velhos “Whigs”

Caberia recordar, entretanto, que, quando os ideais que venho tentando reafirmar se difundiram pela primeira
vez no mundo ocidental, o partido que os representava tinha um nome famoso. Foram os ideais dos Whigs
ingleses que inspiraram o que mais tarde ficou sendo conhecido em toda a Europa como o movimento liberal
(19) e deram origem aos conceitos que os colonizadores americanos levaram consigo e que os guiaram em sua
luta pela independência e no estabelecimento de sua Constituição (20). De fato, até o momento em que o
caráter desta tradição foi alterado pelas idéias oriundas da Revolução Francesa, com sua democracia totalitária
e suas inclinações socialistas, o partido da liberdade era conhecido pelo nome Whig.

Esse termo morreu no país em que nasceu, em parte porque, durante algum tempo, os princípios que ele
representava deixaram de ser distintivos de apenas um partido e, em parte, porque os homens que se
denominavam Whigs não permaneceram fiéis a seus princípios. Os próprios partidos Whig do século XIX, tanto
na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos, acabaram fazendo cair em descrédito o nome do partido entre os
radicais. Todavia, ainda é verdade que, como o liberalismo tomou o lugar do whiguismo somente depois que o
movimento pela liberdade absorveu o racionalismo grosseiro e militante da Revolução Francesa e como nossa
tarefa em grande parte é libertar essa tradição das influências de um exagerado racionalismo, nacionalismo e
socialismo que nela penetraram, whiguismo é historicamente o nome correto para designar as idéias nas quais
acredito. Quanto mais aprendo a respeito da evolução das idéias, mais tenho consciência de que sou um
impenitente Whig da velha guarda.

O fato de me confessar um velho Whig obviamente não significa que pretendo voltar à situação em que nos
encontrávamos no fim do século XVII. Um dos propósitos deste livro foi mostrar que as doutrinas, formuladas
pela primeira vez naquela época, continuaram a crescer e a se desenvolver até cerca de setenta ou oitenta
anos atrás, embora já tivessem deixado de constituir o objetivo principal de um partido específico. Desde
então, aprendemos muitas noções que nos deveriam permitir reafirmar aquelas doutrinas de maneira mais
satisfatória e eficaz. Entretanto, embora exijam uma reformulação à luz de nosso conhecimento atual, os
princípios básicos permanecem os mesmos dos velhos Whigs. Indubitavelmente, a história mais recente do
partido com esta denominação levou alguns historiadores a se perguntar se de fato existiu um corpo de
princípios Whig; no entanto, só posso concordar com Lord Acton em que, embora alguns “patriarcas da
doutrina gozassem de péssima fama, o conceito de uma lei superior, acima dos códigos municipais, com a qual
se iniciou o whiguismo, constitui o feito supremo dos ingleses e seu grande legado para a nação” (21), e,
podemos acrescentar, para o mundo. Trata-se da doutrina sobre a qual se assenta a tradição comum dos países
anglo-saxônios. É a doutrina da qual o liberalismo do continente europeu absorve tudo que ela tem de mais
valioso. É a doutrina em que se fundamenta o sistema americano de governo. Em sua mais pura forma, é
representada nos Estados Unidos não pelo radicalismo de Jefferson, nem pelo conservadorismo de Hamilton
ou mesmo de John Adams, mas pelas idéias de James Madison, o “pai da Constituição” (22).

Não sei se ressuscitar esse velho nome será uma medida prática. O fato de que para o povo, tanto nos países
anglo-saxônios, como nos demais, hoje, o termo não possui conotações definidas talvez seja mais uma
vantagem do que uma desvantagem. Para as pessoas que conhecem a história das idéias, é certamente a única
denominação que expressa o significado da tradição. E, se whiguismo define o que os verdadeiros
conservadores e mais ainda os inúmeros socialistas que se tornaram conservadores mais cordialmente odeiam,
isto revela um instinto sadio de sua parte. De fato, esta palavra define o único conjunto de ideais que sempre
se opôs a todo poder arbitrário.

8. Princípios e possibilidades práticas

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Pode-se indagar se o nome do partido da liberdade é realmente tão importante. Num país como os Estados
Unidos, que de modo geral ainda tem instituições livres e onde, portanto, a defesa daquilo que existe é quase
sempre a defesa da liberdade, talvez não seja prejudicial os defensores da liberdade se intitularem
conservadores, embora, mesmo aqui, sua associação com indivíduos de natureza conservadora muitas vezes
represente motivo de constrangimento. Até quando indivíduos apóiam as mesmas medidas ou instituições,
deve-se perguntar se eles as aprovam simplesmente porque existem ou porque são intrinsecamente boas. Não
se deve permitir que sua resistência comum à tendência coletivista nos impeça de compreender que a crença
na liberdade integral se baseia essencialmente numa atitude de corajosa aceitação do futuro e não em uma
atitude nostálgica em relação ao passado, tampouco em uma admiração romântica por aquilo que foi.

É, porém, absolutamente imperativa a necessidade de uma distinção clara quando, como ocorre em vários
países da Europa, os conservadores já aceitaram em grande parte o credo coletivista – que já tanto tempo
domina a política, que muitas de suas instituições já são aceitas como um fato consumado, constituindo motivo
de orgulho para os partidos “conservadores” que as criaram (23). Nesse caso, os que acreditam na liberdade
não podem evitar o conflito com os conservadores e são obrigados a adotar uma atitude basicamente radical
contra os preconceitos populares, as posições de poder estabelecidas e os privilégios profundamente
arraigados. Tolices e abusos não mudam sua essência apenas porque se tornaram princípios de política de
governo consagrados pelo tempo.

Embora a máxima quieta non movere possa, em algumas ocasiões, conter muita sabedoria para o estadista,
não pode satisfazer um filósofo político. O filósofo pode desejar que certa medida seja com cautela, e não
antes que a opinião pública esteja preparada a apoiá-la; mas não pode aceitar medidas apenas porque
sancionadas pela opinião pública corrente. Num mundo em que a necessidade básica se tornou, como no início
do século XIX, libertar o processo de crescimento espontâneo dos obstáculos e das dificuldades criados pela
insensatez humana, as esperanças do filósofo político devem concentrar-se na persuasão e na obtenção do
apoio daqueles que por natureza são “progressistas”, aqueles que, embora atualmente busquem mudanças na
direção errada, pelo menos estão dispostos a examinar criticamente o que existe e a modificá-lo sempre que
necessário.

Espero não ter levado o leitor a interpretar mal a palavra “partido”, que utilizei para designar grupos de
pessoas que defendem um conjunto de princípios intelectuais e morais. Não foi objetivo deste livro tratar da
política partidária de um país ou outro.

O filósofo político deverá deixar que o “animal astuto e traiçoeiro, vulgarmente chamado de estadista, ou
político, cujas opiniões são fruto da momentânea flutuação dos fatos” (24), resolva a questão de como os
princípios que tentei reconstituir juntando os fragmentos de uma tradição podem traduzir-se em um programa
de atração popular. A tarefa do filósofo político é influenciar a opinião pública e não organizar o povo para a
ação. E ele terá êxito somente se não se voltar para aquilo que é politicamente possível agora, mas defender
com firmeza “os princípios gerais duradouros” (25).

Nesse sentido, duvido que possa existir uma filosofia política conservadora. O conservadorismo pode muitas
vezes representar um conceito útil e prático, mas não nos proporciona nenhum princípio orientador capaz de
influenciar a evolução futura.

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POR QUE NÃO SOU C ONSERVADOR

NOTAS
(1) – A epígrafe do posfácio foi extraída de Acton, History of Freedom, página 1.

(2) – Isto ocorre há mais de um século e, já em 1855, J. S. Mill dizia (ver meu livro John Stuart Mill and Harriet
Taylor [Londres e Chicago, 1951], página 216) que “quase todos os projetos dos reformadores sociais de hoje
são realmente liberticidas”.

(3) – B. Crick, “The Strange Quest for na American Conservatism”, Review of Politics, XVII (1955), 365, afirma
com razão que “o Americano normal que se intitula ‘conservador’ é na verdade liberal”. Parece que a
relutância desses conservadores em recorrer a essa denominação, mais adequada, só começou com o abuso do
termo durante a época do “New Deal”.

(4) – A expressão foi empregada por R. G. Collingwood, The New Leviathan (Oxford: Oxford University Press,
1942), página 209.

(5) – O atual primeiro-ministro britânico Harold Macmillan escolheu este título para seu livro programático The
Middle Way (Londres, 1938).

(6) – Ver Lord Hugh Cecil, Conservatism (“Home University Library” [Londres, 1912]), página 9: “O
conservadorismo natural… é uma atitude contrária à mudança, que decorre em parte de certa desconfiança em
relação ao desconhecido”.

(7) – Ver a reveladora descrição que o conservador K. Feilling faz de si mesmo em Sketches in Nineteenth
Century Biography (Londres, 1930), página 174: “A direita, como um todo, tem horror a idéias, pois não é o
homem prático, nas palavras de Disraeli, ‘aquele que põe em uso os erros de seus predecessores’? Por longos
períodos de sua história, os direitistas indiscriminadamente resistiram a todos os avanços e, ao reclamar o
respeito pelos antepassados, muitas vezes costumam reduzir a opinião ao preconceito individual do passado.
Sua posição se tornará ainda mais fácil de ser defendida, porém mais complexa, se acrescentarmos que esta
direita domina incessantemente a esquerda; que ela vive da constante inoculação de idéias liberais e desta
forma sofre as conseqüências de uma situação de compromisso que nunca chega a ser definida.”

(8) – Espero que me desculpem por estar repetindo aqui as palavras com as quais, em outra situação, defini
uma importante questão: “O principal mérito do individualismo que [Adam Smith] e seus contemporâneos
defenderam é aquele de constituir um sistema no qual os homens maus podem ocasionar um mínimo de
prejuízo. Trata-se de um sistema social que não depende para seu funcionamento de encontrarmos bons
homens para dirigi-lo, nem de que todos os homens se tornem melhores do que são, mas de um sistema que
utiliza homens em toda a sua variedade e complexidade, algumas vezes bons e algumas vezes maus, algumas
vezes inteligentes e muitas vezes imbecis” (Individualism and Economic Order [Londres e Chicago, 1948],
página 11).

(9) – Cf. Lord Acton em Letters of Lord Acton to Mary Gladstone, ed. H. Paul (Londres, 1913), página 73: “O
perigo não é que uma classe não tenha capacidade de governar. Nenhuma classe tem capacidade de governar.
A lei da liberdade tende a abolir o predomínio de uma raça sobre outra, de um credo sobre outro, de uma
classe social sobre outra”.

(10) – J. R. Hicks falou com propriedade, quanto a esse assunto, da semelhança entre as “caricaturas do jovem
Disraeli, de Marx e de Goebbels” (“The Pursuit of Economic Freedom”, What We Defend, Ed. E. F. Jacob
(Oxford [Oxford University Press, 1942], página 96). Sobre o papel dos conservadores a esse respeito ver
também a minha Introdução à obra Capitalism and the Historians, por mim editada (Chicago: University of
Chicago Press, 1954), páginas 19 e seguintes.

(11) – C.f. J. S. Mill, On Liberty, ed. R. B. McCallum (Oxford, 1946), página 83: “Na minha opinião, nenhuma
comunidade tem o direito de obrigar outra a se civilizar”.

Ordem Livre | F. A. Hayek 44


POR QUE NÃO SOU C ONSERVADOR

(12) – N.T. – Sidney e Bratrice Webb.

(13) – N.T. – Fabian Society – organização socialista fundada em 1884 na Inglaterra.

(14) – N.T. – Referência ao “movimento progressista”, que se iniciou em 1910 e se cristalizou em 1911, com a
fundação da Liga Nacional Republicana Progressista, base de sustentação da candidatura do ex-presidente
Theodore Roosevelt, dissidente republicano e líder dos progressistas, à presidência dos Estados Unidos na
campanha de 1912.

(15) – J. W. Burgess, The Reconciliation of Government with Liberty (Nova Iorque, 1915), página 380.

(16) – Cf. Learned Hand, The Spirit of Liberty, Ed I. Dilliard (Nova Iorque, 1923), página 190: “O espírito da
liberdade é aquele que não tem total convicção de estar certo”. Ver também a famosa frase de Oliver Cromwell
em sua Letter to the Gerneral Assembly of the Church of Scotland, 3 de agosto de 1650: “Eu vos suplico, pelas
entranhas de Cristo, pensai se não estaríeis errados”. É significativo que essa seja provavelmente a frase mais
conhecida do único “ditador” da história britânica!

(16) – H. Hallam, Constitutional History, 1827 (ed. “Everyman”), III, 90. Segundo se afirma freqüentemente, o
termo “liberal” deriva do nome do partido dos liberales espanhóis no início do século XIX. No entanto, estou
mais inclinado a acreditar que derive do termo utilizado por Adam Smith, por exemplo em W. o. N., II, 41: “o
sistema liberal de livre exportação e livre importação” e página 216: “permitir que cada homem persiga seu
interesse pessoal à sua maneira, baseado na idéia liberal de igualdade, liberdade e justiça.”

(17) – Lord Acton em Letters to Mary Gladstone, página 44. Cf. também sua opinião a respeito de Tocqueville
em Lectures on the French Revolution (Londres, 1910), página 357: “Tocqueville era um Liberal da mais pura
cepa – um liberal e nada mais, profundamente desconfiado da democracia e seus congêneres, igualdade,
centralização e utilitarismo”. Também em Nineteenth Century, XXXIII (1893), 885. A afirmação de H. J. Laski
ocorre em “Alexis de Tocqueville and Democracy”, em The Social and Political Ideas of Some Representative
Thinkers of the Victorian Age, ed. F. J. C. Hearnshaw (Londres, 1933), página 100, onde ele diz: “Penso que é
possível entender sua posição (Tocqueville) e a de Lord Acton a respeito do poder total considerando que eram
os liberais mais autênticos do século XIX”.

(18) – Já no começo do século XVIII, um observador inglês afirmava: “Praticamente nunca vi um estrangeiro
vivendo na Inglaterra, fosse ele de origem holandesa, alemã, francesa, italiana ou turca, que não se tornasse
Whig em pouco tempo, depois de conviver conosco” (Citado por G. H. Guttridge, English Wiggism and the
American Revolution [Berkeley: University of California Press, 1942], página 3).

(19) – Nos Estados Unidos, no século XIX, o uso do termo Whig infelizmente apagou da memória o fato de que
este mesmo termo, no século XVIII, representava os princípios básicos que pautaram a revolução,
conquistaram a independência e moldaram a Constituição. Foi nas sociedades Whig que o jovem James
Madison e John Adams desenvolveram seus ideais políticos. (cf. E. M. Burns, James Madison [New Brunswick,
N. J.: Rutgers University Press, 1938], página 4); foram os princípios Whig que, como Jefferson diz, orientaram
todos os juristas que constituíam a grande maioria dos signatários da Declaração da Independência e dos
membros da Comissão Constitucional (ver Writings of Thomas Jefferson [“Memorial Ed.” (Washington, 1905)],
XVI, 156). A defesa dos princípios Whig foi levada a tal ponto que mesmo os soldados de Washington se
vestiam com o tradicional “azul e ocre”, as cores dos Whigs, assim como os foxites (N. T.: seguidores de Charles
James Fox [1749-1806], político britânico que se tornou um dos mais destacados membros do grupo Whig,
liderado por Edmund Burke) do Parlamento britânico, que foram preservadas até nossos dias nas capas da
Edinburgh Rewiew. Se uma geração socialista fez do whiguismo seu alvo principal, esta é mais uma razão para
os adversários do socialismo defenderem esta denominação, hoje a única que define corretamente os
princípios dos liberais gladstonianos, dos homens da geração de Maitland, Acton e Bryce, a última geração cujo
objetivo principal era a liberdade e não a igualdade ou a democracia.

(20) – Lord Acton, Lectures on Modern History (Londres, 1906), página 218

Ordem Livre | F. A. Hayek 45


POR QUE NÃO SOU C ONSERVADOR

(21) – Cf. S. K. Padover na sua Introdução a The Complete Madison (Nova Iorque, 1953), página 10: “Na
terminologia moderna, Madison seria rotulado como liberal centrista e Jefferson como um radical”. Isto é
correto e importante, embora devamos recordar que E. S. Corwin (“James Madison: Layman, Publicist e
Exegete”, New York University Law Review, XXVII [1952], 285) fale na “rendição [final de Madison] à influência
do radicalismo de Jefferson”.

(22) – Cf. a profissão de fé política do Partido Conservador britânico, The Right Road for Britain (Londres, 1950),
páginas 41-42, que declara, justificadamente, que “esta nova concepção [dos serviços sociais] foi aperfeiçoada
pelo governo de coalizão com uma maioria de ministros conservadores e a plena aprovação da maioria
conservadora na Câmara dos Comuns. (...) Nós estabelecemos o princípio para os sistemas de pensões, licença,
salário-desemprego, indenização em caso de acidentes de trabalho e um sistema nacional de saúde”.

(23) – A. Smith, W. o. N., I, 432.

(24) – Ibid.

Ordem Livre | F. A. Hayek 46


OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE


F. A. HAYEK

Qual é o problema que buscamos resolver quando tentamos construir uma ordem econômica racional?
Partindo de alguns pressupostos amplamente aceitos, a resposta é bastante simples. Se detivéssemos todas as
informações relevantes, se pudéssemos tomar como ponto de partida um sistema de preferências
estabelecido, e se tivéssemos completo conhecimento dos meios disponíveis, o resto do problema seria
simplesmente uma questão de lógica. Ou seja, a resposta para a pergunta por qual é o melhor uso dos meios
disponíveis está implícita em nossos pressupostos. As condições que devem ser satisfeitas para a solução desse
problema ideal foram completamente analisadas e podem ser melhor expostas em um modelo matemático:
sucintamente, diríamos que as taxas marginais de substituição entre qualquer dois bens ou fatores devem ser
as mesmas independentemente dos seus diferentes usos.

Este, no entanto, decididamente não é o problema econômico que a sociedade enfrenta; e o cálculo
econômico que desenvolvemos para resolver esse problema lógico, embora seja um importante passo na
direção da solução do problema econômico da sociedade, não oferece ainda uma resposta para ele. O motivo
disto é que os “dados” totais da sociedade a partir dos quais são feitos os cálculos econômicos nunca são
“dados” a uma única mente para que pudesse analisar as suas implicações – e nunca serão.

O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional se caracteriza justamente pelo fato de que o
conhecimento das circunstâncias nas quais precisamos agir nunca existe de forma concentrada e integrada,
mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e freqüentemente contraditório, distribuído
por diversos indivíduos independentes. O problema econômico da sociedade, portanto, não é meramente um
problema de como alocar “dados” recursos – se por “dados” entendermos algo que esteja disponível a uma
única mente que possa deliberadamente resolver o problema com base nessas informações. Ao invés disso, o
problema é de como garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos,
para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, para dizê-lo sucintamente, o
problema é o da utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade.

O caráter fundamental desse problema tem sido, infelizmente, obscurecido, e não iluminado, por muitos dos
recentes refinamentos na teoria econômica, e em particular pelos usos variados da matemática. Embora o
problema de que eu queira tratar primordialmente nesse artigo seja o problema da organização de uma
economia racional, para seguir esse caminho precisarei de repetidamente chamar atenção para as ligações
íntimas que esse problema possui com certas questões metodológicas. Muitos dos argumentos que pretendo
apresentar são, de fato, conclusões alcançadas por meio de diferentes caminhos de raciocínio que
inesperadamente convergiram. Mas, do modo como eu hoje entendo essas questões, essa convergência não é
uma coincidência. Parece-me que muitas das divergências que surgem tanto no campo da teoria econômica
quanto no da política econômica possuem uma origem comum em uma má compreensão da natureza do
problema econômico da sociedade. Essa má compreensão, por sua vez, se deve a uma aplicação indevida de
hábitos mentais desenvolvidos para lidar com problemas da natureza aos fenômenos sociais.

II

Na linguagem comum, definimos a palavra “planejar” como o conjunto das decisões inter-relacionadas
relativas à alocação dos nossos recursos disponíveis. Toda atividade econômica, nesse sentido, é planejamento;
e, em qualquer sociedade em que várias pessoas colaborem, o planejamento, independentemente de quem o
faça, terá de basear-se em certos conhecimentos; e esses conhecimentos não estarão disponíveis em primeira
instância para o planejador, mas antes para alguém que deverá retransmiti-los ao planejador. Os vários modos
pelos quais o conhecimento chega às pessoas que o utilizam para elaborar seus planos é um problema crucial
para qualquer teoria que almeje explicar o processo de mercado; e o problema de qual é melhor meio de

Ordem Livre | Ludwig Von Mises 47


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

utilizar o conhecimento que está inicialmente disperso entre várias pessoas independentes é pelo menos um
dos principais problemas para a política econômica – ou para qualquer tentativa de conceber um sistema
econômico eficiente.

A resposta para essa pergunta está intimamente relacionada com outra questão que emerge aqui: a de quem
está planejando. Toda a divergência sobre “planejamento econômico” parte dessa questão. Não está em
discussão se se deve planejar ou não, mas sim se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma
autoridade única para todo o sistema econômico, ou se ele deve ser dividido entre vários indivíduos. No
sentido específico em que o termo é utilizado nas controvérsias contemporâneas, planejamento significa
necessariamente planejamento central – direcionar todo o sistema econômico de acordo com um projeto
unificado. A competição, por outro lado, significa uma descentralização do planejamento, que será realizado
por muitas pessoas independentes. O caminho do meio entre essas duas posições – muito falado, mas pouco
apreciado quando visto em prática – é a delegação do planejamento para certas indústrias organizadas, isto é,
a instituição de monopólios.

A questão de qual desses sistemas será mais eficiente depende principalmente da questão de qual deles
podemos esperar um uso mais completo do conhecimento existente. E isto, por sua vez, depende de se nós
temos uma probabilidade maior de conseguir colocar todo o conhecimento que está disperso entre vários
indivíduos à disposição de uma autoridade central, ou de dar aos indivíduos um conhecimento adicional
suficiente para que eles se tornem capazes de integrar os seus planos aos dos outros.

III

Ficará imediatamente evidente que, neste ponto, a resposta será diferente de acordo com os diferentes tipos
de conhecimento; e a resposta para a nossa pergunta irá, conseqüentemente, voltar-se para a importância
relativa de diferentes tipos de conhecimento; aqueles que mais provavelmente estarão à disposição de
indivíduos particulares, e aqueles que teríamos mais certeza de encontrar na posse de um órgão constituído
por especialistas bem escolhidos. Se hoje em dia é tão amplamente aceito que a segunda opção é preferível,
isto ocorre porque um tipo de conhecimento – o conhecimento científico – ocupa nos dias de hoje um lugar
tão proeminente na imaginação pública que chegamos a esquecer que esse não é o único tipo de
conhecimento relevante. Pode-se admitir que, em relação ao conhecimento científico, um órgão com um
punhado de especialistas bem escolhidos seja a melhor opção para melhor dominar o conhecimento disponível
– embora isso, obviamente, seja meramente trocar um problema por outro: o problema de como escolher
esses especialistas. O que desejo frisar é que, mesmo presumindo que esse problema pudesse ser
imediatamente resolvido, ele seria apenas parte de um problema maior.

Hoje é quase uma heresia sugerir que o conhecimento científico não corresponde à totalidade do
conhecimento. Mas um pouco de reflexão irá mostrar que, sem sombra de dúvida, existe um corpo
importantíssimo de conhecimento desorganizado que não pode ser chamado de científico, entendendo
“científico” como o conhecimento de certas regras gerais: o conhecimento de certas circunstâncias particulares
de tempo e lugar. É em relação a isso que praticamente todo indivíduo tem alguma vantagem comparativa em
relação a todos os outros, pois ele possui informações únicas sobre que tipos de usos benéficos podem ser
feitos com certos recursos; usos estes que só acontecerão se a decisão de como utilizá-los for deixada nas
mãos desse indivíduo ou for tomada com sua cooperação ativa. Basta apenas lembrarmos o quanto precisamos
aprender em qualquer profissão depois de termos completado nossa formação teórica, quão grande é a parte
da nossa vida profissional em que passamos aprendendo habilidades específicas, e quão valioso, em todas as
circunstâncias da vida, é o conhecimento das pessoas, das condições locais e de certas circunstâncias especiais.
Conhecer e saber operar uma máquina que não estava sendo adequadamente explorada, ou a habilidade de
alguém que poderia ser mais bem aproveitada, ou estar consciente de um excedente de reservas que pode ser
usado durante uma interrupção temporária do fornecimento, é tão útil socialmente quanto o conhecimento
das melhores técnicas alternativas. O transportador que ganha sua vida descobrindo como melhor aproveitar
seu espaço de carga que ficaria vazio, o agente imobiliário cujo conhecimento consiste quase exclusivamente
em encontrar oportunidades temporárias, ou o arbitrageur, que lucra a partir das diferenças locais entre os

Ordem Livre | F. A. Hayek 48


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

preços de certos bens – todos eles realizam trabalhos eminentemente úteis que são baseados em um
conhecimento especial das circunstâncias de um momento fugidio, desconhecido por outros.

É curioso que nos dias de hoje esse tipo de conhecimento seja amplamente menosprezado, e que as pessoas
que fazem uso dele para alcançarem privilégios sobre pessoas com melhor preparo teórico ou técnico sejam
vistas quase como se estivessem fazendo algo desonrado. Mas, embora conquistar privilégios usando um
conhecimento superior quanto às condições de comunicação e transporte seja visto como algo quase
desonesto, a verdade é que, para a sociedade, é quase tão importante fazer o melhor uso possível dessas
oportunidades quanto das últimas descobertas científicas.

Esse preconceito tem uma influência considerável sobre o fato de as pessoas costumarem adotar uma atitude
mais desfavorável em relação ao comércio do que em relação às atividades produtivas. Mesmos os
economistas que se crêem totalmente imunes às rasas falácias materialistas do passado constantemente
cometem os mesmos erros em relação às atividades relacionadas à aquisição de conhecimento prático – e o
motivo disso parece ser que, segundo o modo como eles vêem o mundo, esse tipo de conhecimento já deveria
estar “dado” em vez de ser algo que precise ser buscado. A idéia mais comum na atualidade parece ser a de
que todo conhecimento desse tipo deveria estar constantemente disponível para todo mundo e, como isso não
ocorre, critica-se a ordem econômica atual por ser supostamente irracional. Essa concepção ignora o fato de
que o método de tornar esse conhecimento amplamente disponível é precisamente o problema que
precisamos resolver.

IV

Se hoje em dia está na moda minimizar a importância do conhecimento das circunstâncias particulares de
tempo e espaço, isso se deve em grande medida a pouca importância dada à questão da incerteza em si
mesma. De fato, parte dos pressupostos (que geralmente estão apenas implícitos) adotados pelos
“planejadores” diferem dos seus oponentes tanto em relação à capacidade de mudanças imprevistas causarem
alterações substanciais nos planos de produção quanto em relação à freqüência com que isso ocorre.
Evidentemente, se fosse possível fazer previamente planos econômicos detalhados para períodos
significativamente longos, e depois segui-los à risca, de modo que nenhuma outra decisão econômica
importante fosse necessária, a tarefa de elaborar um planejamento completo para toda a atividade econômica
não seria algo tão inatingível.

Talvez valha a pena frisar que os problemas econômicos surgem sempre e exclusivamente em decorrência de
mudanças. Enquanto as coisas continuam exatamente como estavam antes – ou ao menos quando elas
prosseguem de acordo com o que se esperava delas – então não surgirão novos problemas que exijam
soluções, não havendo, portanto, necessidade de que se elabore um novo planejamento. A crença de que a
mudança – ou ao menos os pequenos ajustes cotidianos – se tornou menos importante nos tempos modernos
parte do princípio de que a contenção dos problemas econômicos também se tornou menos importante. Por
esse motivo, as pessoas que costumam menosprezar a importância da incerteza são as mesmas que
argumentam que as questões econômicas já não são tão importantes quanto o conhecimento tecnológico.

Será verdade que, graças ao sofisticado aparato da indústria moderna, só é preciso tomar decisões econômicas
em intervalos longos; como na hora de decidir se uma nova fábrica deve ser construída, ou um novo
procedimento deve ser introduzido? É verdade que, uma vez que uma fábrica tenha sido construída, o resto é
mais ou menos mecânico, determinado por suas características, deixando pouco a ser mudado para adaptar-se
às eternas flutuações de cada momento?

A experiência prática dos homens de negócios, até onde eu a conheço, não sustenta essa crença amplamente
aceita. Pelo menos nas áreas de negócios que são competitivas – e apenas essas áreas servem de modelo para
essa questão – a tarefa de impedir os custos de subir exige um luta constante, que absorve grande parte da
energia do administrador. É fácil para um administrador ineficiente gastar as pequenas sobras de onde saem os
lucros; é um lugar-comum da experiência empresarial que, com as mesmas condições técnicas, a mesma
produção pode ser feita dentro de uma variedade enorme de custos – mas isso não é igualmente conhecido

Ordem Livre | F. A. Hayek 49


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

pelos que estudam apenas economia. O próprio desejo – freqüentemente declarado pelos produtores e
engenheiros – de ser autorizado a fazer seus projetos sem considerações financeiras é um testemunho
eloqüente do poder que esses fatores exercem sobre seu trabalho diário.

Um dos motivos para a crescente incapacidade dos economistas de atentarem para as constantes pequenas
mudanças que compõem o todo da atividade econômica é provavelmente que eles estão cada vez mais
preocupados com dados estatísticos, que passam uma imagem muito mais estável da economia do que os
pequenos movimentos diários. No entanto, a relativa estabilidade dos grandes dados estatísticos não pode ser
explicada – como os estatísticos freqüentemente querem fazer crer – pelas “leis dos grandes números” ou pela
mútua compensação de pequenas mudanças aleatórias. O número dos elementos com que eles lidam não é
grande o suficiente para que essas forças acidentais produzam estabilidade. O continuo fluxo de bens e
serviços é mantido por ajustes deliberados e constantes, por novas decisões tomadas diariamente à luz de
circunstâncias que eram desconhecidas até o dia anterior, pela decisão de B de entrar em cena quando A deixa
de executar o seu papel. Mesmo a maior e mais mecânica das fábricas segue adiante em grande parte por
causa de um ambiente que pode lhe prover todas as suas demandas inesperadas: novas telhas para seu
telhado, papéis para seus documentos, e todos os mil e um tipos de equipamentos que não podem ser
produzidos pela própria fábrica, mas que, para que ela continue a funcionar, precisam estar facilmente
disponíveis no mercado.

Nesse instante, devo brevemente observar que o tipo de conhecimento de que tenho tratado é de um tipo
que, por sua própria natureza, não pode ser transposto para dados estatísticos e que, por isso, não pode ser
colocado à disposição de uma autoridade central que delibere a partir de levantamentos estatísticos. As
estatísticas que essa autoridade teria de utilizar surgiriam exatamente por meio das abstrações das pequenas
diferenças entre as coisas, juntando como se fossem elementos de um só tipo itens com diferentes
características de lugar, qualidade e outras características particulares, que seriam muito importantes para
tomar uma decisão específica. Conseqüentemente, planejamento central baseado em informações estatísticas,
por sua própria natureza, não pode levar em consideração diretamente as circunstâncias de tempo e lugar,
precisando encontrar algum jeito de essas decisões serem deixadas para alguém que esteja no local.

Se pudermos convir que o problema econômico da sociedade é basicamente uma questão de se adaptar
rapidamente às mudanças das circunstâncias particulares de tempo e lugar, parece ser evidente que, por
conseqüência, as decisões fundamentais devem ser deixadas a cargo de pessoas que estejam familiarizadas
com essas circunstâncias, que possam conhecer diretamente as mudanças relevantes e os recursos
imediatamente disponíveis para lidar com elas. Não podemos esperar que essa problema seja resolvido por
meio da transmissão de todo esse conhecimento para um diretório central que, depois de ter integrado todo
esse saber, emita uma ordem. Precisamos da descentralização porque apenas assim podemos garantir que o
conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar sejam prontamente utilizados. Mas o homem
que está dentro de uma situação particular não pode tomar decisões com base apenas em seu conhecimento
dos fatos relativos aos seus arredores imediatos, pois, apesar de este ser um conhecimento íntimo, é também
limitado. No entanto, persiste o problema de como transmitir a esse homem informações suficientes para que
ele seja capaz de encaixar suas decisões no padrão geral das mudanças do sistema econômico como um todo.

De quanto conhecimento ele precisa para ser bem sucedido nisso? Quais dos eventos que acontecerão além do
seu horizonte imediato de conhecimento são relevantes para sua decisão imediata, e quão bem ele precisa
conhecer esses eventos?

Praticamente não há nada que ocorra no mundo que não possa influenciar a decisão que ele precisa tomar.
Mas ele não precisa conhecer esses eventos em si mesmos, nem precisa conhecer todos os seus efeitos. Para
ele, não é importante saber o porquê de um certo tipo de parafuso estar sendo mais procurado em uma época
específica, ou porque os sacos de papéis estão mais facilmente disponíveis que os sacos de lona, ou porque
trabalhadores especializados ou máquinas específicas momentaneamente se tornaram difíceis de encontrar.
Tudo que ele precisa saber é quão mais ou menos difícil está a aquisição de certas coisas em relação a outras

Ordem Livre | F. A. Hayek 50


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

coisas que também lhe interessam, ou se a demanda por outras coisas que ele produz ou usa é mais ou menos
urgente. Ele sempre está preocupado com a importância relativa de coisas particulares, enquanto os fatores
que alteram essa importância relativa não lhe interessam de forma alguma, exceto na medida dos próprios
efeitos causados sobre as coisas concretas do seu ambiente.

É em relação a isso que aquilo que chamei de “cálculo econômico” nos ajuda, ao menos por analogia, a
entender como esse problema pode ser resolvido – na verdade, como ele já está sendo resolvido – pelo
sistema de preços. Mesmo se existisse uma única mente controladora que possuísse todos os dados sobre um
sistema econômico pequeno e restrito, ela não iria dar-se ao trabalho de repassar por todas as relações entre
fins e meios que talvez possam ser afetadas a cada vez que algum pequeno ajuste na alocação recursos fosse
feito. De fato, uma das grandes contribuições da lógica pura da escolha é ter demonstrado conclusivamente
que mesmo uma única mente onisciente só poderia resolver esse tipo de problema por meio da construção e
da constante utilização de taxas de equivalência (ou “valores” ou “taxas marginais de substituição”), ou seja,
por meio da atribuição de um índice numérico a cada tipo de recurso que, sem ser derivado de nenhuma
propriedade dessa coisa em particular, ainda refletisse ou condensasse sua relevância na estrutura total dos
meios e fins. Para cada pequena mudança, ela teria que considerar apenas esses índices quantitativos (ou
“valores”), no qual a informação relevante estaria concentrada; e, ao ajustar as quantidades uma a uma, ela
poderia reorganizar todos os elementos sem precisar retomar todo o quebra-cabeça desde o início nem
precisar parar a cada etapa para analisar novamente todos os elementos e suas ramificações.

Basicamente, em um sistema no qual o conhecimento dos fatos relevantes está disperso entre várias pessoas,
os preços podem servir para coordenar as diferentes ações de várias pessoas do mesmo modo como os valores
subjetivos ajudariam aquela mente onisciente a coordenar as diferentes partes do seu plano. Vale a pena
contemplar por um instante um exemplo muito simples e comum do sistema de preços em ação para ver
exatamente o que ele pode fazer. Suponha por um instante que, em algum lugar do mundo, uma nova
oportunidade de usar alguma matéria prima surgiu – tomemos o estanho como exemplo – ou então que
alguma das fontes de estanho tenha sido eliminada. Para o nosso exemplo não importa – e é muito significativo
que isso não importe – qual dessas duas causas tenham aumentado a escassez de estanho. Tudo que os
usuários de estanho precisam saber é que parte do estanho que eles costumavam consumir agora está sendo
usado com mais proveito em outro lugar e, em decorrência disto, eles precisam ser mais econômicos em seu
uso.

Não é preciso nem que boa parte deles saiba de onde essa demanda mais urgentemente surgiu, nem mesmo
em prol de quê eles irão poupar esses recursos. Basta que alguns deles saibam diretamente da existência da
nova demanda e transfiram recursos para ela, que algumas outras pessoas percebam o vazio que foi então
criado e ajam para preenchê-lo com recursos de outras fontes, e então o efeito irá rapidamente se espalhar por
todo o sistema econômico, influenciando não apenas todos os usos do estanho, mas também os usos dos seus
substitutos, e dos substitutos desses substitutos, assim como a oferta de todas as coisas feitas de estanho, e a
dos seus substitutos dessas coisas, e assim por diante; e tudo isso ocorre sem que a grande maioria daqueles
que realizam essas substituições saiba nada sobre a causa original dessas mudanças. O todo age como se fosse
um único mercado, mas isso não ocorre porque cada um dos seus membros pôde analisá-lo como um todo,
mas sim porque os campos limitados da visão de cada um tinham alcance suficiente para que, através de
inúmeros intermediários, a informação relevante fosse comunicada para todos. O mero fato de que há um
preço para cada bem – ou, melhor dizendo, que cada preço local está ligado de certa forma com o custo de
transportá-lo para esse local, e assim por diante – traz a mesma solução que uma única mente dotada de todas
as informações (embora ela seja apenas uma possibilidade imaginária) teria alcançado, ainda que essas
informações na verdade estejam dispersas entre todas as pessoas envolvidas no processo.

VI

Precisamos entender o sistema de preços como um mecanismo de transmissão de informações para podermos
entender sua verdadeira função – uma função que ele cumpre evidentemente com menos perfeição na medida
em que os preços se tornam mais rígidos. (Mas mesmo quando preços tabelados se tornam extremamente
rígidos, as forças que normalmente atuariam causando mudanças no preço permanecem agindo, exercendo

Ordem Livre | F. A. Hayek 51


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

uma influência considerável sobre as mudanças em outros aspectos dos contratos). O principal aspecto desse
sistema é a economia de conhecimento com que ele opera; ou, em outros termos, é quão pouco os
participantes individuais precisam saber para ser capazes de tomar as decisões corretas. De forma abreviada,
por meio de um certo tipo de símbolo, apenas a informação mais essencial é transmitida adiante, e apenas
para aqueles que estão interessados nela. Não seria apenas uma metáfora se disséssemos que o sistema de
preços é tipo um caixa registrador, ou um sistema de telecomunicações que permite aos produtores individuais
observar apenas o movimento de alguns fatores – do mesmo modo como um engenheiro pode se concentrar
apenas nos consoles de alguns mostradores – para adaptar as suas atividades às mudanças que eles conhecem
apenas a partir do que é mostrado pelo movimento dos preços.

Evidentemente, esses ajustes provavelmente nunca são “perfeitos” no sentido de perfeição que os
economistas utilizam em suas análises sobre o equilíbrio econômico. No entanto, temo que nosso hábito
teórico de abordar cada problema com a presunção de um conhecimento mais ou menos perfeito da parte de
quase todos os envolvidos quase nos tenha cegado para a verdadeira função do mecanismo de preço, levando-
nos a aplicar de forma enganosa padrões inadequados para julgar sua eficiência. É maravilhoso que em uma
situação na qual haja escassez de um tipo de matéria prima, sem que nenhuma ordem seja dada, sem que
talvez não mais que um punhado de pessoas saibam a causa dessa escassez, dezenas de milhares de pessoas
cujas identidades jamais serão conhecidas, mesmo depois de meses de investigação, começam então a utilizar
essa matéria ou seus subprodutos de maneira mais econômica; ou seja, todas elas agem na direção correta.
Isto, em si mesmo, é suficientemente maravilhoso; mesmo que, em um mundo de incertezas constantes, nem
tudo consiga se organizar tão perfeitamente para que suas porcentagens de lucros se mantenham
constantemente no mesmo nível considerado “normal”.

Usei deliberadamente a palavra “maravilha” para chocar o leitor e retirá-lo da complacência com que
costumamos dar como certo o funcionamento desse mecanismo. Estou convencido de que se isso fosse o
resultado de um projeto humano consciente, e que as pessoas guiadas pelas mudanças dos preços soubessem
que suas decisões possuem uma importância muito maior do que a realização dos seus fins imediatos, então
esse mecanismo seria louvado como um dos maiores triunfos da mente humana. O seu azar é duplo: nem ele é
o fruto de um projeto humano, nem as pessoas guiadas por ele costumam entender porque elas fazem as
coisas que são levadas a fazer. Mas aqueles que clamam por uma “direção consciente” – e que não podem
acreditar que algo que tenha sido criado sem um planejamento (e, de fato, sem que nem mesmo alguém o
compreendesse como um todo) possa resolver problemas que nós mesmos não podemos resolver
conscientemente – devem lembrar-se do seguinte: o problema é precisamente de como expandir a extensão
da utilização dos recursos além da extensão do entendimento de um único indivíduo; e, portanto, trata-se de
um problema de como administrar a necessidade de controle consciente, e de como dar incentivos para os
indivíduos tomarem as decisões desejáveis sem que alguém lhes diga o que fazer.

O problema de que estamos tratando aqui de forma alguma diz respeito exclusivamente à economia, pois ele
surge junto com quase todos os outros verdadeiros fenômenos sociais, com a linguagem e boa parte da nossa
herança cultural, constituindo de fato o problema central de toda ciência social. Como Alfred Whitehead disse,
em relação a outra coisa, “Um truísmo profundamente falso, repetido por todos os manuais e nos discursos das
pessoas eminentes, diz que devemos cultivar o hábito de pensar sobre o que estamos fazendo. O oposto é que
é verdadeiro. A civilização progride quando aumentamos o número de trabalhos importantes que podemos
realizar sem pensar neles”. Isso possui uma profunda importância no campo social. Usamos constantemente
fórmulas, símbolos e regras cujo significado não entendemos, mas por meio dos quais podemos ter acesso a
conhecimentos que, individualmente, não possuímos. Criamos essas práticas e instituições tomando como
base os hábitos e instituições que se mostraram bem sucedidos em suas próprias esferas e que se tornaram a
fundação em cima da qual construímos a civilização.

O sistema de preços é apenas uma dessas criações que o homem aprendeu a usar (embora ele ainda esteja
longe de ter aprendido a usá-lo perfeitamente), depois que se deparou com ele, mesmo antes de entendê-lo.
Por meio dele não apenas a divisão de trabalho, mas também o uso coordenado de recursos baseado em
conhecimentos amplamente divulgados se tornam possíveis. As pessoas que gostam de ridicularizar qualquer
sugestão de que é assim que as coisas funcionam distorcem nosso argumento ao insinuar que estamos dizendo
que é por algum milagre que um sistema como esse se desenvolveu espontaneamente, tornando-se o mais

Ordem Livre | F. A. Hayek 52


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

adequado para a civilização moderna. Trata-se exatamente do contrário: o homem pode criar essa divisão do
trabalho sobre a qual a nossa civilização se sustenta justamente porque ele se deparou com um método que a
tornou possível. Caso isso não tivesse ocorrido, ele talvez tivesse desenvolvido um tipo inteiramente diferente
de civilização, talvez o “Estado”dos cupins, ou outra coisa totalmente inimaginável. Tudo que podemos dizer é
que até agora ninguém conseguiu produzir um sistema alternativo no qual certas características do sistema
existente – que são respeitadas mesmo por aqueles que o atacam violentamente – possam ser preservadas,
especialmente em relação à capacidade do indivíduo de escolher seus objetivos e, conseqüentemente, de
dispor livremente de suas habilidades e conhecimento.

VII

Por vários motivos, é ótimo que a necessidade do sistema de preços para qualquer cálculo racional em uma
sociedade complexa já não seja mais objeto de discussão apenas entre grupos com opiniões políticas distintas.
A tese segundo a qual sem o sistema de preços nós não poderíamos preservar uma sociedade baseada numa
divisão de trabalho tão extensiva quanto a nossa foi recebida com gritos de chacota quando Mises a
apresentou há vinte e cinco anos. Hoje os argumentos que alguns ainda apresentam para rejeitar essa tese não
são mais exclusivamente políticos, e isso cria um atmosfera muito mais receptível a discussões ponderadas.
Quando vemos Leon Trostky argumentando que o “cálculo econômico é inimaginável sem as relações de
mercado”; quando o professor Oscar Lange promete ao professor von Mises uma estátua de mármore no
futuro Diretório de Planejamento Central, e quando o professor Abba P. Lerner redescobre Adam Smith,
enfatizando que a utilidade essencial do sistema de preços consiste em induzir o indivíduo a fazer aquilo que é
do interesse geral no instante em que busca realizar seus próprios interesses, então, as divergências já não
podem ser atribuídas a preconceitos políticos. Os dissidentes restantes parecem claramente divergir dessa
posição por motivos puramente intelectuais e, mais particularmente, por causa de diferenças metodológicas.

Uma declaração recente do professor Joseph Schumpeter em seu Capitalismo, socialismo e democracia fornece
um exemplo perfeito dessas diferenças metodológicas que tenho em mente. O autor é um dos economistas
mais proeminentes entre aqueles que analisam o fenômeno econômico a partir de algum ramo do positivismo.
Para ele, esses fenômenos surgem por conseqüência do mútuo efeito exercido por certas quantidades
objetivas de bens, quase como se não houvesse intervenção alguma de mentes humanas. Apenas por causa
desses pressupostos, posso compreender a declaração seguinte – e, para mim, espantosa. O professor
Schumpeter argumenta que a possibilidade do cálculo racional na ausência de um mercado para os fatores de
produção é uma decorrência da proposição teórica segundo a qual “os consumidores que estão avaliando
(demandando) os bens de consumo ipso facto também estão avaliando os meios de produção que entram na
produção daqueles bens” (1).

Tomada literalmente, essa declaração é simplesmente falsa. Os consumidores não fazem nada disso. O que o
“ipso facto do professor Schumpeter provavelmente significa é que a avaliação dos fatores de produção está
implícita, ou que se segue necessariamente, da avaliação dos bens de consumo. Mas isso também não é
verdadeiro. A implicação é uma relação lógica que só pode ser afirmada com segurança a partir de
pressupostos que estejam para o mesmo indivíduo. É evidente, no entanto, que os valores dos fatores de
produção não dependem exclusivamente da avaliação dos bens de consumo, mas também das condições de
fornecimento dos vários fatores de produção. Apenas um único indivíduo que conhecesse todos esses fatores
simultaneamente poderia encontrar uma respostas derivada diretamente desses dados. O problema prático
surge, no entanto, precisamente porque esses dados nunca estão inteiramente disponíveis para um único
indivíduo, e porque, por conseqüência, é necessário para resolver esse problema a utilização de conhecimentos
que estão dispersos por vários indivíduos.

O problema, portanto, não estaria de forma alguma resolvido se demonstrássemos que todos os dados, se
estivessem disponíveis para uma única mente (como hipoteticamente estariam para o economista que
observasse o problema), iriam por si mesmos determinar a solução; ao invés disso, precisaríamos demonstrar
como uma solução poderia ser produzida pela interação entre as pessoas que, individualmente, possuem
apenas um conhecimento parcial. Presumir que todo o conhecimento possa ser colocado à disposição de uma
única mente, do modo como presumimos que ele pode estar disponível para nós, como economistas dedicados

Ordem Livre | F. A. Hayek 53


O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

a analisar uma questão, equivale a fugir do problema e menosprezar tudo que é importante e relevante no
mundo real.

Que um economista da estatura do professor Schumpeter tenha caído em tal armadilha por causa da
ambigüidade que o termo “dado” tem para os incautos dificilmente poderia ser considerado um simples erro.
Isto sugere, de fato, que há algo de fundamentalmente errado com uma abordagem que freqüentemente
despreza uma parte essencial dos fenômenos com os quais temos que lidar:a inevitável imperfeição do
conhecimento humano e a necessidade decorrente de um processo por meio do qual o conhecimento seja
constantemente adquirido e transmitido. Qualquer abordagem – como grande parte da economia matemática
com suas várias equações simultâneas – que parta do pressuposto de que o conhecimento das pessoas
corresponde aos fatos objetivo de cada situação, irá sistematicamente deixar de lado aquilo que é a nossa
principal tarefa explicar. Estou longe de negar que, em nossa sistema, a análise do equilíbrio econômico tem
uma atividade útil a desempenhar, mas quando chega o ponto em que ela ofusca nossos principais intelectuais,
fazendo-os acreditar que a situação que estão descrevendo tem uma relevância direta para a solução de
problemas práticos, está mais que na hora de nos lembrarmos que esse tipo de análise não lida com o processo
social de forma alguma, e de que isso não é mais do que uma etapa preliminar para a investigação do problema
principal.

NOTAS
[1] Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia [Capitalism, Socialism, and Democracy (New York;
Harper, 1942), p. 175]. O professor Schumpeter é, me parece, o responsável pela criação do mito segundo o
qual Pareto e Barone teriam “resolvido” o problema do cálculo econômico no socialismo. O que eles e muitos
outros fizeram foi apenas elencar as condições que deveriam ser satisfeita para uma alocação racional de
recursos, e observar que essas condições eram essencialmente as mesmas do estado de equilíbrio de um
mercado competitivo. Isso é inteiramente diferente de saber como a alocação de recursos segundo essas
condições pode ser observada na prática. O próprio Pareto (de quem Barone praticamente tomou quase tudo
que tinha a dizer), longe de declarar ter resolvido esse problema prático, de fato, negou explicitamente que ele
poderia ser resolvido sem o auxílio do mercado. Vejam o seu Manuel d'économie pure (2d ed., 1927), pp. 233–
34, [“Manual de economia pura”]. As passagens relevantes estão citadas em uma tradução inglese no início do
meu artigo Socialist Calculation: The Competitive ‘Solution’ [“O cálculo socialista: a ‘solução’ competitiva”] in
Economica, New Series, Vol. VIII, No. 26 (May, 1940), p. 125.].

Ordem Livre | F. A. Hayek 54


OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

AS TENDÊNCIAS NOS ASSUNTOS HUMANOS


MILTON E ROSE FRIEDMAN

O objetivo desse curto ensaio é apresentar uma hipótese de que uma grande mudança na política social e
econômica seja precedida por uma alteração no clima da opinião intelectual. Uma tendência intelectual é
espalhada pelo público seguindo o hábito do intelectual varejista: professores e pastores, jornalistas nos jornais
e na televisão, especialistas e políticos.

Existem tendências poderosas nos assuntos humanos, interpretadas como a entidade coletiva que chamamos
de sociedade, bem como nos assuntos individuais. As tendências nos assuntos da sociedade demoram a se
tornar evidentes, como uma maré que começa a inundar a outra. Cada tendência permanece por um longo
período – décadas, não horas – uma vez que começa a alagar, e deixa suas marcas em sua sucessora mesmo
depois que recua.

Em quase todas as tendências, uma crise pode ser identificada como o catalisador de uma grande mudança na
direção das políticas.

A Ascensão do Laissez Faire: A Tendência de Adam Smith

A primeira tendência que examinaremos começa na Escócia do século XVIII, com uma reação ao mercantilismo
expresso nos escritos de David Hume, através dos livros A Teoria dos Sentimentos Morais e, principalmente, A
Riqueza das Nações (1776), ambos de Adam Smith. No outro lado do Atlântico, o ano de 1776 também viu a
proclamação da Declaração de Independência, que era, de várias formas, gêmea política da Ciência Econômica
de Smith. O trabalho de Smith rapidamente se tornou comum entre os fundadores dos Estados Unidos. No
início do século XIX as idéias de laissez-faire, da operação da mão invisível, da indesejabilidade da intervenção
governamental nas questões econômicas, haviam sido arrastadas, primeiramente para o mundo intelectual,
para chegarem a seguir às políticas públicas.

A revogação das mercantilistas Leis do Trigo (Corn Laws), em 1846, é, em geral, considerada o triunfo final de
Adam Smith, com um atraso de 70 anos. Na verdade, algumas reduções nas tarifas alfandegárias começaram
bem antes e muitos itens não agrícolas continuaram a ser protegidos por tarifas até 1874. Assim, levou-se
quase um século até o término de uma resposta a Adam Smith.

A Experiência Americana

Os outros países da Europa e os Estados Unidos não seguiram a liderança britânica em estabelecer um
mercado completamente livre. Entretanto, durante a maior parte do século XIX, os impostos sobre a
importação eram, em primeiro lugar, para geração de receita (não para proteção). Exceto por alguns anos após
a guerra de 1812, a alfândega provia a metade ou mais da metade da receita federal. Foi assim até a Guerra
Hispano-Americana no fim do século. Barreiras não-tarifárias, como cotas, não existiam e o movimento de
capital e pessoas estava longe de ser impedido.

Medir o papel do governo em uma economia não é fácil. Uma forma disponível, embora reconhecidamente
imperfeita, é a proporção do gasto governamental em relação à renda nacional. No auge do laissez-faire, o
gasto governamental em tempos de paz correspondia a menos de 10 por centro do PIB nos Estados Unidos e
na Grã-Bretanha. O gasto federal era, em geral, menor que 3 por cento, com metade indo para os militares.

Em uma escala maior, a tendência que invadiu o século XIX trouxe uma liberdade econômica e política ainda
maior. Apesar de ocasionais crises e pânicos financeiros, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos experimentaram
um crescimento econômico memorável. Os Estados Unidos, em particular, se tornaram a Meca para os pobres

Ordem Livre | Ludwig Von Mises 55


AS TENDÊNCIAS NOS ASSUNTOS HUMANOS

de todos os países. Isso foi um resultado da adoção crescente do laissez-faire como um princípio guia da
política governamental.

A Ascensão do Estado do Bem-Estar Social

Esse progresso incrível não evitou que a maré intelectual refluísse do individualismo em direção ao coletivismo.
Como podemos explicar essa mudança na tendência intelectual, quando as dores do crescimento das políticas
do laissez-faire já haviam sido vencidas há tempos e ganhos positivos impressionantes haviam sido atingidos?

Dois efeitos do sucesso do laissez-faire encorajaram uma reação:


• Em primeiro lugar, o sucesso fez problemas residuais aparecerem com mais destaque, encorajando
reformadores a pressionar por soluções governamentais e fazendo o público simpatizar com seus
apelos.

• Em segundo lugar, parecia mais razoável prever que o governo seria eficiente ao atacar esses
problemas. Um governo severamente limitado pode fazer menos favores. Assim, há pouco incentivo
para a corrupção de funcionários públicos e o serviço público oferece poucos atrativos àqueles que
visam o enriquecimento pessoal.

O governo se engajava, primeiramente, em aplicar as leis contra assassinato, roubos e afins, e em prover
serviços municipais, como uma polícia local e o serviço de proteção contra o fogo – atividades que
engendravam um apoio quase unânime dos cidadãos. A Grã-Bretanha foi ainda mais longe em direção ao
completo laissez-faire, se tornando lendária no fim do século XIX e no início do século XX por seu funcionalismo
público incorruptível e seus cidadãos cumpridores da lei – precisamente o oposto de sua reputação um século
antes.

Porém, em torno de 1900, a doutrina do laissez-faire tinha, de certa forma, perdido sua influência sobre o povo
inglês. Nos Estados Unidos, o desenvolvimento foi similar, embora atrasado. Em 1929, os gastos federais
totalizavam apenas 3.2 por cento do PIB; metade disso era gasto com os militares, mais os juros do défice
público. Os gastos dos governos federal, estadual e local no que hoje é conhecido como renda mínima,
previdência e assistência social somavam menos de 1 por cento da renda nacional.

O mundo das idéias, entretanto, era diferente. Em 1929, o socialismo se tornou a ideologia dominante nos
campi do país. New Republic e The Nation eram as revistas preferidas dos intelectuais e [o socialista] Norman
Thomas era seu herói político. Claro que o grande catalisador dessa grande mudança foi a Grande Depressão,
que demoliu a confiança nos empreendimentos privados por parte da população, que passou a considerar o
envolvimento governamental como sendo o único recurso eficiente em tempos de crise e a tratar o governo
como um potencial benfeitor, ao invés de simplesmente um policial ou um juiz.

A Ressurreição do Livre Mercado: A Tendência de Hayek

Durante o predomínio da idéias socialistas houve, claro, contracorrentes – mantidas vivas por Friedrich Hayek e
alguns de seus colegas na Grã-Bretanha; por Ludwig Von Mises e seus discípulos na Áustria; e por Albert Jay
Nock, H. L. Mencken, e outros nos Estados Unidos.

Provavelmente, O Caminho da Servidão, de Hayek, em 1944, foi a primeira invasão sobre a visão intelectual
dominante. Ainda assim, no início, o impacto do livre mercado sobre a tendência dominante na opinião
intelectual foi pequeno. Mesmo para aqueles que, como nós, estavam promovendo ativamente o livre
mercado nos anos 1950 e 1960, é difícil lembrar o quanto o clima intelectual daquele tempo estava forte e
penetrante.

A história de dois livros escritos por nós, ambos direcionados para o público comum e promovendo as mesmas
políticas, mostra uma evidência impressionante na mudança no clima das opiniões. O primeiro, Capitalismo e

Ordem Livre | Milton & Rose Friedman 56


AS TENDÊNCIAS NOS ASSUNTOS HUMANOS

Liberdade, publicado em 1962, e que venderia mais de 400.000 exemplares nos dezoito anos seguintes, não
recebeu resenha em nenhum periódico popular americano da época. O segundo, Free to Choose [Livre para
Escolher], publicado em 1980, foi resenhado por todas as grandes publicações e se tornou o livro de não-ficção
mais vendido dos Estados Unidos, atraindo atenção mundial.

Maiores evidências das mudanças no clima intelectual são percebidas pela proliferação de Think Tanks que
promovem as idéias de governos limitados e confiança no livre mercado.

Traduzindo Idéias em Ações

O mesmo contraste é verdadeiro em relação às publicações. A The Freeman, da FEE, é a única que consigo me
lembrar, que promova as idéias da liberdade há 30 ou 40 anos. Hoje, várias publicações promovem essas
idéias, embora com grandes diferenças em áreas específicas: The Freeman, National Review, Human Events,
The American Spectator, Policy Review e Reason. Mesmo The Nation e New Republic não são mais os
constantes proponentes da ortodoxia socialista que eram há três décadas.

Por que houve essa grande mudança na postura do público? A força persuasiva de livros como O Caminho da
Servidão, de Hayek, A Nascente e Quem é John Galt?, de Ayn Rand e o nosso Capitalismo e Liberdade, entre
vários outros levaram as pessoas a pensar sobre o mesmo problema de uma forma diferente e a se tornarem
conscientes de que o fracasso governamental era real.

A experiência transformou em cinzas as grandes esperanças que os coletivistas e socialistas depositaram na


Rússia e na China. Na verdade, a única esperança desses países vem de seus movimentos recentes em direção
ao livre mercado. Da mesma forma, a experiência, digamos, enfraqueceu as esperanças extravagantes
colocadas no socialismo fabiano e no Estado do Bem-Estar Social na Grã-Bretanha e no New Deal, nos Estados
Unidos. Um grande projeto governamental após o outro, todos iniciados com as melhores intenções,
resultaram em mais problemas que soluções.

Poucos, hoje em dia, consideram que a estatização de empreendimentos é um meio de se promover uma
produção mais eficiente. Poucos ainda acreditam que todo problema social pode ser solucionado pelo aporte
de dinheiro do governo (ou seja, dos contribuintes). Nessas áreas, as idéias liberais – no sentido original da
palavra “liberal”, do século XIX – venceu a guerra. O crescente fardo da tributação levou a população em geral
a reagir contra o crescimento do governo e de sua ampla influência.

As idéias desempenharam um papel fundamental, como nos episódios anteriores, por manterem as opções
abertas e por fornecerem políticas alternativas a serem adotadas quando há necessidade de mudanças.

Como nas duas ondas anteriores, a prática deixou as idéias para trás. Assim, tanto a Grã-Bretanha quanto os
Estados Unidos estão mais longe do ideal de uma sociedade livre do que estavam há 30 ou 40 anos, em quase
todas as dimensões. Em 1950, o gasto pelos governos federal, estadual e municipal, nos Estados Unidos era de
25 por cento da renda nacional; em 1985, era 44 por cento. Nos últimos 30 anos várias agências
governamentais foram criadas: um Departamento de Educação, um Fundo Nacional para as Artes e outro para
as humanidades, EPA, OSHA, e daí por diante. Funcionários públicos, nessas e em outras agências decidem por
nós qual são os nossos interesses.

Tanto nos Estados Unidos, quanto na Grã-Bretanha, o respeito à lei declinou no século XX, sob o impacto do
aumento da esfera de ação do governo, fortemente reforçada nos Estados Unidos através da Lei Seca. O
aumento da variedade de favores que os governos poderiam fazer, leva a um firme aumento daquilo que os
economistas chamam de rent-seeking e o público chama de lobby de interesses especiais. A Grã-Bretanha foi
ainda mais longe em direção ao coletivismo do que foram os Estados Unidos, e ainda permanece mais
coletivista – com uma alta taxa de gastos governamentais em relação à renda nacional e uma estatização da
indústria muito mais extensa.

Ordem Livre | Milton & Rose Friedman 57


AS TENDÊNCIAS NOS ASSUNTOS HUMANOS

Apesar de tudo, a prática começou a mudar. Acreditamos que a crise catalítica que ativou a mudança foi a onda
mundial de inflação durante os anos 1970, originada pelo crescimento monetário excessivamente amplo nos
Estados Unidos dos anos 1960.

O episódio foi catalítico em dois respeitos:

• Primeiro, a estagflação destruiu a credibilidade da política monetária e fiscal keynesiana e, a


partir daí, a capacidade governamental de ajustar a economia;
• E segundo, trouxe para a disputa o “peso da tributação”, através da indexação dos reajustes
dos impostos aos aumentos de salários em conseqüência da inflação e o repúdio implícito à
dívida governamental.

Já nos anos 1970, o serviço militar obrigatório havia sido encerrado, as linhas aéreas foram desregulamentadas
e a regulação Q, que limitou as taxas de juros que os bancos podiam pagar sobre os depósitos, eliminada. Em
1982, o Conselho de Aeronáutica Civil, que regulava as linhas aéreas, foi extinto.

Como nas ondas anteriores, as tendências de opinião e prática tinham varrido o mundo. O contraste entre a
estagnação daqueles países mais pobres, que se engajaram no planejamento central (Índia, as ex-colônias
africanas, países da América Central) e o rápido progresso dos poucos que seguiram uma política de livre
mercado (notadamente os quatro Tigres Asiáticos: Hong Kong, Singapura, Taiwan e Coréia do Sul) reafirmaram,
com vigor, a experiência dos países ocidentais desenvolvidos.

No fim das contas, a força das idéias, empurrada pela pressão dos acontecimentos, claramente não respeita a
geografia, a ideologia ou o nome dos partidos.

Conclusão

Dois novos pares de marés estão subindo nesse momento na opinião pública, uma em direção à confiança
renovada nos mercados, e outra em direção a um governo mais limitado. Se as marés já completas servirem
como referência, a atual onda na opinião está se aproximando da meia idade e nas políticas públicas está em
sua infância. Assim, ambas estão, ainda, subindo e o estado de inundação, certamente nos negócios, ainda está
por vir.

Para aqueles que acreditam em uma sociedade e em uma atividade governamental estritamente limitada, essa
é uma razão para otimismo, mas não uma razão para complacência. Nada é inevitável sobre o curso da história
– por mais que, em retrospecto, isso possa parecer. Porque vivemos em uma sociedade amplamente livre,
tendemos a esquecer quão limitados são os período de tempo e as partes do globo em que já houve algo
parecido com liberdade política. O estado comum para a humanidade é a tirania, a servidão e a miséria.

Uma vez que uma tendência de opiniões ou de negócios está fortemente estabelecida, ela tende a subjugar
contracorrentes e permanecer por muito tempo rumo à mesma direção. As tendências são capazes de ignorar
geografias, rótulos políticos e outros obstáculos à sua continuidade.

Apesar disso, também é válido lembrar que seu sucesso tende a criar condições que podem, no fim das contas,
revertê-las. A maré encorajadora nas questões que estão na infância também pode ser subjugada por uma
maré renovada de coletivismo. O papel expandido do governo, mesmo nas sociedades ocidentais que se
orgulham de serem parte do mundo livre, criou muitos grupos de interesse, que resistirão ferozmente à perda
dos privilégios que passaram a considerar seus direitos.

Ordem Livre | Milton & Rose Friedman 58


OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE


LUDWIG VON MISES

Os animais são guiados por impulsos naturais. Eles se rendem ao impulso que os comanda naquele momento e
que deve ser satisfeito. Os animais são marionetes de seus desejos. A superioridade do homem pode
observada pelo fato de que ele escolhe entre alternativas. Ele regula o seu comportamento deliberadamente.
Ele pode dominar seus impulsos e desejos; o homem tem o poder de conter desejos de satisfação que
poderiam forçar- lhe a renunciar à realização de objetivos mais importantes. Em resumo: o homem age; ele
escolhe intencionalmente seus fins. É nisso que pensamos quando afirmamos que o homem é uma pessoa
moral, responsável por sua conduta.

A liberdade como um postulado da moralidade

Todos os ensinamentos e preceitos da ética, sejam eles baseados em um credo religioso ou em uma doutrina
secular, como a dos filósofos estóicos, pressupõem essa autonomia moral do indivíduo e, dessa maneira, têm
apelo sobre sua consciência. Eles pressupõem que o indivíduo é livre para escolher entre os vários modelos de
conduta e exigem que ele se comporte conforme regras definidas, as regras da moralidade. Faça as coisas
certas, evite as coisas erradas.

É obvio que as incitações e admoestações da moralidade só fazem sentido quando dirigidas a indivíduos que
sejam livres. Elas seriam vãs se fossem dirigidas a escravos. Seria inútil dizermos a um escravo o que é
moralmente bom e o que é moralmente mau. Ele não é livre para determinar seu comportamento; ele é
forçado a obedecer as ordens de seu mestre. Seria difícil culpá-lo, caso preferisse submeter-se às ordens de seu
mestre a sujeitar-se a ameaças de punições cruéis, não só a si mesmo como também à sua família.

É por isso que a liberdade não é apenas um postulado político, mas também um postulado de toda moralidade
religiosa ou secular.

A luta pela liberdade

Ainda assim, por milhares de anos, uma parcela considerável da humanidade esteve completamente ou, ao
menos, sob vários aspectos, privada do poder de escolha entre o que é certo e o que é o errado. Na antiga
sociedade de status, a liberdade de se agir de acordo com a própria escolha era seriamente restrita para o
estrato mais baixo da sociedade – a grande maioria da população – por um sistema de controles rígidos. Uma
formulação famosa desse princípio foi o estatuto do Sacro Império Romano que conferiu aos príncipes e
condes do Reich (o Império) o poder e o direito de determinar a afiliação religiosa de seus súditos.

Os orientais se submeteram docilmente a essa situação. Porém, os povos cristãos da Europa e seus
descendentes assentados em territórios britânicos no exterior foram incansáveis em sua luta pela liberdade.
Passo a passo, eles aboliram todos os privilégios e proibições das castas até que finalmente conseguiram
estabelecer um sistema que os arautos do totalitarismo tentam manchar chamando de sistema burguês.

A supremacia dos consumidores

O fundamento econômico desse sistema burguês é a economia de mercado, na qual o consumidor é soberano.
O consumidor – ou seja, todas as pessoas – , ao comprar ou deixar de comprar um produto, determina o que
deve ser produzido, em que quantidade e de qual qualidade. Os empresários são forçados, por meio de lucros
e prejuízos, a obedecer às ordens dos consumidores. Só prosperam os empreendimentos que fornecem os
produtos e serviços de melhor qualidade e com preços mais baratos que os consumidores desejam comprar.
Aqueles que não conseguem satisfazer o publico sofrerão perdas e, por fim, serão forçados a deixar o mercado.

Ordem Livre | Ludwig Von Mises 59


OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

Nos tempos pré-capitalistas, os ricos eram os donos grandes extensões de terra. Eles ou seus antepassados
tinham obtido suas propriedades a partir de presentes – feudos – concedidos pelos soberanos que, com sua
ajuda, tinham conquistado o país e subjugado seus habitantes. Esses proprietários aristocratas eram
verdadeiros lordes, já que não dependiam da preferência dos consumidores. Porém, os ricos de uma sociedade
industrial capitalista estão sujeitos à supremacia do mercado. Eles adquirem riqueza por servirem aos
consumidores melhor do que outras pessoas e perdem sua riqueza quando outras pessoas passam a satisfazer
os desejos dos consumidores de forma melhor ou mais barata. Em uma economia de livre mercado, os
proprietários do capital são forçados a investi-lo onde ele melhor sirva a população. Dessa maneira, a
propriedade dos bens de capital é continuamente transferida para as mãos daqueles que foram mais bem
sucedidos na satisfação de consumidores. É isso que os economistas querem dizer quando eles chamam a
economia de mercado de uma democracia na qual cada centavo dá direito a um voto.

Os aspectos políticos da liberdade

O governo representativo é o resultado político da economia de mercado. O mesmo movimento espiritual que
criou o capitalismo moderno substituiu, por representantes eleitos, o governo autoritário dos monarcas
absolutos e as aristocracias hereditárias. Foi esse tão condenado liberalismo que nos trouxe a liberdade de
consciência, de pensamento, de expressão, de imprensa, e que pôs um fim à perseguição intolerante aos
dissidentes.

Um país livre é aquele em que cada cidadão é livre para moldar sua vida de acordo com seus próprios planos.
Ele é livre para competir no mercado pelos empregos mais desejados e para competir na política pelos cargos
mais elevados. Ele não depende dos favores de uma pessoa mais do que essa pessoa depende de seus favores.
Se ele deseja obter sucesso no mercado, deve satisfazer os consumidores; se ele deseja ser bem sucedido na
vida pública, deve satisfazer os eleitores. Esse sistema trouxe um crescimento populacional e uma melhora no
padrão de vida inédita em toda a história nos países capitalistas da Europa ocidental, nos Estados Unidos e na
Austrália. O famoso homem comum tem à sua disposição confortos com os quais os homens mais ricos dos
tempos pré-capitalistas não poderiam nem sonhar. Ele está em posição de gozar de feitos espirituais e
intelectuais da ciência, da poesia e da arte, que anteriormente estavam disponíveis apenas à pequena elite das
pessoas ricas. E ele é livre para adorar a Deus da maneira que sua consciência lhe disser.

A deturpação socialista da economia de mercado

Todos os fatos a respeito da operação do sistema capitalista foram deturpados e distorcidos por políticos e
escritores que usurparam o rótulo do liberalismo, a escola de pensamento que no século XIX acabou com o
reinado arbitrário dos monarcas e aristocratas e pavimentou o caminho para o livre comércio e para as
empresas. Segundo esses defensores da volta do despotismo, todos os males que assolam a humanidade são
resultados das maquinações sinistras das grandes corporações. O que é necessário para se produzir riqueza e
felicidade para todas as pessoas decentes é a colocação de todas as corporações sob o estrito controle
governamental. Eles admitem, embora apenas indiretamente, que isso significaria a adoção do socialismo, o
sistema da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Porém, declaram que o socialismo será algo
completamente diferente nos países ocidentais, em comparação com o que ele é na Rússia. E, de qualquer
forma, dizem, não existe outro método para se retirar os imensos poderes que as gigantescas corporações
possuem e evitar que elas causem ainda mais danos aos interesses da população.

Contra toda essa propaganda fanática, é necessária uma ênfase contínua na verdade, de que foram as grandes
corporações que viabilizaram as melhoras inéditas do padrão de vida das massas. Bens luxuosos, feitos para
um número comparativamente pequeno de ricos, podem ser produzidos por pequenas empresas. Porém, o
princípio fundamental do capitalismo é a produção para a satisfação dos desejos da multidão. As mesmas
pessoas que são empregadas pelas grandes corporações são os principais consumidores dos bens produzidos.
Se você olhar em torno da casa de uma família de rendimento médio, você verá em favor de quem as

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OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

engrenagens estão girando. São as grandes corporações que fazem com que todos os feitos tecnológicos
modernos sejam acessíveis ao homem comum. Todos recebem os benefícios da produção em grande escala.

É uma tolice falar do “poder” das grandes corporações. A grande marca do capitalismo é que o poder supremo
sobre todas as questões econômicas pertence aos consumidores. Todas as grandes corporações cresceram a
partir de um começo modesto até seu tamanho atual em razão da preferência de seus consumidores. Seria
impossível para uma firma pequena ou média produzir todos os produtos sem os quais nenhum americano
atualmente gostaria de viver. Quanto maior for a corporação, mais dependente ela é da disponibilidade dos
consumidores de comprar as suas mercadorias. Foram os desejos – ou, como alguns dizem, a estupidez – dos
consumidores que levaram a indústria automobilística à produção de carros cada vez maiores, e que hoje as
forçam a produzir carros cada vez menores. As cadeias de lojas e as lojas de departamentos têm a necessidade
de ajustar suas operações diariamente, mais uma vez, buscando satisfazer os novos desejos de seus
consumidores. A lei fundamental do mercado é: o freguês tem sempre razão.

Um homem que critica a condução das transações comerciais e finge conhecer métodos melhores para o
abastecimento dos consumidores não passa de um fanfarrão. Se acredita que seus planos são os melhores, por
que ele mesmo não os experimenta? Sempre haverá nesse país capitalistas em busca de um investimento
lucrativo para seus fundos, e eles estariam prontos para fornecer o capital necessário para qualquer inovação
razoável. A população sempre estará disposta a comprar o que é melhor ou mais barato, ou melhor e mais
barato. O que conta no mercado não são as imaginações fantásticas, são as ações. Não foi conversando que os
“magnatas” enriqueçam, mas prestando um serviço aos consumidores.

A acumulação de capital beneficia a todos

Hoje em dia está na moda ignorar silenciosamente o fato de que toda melhora econômica depende da
poupança e da acumulação de capital. Nenhum dos feitos maravilhosos da ciência e da tecnologia poderiam ter
sido utilizados na prática se o capital necessário não tivesse sido disponibilizado anteriormente. O que impede
que nações subdesenvolvidas obtenham todas as vantagens de todos os métodos ocidentais de produção, e
assim acabem mantendo as massas na pobreza, não é a falta de familiaridade com as teorias tecnológicas, mas
a insuficiência de capital. Comete-se um erro gravíssimo sobre os problemas enfrentados pelos países em
desenvolvimento quando se afirma que precisam de conhecimento técnico, de “know-how”. Os seus
empresários e seus engenheiros, a maioria deles graduados nas melhores escolas da Europa e dos Estados
Unidos, estão bem familiarizados com a situação da ciência aplicada contemporânea. O que os deixa de mãos
atadas é a falta de capital.

Há cem anos, os Estados Unidos eram ainda mais pobres do que essas nações subdesenvolvidas. O que fez os
Estados Unidos passarem a ser o país mais rico do mundo foi o fato de que o “duro individualismo” dos anos
anteriores ao New Deal não colocava grandes obstáculos no caminho dos empreendedores. Os empresários
enriqueceram porque consumiam apenas uma pequena parte de seus lucros e injetavam uma parte bem maior
de volta em seus negócios. Assim, enriqueceram a si e a todas as pessoas. Foi essa acumulação de capital que
aumentou a produtividade marginal do trabalho e, conseqüentemente, os níveis salariais.

No capitalismo, a avareza dos empresários beneficia não apenas os próprios empresários, mas também outras
pessoas. Existe uma relação recíproca entre a aquisição de riqueza por meio do serviço prestado aos
consumidores e da acumulação de capital, e a melhora nos padrões de vida dos assalariados que formam a
grande maioria dos consumidores. As massas desempenham simultaneamente os papéis de de assalariados e
de consumidores interessados no florescimento do comércio. Era isso que os antigos liberais tinham em mente
quando declararam que na economia de mercado prevalece a harmonia dos verdadeiros interesses de todos os
grupos da população.

É na atmosfera moral e mental desse sistema capitalista que o cidadão americano vive e trabalha. Ainda
existem em algumas partes dos Estados Unidos situações que parecem ser altamente insatisfatórias para os
habitantes prósperos dos distritos mais avançados, que ocupam a maior parte do país. Porém, o progresso
mais veloz da industrialização teria, há tempos, varrido do mapa essas áreas de subdesenvolvimento, caso as

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OS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA LIBERDADE

políticas infelizes do New Deal não tivessem desacelerado a acumulação de capital, essa ferramenta
insubstituível do desenvolvimento econômico. Acostumado às condições do ambiente capitalista, o americano
médio tem certeza de que, a cada ano, as empresas fabricarão algo novo e melhor. Olhando para trás, para os
anos de sua própria vida, ele percebe que alguns utensílios que eram completamente desconhecidos em sua
juventude e que vários outros que, naquela época, poderiam ser usados apenas por uma pequena minoria,
hoje são utensílios básicos em quase qualquer casa. Ele tem plena confiança de que essa tendência prevalecerá
no futuro. Ele chama isso simplesmente de “estilo de vida americano” e não pensa seriamente sobre o que fez
essa melhora contínua da oferta de bens materiais ser possível. Ele não está seriamente perturbado com a
ocorrência de fatores que certamente podem não apenas frear a acumulação de capital, mas também produzir
em breve uma desacumulação. Ele não se opõe às forças que – através do estúpido aumento dos gastos
públicos, da redução da acumulação de capital, até mesmo da contribuição para o consumo de partes do
capital investido nas empresas e, finalmente, da inflação – estão drenando as próprias bases de seu bem
material. Ele não está preocupado com o crescimento do estatismo que, onde quer que tenha sido testado,
resultou apenas na produção e na preservação de condições as quais, em sua opinião, são terrivelmente ruins.

Não existe liberdade individual sem liberdade econômica

Infelizmente, muitos de nossos contemporâneos não conseguem perceber o que uma mudança radical nas
condições morais do homem, a ascensão do estatismo e a substituição da economia de mercado pela
onipotência governamental deverá ocasionar. Eles estão iludidos pela idéia de que existe um dualismo nítido
nas coisas humanas, que há de um lado uma esfera de atividades econômicas e de outro lado um campo de
atividades que são consideradas não econômicas. Eles acreditam que não existe nenhuma conexão entre esses
dois campos. A liberdade que o socialismo abole é “apenas” a liberdade econômica, enquanto todas as outras
liberdades permanecem intocadas.

Entretanto, essas duas esferas não são independentes, como afirma essa doutrina. Os seres humanos não
flutuam em regiões etéreas. Tudo que um homem faz deverá, necessariamente, de uma forma ou de outra,
afetar a esfera econômica ou material, e necessita de sua capacidade de interagir com essa esfera. Para poder
sobreviver, ele deve trabalhar e ter a oportunidade de lidar com alguns bens materiais reais.

A confusão se manifesta na idéia popular de que o que está acontecendo no mercado se refere apenas ao lado
econômico da vida e da ação humana. Porém, na verdade, os preços do mercado refletem não apenas
“preocupações materiais” – como a obtenção de alimentos, moradias e outros confortos – mas também
algumas preocupações que são geralmente chamadas de espirituais, mais elevadas ou mais nobres. A
observação ou a não-observação dos mandamentos religiosos – de se abster totalmente da prática de certas
atividades, se abster delas apenas em dias específicos, de se prestar assistência aos mais necessitados, de se
construir e manter locais de culto, entre outros – é um dos fatores que determina a oferta e a demanda de
vários bens de consumo e, dessa maneira, determina também os preços e a condução dos negócios. A
liberdade que a economia de mercado garante ao indivíduo não é apenas “econômica”, não é distinta de algum
outro tipo de liberdade. Ela implica na liberdade de também se decidir todas aquelas questões que são
consideradas morais, espirituais e intelectuais.

A verdade é que os indivíduos podem ser livres para escolher entre o que consideram certo ou errado apenas
se forem economicamente independentes do governo.

O que cega muitas pessoas a respeito das características essenciais de qualquer sistema totalitário é a ilusão de
que esse sistema será operado precisamente da forma que consideram desejável. Ao apoiarem o socialismo,
elas supõem que o “Estado” fará sempre o que desejam que seja feito.

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LUDWIG VON MISES

A demonstração teórica das conseqüências das tarifas protecionistas e do livre comércio é o ponto chave da
economia clássica. Isso é tão claro, tão óbvio, tão indisputável, que seus oponentes foram incapazes de propor
qualquer argumento contrário que não pudesse ser imediatamente refutado por ser completamente errado e
absurdo.

Apesar disso, atualmente nós ainda encontramos tarifas protecionistas – na verdade, encontramos até mesmo
proibições às importações – em todas as partes do mundo. Até mesmo na Inglaterra, a mãe do livre comércio,
o protecionismo está hoje em ascensão. O princípio da autarquia nacional ganha novos partidários a cada dia
que passa. Mesmo países com poucos milhões de habitantes, como a Hungria e a Tchecoslováquia, estão
tentando, por meio de uma política de tarifas altas e de proibições às importações, se tornarem independentes
do resto do mundo. A idéia básica da política do comércio exterior dos Estados Unidos é impor tarifas
alfandegárias sobre todos os bens produzidos no exterior a baixo custo para compensar a diferença. O efeito
dessas políticas é a interferência na divisão internacional do trabalho para, dessa maneira, reduzir de forma
geral a produtividade do trabalho. A única razão pela qual esse resultado não se tornou mais perceptível é o
avanço do sistema capitalista, que tem sido, até agora, suficiente para contrabalançá-lo. Entretanto, não pode
haver dúvidas de que todos estariam mais ricos hoje caso as tarifas protecionistas não tivessem transferido
artificialmente a produção de locais mais favoráveis para outros menos favoráveis.

Sob um sistema de comércio completamente livre, o capital e o trabalho poderiam ser empregados onde quer
que as condições fossem mais favoráveis à produção. Outros locais seriam utilizados, desde que fosse possível
a produção em qualquer lugar sob condições mais favoráveis. Até o ponto em que, como resultado do
desenvolvimento dos meios de transporte, dos avanços na tecnologia e de uma exploração mais completa de
países abertos recentemente ao comércio, se descubra a existência de locais mais favoráveis à produção do
que aqueles que estavam sendo utilizados, então, a produção se transferiria para essas novas localidades. O
capital e trabalho tendem a se mover de áreas onde as condições são menos favoráveis à produção para outras
mais favoráveis.

Porém, a migração de capital e trabalho não pressupõe apenas a completa liberdade de mercado, mas também
a ausência total de obstáculos ao seu movimento de um país a outro. Isso estava longe de ser realidade quando
a doutrina clássica do livre comércio foi desenvolvida. Uma grande quantidade de obstáculos impedia o livre
movimento do capital e do trabalho. Por conta do desconhecimento das condições, da insegurança
generalizada em relação à lei e à ordem e de várias outras razões similares, os capitalistas relutavam em
investir em países estrangeiros. Como no caso dos trabalhadores, também era impossível para os capitalistas
deixarem sua terra natal, não apenas por sua ignorância em relação às línguas estrangeiras, como também por
causa de dificuldades legais e religiosas, entre outras. No início do século XIX era verdade que, de certa forma,
o capital e o trabalho podiam se movimentar livremente dentro dos países, mas havia obstáculos no caminho
de seu movimento de um país para outro. A única justificativa para a distinção na teoria econômica entre o
comércio interno e externo é baseada no fato de que internamente existe mobilidade de capital e trabalho, o
que não é verdadeiro a respeito do comércio entre nações. Dessa forma, o problema que a teoria clássica tinha
que solucionar pode ser formulado da seguinte maneira: quais são os efeitos do livre comércio de bens de
consumo entre um país e outro, caso a mobilidade do capital e do trabalho entre ambos seja restrita?

A doutrina de Ricardo forneceu uma resposta a essa pergunta. Os ramos de produção se distribuem entre os
países de forma que um deles destina seus recursos àquelas indústrias que possuem maior superioridade sobre
as de outros países. Os mercantilistas temiam que um país com condições de produção desfavoráveis
importaria mais do que exportaria e assim, no fim das contas, ficaria sem dinheiro algum; e exigiam a criação
de tarifas protecionistas e proibições sobre importações a tempo de evitar que essa deplorável situação
emergisse. A doutrina clássica mostra que esses pavores mercantilistas não têm fundamento, já que mesmo
um país cujas condições de produção em cada ramo da indústria são menos favoráveis do que nos outros
países, não precisa temer por exportar menos do que importa. A doutrina clássica demonstrou, de forma

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brilhante e indiscutível – de forma, aliás, nunca contestada – que mesmo os países com condições de produção
relativamente favoráveis devem ver como uma vantagem a importação de produtos de países com condições
de produção comparativamente desfavoráveis daquelas mercadorias que também produziriam muito bem,
mas não tão bem quanto produzem outras mercadorias em cuja produção se especializaram.

Assim, o que a teoria clássica do livre comércio diz ao governante é que existem países com condições naturais
de produção relativamente favoráveis e outros com condições relativamente desfavoráveis. Na ausência de
interferência por parte dos governos, a divisão internacional do trabalho irá, por si, resultar em cada país
encontrando o seu lugar na economia mundial, não importando como suas condições de produção sejam
comparáveis às de outros países. Claro, os países com condições comparativamente favoráveis serão mais ricos
do que outros, mas esse é um fato que não pode ser alterado por medidas políticas de qualquer espécie. Isso é
simplesmente conseqüência da diferença dos fatores naturais da produção.

Era essa a situação com que se confrontava o antigo liberalismo, e a essa situação ele respondeu com a
doutrina clássica do livre comércio. Porém, desde os dias de Ricardo, as condições do mundo se modificaram
consideravelmente, e o problema que a doutrina do livre comércio teve de enfrentar nos sessenta anos
anteriores à explosão da Guerra Mundial foi completamente diferente daquele com o qual ela se ocupou no
fim do século XVIII e no início do século XIX, pois o século XIX eliminou parcialmente os obstáculos que, no
começo, tinham obstruído o caminho do livre trânsito de capital e trabalho. Na segunda metade do século XIX,
era muito mais fácil para um capitalista investir seu capital no exterior do que na época de Ricardo. A lei e a
ordem estavam estabelecidas sobre fundações consideravelmente firmes; o conhecimento de países
estrangeiros, seu estilo e costumes tinha se espalhado; e as sociedades anônimas ofereciam a possibilidade de
divisão de riscos dos empreendimentos no exterior entre muitas pessoas e, dessa forma, os reduzia.
Obviamente, seria um exagero se disséssemos que no começo do século XX o capital tinha tanta mobilidade
para transitar de um país a outro quanto para atravessar o território de um mesmo país. Para sermos exatos,
certas diferenças ainda existiam; ainda assim, a suposição de que o capital deveria permanecer dentro das
fronteiras de cada país já não existia mais. E o mesmo se aplicava ao trabalho. Na segunda metade do século
XIX, milhões de pessoas deixaram a Europa para buscar melhores oportunidades de emprego em outros países.

Naquele momento, as condições pressupostas pela doutrina clássica do livre comércio, a imobilidade do capital
e do trabalho, não mais existiam e, da mesma forma, a distinção entre os efeitos do livre mercado no comércio
interno e no comércio externo também perderam sua validade. Se o capital e o trabalho podem se mover entre
um país e outro de forma tão livre quanto se movem internamente, então não há maiores justificativas para se
fazer uma distinção entre os efeitos do livre mercado no comércio interno e externo. Então, o que era dito em
relação ao primeiro valia também para o segundo: o resultado do livre comércio é que os locais utilizados pela
produção serão apenas aqueles nos quais as condições sejam comparativamente favoráveis, enquanto aqueles
nos quais as condições de produção sejam comparativamente desfavoráveis permanecerão inutilizados. O
capital e o trabalho fluem de países com condições menos favoráveis de produção em direção àqueles em as
condições de produção são mais favoráveis, ou mais precisamente, dos países europeus, já colonizados e
altamente povoados, em direção à América e a Austrália, áreas que ofereciam condições de produção mais
favoráveis.

Para as nações européias que tiveram ao seu dispor os territórios do exterior aptos à colonização por europeus,
além das antigas áreas de colonização da Europa, isso não significava simplesmente que agora poderiam
acomodar parte de sua população no exterior. No caso da Inglaterra, por exemplo, alguns de seus filhos agora
moravam no Canadá, na Austrália e na África do Sul. Os imigrantes que deixaram a Inglaterra puderam manter
a cidadania e a nacionalidade inglesa em seus novos lares. Porém, na Alemanha a questão era um pouco
diferente. O alemão que imigrava para o território de um país estrangeiro estava entre os membros de uma
nação estrangeira. Ele se tornava um cidadão de um Estado estrangeiro, e se esperava que após uma, duas ou
até três gerações, sua ligação com o povo alemão desaparecesse e seu processo de assimilação como membro
de uma nação estrangeira estivesse completo. A Alemanha pôde apenas assistir com indiferença enquanto
uma parte de seu capital e de seu povo emigrava para o exterior.

Não devemos cometer o erro de supor que os problemas de política comercial que a Inglaterra e a Alemanha
tiveram que enfrentar na segunda metade do século XIX fossem os mesmos. Para a Inglaterra, a questão era

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saber se dever-se-ia ou não permitir que uma grande quantidade de cidadãos emigrasse para seus domínios e
não havia razão alguma para se atrapalhar essa imigração. Entretanto, para a Alemanha, o problema era se
deveria esperar em silêncio, enquanto seus cidadãos emigravam para as colônias britânicas, para a América do
Sul e para outros países, onde se esperava que esses emigrantes, com o passar do tempo, abrissem mão de sua
cidadania e nacionalidade, da mesma forma que centenas de milhares, na verdade milhões, que emigraram
anteriormente, tinham feito. Por não querer que isso acontecesse, o Império Alemão, que durante os anos
1860 e 1870 vinha se aproximando cada vez mais de uma política de livre comércio, mudou sua política no fim
dos anos 1870 para o protecionismo, a partir da imposição de tarifas sobre a importação, buscando resguardar
a agricultura e a indústria alemã contra a competição estrangeira. Sob a proteção dessas tarifas, a agricultura
alemã foi capaz de suportar a competição com fazendas que cultivavam em terras melhores, no leste europeu
e em outros continentes, e a indústria alemã pode formar cartéis que mantiveram o preço interno acima do
mercado mundial, possibilitando o uso dos lucros, obtidos internamente através do cartel, para financiar suas
vendas por um preço inferior ao de seus competidores no exterior.

Porém, o objetivo supremo da volta do protecionismo não foi realizado. Quanto mais os custos de vida e de
produção cresciam na Alemanha, como conseqüência direta das tarifas protecionistas, mais difícil ficava a
posição comercial do país. Certamente, foi possível para a Alemanha a realização de um grande
aperfeiçoamento industrial nas primeiras três décadas da era da nova política comercial. Porém, esse
aperfeiçoamento teria acontecido mesmo na ausência das tarifas protecionistas, já que ele foi, primeiramente,
resultado da introdução de novos métodos nas indústrias químicas e siderúrgicas da Alemanha, o que
possibilitou uma melhor utilização dos recursos naturais abundantes do país.

A política antiliberal, ao abolir o livre trânsito do trabalho no mercado internacional e restringir


consideravelmente até mesmo a mobilidade do capital eliminou, de certa forma, a diferença que existia nas
condições do mercado internacional entre o começo e o fim do século XIX e as reverteu àquelas que
prevaleciam na época em que a doutrina do livre mercado foi formulada pela primeira vez. Mais uma vez, o
capital e acima de tudo o trabalho tiveram seu movimento impedido. Sob as condições hoje existentes, o livre
comércio de bens de consumo não despertaria nenhum movimento migratório. Mais uma vez, ele resultaria
em uma situação na qual os indivíduos do mundo se ocupariam daqueles ramos e modelos de produção em
que encontrassem condições relativamente mais favoráveis em seus próprios países.

Porém, quaisquer que sejam os pré-requisitos para o desenvolvimento do comércio internacional, as tarifas
protecionistas só servem para uma coisa: para evitar que a produção aconteça onde as condições naturais e
sociais lhe são mais favoráveis e fazer com que ela aconteça onde as condições lhe são menos favoráveis. Dessa
forma, o resultado do protecionismo é sempre a redução da produtividade do capital humano. O defensor do
livre mercado está longe de negar que o mal que as nações do mundo desejam combater por meio de uma
política protecionista seja realmente um mal. O que defende é que os meios recomendados pelos imperialistas
e protecionistas não podem eliminar esse mal. Ele propõe um jeito diferente. Uma das características da atual
situação internacional que o liberal deseja modificar para podermos criar as condições indispensáveis para uma
paz duradoura é a questão dos imigrantes de países como a Alemanha e a Itália, criados como enteados na
divisão do mundo, que devem viver em áreas onde, por conta da adoção de políticas antiliberais, são
condenados a perder a sua própria nacionalidade.

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