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O mercado dos pobres:


um enfoque qualitativo da utilização
de programas sociais de alimentação

A qualitative approach to nutritional


programs for low-income populations

Kátia Yumi Uc h i m u ra 1
Maria Lúcia Magalhães Bosi 2

Abstract Introdução

1 Faculdade Evangélica This paper, based on a qualitative social re- Esta investigação trata da análise de dois pro-
do Pa ra n á , Cu r i t i b a , Bra s i l . search methodology, aims to analyze two nutri- gramas desenvolvidos no Município de Curiti-
2 Núcleo de Estudos em
Saúde Coletiva , Un i ve r s i d a d e tional programs through the users’ perceptions. ba, Paraná, Brasil – Me rc adão Popular e Arma-
Fe d e ral do Rio de Ja n e i ro, The study population consisted of frequent ver- zém da Família – no âmbito da política seto-
Rio de Ja n e i ro, Bra s i l .
sus infrequent users of the pro g ram to identify rial, confrontando-os com as percepções de
C o r re s p o n d ê n c i a similarities and differences and grasp va r i o u s seus usuários.
Kátia Yumi Uc h i m u ra p e r s p e c t i ves tow a rds the phenomenon. Tw o Criado em 1986 com a proposta de comer-
Rua Pa d re Anchieta 1944,
main themes appeared in the discourse analy- c i a l i z a r, a preços mais acessíveis que aqueles
a p t o. 1 9 1 , Cu r i t i b a ,P R
8 0 7 3 0 - 0 0 0 , Bra s i l . sis: “routine functioning (of the program)” and praticados no mercado convencional, gêneros
k a t y u m i @ t e r ra . c o m . b r “program user status”. These themes gave rise to alimentícios junto à população com renda fa-
d i f f e rent categories demonstrating an associa- miliar inferior a três salários mínimos 1, o Mer-
tion between the re s p e c t i ve pro g rams and c adão Popular é operacionalizado a partir do
poverty, as well as feelings related to this status, deslocamento de ônibus adaptados à exposi-
such as re s i g n a t i o n , h u m i l i a t i o n , and embar- ção e comercialização de alimentos, atendendo
rassment. The study highlights the need to con- atualmente, com periodicidade quinzenal, a 67
sider subjective aspects that influence social ex- pontos da periferia do município e sete da Re-
periences and provide the basis for individual gião Metropolitana de Curitiba, Paraná. Já o Ar-
u n i q u e n e s s , so that an effective dialogue be- mazém da Família, versão mais recente da pro-
tween government planners and the population posta anteri o r, compreende 17 unidades fixas
can be achieved. de comercialização, localizadas em pontos es-
tratégicos da cidade. Os dois programas repre-
Fe e d ; Qu a l i t a t i ve Re s e a rc h ; Social Conditions; sentam diferentes formas de operacionalização
Government Programs de uma mesma proposta de intervenção, desti-
nada a comercializar produtos alimentícios e
produtos de higiene e limpeza à população de
baixa renda residente no Município de Curitiba.
O acesso do usuário está condicionado a
um cadastramento, realizado por organizações
populares e, para tanto, é preciso que as famí-
lias interessadas apresentem documento de

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identificação dos re s p o n s á ve i s, comprova ç ã o Analisados sob o prisma tradicional da c i-


de renda familiar e comprovação de endereço. d ad an i a, que prevê a igualdade e a universali-
De posse da “c a rt e i ri n h a” de usuário, o indiví- dade de direitos e, por conseguinte, de acesso
duo passa a ter acesso aos equipamentos de a bens e serviços básicos para todos os indiví-
comercialização – respeitando-se o limite máxi- duos de uma sociedade, os programas em foco
mo de compras ao mês em cada equipamento. c u m p rem seu papel como mecanismos com-
Já situando tais ações no âmbito das políti- pensatórios das desigualdades materiais exis-
cas sociais, parece-nos importante perc o r re r tentes entre diferentes segmentos sociais. Além
alguns aspectos do debate teórico acerca desta d i s s o, permitem uma aproximação maior da
temática, colocando em re l e vo a m od al id ad e perspectiva de satisfação sistemática e perma-
de intervenção sob análise e sua art i c u l a ç ã o nente das necessidades nutricionais dos gru-
com a noção contemporânea de cidadania. pos mais pobres, especialmente quando com-
Demo 2 assinala que as políticas de alimen- p a rados às iniciativas que os antecedem, sem
tação e nutrição estariam teoricamente inseri- contar ainda que os preços de alimentos prati-
das na categoria das políticas sócio-econômi- cados nas regiões Sul e Sudeste, caso de Curiti-
cas, devido à sua natureza voltada ao enfrenta- ba, apresentam-se re l a t i vamente mais altos
mento da pobreza material, que limita, a um que nas demais capitais, o que dificultaria so-
grande contingente populacional, a satisfação b re m a n e i ra o acesso da população de baixa
das necessidades alimentares e nutricionais – renda 4.
tanto no aspecto quantitativo como qualitativo. Maluf 5, em função do caráter essencial as-
No entanto, re p o rtando-se à tra j e t ó ria da sumido pelas políticas compensatórias dirigi-
política setorial, evidencia-se a elevada con- das ao combate às carências alimentares e nu-
c e n t ração das ações em m od elos de interve n- t ricionais na sociedade capitalista, desenvo l-
ção d es e nvo lv idos para a d i st r ib u ição de ali- veu uma compreensão sobre estas ações e pro-
mentos a diversos segmentos, para o enriqueci- gramas que tangencia a discussão proposta por
m e nto ou fortificação de alimentos e para a Demo 2 . Assim, o autor destaca que as ações e
e d uc ação alimentar como forma de racionali- os pro g ramas alimentares de natureza com-
zar e otimizar o consumo alimentar da popula- p e n s a t ó ria são port a d o res de três elementos:
ção de baixa renda. Nesses casos, consideran- (a) educativos, em relação aos hábitos e práti-
do-se o distanciamento existente entre os efei- cas alimentares; (b) organizativos, para a defe-
tos dessas ações e a possibilidade de superação sa dos direitos de cidadania; (c) emancipado-
das dificuldades materiais de seus destinatá- re s, visando a pro m over a autonomia e não a
rios, observa-se sua degeneração no sentido de dependência dos beneficiários.
uma conformação assistencialista 2. Não obstante, se por um lado, os programas
Tomando por base o modelo de intervenção Me rc adão Popular e Armazém da Família con-
dos programas abordados neste estudo, perce- t ribuem para o atendimento dos direitos fun-
bemos que esses guardam características que damentais da população – incluindo o dire i t o
os diferenciam daquelas ações tradicionalmen- de acesso à alimentação adequada – implícitos
te desenvolvidas em âmbito federal. Ao contrá- na concepção tradicional de c id ad an i a, consi-
rio das ações mencionadas anteriormente, am- d e ramos igualmente re l e vante que tais ações
bos são passíveis de enquadramento na cate- v i s l u m b rem em seu hori zonte o atendimento
goria de políticas sócio-econômicas, conside- da concepção contemporânea de c id ad an i a 6.
rando seu m od elo de interve n ç ã o fundado na Isso significa respeitar não apenas o aspecto
facilitação do acesso por meio de preços subsi- m a t e rial do dire i t o, mas também os aspectos
d i a d o s, que re p resenta um incremento dire t o qualitativos que se inscrevem na subjetividade
no poder de compra, sem, contudo, impri m i r e que se manifestam nas particularidades e nas
de maneira tão explícita o estigma da pobreza diferenças constitutivas dos alicerces da perso-
à sua população beneficiária, como o fazem as nalidade, da autonomia e da liberdade dos su-
ações de doação. Lavinas et al. 3 também reco- j e i t o s, exerc e n d o, port a n t o, um papel funda-
nhecem que determinadas modalidades de mental no desempenho dos programas sociais.
p ro g ra m a s, entre elas as ações de comerc i a l i- Nesse sentido, entendemos como premen-
zação de alimentos a preços subsidiados, apre- te o resgate das percepções dos atores e, prin-
sentam caráter estrutural, que as diferenciam cipalmente, dos usuários, na análise de progra-
das ações de distribuição, de caráter emergen- mas e serviços, pois a dimensão subjetiva im-
cial e assistencialista. plícita na noção de qualidade nos remete a um

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t e r ri t ó rio que merece um maior apro f u n d a- vidual frente os programas, somada à nossa ex-
m e n t o. Nesse contexto, cabe assinalar as po- pectativa em relação ao grau de profundidade
tencialidades de se utilizar uma estratégia que que se pretendia alcançar nos depoimentos.
permita a apreensão dos sentidos dos fenôme- Para apreensão dos dados empíricos foram
nos, e, ao mesmo tempo, respeite sua comple- realizadas entrevistas em pro f u n d i d a d e, com
xidade, riqueza e profundidade. Assim, esta in- conteúdo re g i s t rado em fitas cassete após o
vestigação procura se alicerçar em uma postu- consentimento dos informantes, transcrito em
ra de busca do sentido dos fenômenos no es- momento posterior.
paço da intersubjetividade, ou melhor, no es- Na seqüência, procedemos a leitura exaus-
paço do encontro entre a subjetividade que se tiva e repetida do material, ou, como afirmam
i n s c re ve na vivência dos informantes – usuá- Mi n a yo 9 e Triviñios 8, a l e it ura flutuante d a s
rios – e na vivência do próprio pesquisador, por transcrições das entrevistas, de maneira a per-
meio das compreensões e interpretações com- mitir a nossa impregnação pelo sentido do “to-
partilhadas. do” de cada depoimento, bem como a identifi-
cação das unidades de significação, que indi-
cam os vários “momentos” ou temas presentes
Percurso metodológico nessas descrições 10.

Este estudo foi desenvolvido junto aos usuá- Um enfoque vivencial da utilização
rios cadastrados nos dois programas aqui foca- de programas sociais de alimentação
lizados, residentes nas áreas adjacentes ao Ar-
mazém da Família Santa Efigênia e aos pontos A fase de análise, de acordo com Gomes 11, com-
de Mercadão Popular Vila Leonice, Cachoeira e p reende o processo de interpretação dos da-
Ab ra n c h e s, no Município de Curitiba, Paraná. d o s. O termo p roc e ss o s u g e re a existência de
Essa região do município constituiu o espaço um movimento contínuo – que pode principiar
escolhido para o desenvolvimento da pesquisa já na fase de coleta do material – no sentido de
pelo fato de comportar o primeiro e, portanto, se “olhar atentamente para os dados da pesqui-
mais antigo ponto de atendimento do progra- s a” 11 ( p. 68). Com efeito, durante as entre v i s-
ma, inaugurado em 1986. t a s, antes mesmo da tra n s c rição do materi a l ,
A escolha da abordagem qualitativa para a t e ria início o nosso envolvimento com o con-
realização deste estudo se justifica, em primei- teúdo das falas e, de forma ainda incipiente,
ra instância, pela própria natureza do objeto, daríamos os pri m e i ros passos na direção do
que supõe respostas múltiplas, as quais não desvelamento de sentidos, assumindo, assim,
podem ser expressas ou traduzidas por lingua- conforme assinala Andrade 12 (p. 100), “...os as-
gem numérica (Fraenkel & Wallen, 1990, apud pectos intersubjetivos da dialogicidade inerente
Creswell 7). ao método”.
Foram considerados em separado os usuá- Dois temas centrais emergiram dos depoi-
rios freqüentes (aqueles que se utilizam dos mentos a partir da leitura e releitura das falas.
p ro g ramas com freqüência mensal ou quinze- São eles: o c ot id i ano do funcionamento e a
nal) e os usuários não-freqüentes (aqueles ca- condição de “ser usuário”. Esses temas consti-
d a s t rados que não se utilizam dos pro g ra m a s tuem os eixos centrais de nossa análise. Procu-
ou o fazem apenas espora d i c a m e n t e, com in- ramos, na medida do possível, desdobrar cada
tervalo de dois meses ou mais entre cada visi- tema em dimensões, as quais explicitam a rei-
ta), no sentido de evidenciar semelhanças e di- teração das categorias empíricas nas falas dos
f e renças e, desta forma, permitir a apre e n s ã o entrevistados.
de diferentes perspectivas diante do fenômeno
a ser investigado. O critério para a seleção dos • O cotidiano do funcionamento
entrevistados levou em conta, portanto, o fato
de a pessoa ser cadastrada nos programas. Na análise deste tema, ainda que se nos impo-
A amostra não foi definida aleatoriamente; nha a predominância de elementos de ord e m
ao contrári o, ela foi se constituindo com base formal ou objetiva, percebemos a possibilida-
em uma perspectiva de intencionalidade, co- de de seu desdobramento em dimensões in-
mo sugere Triviños 8, e compreendeu seis usuá- trínsecas às vivências individuais dos usuários
rios freqüentes e sete não-freqüentes, os quais junto aos programas. As dimensões referentes
atendiam – tanto na totalidade, como na sin- a este tema são: a ambiência e estrutura de
g u l a ridade – os requisitos necessários para apoio; a normatização do acesso e os preços e a
compor o conjunto de informantes-chave da in- qualidade dos produtos. Cabe assinalar que es-
vestigação, considerando-se sua vivência indi- se pri m e i ro plano de entendimento dos pro-

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g ramas poderia ser explorado por uma meto- mente para o uso racional dos parcos recursos
dologia de caráter mais diretivo, utilizando-se disponíveis. Para vencimentos utilizados, qua-
de instrumentos mais estruturados. Contudo, a se na totalidade, no atendimento das deman-
maneira pela qual esta expressão formal se ar- das de consumo alimentar, a pequena varieda-
ticula com os sentimentos terminaria ocultada. de de produtos e de marcas, embora represen-
Embora alguns aspectos referentes ao fun- te uma restrição do espectro de opções, parece
cionamento dos programas Mercadão Popular e x e rcer efeito facilitador no processo de sele-
e Armazém da Família já tenham sido apresen- ção dos alimentos a serem adquiri d o s. De
tados em momento anteri o r, os depoimentos acordo com esse raciocínio, sem a tentação ao
dos entrevistados nos permitem um aproxima- alcance dos olhos, seria provavelmente menos
ção maior do cotidiano de sua utilização, reve- difícil controlar o desejo de consumir além das
lando traços e percepções que são captados possibilidades do orçamento.
unicamente com base na análise de suas expe- “...No Armazém não tem muitas marcas di-
riências singulares. f e re n t e s . ( Isto) ajuda porque daí você não tem
Um dos primeiros elementos que emergem muita opção pra gastar. . . ( Em outro supermer-
das falas dos usuários refere-se à ambiência e à cado) eu acho mais difícil porque a gente sem-
estrutura de apoio destinada à operacionaliza- p re fica em dúvida” (En t revistado 4 – usuári o
ção dos programas. Segundo os entrevistados, freqüente).
o reduzido espaço físico destinado à circulação Porém, deixar de comprar um determinado
de pessoas nos ônibus do Me rc adão Popular e produto por não sentir vontade de consumi-lo
nas edificações destinadas a abrigar os equipa- ou por não dispor de condição financeira mo-
mentos do programa Armazém da Família pe- mentânea para adquiri - l o, difere substancial-
naliza os usuários pela acentuada situação de mente do fato de deixar de comprar um produ-
desconforto ocasionada ora pelo calor, ora pe- to porque o mesmo nunca se encontra dispo-
la necessidade de se aguardar a vez em longas nível para a venda no equipamento social.
filas sujeitas às va riações climáticas, ou pela “...Sou cardíaco e sou diabético. Eu não pos-
superlotação. Esse pensamento é compartilha- so comer margarina com sal (...) e margarina
do por usuários freqüentes e não-freqüentes. não tem (de) outro tipo pra vender. Só aquele ti-
“...Às vezes eu chego lá e tenho que ficar es- po (...) com sal. Então você não tem o que esco-
p e rando porque tá entupido de gente. Lá (é lher! Chega ali tem que comprar o que tem ...”
um) mercadinho. Tem que ficar esperando por- (Entrevistado 7 – usuário não-freqüente).
que não tem aquele conforto de um merc a d o Esse impasse entre o querer e o poder reme-
n o r m a l .C l a ro que ali é o necessário mesmo, en- te-nos ao que Bobbio 13 (p. 49), denomina “li-
tão não investem muito. No tamanho, né? (...) b e rd ade negativa” e “liberdade positiva”. Essas
Então a gente fica aguardando!...” (Entrevista- duas formas de liberdade identificadas pelo au-
do 3 – usuário freqüente). tor derivariam, segundo nosso entendimento,
“...Começou a chover na época em que a da concepção filosófica aristotélica de liberda-
gente tava lá, daí tinha que ficar na fila! Quem de. A liberdade negativa estaria associada à “au-
não podia ficar na chuva, com criança, foi em- sência de impedimento ou de constrangimen-
b o ra! Acabou perdendo a vez e daí, só nos ou- t o”, ou seja, à possibilidade de fazer algo sem
t ros quinze dias que iam vir” (Entrevistado 1 – ser impedido ou de não ser obrigado ou cons-
usuário não-freqüente). t rangido a fazer algo. Já a l ib e rd ade positiva,
Já as percepções acerca da va riedade dos também conhecida por “autodeterminação” ou
p rodutos disponíveis na pauta de comerc i a l i- “a u t o n o m i a”, significaria a possibilidade de o
zação nos mostram diferentes possibilidades sujeito “...orientar seu próprio querer no sentido
de interpretação da questão. de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser
Especialmente entre os usuários não-fre- determinado pelo querer de outros” 13 (p. 49).
qüentes, evidencia-se o descontentamento em Assim, ao limitar as possibilidades de esco-
relação à diversificação da pauta. Tal insatisfa- lha, os pro g ramas estariam estabelecendo li-
ção expressa o s e nt im e nto diante de uma si- mites à liberdade de quere r, leva n d o, inva ri a-
tuação que representa, para essas pessoas, uma ve l m e n t e, a uma predefinição da decisão por
restrição à liberdade individual de escolha. c o m p rar ou deixar de comprar determ i n a d o
“...O que você ganha numa chapa, perde nu- produto e, na concepção dos entrevistados não
ma foice. A metade das coisas não tem” (Entre- f re q ü e n t e s, essa situação leva ria à imposição,
vistado 7 – usuário não-freqüente). sutil e silenciosa, dos produtos passíveis de in-
Vista por outro ângulo, a limitada va ri e d a- clusão em seu universo de consumo.
de pode se apresentar como um aspecto posi- A dimensão “A normatização do acesso” re-
t i vamente va l o ra d o, por contribuir indire t a- fere-se ao conjunto das normas que regulam os

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aspectos operacionais determinantes das con- É possível perceber que, embora esse limite
dições de atendimento aos usuários nos vários não implique a impossibilidade de satisfação
pontos de venda. de suas necessidades nutricionais, sua simples
As referidas normas encontram-se expostas existência representaria a imposição de um pa-
na entrada do Arm azém da Família Sa nta Ef i- drão quantitativo de consumo. Vale acrescen-
gênia e, de imediato, é possível perceber a ele- tar que as necessidades dos indivíduos não se
vada concentração de mensagens – as “regras” re s t ringem àquelas de ordem biológica. Ex i s-
– impondo algum tipo de re s t rição: (a) apre- tem necessidades de natureza simbólica, cujo
sente a cart e i rinha e documento com foto do valor se iguala ou até mesmo supera as neces-
u s u á rio que fará as compras; (b) observe o li- sidades de natureza orgânica ou fisiológica 15 .
mite de cotas permitidas; (c) cheques e tíque- No conjunto, as re g ras há pouco re f e ri d a s
tes não serão aceitos; (d) solicite ao caixa para p a recem estar muito presentes na memóri a
controlar o valor de sua compra, evitando de- dos usuári o s, em função, talvez, da cobra n ç a
voluções; (e) se possível, traga dinheiro troca- no sentido de cumpri-las que se impõe a cada
do; (f ) confira sempre seu troco; (g) embala- situação vivida junto aos programas, adquirin-
gens não são fornecidas; (h) trocas somente do, nessa perspectiva, uma existência concre-
com a apresentação de ticket do caixa; (i) carri- ta: “tem uma porção de regras. Isso aí o moço fa-
nhos e cestinhas não podem sair do interior do lou pra mim na hora em que tive que mostrar a
A rmazém; (j) para sua comodidade, evite tra- carteirinha, (...) ali na porta. Ele falou que tem
zer acompanhantes; (k) para evitar acidentes, as re g ra s : (o) tanto que compra , de pessoas lá.
recomendamos não entrar com crianças. Está escrito tipo: óleo, tantas latas, tantas com-
Um elemento regulador merece destaque: p ras no mês. Tem muitas re g ra s . Então você tá
o limite de produtos permitido em cada com- pagando pra seguir regras. Eu não aceito, since-
pra, ou seja, a cota de produtos. ridade. É meio difícil” (Entrevistado 5 – usuário
As opiniões quanto ao estabelecimento de não-freqüente).
uma cota máxima para determinados produtos Ou t ra dimensão explorada neste tema foi
são divergentes entre os usuários freqüentes e “O preço e a qualidade de pro d u t o s”, uma vez
não-freqüentes. Entre os usuários freqüentes, a que o preço acessível é considerado um ponto
existência das cotas parece ser um fato natu- forte dos programas, infalivelmente anunciado
ralmente aceito: nos documentos e materiais de divulgação con-
“Que nem tem pessoas que falam: – Ah , e u cernentes às ações desenvolvidas pela Secreta-
não vou mais no Mercadão porque tem uma co- ria Municipal de Abastecimento (SMAB). A men-
ta pra compra r. Mas tá certo ter uma cota por- ção que se faz à diferença entre os preços prati-
que você ve j a : por mais que seja uma família cados nos pro g ramas e aqueles praticados no
grande, não precisa comprar mais do que cinco c o m é rcio em geral pode ser observada em di-
pacotes de arroz . . .” (En t revistado 13 – usuári o ferentes momentos, sendo que, em alguns de-
freqüente). l e s, esse valor aparece objetivamente dimen-
Pa rtindo da afirmação do usuári o, que diz sionado – 30% em média 16,17.
não ser necessária uma quantidade tão grande Nas falas de usuários freqüentes, evidencia-
para a satisfação das necessidades de uma fa- se a importância do aspecto econômico: “...qual-
mília numerosa, empreendemos uma análise quer coisinha a menos, a pessoa já ganha o fre-
da composição química dos produtos incluí- g u ê s . Po rq u e , uma compara ç ã o : você vai com-
dos na cota, com o intuito de ve ri f i c a rmos o prar, vamos supor aí, cinqüenta reais de merca-
g rau de atendimento das recomendações nu- doria. (...) comprando lá no mercado, uma lata
t ri c i o n a i s, e constatamos que a existência de de óleo custa o quê? Um real e pouco. Aq u i , t á
um limite não impede o atendimento dos re- oitenta e quatro (centavos)! Quer dizer que, por
querimentos nutricionais de energia e proteí- a í , a gente já tira que se ele comprar (...) cinco
nas estabelecidas pelo National Research Coun- latas de óleo (...) ele já vai ganhar uma quanti-
cil em 1989 14, uma vez que o consumo de toda dadezinha. Já dá pra comprar outra lata” (En-
a quantidade considerada em nosso cálculo ul- trevistado 11 – usuário freqüente).
trapassaria em 89,11% as necessidades de pro- Sentimos a necessidade de ve rificar essa
teína e em 38,4% as de energia. d if e rença de preço no sentido de art i c u l a r, na
No entanto, observamos em depoimentos análise, o plano subjetivo com a objetividade à
de usuários não-fre q ü e n t e s, que a existência qual ele se reporta. Para tanto, comparamos os
das cotas representaria um problema. preços praticados nos programas com os pre-
“...Você tem o limite de compra, esse que é o ços dos mesmos produtos em outros super-
problema. Você tem o limite pra poder comprar” m e rcados de Cu ritiba, por intermédio de um
(Entrevistado 1 – usuário não-freqüente). s e rviço disponibilizado pela SMAB – Di s q u e

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Economia – que forn e c e, via In t e rnet ou liga- dos usuários freqüentes nos revelam sua preo-
ção telefônica, informação atualizada sobre cupação para com o aspecto econômico da
p reços de produtos em vários superm e rc a d o s aquisição de alimentos, faz-se igualmente im-
da cidade. Neste caso, fizemos a consulta por portante refletirmos sobre os depoimentos de
meio da home page da Prefeitura Municipal de u s u á rios não-fre q ü e n t e s, pois estes nos suge-
Curitiba 18, e pudemos constatar que o valor da rem a existência de outros elementos que po-
compra do conjunto dos itens pesquisados em dem se contrapor àqueles de ordem materi a l
três supermercados excederia o valor da mes- ou econômica na determinação da freqüência
ma compra nos programas Me rc adão Popular de utilização ou na própria decisão pela utili-
e Armazém da Família. Nessa semana específi- zação de urna intervenção governamental.
ca, os preços praticados nos superm e rc a d o s
m o s t ra ra m - s e, em média, superi o res aos dos • A condição de “ser usuário”
programas em 33,79%; ratificando, portanto, o
valor usualmente divulgado pela SMAB. Neste tema, nosso foco passa a contemplar a
Os depoimentos de usuários freqüentes se “e x p e riência vivida” 19 dos usuários junto aos
c o n f i rmam ante a realidade concreta: os pre- programas, ou seja, a forma pela qual os sujei-
ços dos produtos são realmente atra t i vo s. No tos experimentam e vivenciam as circ u n s t â n-
e n t a n t o, depara m o - n o s, na fala dos usuári o s cias, sejam estas adversas ou não, inerentes ao
n ã o - f re q ü e n t e s, com um elemento apare n t e- fato de ser beneficiário de um programa social
mente indissociável na avaliação do beneficio para obter aqueles bens necessários ao susten-
ou ganho econômico advindo da aquisição de to da família.
produtos com preços mais acessíveis: a quali- Um ponto se mostra bastante claro, tanto
dade – no âmbito deste aspecto específico – p a ra usuários freqüentes como para não-fre-
c i rc u n s c rita aos atributos físicos e sensori a i s qüentes: a quem se destinam tais programas e
dos produtos comercializados. Para eles, o pre- qual o significado de se pertencer a tal gru p o.
ço reduzido não constituiria um motivo sufi- Em seus depoimentos, categorias como i nf e-
cientemente compensador para adquirir pro- rior, nível baixo, pobres e mais humilde emer-
dutos cujos atributos estivessem dissonantes gem com certa recorrência na identificação do
de suas expectativas. público alvo dessa ação gove rnamental espe-
“...Ainda falam que as coisas são muito ba- c ífica: “...então eu vejo nesse sentido, que tem
ra t i n h a s . Mas muito inferiores! Pra mim, s ã o aquelas p e ssoas mais inferi o re s. Daí eles vão
i n f e r i o re s . Não adianta comprar uma coisa ali, porque ali é onde eles podem comprar, por-
mais barata que num mercado e ser ruim. ( . . . ) que tá ao alcance deles. É assim que eu ve j o”
Eu ando mais um pouco, mas compro uma coi- (Entrevistado 11 – usuário freqüente).
sa melhor. . .” (En t revistado 06 – usuário não- “Ah , o Me rcadão (...) eu acho que a pessoa
freqüente). que fez já pensou na pessoa assim, que não tem
“Ih! Eu achei que não é tanta vantagem nos condições de ir num mercado, não compra. Pra
preços. Pela qualidade (que) deixa muito a de- m i m , o Me rcadão é uma coisa assim: eu digo
sejar” (Entrevistado 5 – usuário não-freqüente). que é o m e rc ado dos pobre s. . .” (En t re v i s t a d o
Esta percepção sobre os atributos dos pro- 8 – usuário não-freqüente).
dutos pode ser reveladora da associação que se “...esse mercado é da pobre z a , isso é o m e r-
faz entre a utilização dos programas e uma si- cado da pobreza...” (Entrevistado 11 – usuário
tuação de sujeição. Essa suposição nos leva ri a freqüente).
a pensar que o uso freqüente dos pro g ra m a s “E a gente vê que a maioria das pessoas são
seria determinado unicamente pela necessida- diaristas, são pedre i ro s ,d e s e m p re g a d o s ,p e s s o a s
de econômica, cuja influência na freqüência de que é a parte pobre mesmo que procura. Pessoas
utilização estaria se sobrepondo às demais mais abastadas não pro c u ra m” (En t re v i s t a d o
possibilidades, incluídos os elementos subjeti- 3 – usuário freqüente).
vos responsáveis pela identificação do usuário “Só pessoas que não podem compra r : p e s-
com a proposta: soas do nível baixo. Só as pessoas do nível bai-
De fato, embora os pro g ramas Me rc ad ã o xo” (Entrevistado 10 – usuário não-freqüente).
Popular e Armazém da Família tenham conse- Percebemos que a pobreza e o p ob re, e sp e-
guido manter preços reduzidos quando com- c if ic am e nt e, aparecem, segundo as categorias
parados aos preços praticados nos estabeleci- presentes nas narrativas, associados a uma no-
mentos convencionais, não podemos – apoia- ção de inferi o ridade e subord i n a ç ã o. Essa si-
dos exc l u s i vamente no aspecto econômico – tuação re p e rc u t i ria, por sua vez, em uma ne-
sustentar a afirmação de que sua utilização se- cessidade de sujeição diante do que se tem
ja vantajosa. Se, por um lado os depoimentos acesso. Essa constatação emerge de forma ex-

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plícita das verbalizações de usuários não fre- gramas, a vida reservada aos pobres não só po-
qüentes: “...quem não tem escolha traz a mar- de como deve ser diferenciada – implícita a no-
garina salgada mesmo. E aquele café deles lá, ção de inferioridade – da vida destinada aos ri-
horrível de ruim, mas quem não tem cachorro, c o s, daí a aceitação de situações usualmente
caça com gato mesmo. De que jeito? E vai vi- não toleradas pelos sujeitos de maior poder
vendo, né?” (Entrevistado 7 – usuário não-fre- aquisitivo. Para pobres e ricos, a noção do que é
qüente). bom ou ruim t a mbém obedeceria a cri t é ri o s
“...O arroz não é um arroz de primeira as- diferenciados.
sim, sabe? Mas é um arroz que todo mundo po- Entendemos que os depoimentos, ao se re-
de comer dele, na classe de pobre é claro que a f e ri rem aos programas como bons para os po-
gente pode comer. Então é um arroz bom e tá b re s , p roc uram demonstra r, nas entre l i n h a s,
bem mais em conta que nos mercados” (Entre- que os programas são bons apenas para os po-
vistado 10 – usuário não-freqüente). b re s , p ara aqueles que estabelecem uma re l a-
O b s e rvamos que a utilização dos pro g ra- ção de dependência para com tais ações gover-
mas abordados neste estudo configuraria uma namentais, tendo em vista que os r ic o s, repre-
espécie de resignação imposta pela precarieda- s e nt a ndo o grupo que não depende dos pro-
de das condições materiais de existência, ou de gramas, estando isentos da sujeição inerente à
sobrevivência. Tanto que, a despeito da possi- utilização dos mesmos.
bilidade de economia, a utilização fre q ü e n t e Nessa perspectiva, a utilização dos progra-
dos pro g ramas – na percepção dos usuári o s mas não apenas reforçaria o estigma da pobre-
que desistiram de sua utilização ou os utilizam za, mas contribuiria para identificar, conforme
apenas esporadicamente – parece estar reser- a assiduidade, aqueles mais pobre s, ou seja,
vada como estratégia para aqueles que convi- aqueles sujeitos que, inevitavelmente, buscam
vem com a impossibilidade de acesso a outros nesses mecanismos um apoio à sua sobre v i-
estabelecimentos: “bom, se a gente tivesse bas- vência.
tante dinheiro, não faria compra lá! Porque lá é São várias as categorias experienciais que
p ra pessoas de baixa re n d a . Pras p e ssoas que re t ratam os sentimentos dos usuários no seu
não ganham muito. Po rque as pessoas que ga- vivido junto aos pro g ra m a s. A ambigüidade
nham bem vão no melhor mercado! Vão nesses vinculada à freqüência de utilização dos mes-
aí comprar melhor, né?” (Entrevistado 1 – usuá- mos, pontuada anteriormente em diversos mo-
rio não-freqüente). m e n t o s, parece diluir-se ante a pro f u n d i d a d e
“Agora, vantagem tem pros pobres, pros coi- das revelações. Observamos a presença de ca-
t ad o s que não têm condições de ir num merca- tegorias como decepção, constrangimento, tris-
do lá, que nem vocês vão. E enchem dois, t r ê s teza, sofrimento, humilhação, desamparo, dis-
c a r r i n h o s . Deus que abençoe quem pode faze r criminação.
isso!”(Entrevistado 8 – usuário não-freqüente). “Ah , me senti h um il h ad a! Bem h um il h ad a.
Diante de relatos que evocam uma suposta (...) eu sinto que todas as pessoas que estão ali
inferioridade – que por seu turno remete à ne- sentem-se humilhadas” (Entrevistado 5 – usuá-
cessidade de sujeição e resignação – parece-nos rio não-freqüente).
importante compreender a lógica de constru- “Ah , eu sei lá. Eu fiquei assim d ec e pc i on a-
ção da identidade social do pobre. Segundo Sar- d a. Isso daí foi uma d ec e pç ã o. Daí você já fica
ti 20, a imagem histórica do pobre encerra em si assim meio perdida porque não sabe como fun-
uma negatividade, por ele representar a ausên- ciona. (...) Não te dão a mínima, parece que vo-
cia, o avesso daquilo que deveria ter ou ser. Se cê é uma coisa qualquer, sei lá. Não me serve is-
inicialmente estava associado apenas à ausên- so” (Entrevistado 5 – usuário não-freqüente).
cia ou carência material, hoje o pobre personifi- “. . . Então a pessoa se sente assim ... tri s t e,
caria igualmente a ausência de direitos. constrangido porque não tem tanta energia as-
A identidade social é definida e só tem sen- sim pra se movimentar, né?...” (Entrevistado 4 –
tido a partir de contra s t e s. Assim, a categori a usuário freqüente).
pobre aparece em oposição à categoria rico 20. “...Mas faz a gente se sentir diferente porque
Essa dicotomia r ic o x p ob re também é identifi- nos outros armazéns, nos outros merc a d o s , a
cada por Ca l d e i ra 21 e Salem 22 , na explicação gente pode levar o carrinho. (...) Então essas coi-
dos sujeitos para sua situação social e para o sas deixam a gente meio. . . assim e nc ab ul ad o,
lugar por eles ocupado no mundo. O “ser rico” sei lá, por causa disso. Porque a gente não pode
ou o “ser p ob re” d et e rm in aria quem são os usar esse tipo de coisa” (Entrevistado 4 – usuá-
“iguais” e quem são os “outros”. rio freqüente).
Por esse ângulo, podemos supor que, nas Os depoimentos também nos perm i t e m
representações da população usuária dos pro- vislumbrar como se dá esse processo de aceita-

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ção ou negação dos pro g ramas por parte dos a gente não come muito, a gente pro c u ra com-
usuários e quais motivos são desencadeadores prar do arroz melhor um pouquinho. E o arroz
das diversas posturas, desde a utilização regu- ali ele é bom, mas sempre que não souber fazer
lar ou a utilização esporádica até o abandono ele fica meio papa. Mas por isso eu não compro
dos programas. a l i .C o m p ro pouca coisa ali. Eu uso o Mercadão
En t re os usuários fre q ü e n t e s, o preço dos p o u c o. . .” (En t revistado 10 – usuário não-fre-
p rodutos destaca-se entre os motivos que re- qüente).
metem à utilização re g u l a r, sistemática e fre- Admitimos que a carga de objetivação pre-
qüente dos pro g ra m a s, ratificando nossa con- sente nos relatos tem origem na forma como a
cepção acerca da importância desse aspecto na informação foi obtida junto aos entrevistados.
determinação da freqüência de utilização. Não fosse a iniciativa de conduzir o usuário a
“No Mercadão, eu vejo assim, e c o n o m i a .( . . . ) uma racionalização da questão colocada, tais
Dá essa diferença (...). Eu, quando fuço compra motivos poderiam emergir do interior de suas
no Me rc a d ã o, vejo que meu dinheiro re n d e . falas de forma espontânea, perm i t i n d o - n o s
Quando eu vou no mercado normal, eu gasto acessar o fenômeno de maneira ainda mais
m a i s , às ve ze s , além do que pre c i s a va gastar” aprofundada.
(Entrevistado 3 – usuário freqüente). Quando o entrevistado refere não se sujei-
“Por causa do salário (...), as coisas são mais tar ao consumo de determinados pro d u t o s,
em conta, mais baratas. Facilita mais (...). A di- mesmo sendo pobre, ele nos mostra uma von-
ferença é enorme, né?...” (Entrevistado 2 – usuá- tade imanente e, talvez ainda não consciente,
rio freqüente). de libertação, de fazer escolhas, de exercício de
Já os usuários não-fre q ü e n t e s, muitos dos cidadania, no sentido aqui empregado. A con-
quais admitem-se como desistentes, ainda que dição de pobreza parece ser assumida nos de-
p o rt a d o res da cart e i ra de cadastro, re l a t a m poimentos dos usuários não-fre q ü e n t e s, mas
motivos diversificados. as situações de sujeição e inferioridade impos-
“...Eu dei uma parada agora porque o Mer- tas por essa condição de pobreza não nos pare-
cadão é longe (...). Ultimamente eu parei por- ce igualmente aceita.
que é longe pra gente ir buscar as compra s .N ã o Cabe analisar, também, o valor simbólico
tem com o que eu ir buscar. Não tenho carro, atribuído ao ato de consumir “uma comida de-
não tenho nada. Mas eu parei por causa disso cente”, como nos relata o usuário. Sabemos que
daí” (Entrevistado 1 – usuário não-freqüente). a c om id a, ou as c om idas em geral, além dos
“. . . Eu quase não gostava de comprar no nutrientes encerram igualmente uma carga de
Me rcadão por causa desse motivo. Eu compro signos elaborados a partir do universo cultural
bastante verdura e lá dentro não tem verdura! É dos sujeitos. Neste caso, o consumo de um pro-
só o arroz ,f e i j ã o, c a f é ,a ç ú c a r, a ze i t e , b o l a c h a , duto com determinadas características pode-
essas coisas. Mas verdura é tudo ali fora” (En- ria conferir aos sujeitos a inclusão em um ou
trevistado 7 – usuário não-freqüente). outro grupo social.
“Eu comprei uma vez, daí você não tem op- Da Matta 1 5 ( p. 57), afirma que “a comida
ção de marc a s , até mesmo de qualidade (...). vale tanto para indicar uma operação unive r-
Tem farinha de trigo, vem daquela preta, escu- sal – o ato de alimentar-se – quanto para defi-
ra. Aqui em casa a gente não usa. Biscoitos, você nir e marcar identidades pessoais e grupais, es-
não tem variedade. Enfim, é tudo assim. A í ,a c a- tilos regionais e nacionais de ser, f a ze r, estar e
bei desistindo. Falei: – Não, não é por aí. A gente v i ve r”. À c om ida é atribuída a tarefa de demar-
trabalha só pra comer, então, vamos comer uma car a identidade social dos sujeitos.
c om ida decente, de marcas melhore s . Que pa- Para alguns, comprar a comida nos progra-
gue um pouco mais, porque já não faz mais na- mas e comer a c om ida do “Me rcado dos Po-
da na vida a não ser comer, né? Eu trabalho pra bres” pode representar a ratificação da sua ne-
isso! Então é isso aí” (En t revistado 5 – usuári o cessidade de sujeição e, conseqüentemente,
não-freqüente). de sua suposta condição de inferioridade. Dei-
“. . . Ah , nem sei. Nem eu, nem meu marido, xar de comprar ou não consumir tais pro d u-
nós não gostamos de ir ali. Não sei por que eu t o s, em contra s t e, pode simbolizar um maior
não gostei dali. A gente já é pobre. Sair pra com- grau de proximidade para com outros estratos
p rar umas coisas mais inferiores ainda, o que sociais.
não fica? (...) eu ando mais um pouco, mais lon-
g e ,p ra poder comprar coisas melhores” (Entre-
vistado 6 – usuário não-freqüente).
“Ah , sei lá. Po rque o meu marido ele gosta
mais do arroz melhor um pouquinho. Dai como

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Considerações finais mesma intervenção. Dessa forma, foi-nos pos-


sível elucidar a imbricação dos programas com
Na análise dos programas Me rc adão Popular e a identidade da p ob reza e os sentimentos ine-
Armazém da Família, evidencia-se a influência rentes à essa condição, tais como a resignação,
de elementos q u al it at ivo s , i mp re gn ados de a sujeição, a humilhação e o constrangimento,
s u b j e t i v i d a d e, na gênese dos va l o res e, por entre outros mencionados. Sentimentos esses
conseguinte, na emissão do juízo empreendida que desempenham, junto aos usuários, um pa-
por sua população usuária. pel contundente na decisão pela utilização dos
Embora tais programas encerrem elemen- programas. Tão contundente a ponto de sobre-
tos que, dada a especificidade de seu modelo pujar, em alguns casos, até mesmo a pre c a ri e-
de intervenção, subsidiam o enfrentamento das dade de suas condições de vida.
p ri vações materiais comuns aos usuári o s, tal Seguramente, os setores responsáveis pela
como a dificuldade de acesso aos alimentos planificação e implantação de políticas sociais,
n e c e s s á rios ao seu sustento, ainda assim não ao se dissociarem do excesso de objetividade
conseguem romper a distância que os separa imposto pelo estabelecimento de objetivos ope-
do atendimento às expectativas dessa popula- racionais e pela busca de resultados mensurá-
ção e, nessa perspectiva, ao contrário do que se ve i s, experimentarão um ve rd a d e i ro diálogo
m o s t ra com base em uma análise superf i c i a l , junto ao público destinatário de suas interven-
eles não confluem necessariamente para o que ç õ e s. Is s o, muito além de todas as inova ç õ e s
aqui entendemos por c id ad an i a , em todas as técnicas possíveis de serem aplicadas aos equi-
suas dimensões constitutivas. pamentos sociais, requer um aprendizado quan-
Como vimos, a utilização de uma interven- to às necessidades legítimas da população, ou
ção dessa natureza, longe de corresponder a seja, um aprendizado em direção ao reconhe-
um mero auxílio material, está profundamente cimento das necessidades assim perc e b i d a s
associada à afirmação da liberdade, da autono- pelos usuári o s, as quais não podem ser sim-
mia ou da falta delas e, principalmente, à defi- plesmente traduzidas em números. Em outras
nição de uma identidade social. Essa constata- palavras, há que se considerar a subjetividade
ção se mostra ainda mais explícita valendo-se que permeia as práticas sociais e que alicerça
das percepções dos usuários não-freqüentes. as singularidades dos sujeitos, pois, pelo que
Em muitos momentos, destacamos as di- se observa, as falas da população não têm sido
vergências presentes nas falas dos dois grupos acessadas pelo seu interlocutor – o órgão ges-
– usuários freqüentes e usuários não-freqüen- t o r. Com efeito, as linguagens utilizadas são,
tes – por entendermos que isso confirmaria as ainda, muito diferentes.
i n ú m e ras possibilidades de leitura de uma

Resumo

A presente investigação trata da análise de dois pro- imbricação dos pro g ramas com a identidade da po-
gramas sociais na área de alimentação confrontando- breza e com os sentimentos inerentes à essa condição,
os com as percepções de seus usuários. A orientação tais como: re s i g n a ç ã o, h u m i l h a ç ã o, sujeição e cons-
metodológica inscre ve-se na abordagem qualitativa trangimento. Os achados reforçam a necessidade de se
de pesquisa social, sendo a população estudada com- considerar a subjetividade que permeia as práticas so-
posta por usuários freqüentes e não-freqüentes, de mo- ciais e que alicerça as singularidades dos sujeitos para
do a evidenciar semelhanças e diferenças e permitir a que, dessa forma, possa se estabelecer uma efetiva in-
a p reensão de diferentes perspectivas diante do fenô- terlocução entre os setores responsáveis pela planifica-
meno investigado. Dois temas centrais emergiram da ção e implantação de programas sociais e a população
análise discursiva: o cotidiano do funcionamento e a a que se destinam.
condição de “ser usuário”. Esses temas, e i xos centra i s
de nossa análise, desdobraram-se em distintas dimen- Alimentação; Pesquisa Qualitativa; Condições Sociais;
sões a partir das quais tornou-se possível elucidar a Programas Governamentais

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AVALIAÇÃO QUALITAT I VA DE PROGRAMAS DE ALIMENTA Ç Ã O 491

Colaboradores

A idealização do artigo, a análise nele contida, o aten-


dimento às sugestões dos revisores, a revisão do texto
final, dentre outros pontos, foram desenvolvidos con-
juntamente pela autoras.

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