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ARTIGO ARTICLE
Financeirização do Estado, erosão da democracia
e empobrecimento da cidadania: tendências globais?
Abstract This article analyses the advance of the Resumo Este artigo aborda a questão do avanço
neo-liberal regime, in order to contextualise the internacional do regime neoliberal, contexto da
international formulation of policies focussed on formulação de políticas que focalizam a pobre-
poverty reduction. In recent debates, terms such za, inclusive em países centrais. Em debates re-
as ‘citizenship’ and ‘democracy’ have been subject centes, termos como ‘cidadania’ e ‘democracia’
to critical scrutiny, revealing changes in the rela- têm sido sujeitos à interrogação crítica, revelan-
tions between citizens and the State which ac- do mudanças na relação cidadão/Estado que
company the hegemony of economic criteria that acompanham a hegemonia de critérios econô-
put financial considerations at the centre of na- micos e a financeirização dos Estados nacio-
tional states. We argue that analyses of such glo- nais. Argumentamos que tais processos globais
bal processes require an ample political economy requerem uma abordagem ampla, de uma pers-
perspective, capable of illuminating how the sub- pectiva de economia política, capaz de iluminar
stance of democracy and the legitimacy of state como a substância da democracia e a legitimida-
authority have been conditioned by the advance de da autoridade estatal têm sido condicionadas
of new global entities that represent the interests pelo avanço de novos atores globais que repre-
of capital, favouring the concentration of wealth sentam os interesses do capital, favorecendo a
and the increase of poverty, inequality and exclu- concentração da riqueza e o aumento da pobre-
sion, and installing a state of vital insecurity that za, da desigualdade e da exclusão, e instaurando
affects the majority of the world’s population. uma insegurança vital que atinge a maioria da
Key words Globalization, Neo-liberal political população em nível mundial.
economy, Welfare state, Poverty, Capitalism Palavras-chave Globalização, Política neolibe-
ral, Estado de bem-estar, Pobreza, Capitalismo
1
Depto. de Ciências Sociais,
ENSP/FIOCRUZ. Rua
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ.
karengi@ensp.fiocruz.br
1492
Giffin, K. M.
para os mais ricos, 1% das famílias mais ricas das desigualdades nestes países, a análise com-
apropriaram 57,5% do total em 2003, compara- parativa mostra que, onde há políticas univer-
do com 37,8% em 1979. Esta análise, também, se sais que ofereçam serviços públicos de qualida-
refere à erosão do valor real do salário mínimo de, estes representam também empregos públi-
(hourly wage) e da extensão e qualidade de bene- cos de melhor qualidade, formando mercados
fícios contidos nos contratos de trabalho, como de trabalho menos polarizados25.
seguros de saúde, por exemplo, disponível para Gerschman aponta que a escassez atual de
69% dos trabalhadores em 1979 e apenas 55,9% emprego acompanha a importância do mesmo
em 200415. para a aquisição da cidadania, e que este dilema,
No que diz respeito aos diretores executivos colocado pelo capitalismo internacional, “não
das empresas principais (CEOs), em 2005 seus decorre exclusivamente dos avanços tecnológicos,
rendimentos representaram 262 vezes o salário mas, sobretudo, da capacidade de os Estados in-
do trabalhador médio, comparado com 1965, terferirem, por meio de políticas, nos desígnios
quando eram 24 vezes maiores. Por outro lado, dos empreendimentos internacionais”26, 27,28.
para os trabalhadores jovens que estão entran- Se um Estado de bem-estar social pode ser
do no mercado de trabalho, os salários diminu- definido como modificando as forças do merca-
íram desde 2000, mesmo para os com nível supe- do em nome da eqüidade social, o regime neoli-
rior, e nesta categoria também aumentou a par- beral é seu oposto, e tem promovido aumento
cela de desempregados de longa duração. Segun- global das desigualdades sociais, junto com uma
do este documento, a taxa de lucro das corpora- concentração de capital quase inimaginável. Em
ções em 2005 foi a maior nos últimos 36 anos face das evidências acumuladas, desde 1987 agên-
(com a exceção de 1997) e os autores notam que, cias da ONU tem pedido ‘desenvolvimento com
se tivesse sido mantida uma taxa de lucro em uma face humana’8.
2005 igual a 1979, teria havido uma transferência Para os países nos quais grandes contingen-
anual de US$ 235 bilhões aos trabalhadores15. tes têm acesso inadequado e reduzido a necessi-
Comparado com os outros países do OECD, dades básicas de sobrevivência humana, como
os Estados Unidos são um dos mais produtivos água potável, comida e abrigo, tal privação pode
e mais ricos, e também têm o regime mais liberal ser considerada ‘desumanização’. Para aqueles em
e mais desigual, com os trabalhadores na escala situação um pouco melhor, o aumento dos cus-
inferior ganhando relativamente menos e rece- tos de necessidades básicas, junto com o aumen-
bendo muito menos proteção social. Esta desi- to do desemprego, salários insuficientes e prote-
gualdade social mais aguda se reflete também na ção social diminuída, representam uma profun-
expectativa de vida mais baixa, na mortalidade da precarização de condições vitais. Mesmo com
infantil mais alta e nas taxas de pobreza geral e a tendência geral de redução no número de filhos
da infância mais altas - embora os Estados Uni- e a entrada maciça de mulheres no mercado de
dos gastem mais na saúde do que todos os ou- trabalho, os rendimentos familiares diminuem
tros países do OECD - seja como percentagem com a precarização do trabalho, ao mesmo tem-
do PIB, seja como gasto per capita15. po em que a privatização de ‘bens da cidadania’
O caso dos Estados Unidos, exemplo maior como saúde e educação tem aumentado o custo
do regime neoliberal, mostra claramente que o de vida familiar, instaurando uma insegurança
aumento da produtividade e a evolução positiva vital para a maioria das famílias. Além do sofri-
dos indicadores macroeconômicos não têm, ne- mento humano que isto representa, esta situa-
cessariamente, conseqüências benéficas para a ção de insegurança vital favorece a expansão do
maioria dos trabalhadores, na ausência de polí- crime organizado e da prostituição e do tráfico
ticas robustas que visem a proteger a qualidade de drogas como estratégias de sobrevivência de
de vida de todos, incluindo instâncias fortes de jovens sem outras perspectivas.
barganha coletiva, um salário mínimo digno e Nos países da América Latina, mortes de jo-
uma política fiscal e monetária mais progressista vens por causas violentas aumentaram drastica-
e com ênfase na geração de empregos. mente desde 1980, refletindo a expansão do cri-
Os regimes de proteção social mais extensi- me organizado e do tráfico de drogas e de armas,
vos em países da Europa, por outro lado, não numa situação em que muitos jovens não po-
impediram aumentos na produtividade e ainda dem esperar emprego legal e decente, apesar do
asseguraram melhores condições relativas para aumento dos níveis de instrução29,30. Esta dinâ-
suas populações. Embora haja, também, retro- mica também resultou nas novas ‘mulheres glo-
cessos nos regimes de proteção social e aumento bais’ – babás, empregadas e trabalhadoras do
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benefícios sociais são considerados como gastos tanto ao impacto coercivo (agendador) como dou-
e não como investimentos, o que levou à delibe- trinador (codificador) de forças essencialmente não
rada deterioração das instituições e serviços pú- políticas, primordialmente aquelas associadas aos
blicos na América Latina, à privatização e à mer- mercados financeiro e de consumo48,49.
cantilização de bens da cidadania e aos retroces- Bauman defende a necessidade de conceitua-
sos na proteção ao trabalho e nas formas de or- lizar ‘liberdade positiva’ como um direito de cida-
ganização da classe trabalhadora42. Este regime dania essencial: E isto significa primordialmente
visa “[...] la necessidad de que el estado empren- poder influenciar as condições da própria existên-
da com eficacia sus neuvas funciones mediante cia, dar um significado para o ‘bem comum’ e fazer
una administración moderna y despolitizada”, as instituições sociais se adequarem a esse significa-
com a participação política dos cidadãos reduzi- do. [...] Os indivíduos só são livres quando podem
da às eleições3. instituir uma sociedade que protege e promove sua
Perante este processo, a questão da erosão da liberdade[...]48. Esta formulação é coerente com a
soberania dos estados nacionais tornou-se uma sugestão de Krischke de um “conceito social da
preocupação internacional expressa, por exem- cidadania”50 e implica uma visão da democracia
plo, em um número especial da Current Sociolo- construída em um processo permanente51.
gy dedicado ao tema ‘ordem global ou mundo Já que as evidências mostram que os esque-
dividido’ (como nos informa a Introdução, este mas de privatização e desregulamentação pro-
título poderia ter sido ‘ordem global e mundo duziram, consistentemente, efeitos sociais noci-
dividido’). O editor aponta que “surgem novos vos, eles exigiram, de fato, a mão forte do Esta-
problemas de governança global e responsabili- do. Mas, como Benería aponta: Esta mão respon-
dade democrática, na medida em que a sobera- deu aos interesses de elites nacionais e globais, não
nia dos estados-nações é erodida e seu papel na aos desejos da maioria dos cidadãos, e as políticas
política mundial redefinido” 43,44. [...] – freqüentemente implementadas em nome de
Smelser, por outro lado, entende o Estado liberdade para os mercados – impostas de cima para
como mediador na política internacional e res- baixo e sem um processo democrático de discussão
ponsável por lidar com penetrações externas. Ele e tomada de decisões entre todos afetados5.
considera que, mais que uma perda de soberania, Laxer sugere a noção de ‘democracia profun-
“o diagnóstico correto é que a soberania dos esta- da’: “[...] no sentido dos cidadãos assumirem o
dos-nações é cada vez mais dificultada [...] a dife- controle que tem sido das elites no poder”. Em-
rença é que sua habilidade em controlar eventos bora a discussão conceitual avance, a atuação e
que afetam seu povo é cada vez menor”45. Como os acordos de entidades transnacionais com po-
esta formulação sugere, e como Martinelli43 nos deres globais parecem dificultar, cada vez mais,
lembra, há diferenças importantes entre estados, tal tomada de poder democrático. Laxer conclui
pois aqueles mais poderosos tiveram um papel que “[...] globalização neoliberal representa um
central em dirigir estes processos internacionais. assalto pleno na democracia”52.
Tavares dos Santos considera que estamos Nos termos de Randeria, o “estado facilita-
passando por uma crise de desinstitucionaliza- dor” (‘enabling state’) procura assegurar expro-
ção com a globalização neoliberal impondo o priação eficiente e segurança legal aos investido-
mercado, nas palavras de Ramonet, “[...] como res: “liberalização não significa menos interven-
mecanismo totalitário que procura substituir o ção do estado, mas sim intervenção do estado a
Estado e todas as instituições coletivas. É o mer- favor do capital”. Enquanto a ordem pública é
cado contra o Estado, o setor privado vs. a esfera internacionalizada e privatizada, os direitos dos
pública46,47. cidadãos estão se tornando mais vulneráveis, e
Bauman também observa que uma tendên- “o processo de elaborar as regras é colocado, cres-
cia marcante do nosso tempo é a separação cres- centemente, fora da arena de deliberação legisla-
cente entre poder e política nacional, na medida tiva e tomada de decisões democráticas”53.
em que ‘pressões do mercado’ substituem legis- Nancy Folbre dá um exemplo da perda de
lação política, mesmo em países centrais, que poder dos cidadãos nos Estados Unidos: o peso
entendem a democracia como ‘livre escolha indi- relativo de impostos pagos pelas empresas, como
vidual’. [...]. ‘Desregulamentar’ significa diminuir percentagem do total de impostos, diminuiu em
o papel regulador do Estado, não necessariamente mais da metade desde 1960, mas os acordos fei-
o declínio da regulamentação, quanto mais seu fim. tos no âmbito da OMC limitam a possibilidade
O recuo ou autolimitação do Estado tem como efeito dos cidadãos exercitarem um controle democrá-
mais destacado uma maior exposição dos optantes tico e reverterem esta situação54.
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O exemplo da desvalorização do Real, que Investors Service e Standard and Poor’s Ratings
em 1998/1999 perdeu 40% do seu valor em se- Groups) que agora coordenam tanto fluxos de ca-
manas, é destacado internacionalmente como pital como estratégias de investimento de CTNs e
“resultado da maior entrada e saída de capital de governos, igualmente [...] são pontos de cristali-
especulativo jamais experimentado por um país zação de soberanías não-nacionais, que de novo
em desenvolvimento” 65,61,66. Segundo Petras e coloca na agenda os motivos básicos da discussão
Veltmeyer, nesta operação houve uma fuga de teórica da democracia: responsabilidade [accoun-
5,4 bilhões de dólares em algumas semanas e de tability] e legitimidade68.
3 bilhões de dólares num único dia. Eles avaliam Price et al. analisaram a reunião da OMC em
que boa parte das reservas do Banco Central (es- Seattle e as implicações dos acordos GATS (Acor-
timados em 20 a 27 bilhões de dólares) neste pe- do Geral sobre Comércio em Serviços) para ser-
ríodo “acabaram nos cofres dos bancos estadu- viços de saúde. Estes autores apontam que, em-
nidenses e nas contas dos especuladores de Wall bora a OMC, naquele momento, incluísse 134
Street, bem como dos capitalistas brasileiros avi- estados membros, as CTNs que ocuparam os
sados previamente da oportunidade de lucros comitês conselheiros decidiram os detalhes das
inesperados66. políticas e estabeleceram a agenda. Visando a um
O aumento da massa de capital financeiro mercado multibilionário em serviços de saúde e
especulativo, assim como das suas taxas de re- acesso a fundos previdenciários, CTNs america-
torno, tem sido espetacular, com o mercado de nas e européias receberam apoio importante do
câmbio movimentando cerca de US$ 1 trilhão governo dos Estados Unidos, do Banco Mundial
diariamente em busca de lucros, o que aumenta e de instituições multilaterais como o Banco In-
a vulnerabilidade dos sistemas financeiros naci- teramericano de Desenvolvimento. Enquanto
onais e a margem de risco sistêmico no plano novas regras são criadas em nome dos interesses
mundial57. Blackburn analisa os conflitos que de privatização dos CTNs e explicitamente apoi-
surgiram em países do OECD referentes às re- adas pelo BM para assegurarem “adequados re-
formas privatizantes de planos de pensões e apo- tornos para investidores”, elas “[...] são apresen-
sentadorias cujos fundos alcançaram, em 1994, tadas, geralmente, como técnicas e, portanto,
o montante de US$10.000 bilhões e “[...] cujos neutras”19.
detentores não têm praticamente nenhuma in- Estes autores alertam para um fato que, em-
fluência sobre os fundos investidos em seu bora represente uma inovação macropolítica de
nome”67. conseqüências monumentais, não tem sido sub-
Berking dá detalhes das novas organizações e metida a qualquer instância de deliberação pú-
regulamentos internacionais que consolidaram blica: os procedimentos instalados pela OMC
o poder de corporações industriais e financeiras para resolver conflitos “permitem aos estados
transnacionais. Agora que possuem uma infra- forçar mudanças nas leis domésticas de outros
estrutura global e autonomia crescente perante estados”. Além disto, “As propostas atuais vão
os regulamentos nacionais, estes atores ocupam permitir às corporações transnacionais legalmen-
[...] uma posição geo-estratégica que, ironicamente, te processar governos que frustram suas aspira-
permite a elas exigirem dos governos nacionais ções de investimentos internacionais” 19.
uma política declarada de não-interferência. Com Labonte et al.61 oferecem exemplos dramáti-
a lógica da política reduzida à lógica do mercado, cos de como países e corporações podem forçar
os governos não são mais os donos das suas própri- mudanças em outros países, através dos proce-
as casas68. dimentos de disputas na OMC, e que demons-
Com a instalação de zonas de livre comércio, tram o sério conflito entre as regras da OMC e a
‘paraísos fiscais’, regimes novos de impostos e tentativa de proteger a saúde pública – ou, como
tarifas, a mercantilização das moedas nacionais coloca Berlinguer13, o conflito entre saúde como
e a integração mundial de mercados financeiros direito e como mercadoria . Como os acordos
e de ações, duas novas formas de organização exigem que as normas sanitárias dos países mem-
foram instaladas sob a liderança dos países cen- bros sejam baseadas em avaliação científica de
trais. Em primeiro lugar são as agências de co- riscos, a recusa da União Européia a permitir a
mércio internacional (e.g. OMC), que têm juris- importação de carne bovina tratada com hor-
dição independente da legislação nacional, e cu- mônios custou ao país milhões de dólares anu-
jas regras devem ser seguidas por todos os esta- ais, pagos aos Estados Unidos e Canadá, porque
dos membros. Em segundo, agências privadas as provas apresentadas de risco para a saúde
de investimento e avaliação de risco (e.g. Moody’s humana não foram consideradas definitivas pe-
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se transforma en medio y fin y la racionalidad ins- de quaisquer considerações das necessidades dos
trumental economicista pasa a ser el parámetro de cidadãos ou do bem comum: “a economia tor-
evaluación de la vida material y espiritual74. San- na-se auto-referida, independente de necessida-
tos entende que a atual globalização perversa in- des humanas”80,81.
clui duas violências centrais: a distorção da in- Com novos riscos sistematicamente produ-
formação e a emergência do dinheiro em estado zidos, baixo à hegemonia de critérios econômi-
puro como motor da vida econômica e social4. cos e à racionalidade tecnocientífica, que é natu-
Max Neef desnuda a parcialidade de medir o cres- ralizada como ‘progresso’ ou ‘desenvolvimento’,
cimento econômico através do PIB que - como o este sistema é caracterizado por “uma cegueira a
crescimento da produtividade - não significa, risco que é sistematicamente condicionada” pelo
necessariamente, efeitos positivos sobre a quali- objetivo único do lucro. Liberados de controles
dade de vida dos seres humanos, tendo em vista sociais e políticos, os próprios riscos gerados,
que gastos com acidentes automobilísticos, epi- por sua vez, se tornam oportunidade para novos
demias, guerras, contaminação ambiental, deser- lucros em novas áreas. Assim, este sistema pode
tificação, etc. contribuem para aumentar o PIB75. se perpetuar e se reproduzir através da geração
Um último capítulo nesta discussão é o que de “[...] riscos e condições nocivas autoproduzi-
Gabriel Kolko define como “armas de destruição dos e estender sua área de atividade através de
financeira em massa”, aferindo novos riscos de inovações tecnoterapêuticas relacionadas” 80.
colapso provocados pelo sistema internacional Desta forma, em um sistema político que fa-
financeiro, cuja desregulamentação e liberaliza- voreceu a concentração da riqueza e o empobre-
ção tornaram-se “um pesadelo”, fazendo com que cimento das maiorias, que exigiu a retração dos
sistemas nacionais financeiros tornem-se cres- gastos públicos em bens de cidadania e proteção
centemente vulneráveis ao risco sistêmico maior social e que instalou uma insegurança vital mun-
e a um número crescente de crises financeiras. dial e favoreceu o crime, evidencia-se, também, a
Com grupos de investimento privados assumin- criação de novas oportunidades de lucros atra-
do jogadas de risco maior na tentativa de conse- vés da indústria bélica, das guerras e do ‘controle
guir lucros maiores, a partir de instrumentos fi- do crime’ em que atuam entidades privadas ter-
nanceiros que desafiam a transparência, são “cres- ceirizadas, financiadas pelo ‘Estado segurança’,
centemente perigosos”, criam problemas “ quase que tem aumentado, em muito, seus gastos com
surreais” e “formas de dados cruciais que não guerras, com a construção de penitenciárias e
podem ser coletados e analisados, deixando tan- com publicidade e marketing79,36,82,83,77.
to banqueiros como governos no escuro [...]”76.
Segundo este autor, a preocupação com esta si-
tuação, fora de controle, se estende ao FMI e ao Focalização da pobreza: um caminho para
BM, que promoveram a desregulamentação e ‘governança’ de riscos sociais
agora são incapazes de interferir nestas ‘tenebro- e/ou para disciplinar Estados nacionais?
sas transações’ dos grupos financeiros privados.
Além da pobreza e da desigualdade crescen- Com as evidências acumuladas sobre os custos
tes, as políticas de precarização do mercado de humanos, sociais e ambientais da política econô-
trabalho, privatização de bens de cidadania e fi- mica neoliberal, desde 1990 programas dirigidos
nanceirização do Estado têm sido acompanha- aos segmentos sociais mais vulneráveis são pro-
das pelo crescimento global de conflitos, fraudes movidos pelos organismos internacionais, geral-
e corrupção, com a desregulamentação financei- mente na forma de “medidas esporádicas e ad hoc
ra facilitando a globalização do crime organiza- que pretendem aliviar os casos mais extremos de
do e as guerras produzindo lucros astronômicos aflição e pobreza, e evitar tensões sociais”5. Lau-
para CTNs 5,67,74,26,54,59,77,40,78,79. rell percebe a chamada para políticas de ‘combate
Isto parece instaurar um novo capítulo de à pobreza’ como tentativa de assegurar a legiti-
uma era caracterizada por aquilo que Ulrich Beck midade do processo que tem sacrificado o inte-
chamou de “sociedade de risco”: sociedades alta- resse das maiorias, dentro de uma preocupação
mente produtivas que constantemente geram ris- crescente com a governabilidade3. Labonte et al.
cos (tecnológicos, sociais, políticos, culturais, eco- observam que “[...] ‘redução da pobreza’ substi-
nômicos) que não conseguem controlar, a partir tuiu ‘ajuste estrutural’ no vocabulário do Banco
do fato de que as decisões sobre desenvolvimen- Mundial e do Fundo Monetário Internacional”61.
to tecnológico são monopolizadas pelas corpo- Limoeiro nota que se pode questionar a na-
rações que buscam lucrar através delas, isoladas tureza do ‘desenvolvimento’ neoliberal a partir
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