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Após saberem que a cidade onde vivem será inundada para a construção de
uma usina hidrelétrica, os moradores decidem preparar um documento que
conte todos os fatos históricos do local, como tentativa desesperada de salvar a
cidade da destruição. Dirigido por Eliane Caffé (Kenoma) e com José Dumont,
Matheus Nachtergaele, Nélson Dantas, Gero Camilo e Nélson Xavier no elenco.
Somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes
do pequeno vilarejo de Javé. É aí que eles se deparam com o anúncio de que a
cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidrelétrica. Em
resposta à notícia devastadora, a comunidade adota uma ousada estratégia:
decide preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos
heróicos de sua história, para que Javé possa escapar da destruição. Como a
maioria dos moradores são analfabetos, a primeira tarefa é encontrar alguém
que possa escrever as histórias.
Narradores de Javé é um filme sobre muita coisa. Literalmente. É um filme sobre ser sobre muita coisa.
Sobre o muito e sobre a multiplicidade de seres. É quase uma taxonomia de verdades, das possibilidades de
real de uma mesma história. Há algo de irremediavelmente grego em Eliane Caffé. Kenoma já trazia no
ventre essa associação entre palavra lúdica e palavra lembrada que agora explode neste filme. Mas
Narradores é além disso um filme importante para o cinema brasileiro, por jogar de maneira (raramente)
inteligente com alguns clichês de nosso cinema contemporâneo, sobretudo com um dos maiores deles, o
filmar o Nordeste.
Mas como todo grande filme, suas várias importâncias se tornam menores diante da importância principal
dele, como filme e ponto (o que alimenta todas as outras e que serve como a grande síntese delas todas).
Vamos, então, a Narradores de Javé: um filme o muito, dizíamos. A começar é um filme
irremediavelmente marcado pela memória. Tudo do filme deve a ela. As verdades produzidas pelos
moradores do vilarejo são compostas de memória. De uma memória mítica, é verdade, onde encontra-se
com seu segundo assunto, a fala. A memória é feita na fala, é produzida pela narração. E ambas são ficções
aparentes. Afinal, são versões várias que passam diante do ouvinte. Mas são todas, no final das contas, um
sistema de influências. E eis o terceiro assunto, aquele no qual o filme faz mais fortemente cinema: as
memórias do passado são, no fundo, profecias. É no futuro que elas se realizarão. Nesse sentido, todo
arcabouço de narração do filme se presta a fazer do tempo massa de modelar, como mesmo a fala é barro
nas mãos do povo tagarela e do tagarela-mor, o carteiro, escrevinhador e ouvinte.
Javé é ao mesmo tempo um deslugar, no sentido em que se faz fora do tempo e do espaço tanto quanto uma
Tróia ou uma Atenas míticas, mas é também o lugar de onde se constrói uma noção muito rela de verdade.
Afinal, é na história que a cidade será inundada e é de sobrevivência real de um povo que se trata. Daí outra
ligação com um clichê com que o filme joga ironicamente: o da cidade pequena cheia de tipos. E eis outro
assunto do filme: a dramaturgia. O desejo de um discurso sobre o próprio discurso e sobre a dramaturgia
desse discurso no cinema é forte no filme. As falas são faladas com um tom quase documental, ainda que
recorra à ladainha para isso. Em vez de celebrar a verdade com uma dramaturgia realista, o filme se faz
verdade por discursar um discurso de mentira com formato quase documental. Nesse sentido, não só a
cumplicidade antológica de José Dumont – mais do que apenas um ator, obviamente um artesanato do
próprio filme – , mas a de todo o elenco, que se escraviza na própria palavra mais do que em qualquer outra
expressão.
Mas o que talvez mais chame a atenção em Narradores de Javé é seu desejo de eternidade. Ao se esgueirar
por ali por fora do histórico, pelo campo do mítico, quase do fabular, do fabuloso, o filme joga com
passado e futuro não só na narrativa (como já dissemos), mas também em suas próprias ferramentas
expressivas. Poucos filmes atuais (não apenas brasileiros) fazem esse trânsito tão bem. Nisso, compõem-se
bem o Nordeste de Graciliano que pulsa como fantasma nos tipos e no chão árido do filme com o
experimentalismo sonoro de um DJ Patife; a fotografia discreta, quase anti-retomadística, clássica mesmo,
com a edição cheia de idas e vindas; a estrutura que se dobra sobre si mesma, fazendo com que aquilo que
era lenda se torne a própria história com o sistema de falas quase improvisadas e que são ditas como
metralhadora giratória.
Um salto é necessário: logo no começo, fica-se sabendo que a história de Narradores de Javé é, toda ela,
uma narração. Narração daquelas que se ouviu de um parente ou vizinho, e que será agora repetida, como
uma história que se perde em pedaços, como uma brincadeira de telefone sem fio. E nessa história que
teremos que depositar nosso crédito. E essa história mesma será composta a começar pela saga de um
mentiroso, de um carteiro banido por ter inventado mentiras e que perambula pela cidade colhendo
histórias exageradas dos moradores. Essas anotações, veremos, serão elas mesmas mentiras, falseamentos,
dramatizações. Não é de cinema que estamos falando, afinal?
CULTURA BRASILEIRA
TRADIÇÃO ORAL E MODERNIDADE
EM NARRADORES DE JAVÉ
Partindo-se do princípio de que tudo o que se vive, ouve ou vê, passa por
um processo interno de releitura e reconstrução conforme o modo de ser e de
pensar de cada um, bem como de acordo com a bagagem histórico-cultural que
adquirimos no decorrer da vida, podemos dizer que todo ser humano é um
tradutor. Assim, ao contar uma cena que presenciamos, esta terá a nossa
versão pessoal, não será mais a cena original, mas a sua tradução. Porém,
sabemos que o sentido primitivo estará sempre presente em nossas traduções,
pois, caso contrário, não seriam traduções e sim ficções, invenções, e perderiam
o elo de ligação com o original.
Ainda que haja no mercado uma demanda por filmes em que a realidade é
tratada de forma reflexa, na qual, segundo Ortiz, se reforçam as demandas e
exigências do espectador (Ibid: 173), Eliane Caffé confronta o seu público com
uma realidade, diante da qual este não tem como ficar passivo, sendo levado a
posicionar-se frente à situação retratada. Ao desenhar na tela uma realidade
brasileira que mostra as diversas faces formadoras da sociedade, dando voz às
etnias, religiões e classes excluídas, a diretora retoma o posicionamento crítico-
reflexivo colocado em marcha pelos adeptos do Cinema Novo.
BIBLIOGRAFIA
FILMOGRAFIA