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Do Renascimento ao século 20, os caminhos cruzados da arte das letras e da arte das
imagens
Márcio Seligmann-Silva
Tratar da relação entre Estética e literatura exige uma abordagem com um viés duplo: do
ponto de vista da teoria estética a literatura sempre ocupou um local central. A Estética,
desde seus primórdios - antes mesmo do surgimento propriamente dito da disciplina
"Estética" no século 18 -, ocupa-se de textos da literatura. Já do ponto de vista da produção
literária e da disciplina que a estuda, a teoria literária, a Estética aportou importantes idéias
e deixou naquela última uma marca profunda, impossível de ser contornada.
Desde a Antiguidade greco-romana a teoria das artes foi pensada a partir dos tratados de
poética. A reflexão sobre as imagens foi em grande parte derivada de uma análise de obras
literárias. A Poética de Aristóteles teve um papel fundamental na reflexão sobre as artes,
assim como sua Retórica e, posteriormente, tratados latinos de autores como Horácio,
Cícero e Quintiliano. Poucos textos da Antiguidade se detêm na reflexão mais aprofundada
das artes plásticas. Tratados como o Naturalis historiae, de Plínio, contêm uma incipiente
história da arte, mas não podem ser comparados com o grau de complexidade da teoria
poética alcançada então.
Aristóteles, apesar de não ter deixado um tratado de artes plásticas, fundamenta a sua teoria
da tragédia com base na noção de mímesis. Todas as artes seriam miméticas. O importante
dessa concepção é que, apesar da centralidade da reflexão sobre a poesia na Antiguidade,
esse tratado de Aristóteles, com sua ênfase na arte como imitação, coloca o ideal das artes
como sendo um ideal imagético e, portanto, mais próximo da pintura que das artes das
palavras. O paradoxo aqui é que o discurso, logos, é visto como meio privilegiado para essa
realização da mímesis.
O pintor moderno se torna teórico e realizador de uma pintura voltada, sobretudo, para a
representação da narração, ou seja, da História. Esse pintor deve ser, para cumprir essa
nova função, um pictor doctus (pintor erudito), cópia do doctus poeta (poeta erudito, com
uma larga bagagem de leitura): sem essa erudição ele não poderia corresponder à doutrina
do decorum. Por fim, o pintor está submetido a um rigoroso código de regras sociais, de
âmbito moral, político e religioso. Nesse último sentido a pintura torna-se ilustração, um
meio didático de atingir de modo mais "imediato" o que a escrita não consegue realizar;
basta lembrar do papel fundamental atribuído a ela na era da Reforma e da Contra-
Reforma. A pintura, desde o Renascimento, é, de certo modo, uma pintura de e sobre
palavras. O seu fim também é o (re)despertar, no espectador, das palavras que ela encerra
em si: se a poesia, como vimos, quer ser imagem, a pintura quer ser lida, traduzida em
comentários, quer voltar a ser texto. A pintura histórica ocupa o local privilegiado dentro da
hierarquia dos gêneros de arte, o que também dá provas da valorização da Idéia sobre o
elemento material nas artes. Graças ao predomínio da invenção é que se pôde afirmar a
traduzibilidade entre as artes.
A partir do final do século 17 essa situação se modifica. Aos poucos uma retórica anti-
racionalista vai se impondo. Dubos, com seu tratado de 1719 sobre a literatura e pintura, já
anuncia as idéias de artista como um original, e não mais como um imitador. Em
Breitinger, por exemplo, importante teórico suíço da literatura e contemporâneo de
Voltaire, fica evidente a combinação na então incipiente Estética entre, de um lado, a
filosofia de Christian Wolff, com sua tendência iluminista para a valorização dos conceitos
claros e distintos (da linguagem discursiva) e, do outro, a retórica irracional e sensualista. É
nesse contexto que um novo conceito de imaginação começa a ser delineado.
No século 20 vemos tanto filósofos que tiveram uma importante produção de teoria literária
e de estética (Heidegger, W. Benjamin, Adorno, H-G. Gadamer, P. Ricoeur, J. Derrida e G.
Deleuze), como teóricos da literatura que influenciaram o pensamento estético (G. Bataille,
M. Banchot, R. Barthes, T. Todorov, G. Genette). Adorno pode ser visto como o último
filósofo que ainda tentou escrever a sua teoria estética dentro da tradição idealista alemã
(mas também contra ela). Desde as últimas décadas do século 20 detectamos uma
dissolução das fronteiras entre as disciplinas Estética e teoria literária, que ocorre tanto em
função de uma crise das disciplinas das humanidades, de um modo geral, como devido ao
surgimento de novas abordagens e de novos temas. A midialogia, por exemplo, incorpora
elementos dessas duas tradições. Com a web, a distinção entre literatura e artes visuais
entra em crise também. Mas a Estética, onde quer que ela seja pensada, ainda tem uma
grande dependência em relação à literatura, mesmo que esta agora seja concebida cada vez
mais como imagem.
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Márcio Seligmann-Silva é professor livre-docente de Teoria Literária na UNICAMP