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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAPARAÍBA

CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Caline Genise de Oliveira Lima

A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:


uma abordagem léxico-semântica.

JOÃO PESSOA, PB
MAIO DE 2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Caline Genise de Oliveira Lima

A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:


uma abordagem léxico-semântica.

JOÃO PESSOA, PB
MAIO DE 2006
CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA

A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:


uma abordagem léxico-semântica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras, área de concentração
Lingüística e Língua Portuguesa, da Universidade
Federal da Paraíba como requisito para obtenção
do título de Mestre, sob a orientação da Prof.a
Dr.a Maria das Neves Alcântara de Pontes.

JOÃO PESSOA
2006
CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA

A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:


uma abordagem léxico-semântica.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras, área de concentração
Lingüística e Língua Portuguesa, da Universidade
Federal da Paraíba como requisito para obtenção
do título de Mestre, sob a orientação da Prof.a
Dr.a Maria das Neves Alcântara de Pontes.

Aprovada em: ____/____/_____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________

Profa Dra Maria das Neves Alcântara de Pontes


Orientadora (UFPB)

__________________________________________________________________

Profa Dra Ivone Tavares de Lucena


Titular (UFPB)

__________________________________________________________________

Profa Dra Ana Cristina Sousa Aldrigue


Titular (UFPB)

__________________________________________________________________

Profa Dra Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca


Suplente (UFPB)
À minha avó e à minha mãe,
exemplos de força feminina.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar a Deus, conforto para as longas noites de solidão.

À minha orientadora pela cumplicidade, paciência e zelo, em todos os momentos da

pesquisa.

Às professoras Marianne Cavalcante, Mônica Nóbrega, Fátima Batista e Maria

Cristina de Assis pelas inestimáveis contribuições durante o curso.

Ao meu pai, pelo incentivo em todos os dias de minha vida.

À minha família, em especial aos meus irmãos Carlos e Arlindo, sem o apoio e auxílio

de vocês, seria tudo mais difícil.

Ao amigo Fábio, que fez brotar em mim o estímulo para a realização do mestrado.

Ao precioso amigo Romair, que me acolheu em sua casa, pelo carinho, apoio e

estímulo incansáveis nas horas em que pensava em desistir.

Ao saudoso amigo Flávio, pela bondade, paciência e amizade mais sincera.

À amiga Clécia, pelo eterno companheirismo e ajuda nos momentos mais difíceis.

Ao amigo Moisés pela simplicidade e disponibilidade à leitura de meu projeto.

A Hermano, pelos diálogos, o incentivo e ajuda.

A Erick, pela amizade e pelas visões no campo da Semiótica e da Cultura Popular.

Aos amigos Linduarte, André, Rachel, Fernanda pelos momentos memoráveis, nas

pequenas reuniões, festas e almoços durante o curso. Vocês estarão na minha memória para

sempre.

À querida Adriene, pela amizade sincera de todas as horas, que sempre esteve presente

e a quem pude recorrer nas horas mais angustiantes. Você, com sua bondade e suas

brincadeiras, mostrou-me que o sonho era possível.


A meu amor Joaquim, ninguém como você para me confortar nas horas de maior

desespero e solidão.

À minha querida sogra, a quem devo expressar a mais sincera gratidão, pelo apoio em

todas as circunstâncias.

À companheira de longa data Ana Lígia, por não me ter faltado nos momentos de mais

sufoco.

À Gerlane, Maria Luíza, Linélia, Lurdinha, Lúcia e Janka, a vocês devo a eterna

gratidão pela sensibilidade e compreensão às minhas ausências em sala de aula, e a todos os

amigos de profissão, que nunca me faltaram.

À equipe técnica da escola Alberto Torres, em especial à Madalena, à Teresinha e

Nininha, pelo constante apoio e por terem acreditado que meu esforço valeria à pena.
“a significação de um signo verbal não é
autônoma, isto é, não pode nem se formar nem
aparecer fora dessa unidade, que é linguagem – e
– pensar, palavra – idéia.”
Schaff
RESUMO

A presente pesquisa visa a uma abordagem sobre os aspectos léxico-semânticos em

torno da representação do papel feminino na Literatura de Cordel. O referencial teórico desta

análise está assentado, fundamentalmente, na Lexicologia, destacando-se a Teoria dos

Campos Lexicais, da Cultura Regional, da Semântica e os aspectos antropossociais da

Literatura de Cordel. A aplicação das teorias possibilitou a organização dos dados

selecionados em campos, num corpus constituído por vinte folhetos de Cordel versando sobre

a mulher, que permitiu, desse modo, a chegar-se à interpretação das estruturas léxicas, neles

existentes. A partir daí, foi possível organizar-se cinco “macrocampos”, em que a mulher

aparece retratada nos mais diversos níveis, tais quais emocionais; sociais; culturais etc.

Palavras-chave: mulher, Literatura de Cordel, léxico, sociocultural.


ABSTRACT

The present research aims an approach to the lexical-semantic aspects on the

represention of the female role in Cordel Literature. The theoritical referencial to this analysis

is mainly based on Lexicology, very specially the Theory of the Lexical Fields, of the

Regional Culture, of Semantics as well as the socio-antropological aspects of Cordel

Literature. The employment of this theories allowed an organization of the in field selected

data in a corpus compounded of twenty Cordel booklets, what allowed, this way, to reach the

interpretation of the lexical structures which exist in them. From this point on, it was possible

to organize five main fields where the woman is portrayted in several levels, such as

emotional, social, cultural, etc.

Key-words: woman, Cordel Literature, lexicon, socio-cultural.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 12

2 LEXICOLOGIA .................................................................................................................... 15

2.1 LÉXICO E CULTURA ...................................................................................................... 16

2.2 A TEORIA DO RELATIVISMO LINGÜÍSTICO OU HIPÓTESE SAPIR-WHORF...... 19

2.3 CAMPOS LÉXICOS.......................................................................................................... 24

3 CULTURA: UM CONCEITO CONTROVERSO ................................................................ 29

3.1 NORMAS E PADRÕES SÓCIOCULTURAIS ................................................................. 33

4 A LITERATURA DE CORDEL........................................................................................... 39

5 A MULHER NO CONTEXTO SOCIOCULTURAL........................................................... 45

5.1 AS MULHERES NO SERTÃO NORDESTINO............................................................... 47

5.2 CONCEPÇÃO CRISTÃ SOBRE A NATUREZA FEMININA........................................ 49

5.3 A FAMÍLIA NO SISTEMA PATRIARCAL BRASILEIRO E A MORAL SEXUAL .... 52

6 METODOLOGIA, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS ............................................ 57

6.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE ...................................................................................... 57

6.2 ANÁLISE DO CORPUS.................................................................................................... 60

6.2.1 A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa ..................................................................... 60

6.2.2 A língua da mulher faladeira ...................................................................................... 65

6.2.3 A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia .................................................. 68

6.2.4 A mulher e o cangaço .................................................................................................. 77

6.2.5 A mulher no lugar do homem...................................................................................... 84

6.2.6 As duras lamentações de uma coroa............................................................................ 88

6.2.7 As modas escandalosas de hoje em dia ....................................................................... 93

6.2.8 Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia......................................................... 96

6.2.9 História da mulher da língua grande ......................................................................... 101


6.2.10 Maria Bonita – mulher macho, sim, senhor ............................................................ 104

6.2.11 Nascimento, vida e morte de uma coroa.................................................................. 109

6.2.12 O abc das mulheres.................................................................................................. 111

6.2.13 O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia ................................................. 117

6.2.14 O mundo pegando fogo por causa da corrução ....................................................... 123

6.2.15 O mundo vai estourar do jeito em que se vive ........................................................ 126

6.2.16 O poder oculto da mulher bonita ............................................................................. 128

6.2.17 O que uma coroa deve fazer para se casar............................................................... 134

6.2.18 Os amores de José e a traição de Maria................................................................... 138

6.2.19 Sofrimento das solteiras para arranjar marido......................................................... 141

6.2.20 Uma mulher traiçoeira ............................................................................................. 144

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 153

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 156

ANEXOS – Folhetos de Cordéis ............................................................................................ 164


LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Campo léxico-semântico em A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa.............. 65


FIGURA 2 – Campo léxico-semântico em A língua da mulher faladeira................................ 68
FIGURA 3 – Campo léxico-semântico em A mulher de antigamente e a mulher de hoje em
dia. .................................................................................................................................... 77
FIGURA 4 – Campo léxico-semântico em A mulher e o cangaço. ......................................... 84
FIGURA 5 – Campo léxico-semântico em A mulher no lugar do homem. ............................. 88
FIGURA 6 – Campo léxico-semântico em As duras lamentações de uma coroa. ................... 93
FIGURA 7 – Campo léxico-semântico em As modas escandalosas de hoje em dia................ 96
FIGURA 8 – Campo léxico-semântico em Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia.
........................................................................................................................................ 100
FIGURA 9 – Campo léxico-semântico em História da mulher da língua grande.................. 104
FIGURA 10 – Campo léxico-semântico em Maria Bonita, mulher macho, sim, senhor....... 109
FIGURA 11 – Campo léxico-semântico em Nascimento, vida e morte de uma coroa. ......... 111
FIGURA 12 – Campo léxico-semântico em O abc das mulheres. ......................................... 117
FIGURA 13 – Campo léxico-semântico em O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da
orgia. ............................................................................................................................... 123
FIGURA 14 – Campo léxico-semântico em O mundo pecando fogo por causa da corrução.
........................................................................................................................................ 126
FIGURA 15 – Campo léxico-semântico em O mundo vai estourar do jeito em que se vive. 128
FIGURA 16 – Campo léxico-semântico em O poder oculto da mulher bonita. .................... 134
FIGURA 17 – Campo léxico-semântico em O que uma coroa dever fazer para casar. ......... 137
FIGURA 18 – Campo léxico-semântico em Os amores de José e a traição de Maria. .......... 141
FIGURA 19 – Campo léxico-semântico em Sofrimento das solteiras para arranjar marido. 144
FIGURA 20 – Campo léxico-semântico em Uma mulher traiçoeira. .................................... 148
FIGURA 21 – Esquema básico dos principais campos léxico-semânticos dos Cordéis
analisados. ...................................................................................................................... 150
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1 INTRODUÇÃO

A Literatura de Cordel tem sido alvo de representações culturais da sociedade

nordestina e é uma das mais autênticas formas de manifestação da Cultura Popular da região.

Nos últimos anos, testemunha-se o crescente interesse que a Literatura Popular tem

despertado no meio acadêmico, tamanho é o acervo de artigos, teses e dissertações que a

elegeram como objeto de estudo, nos mais variados campos.

O estudo sobre essa literatura possibilita uma maior compreensão da experiência de

um povo, de sua identidade cultural, a partir dos dados fornecidos pelo inventário lexical, que

organiza, ou recorta seu sistema de valores, “um mundo lingüística e semioticamente

construído”, no dizer de Barbosa (2001, p.34).

Sobre a Cultura Popular, vejamos o que assinalam Cariry e Barroso (1982, p.19):

Como manifestação estreitamente vinculada à vida de imensas camadas de


nossa população, a Literatura Popular guarda a qualidade de refletir a
consciência e os sentimentos do povo (...). Aí está o seu grande valor. Quem
quiser perquirir a alma do povo, deve observar as manifestações de sua
literatura.

O caráter espontâneo da linguagem, desprendido dos padrões e normas técnicas, além

de comunicar de forma bastante simples, faz da Literatura de Cordel, em nosso entendimento,

a forma mais autêntica de expressão da mentalidade do povo nordestino.

A opção pelo estudo da mulher, no nível lexical, dá-se em virtude de ser a figura

feminina uma constante nesse tipo de literatura, objeto de descrição nas mais diferentes

feições que delineiam o destino imposto à mulher nordestina, sobretudo, na sociedade

patriarcal.

Ao longo dos anos, as mulheres nordestinas foram obrigadas a ocultar-se diante da

figura masculina, desaparecendo dos locais públicos, à medida que alimentavam a idéia da
13

superioridade do homem. Cresciam, dessa forma, acreditando que o sexo masculino era

potencialmente superior, conseqüentemente, o feminino, inferiorizado.

Apesar da relevância do material teórico à realização de uma análise léxico-semântica,

os estudos femininos interessados na linguagem ainda foram pouco explorados,

principalmente quanto à perspectiva deste objeto estudo.

O objetivo central desta pesquisa é investigar no léxico da Literatura de Cordel os

aspectos relativos à mulher, inserida na realidade nordestina. Considerando-se a realidade

lingüística da região nordestina e com vistas à consecução dos objetivos específicos, pretende-

se proceder a uma análise léxico-semântica de um número representativo de vocábulos,

apresentar um universo de significações pejorativas com relação à mulher e identificar o

inventário lexical que explicita a condição feminina, no contexto da sociedade nordestina.

O trabalho se estrutura em cinco capítulos, ancorados nos pressupostos teóricos que

poderão servir à elucidação das questões tomadas como hipóteses deste trabalho, assim

delineadas: a Literatura de Cordel revela, por meio das expressões e marcas próprias da

oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina; por meio de uma análise

léxico-semântica dos folhetos é possível identificar aspectos da realidade nordestina, face ao

contexto sociocultural; o vocabulário, interagindo com a cultura, revela, mais do que os

aspectos formais da língua, o modo como a mulher é percebida e tratada na sociedade.

Essa investigação é construída com base num trabalho de segmentação, orientada de

acordo com a natureza do objeto de estudo e no sentido de possibilitar uma visão

concatenada de idéias em relação aos postulados teóricos ancorados para análise do corpus.

Os quatro primeiros capítulos serão pautados no enfoque das questões em torno da língua,

cultura e sociedade, que competem para a perspectiva do trabalho. Embora a perspectiva

dessa pesquisa não seja sociológica, tomar-se-á esse estudo com vistas a aprofundar a

análise lingüística. No sexto capítulo, os folhetos de Cordel que compõem o corpus da


14

pesquisa, passarão a ser analisados, conforme os dados distribuídos em campos léxico-

semânticos.
15

2 LEXICOLOGIA

A língua pode muito bem ser uma pátria,


como escreveu Fernando Pessoa, porque
como pátria se ganha, se perde, se adota ou
repudia. Mas, antes de pátria, a Língua é
sempre algo de mais íntimo: padrão e medida
da nossa alma; referência da nossa arte[...]

João de Melo

Nos últimos anos, tem-se assistido a um avanço significativo nos estudos

lexicológicos. Entretanto, a atenção dada às unidades do universo lexical, durante muito

tempo, esteve à mercê da velha tradição gramatical. Ainda na primeira metade do século vinte

não se tinha definido um método mais efetivo no tratamento dado ao assunto. Foi preciso

então esperar a segunda metade do século para que surgisse um estudo mais criterioso,

respaldado em teorias lexicais científicas, visando à descrição ou análise do léxico das

línguas.

É importante considerar que tanto a análise da palavra, a categorização lexical e

estruturação do léxico foram e ainda o são, de fato, matéria complexa para os pesquisadores

da língua. O léxico, apresentando um sistema que está em contínuo processo de expansão,

constitui para o estudioso da língua, uma rede imprecisa de elementos de difícil

sistematização, contrariamente, por exemplo, ao nível fonológico, que é normalmente mais

transparente ou homogêneo.

A parte da Lingüística que vai dar conta do estudo do léxico, interessando-se pela

análise da palavra, pela categorização e a estruturação lexical é a então denominada

Lexicologia, de acordo com Pontes (2002a, p.43).

Mantendo o intercâmbio com outras áreas do saber lingüístico, tais como a Semântica,

a Dialetologia e a Etnolingüística, a Lexicologia volta-se, sobretudo, ao interesse dos aspectos


16

socioculturais relacionados aos fenômenos da língua.

Pretende-se, nesta seção, desenvolver, numa perspectiva etno-sociolingüística, uma

abordagem sobre o léxico e a sua eminente relação com a unidade sociocultural. A propósito

desse assunto, enfatizar-se-á a relação que existe entre língua, cultura e sociedade. Atenção

especial será concedida à Hipótese Sapir-Whorf, numa tentativa em explicitar as bases mais

sólidas em que se encontram as posições desses teóricos a respeito da relação língua e cultura.

2.1 LÉXICO E CULTURA

A língua comporta um sistema de signos estreitamente vinculados ao processo das

relações sociais, “exatamente porque os homens sempre se comunicam uns com os outros por

meio de signos”, as palavras. (SCHAFF, 1968, p.160).

A vida social é assim permeada por um sistema de signos lingüísticos, e, por

intermédio deles, é resguardada a transmissão de uma cultura de uma geração à outra, o

patrimônio de uma comunidade, a aprendizagem de seus valores, concebidos e aceitos pelos

seus membros.

Embora apresente em suas faces uma parte intangível, uma estrutura (formal) que

independe dos indivíduos, há um lado da língua suscetível de variações, seja em virtude do

conjunto social, do contexto de uma época, de uma dada história e cultura. A língua varia

principalmente de acordo com as necessidades dos próprios falantes, captando o universo

cultural em que estes vivem. O mundo do falante é assim um mundo lingüístico – à medida

que a língua serve de interpretante desse mundo biossocial. Nas palavras de Câmara (1979, p.

16):
17

A língua é assim, antes de tudo, no seu esquema, uma representação do


universo cultural em que o homem se acha, e, como representa esse
universo, as suas manifestações criam a comunicação entre os homens que
vivem num mesmo ambiente cultural e estrutural, a sistematização da língua.

A partir dessas reflexões e reconhecendo que o estudo da língua envolve a relação do

homem com a sociedade, esse estudo não pode deixar de envolver o elemento cultural que

permeia tal relação. O domínio em torno do léxico poderia sustentar reflexões mais apuradas

da interação do indivíduo com sua cultura, e revelar mais sensivelmente a relação entre práxis

social e linguagem.

As palavras geradas no sistema de uma língua, segundo Biderman (1978),

correspondem a um processo cognoscitivo e são, na verdade, modos de organização dos dados

sensoriais da experiência de um grupo. Os signos lexicais têm a função de transmitir uma

representação coletiva. São eles que fazem existir o que se enuncia. Nesse sentido, o universo

conceptual de uma língua apresenta-se como um sistema ordenado e estruturado de categorias

léxico-gramaticais. Tais categorias seriam nada menos que um sistema de percepção e

apreciação da realidade.

Acresce-se, ainda, segundo a visão da professora, que embora todas as línguas estejam

embasadas num processo de sistematização, cada língua será moldada de acordo com a

conceituação de mundo dos membros de uma sociedade particular. Por isso, não é difícil

perceber que a norma lingüística condiz normalmente com a freqüência de uso dos signos

lingüísticos, normalmente aceitos pelos membros de um grupo. (Ibid, p.179-180).

Com efeito, o léxico, cujas formas contemplam as experiências sociais, reflete todo

um conjunto de aquisições culturais em torno das vivências de uma comunidade. O léxico,

assim, está correlacionado a tudo aquilo que os indivíduos inventam, constroem ou

consideram relevante, ou seja, às suas crenças, aos seus interesses e às suas atividades.

No estudo das línguas, o que permanece em toda a discussão referente ao léxico diz

respeito, principalmente, à capacidade que tem o inventário lexical de englobar os aspectos


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vinculados à realidade social e cultural, motivado pelas mudanças contínuas. Desse modo, a

palavra só pode ser vista enquanto imersa num dado contexto. O significado é extremamente

elástico, o que elimina da língua a chance de qualquer lance de arbitrário ou acidental, nas

situações plausíveis de comunicação.

Fato é que, com a evolução dos tempos, o repertório de signos lexicais variou

consideravelmente e novos termos foram incorporados às línguas humanas. O processo de

expansão da língua foi o próprio homem quem empreendeu - realizando novos projetos,

assinalando novos rumos, juntamente com outros membros de sua comunidade, motivando,

dessa maneira o grande número de criações lexicais.

A causa primeira da expansão do léxico parece ter sido o contato mais freqüente entre

os povos; a expansão das relações entre as nações nos mais variados contextos socioculturais;

as novas demandas de trabalho e de profissões; o avanço de tecnologias e das ciências etc.

No âmbito da fala, as alterações do léxico também podem ser evidenciadas com mais

nitidez. Os indivíduos, em situações espontâneas e em condições reais de uso, seja pela busca

de sentido, ou para ocasionar maior expressividade no âmbito da comunicação, estão sempre

incorporando novas palavras no universo das línguas. Muitas dessas criações léxicas

produzidas perduram e se estabelecem no vocabulário das línguas, outras simplesmente têm

vida passageira, servindo única e tão simplesmente para a obtenção de uma força expressiva

em um momento e contexto específicos. (BIDERMAN, 1978, p. 166).

Um outro dado relevante sobre as formas neológicas, dá-se, o mais das vezes, pelo fato

de uma competência lexical insuficiente, ocasionada no falante, em determinados contextos:

as criações lexicais normalmente surgem com fins de superar essa deficiência. A rigor, é no

nível da fala, onde o léxico parece adquirir maior fluidez, que normalmente se instala toda

uma ordem de criações léxicas.

Finalmente, a permanência de uma criação léxica numa comunidade lingüística


19

depende da necessidade sentida pelos falantes em preservá-la. Nesse sentido, é preciso

concluir com Biderman que:

O processo de dicionarização de um neologismo reflete a continuidade do


seu uso no vocabulário geral. Ou seja: o vocábulo novo só é dicionarizado
quando ele já foi aceito por toda a comunidade que fala aquela língua.
(BIDERMAN,1978, p. 166).

2.2 A TEORIA DO RELATIVISMO LINGÜÍSTICO OU HIPÓTESE SAPIR-WHORF

A Hipótese do Relativismo Lingüístico que brotou dos trabalhos em campo dos

antropólogos Boas e Sapir, tornou-se notável na Lingüística Americana dos anos 50. Foi a

partir das idéias célebres de Franz Boas, impressas no Handbook of American Indian

Languages, que Sapir formulou sua problemática. (BOAS apud MARCELLESI e GARDIN,

1975, p. 29).

Acreditando na coexistência entre linguagem e cultura, Boas interessou-se em

descrever a gramática das línguas, definindo as categorias lingüísticas de acordo com os

fenômenos observados pelos falantes das línguas tomadas como objeto de análise.

Como se vê, apesar da doutrina dos etnólogos americanos ser comumente associada à

doutrina dos filósofos da linguagem, ou mais especificamente à tradição humboldtiana, suas

concepções, ou mesmo, a sua essência, brota do pensamento americano. Faz-se necessário,

pois, sublinhar as posições em que divergem uma e outra doutrina. Nessa perspectiva,

apropriamo-nos das idéias esboçadas por Marcellesi e Gardin (1975, p. 30-32):

a) Os argumentos dos filósofos da linguagem são especulativos, enquanto que, toda a teoria,

formulada pelos lingüistas americanos, parte de observações puramente empíricas. Tem-se

aí a primeira distinção quanto ao procedimento utilizado pelos estudos na análise das

línguas;
20

b) Outro aspecto que vale salientar a respeito dessas teorias é que, enquanto os filósofos

exercem observação sobre as línguas européias já conhecidas por eles, os lingüistas

americanos baseiam-se em dados coletados por modelos definidos por eles próprios, face

ao sistema de idiomas recém descobertos. Por meio da realização desse trabalho empírico,

os antropólogos puderam confrontar os dados apreendidos em função dos idiomas

desconhecidos àqueles notados em línguas européias. Isto permitiu que eles chegassem à

conclusão de que há diferença radical entre as línguas e as visões do mundo ameríndias e

as dos europeus.

É importante considerar ainda que, embora tenham sido Boas e Sapir quem

primeiramente definiu o conceito-base da Relatividade Lingüística, foi Whorf quem

desenvolveu a investigação; mais que isso, foi ele quem formulou o conjunto mais radical da

tese. Há então pontos em que divergem os dois estudiosos.

A linguagem, para Sapir (1980, p. 32), funciona como poderoso instrumento de

socialização. O isomorfismo entre a língua e cultura não pode ser concebido numa visão

simplista, não existe correspondência simples entre a forma de uma língua e a forma geral de

uma cultura daqueles que a falam. Entende esse estudioso que o efeito organizador da

experiência de mundo possui relação restrita com o léxico de uma língua. Este, por sua vez,

“constitui um indicador extremamente sensível da cultura de um povo”, mas não existe, além

do vocabulário, nenhum dado lingüístico que exerça um efeito modelador sob a percepção de

mundo.

Sapir sugere, desse modo, que há limite para a incorporação dos dados lingüísticos à

cultura de um povo. Não se pode afirmar, segundo ele, que à mesma proporção que a cultura

de um povo evolui, evolui também a língua. Desse modo, enquanto a cultura insere-se nos

condicionamentos físicos, psíquicos coletivos e constitui uma herança da vida passada e o

conjunto de reflexos e anseios de vida em sociedade, a língua evolui de modo mais lento.
21

Contrariamente, Whorf, na esteira de Humboldt, defende que é a gramática das línguas

que exerce a função de moldar as idéias, que as imagens mentais são definidas, estruturadas

pela língua. Assim assevera Whorf apud CARROL (1973, p. 105):

A formulação de idéias não é um processo independente, estritamente


racional na velha acepção [...] Dissecamos a natureza segundo diretrizes
baixadas por nossas línguas nativas. As categorias e os tipos que isolamos
do mundo de fenômenos, não os encontramos aí porque estão evidentes a
cada observador; pelo contrário, o mundo se apresenta num fluxo
caleidoscópico de impressões que têm de ser organizadas por nossas mentes
– e isso quer dizer principalmente pelos sistemas lingüísticos em nossas
mentes [...].

A respeito da Hipótese do Relativismo Lingüístico, Lyons (1987, p. 276) assinala:

A hipótese Sapir-Whorf, como normalmente é apresentada, combina


determinismo lingüístico [“a linguagem determina o pensamento”] com
relatividade lingüística [“Não há limites para a diversidade estrutural das
línguas”].

A teoria Sapir-Whorf, em essência, combate a impressão ilegítima de que as línguas

comportam modelos universais de significação. Além disso, desfaz a concepção de que a

linguagem é um “decalque do pensamento” - noção inclusive muito recorrente em vários

manuais didáticos para o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. É lícito então afirmar,

segundo as premissas dessa teoria, que as línguas delimitam a experiência vivida pelos

falantes de uma determinada sociedade.

Os impasses, as investidas maiores no campo da Lingüística, da Antropolingüística e

da Psicolingüística nas décadas de 50 e 60, parecem ter sido motivados pelo problema exposto

na Hipótese do Relativismo Lingüístico de que “seriam as estruturas gramatical e lexical de

uma língua o resultado do pensamento, do domínio cultural de um povo”, ou, de forma

diferente, se seria “o pensamento de um grupo, as delineações socioculturais, responsáveis por

determinar as estruturas de uma língua”. Corroborando ou divergindo dos princípios em que


22

se baseia tal doutrina, muitos trabalhos foram realizados na época com o intuito de combater

essas noções ou mesmo de reformulá-las.

Embora sejam múltiplas as dimensões tomadas em torno das proposições que

envolvem o conceito de cultura, envolvendo a sua relação com a língua, é válido assinalar que

o levantamento de vários estudos a esse respeito revela um ponto em que convergem as

distintas concepções, o aspecto de equilíbrio circunscrito entre as posições está na referência à

questão da significação. Antropólogos, lingüistas e psicolingüistas têm concordado com a

noção de que há, em toda e qualquer cultura, um índice de códigos, lingüística e

semioticamente falando, que asseguram a relação comunicativa entre os membros de um

grupo social. Tais códigos são fabricados, estabelecidos na própria estrutura social. Nesse

sentido, os indivíduos devem interpretá-los e segui-los para que assim sejam aceitos em

sociedade.

Não é motivo de controvérsias também considerar, nesse sentido, o fato de que a

linguagem constitui a expressão da realidade cultural e social de um grupo. Toda a vida dos

signos está imbuída numa semiose que envolve o estatuto de estrutura gramatical e semântico

de uma língua.

É por essa razão que ao estudarmos a cultura de um grupo, o exercício de

simbolização presente entre uma e outra sociedade, conseguimos chegar mais perto da

compreensão do modo de vida de um povo, de seus hábitos de vida, seu conjunto de crenças,

construídas ao longo do tempo.

Difícil é precisar o momento em que se contrai língua e cultura, o elemento em que

uma ou outra grandeza age primeiro - se é a língua que influencia o modo de pensar dos

indivíduos ou se é a cultura que atua diretamente na língua. Ou, mais precisamente, qual o

limite da intervenção das categorias lingüísticas no pensamento das pessoas, dos falantes de

uma língua, ou vice-versa.


23

Importa observar que, uma e outra, língua e cultura são realidades que se

complementam. Diante dessas posições, é possível admitir que a colisão entre essas duas

grandezas ocorre quando o indivíduo falante exterioriza um conceito, antes formado nas

estruturas psíquicas para, posteriormente, exteriorizá-lo, torná-lo público por meio de um

recorte lingüístico daquilo que observa do mundo objetivo.

A posição proposta é a de que língua e cultura constituem realidades distintas, mas que

coexistem em determinado momento. No que diz respeito à Hipótese Sapir-Whorf, destaque-

se a versão mais fraca da hipótese, que considera o léxico como o elemento lingüístico, o qual

constitui um indicador sensível à cultura de um povo, diferente do nível sintático e fonológico

das línguas.

A versão forte da Hipótese do Relavismo Lingüístico foi desenvolvida por Whorf, que

desenvolveu as idéias do seu mestre, postulando que a língua era um instrumento de

organização para a atividade mental dos indivíduos de organização.

A relação entre língua e pensamento de um povo revelar-se-ia presente em modelos de

codificação lingüística, verbal ou não, que fazem parte dos jogos comunicativos. A língua

tece a organização do conteúdo informacional contido nas mentes do indivíduo e traz, em seus

contornos formais, os traços culturais particulares da sociedade.

Compreendendo a inter-relação entre língua e cultura na construção de uma realidade,

pode-se compreender melhor, também, a visão que o indivíduo constrói de si mesmo. Em

outras palavras, o modo como o indivíduo se percebe está relacionado diretamente ao modo

como ele estabelece e mantém relação com outros indivíduos e com o mundo.

Finalmente, a Hipótese Sapir-Whorf fornece uma base sólida à investigação da relação

entre língua e cultura, enquanto construção de uma realidade.


24

De acordo com as questões acima levantadas, e considerando-se os pressupostos que

se assentam na interpretação dos aspectos antropossociais da análise, segue-se à discussão da

Teoria dos Campos Lexicais.

2.3 CAMPOS LÉXICOS

Um termo dado é como o centro de uma


constelação, o ponto para onde convergem
outros termos coordenados cuja soma é
indefinida.
Saussure

A Teoria dos Campos Lexicais tem uma longa tradição na Lingüística Românica. Na

Antiguidade Clássica, encontra-se esparsa bibliografia de dicionários onomásticos. O

Thesauru of English Words and Phrases, publicado em 1852 por P. M. Roget, constitui o

primeiro importante dicionário ordenado por grupos conceituais, seguindo a lógica da

Onomasiologia. (ROGET apud GECKELER, 1976, p. 113).

No final do séc. XX, com o florescimento dos estudos na área da Geografia

Lingüística e aumento de interesse pelos problemas em torno do léxico, produziram-se

grandes avanços na área da Semântica, indo em direção à Lexicografia e respectivamente da

própria Lexicologia.

A Teoria dos Campos adquiriu grande êxito com as pesquisas na área de Lexicologia a

partir dos trabalhos de J. Trier e J. L. Weisgeber. Partidários da doutrina de Humboldt, esses

lingüistas reafirmaram a tese da “língua, espelho do povo que a fala”. Para eles, tanto a

experiência de mundo exterior, vale dizer da cultura, como a própria estruturação do

pensamento, são motivadas pela linguagem. Pensavam, pois, que os “campos semânticos”

seriam organizados de modo particular, segundo cada língua. Daí, essa teoria passou a ser

descrita como neo-humboltiana, como afirma Ullmann (1964).


25

Assim seguiriam, na esteira de Humboldt, outros lingüistas, preocupados com as

estruturas psíquicas e socioculturais dos “campos semânticos”. Para eles, os campos

semânticos reproduzem essas estruturas, sistematicamente, variando em função das

características particulares de cada língua.

O semanticista S. Ullmann (1964, p. 522-523) enfatiza o papel que a Teoria dos

Campos teve para o desenvolvimento da Semântica Moderna, o qual se chegaria a partir das

realizações de Trier. A Teoria dos Campos teve importância, no entender de Ullmann, pelas

razões seguintes: a) “conseguiu introduzir um método verdadeiramente estrutural, num ramo

da lingüística”; b) estabeleceu o conceito dos campos associativos, essencial para a resolução

de problemas antes ignorados ou desapercebidos, tais como a questão da estrutura

significativa global e o contexto, imediatamente relacionado a ela; c) revelou-se como

mecanismo de investigação poderoso para a complexa questão da relação entre língua e

pensamento.

E do ponto de vista da terceira questão, continua o lingüista:

Um campo semântico não reflete apenas as idéias, os valores e as


perspectivas da sociedade contemporânea; cristaliza-as e perpetua-as
também, transmite às gerações vindouras uma análise já elaborada da
experiência através da qual será visto o mundo, até que a análise se torne tão
palpavelmente inadequada e antiquada que todo o campo tenha que ser
refeito. (ULLMANN, 1964, p. 523).

Embora tenha sido Trier o grande cultor da Teoria dos Campos, as referências

bibliográficas do período anterior aos de seus trabalhos, traziam formulações que já atentavam

para a existência dos “campos lingüísticos”.

E. Tegnér, por exemplo, em trabalho de 1874, antecipa a noção de campo lingüístico,

usando o termo “campo”.

Em 1910, Meyer também fala do assunto. Define os campos como “sistemas

semânticos” que, segundo ele, são como “la agrupación de um número limitado de
26

expresiones desde um punto de vista individual”. O autor distingue ainda três tipos de

sistemas semânticos: “naturais”, “artificiais” e “semiartificiais”. (MEYER apud GECKELER,

1976, p. 100).

A definição elaborada por Ipsen, em 1924, foi de fato a que mais claramente tratava da

questão dos campos, anteriormente a Trier. Na fórmula de Ipsen, as palavras de uma língua

estariam todas reunidas em “campos semânticos”, “como en un mosaico, una palabra se une

aqui a la outra, cada una limitada de diferente manera, pero de modo que los contornos

queden acoplados y todas juntas queden englobadas en una unidad semántica de orden

superior, sin caer en una oscura abstracción”. (IPSEN apud GECKELER, 1976, p. 103).

Posteriormente, alguns dos princípios estruturais presentes na doutrina de Ipsen e

algumas linhas do pensamento de Saussure serão ajustados à nova doutrina de J. Trier. É o

próprio Trier quem confessa a influência dos estudos anteriores em sua teoria:

No sabría ya decir si la teoria Del campo la he desarrolado sólo con ayuda de


SAUSSURE o si me han influido también líneas de Ipsen...En el conjunto de
mis ideas me siento especialmente influenciado por FERDINAND DE
SAUSSURE y especialmente ligado a LEO WEISGERBER. (TRIER apud
GECKELER, 1976, p. 103)

De Saussure, Trier se baseia mais particularmente na idéia de que os signos

lingüísticos delimitam-se uns aos outros, ou seja, é na confluência dos elementos que se

obtém a significação. Todos os signos apresentam-se concatenados por uma rede de relações

significativas que os ligam sempre a outros termos do sistema. Consiste, na verdade, numa

teia formada de infinitas relações paradigmáticas. (PONTES, 2002b, p.56).

A idéia basilar que fundamenta todo o pensamento trieriano é a “articulação”. Para

Trier, as palavras formam, a partir de um campo conceitual, uma mútua dependência. Além

disso, por trás de toda a estrutura, do conjunto lexical, há sempre uma significação. A essência

significativa é, aliás, o resultado do conteúdo total, globalizado. (TRIER apud GECKELER,

1976, p. 119).
27

A concepção de campo de Trier e L. Weisgesber continuaria influenciando mais tarde

na produção de importantes investigações lingüísticas. A primeira delas seria a de Bally, que

introduziria o conceito de campo associativo, aprofundando o estudo referente às séries

associativas ou paradigmáticas saussureanas, que apontavam às noções de campo.

O semanticista Ullman (1964, p. 500-501), sintetizando as idéias de campo associativo

formuladas por Bally, argumenta:

O campo associativo de uma palavra é formado por uma intrincada rede de


associações, baseadas algumas na semelhança, outras na contigüidade,
surgindo umas entre sentidos, outras entre nomes, outras ainda entre ambos.
O campo é por definição aberto, e algumas das associações estão
condenadas a ser subjetivas, embora as mais centrais sejam em larga medida
as mesmas para a maioria dos locutores.

A teoria dos campos impressionou vivamente alguns dos discípulos de Trier e fez

florescer diferentes definições rivais dos campos semânticos, diante dos conceitos

preconizados pelo fundador.

Uma das críticas mais recorrentes, com relação à doutrina trieriana, é com relação às

terminologias por ele utilizadas. Critica-se, fundamentalmente, que em suas investigações

Trier utiliza os termos “campo léxico”, “esfera conceitual” e “campo lingüístico”, sem

estabelecer distinções dos limites de uso de cada um dos termos em específico, causando,

pois, uma grande imprecisão terminológica.

Nos anos 50, a teoria de campo, nas linhas de Trier, seria reavivada pela experiência

teórica e prática de L. Weisgerber. Não foi sem razão, pois, que a doutrina passou a ser

considerada na Lingüística como Trier-Weisgerber (GECKELER, 1976, p. 125).

Propondo uma definição de campo semelhante à dos “campos léxicos” de Trier,

Weisgerber, no círculo lingüístico “Lenguaje y Comunidad”, realizado em 1956, introduz o

conceito de “esfera conceitual”. Definindo com mais precisão o método de análise lingüística,
28

o autor fornece classificações, de acordo com a essência da “articulação” instituída para o

campo léxico.

Na vanguarda da Lexicologia francesa, o lingüista G. Matoré apud Ullmann (1964, p.

526), também conduz uma abordagem sobre os campos, pondo em enfoque a questão da inter-

relação entre língua e sociedade. Em 1953, Matoré publica La métode em lexicologie um ano

após ter publicado a tese de doutorado Le vocabulaire et la société sous Louis Philippe.

Dando uma roupagem sociológica ao método, Matoré previa uma Lexicologia concebida sob

as diretrizes da Sociologia. Introduziu, assim, o conceito de “palavras-chave e palavras-

testemunhas” para descrever a estrutura social.

Para o lingüista francês, a partir do vocabulário de uma língua, poder-se-ia conhecer as

características específicas de uma comunidade. Embora tenha ido longe demais no problema

da classificação da Lexicologia, as suas considerações são pertinentes no que tange à

dimensão social da língua, fato é que o léxico consiste no patrimônio social de uma sociedade.

Diante das diferentes abordagens consideradas, pode-se entender que a análise da

estrutura vocabular de uma sociedade depreende o universo conceitual, a visão de mundo que

se reflete nos contornos formais da língua. Um campo lingüístico é, na verdade, um sistema

de idéias, de conceitos os quais se formam em função de uma cultura e de uma sociedade.

Os diferentes conceitos levantados pelos lingüistas em torno da Teoria dos Campos,

referendam a inter-relação entre língua, cultura e sociedade e fornecem uma valiosa

contribuição aos estudos lexicais, uma vez que se inserem numa abordagem sócio-

etnolingüística.

Nessa perspectiva, apresentar-se-á, no capítulo seguinte, uma revisão sobre o conceito

de cultura, que converge com a natureza desse trabalho.


29

3 CULTURA: UM CONCEITO CONTROVERSO

A cultura ultrapassa a natureza, mas está


profundamente enraizada nela.
Kaj birket-Smith

A preocupação e o interesse do homem pelo homem não é privilégio das sociedades

mais recentes. “O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo” – observa Laplatine

(1988). A verificação de que as sociedades divergem entre si quanto ao modo de vida eclodiu

nos primórdios da humanidade, suscitando a busca pelo entendimento e compreensão da

história e dos perfis humanos, ou mais especificamente, das culturas humanas.

Pode-se dizer, então, que a elaboração do pensamento do homem sobre ele mesmo é

tão antiga quanto a existência da humanidade, mas só modernamente o estudo voltado à

descrição e comparação dos povos, passou a constituir um saber científico, tomando como

objeto de conhecimento o “próprio homem”. É no final do séc. XVIII que se tem, pela

primeira vez, um estudo sobre as “culturas humanas”, com métodos até então utilizados

apenas na área da Física ou da Biologia.

Desde a primeira concepção de cultura, formulada por E. B. Tylor (1871), o conceito

de cultura tem sofrido ampliações ou reformulações por parte de pensadores e investigadores

interessados em construir uma nova idéia do que seja cultura. Fato é que, tendo passado mais

de dois séculos da primeira definição do conceito, quando já poderia existir um certo

consenso entre a comunidade científica sobre o problema, percebe-se, na realidade, que as

polêmicas sobre a questão da cultura têm se tornado cada vez maiores entre os historiadores,

antropólogos e sociólogos e demais cientistas das ciências humanas. Isso atesta que o

problema está longe de se extinguir.

As discussões mais atuais sobre cultura envolvem tanto aspectos intimamente

relacionados às instituições sociais, remetendo a preocupações classicamente associadas ao


30

assunto, tais como artes plásticas, arquitetura, literatura, manifestações lúdicas e religião, mas

também se voltam a questões relacionadas à identidade, ou seja, aos sistemas de crenças e

valores, presentes nas relações sociais institucionalizadas.

A interpretação e aplicação do conceito tem variado de acordo com o método e da

orientação teórica assumida pelo pesquisador. De fato, todo discurso científico deve

demonstrar uma determinada posição a respeito do tema problematizado – “não porque haja

somente uma direção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: é necessário escolher”.

(GEERTZ, 1976, p. 15).

Em geral, a primeira preocupação dos cientistas em definir o que é cultura, diz respeito

à questão de sua origem. Essa remete a outras duas que estão sempre presentes nas

formulações dos analistas, quais sejam: “o que faz do homem um ser cultural?” e “o que é

permitido através da cultura?”.

Embora muitos autores atribuam peso distinto ao conceito de cultura, parece haver

consenso pelo menos no tocante a duas noções: primeiro, que “não existe sociedade sem

cultura” e segundo, um dos aspectos mais importantes e que está na base desse conceito, é a

“significação”.

Um dos mais célebres antropólogos franceses, Claude Levi Strauss (1976, p. 45),

assinalou que a cultura teria seu surgimento a partir do momento em que o homem

convencionou a primeira norma, ou seja, a “proibição do incesto”, característica mais ou

menos comum em todas as sociedades humanas. Nas sociedades consideradas “civilizadas”, o

grau de proibição das relações sexuais entre o homem e as categorias de mulheres da mesma

família estendem-se à mãe, à filha e à irmã, como se é sabido..

Com efeito, a capacidade de criar, de estabelecer designações, elaborações culturais é

um processo inerente à capacidade que o homem tem de estruturar em seu pensamento, a

partir de um conjunto de doutrinas, de unidades simbólicas, as manifestações empíricas de


31

uma determinada sociedade. Essas seriam mantidas de forma muitas vezes “inconsciente” na

mente dos indivíduos.

Poder-se-ia, de maneira simplificada, dizer com Adamson Hoebel (1952, p. 212): “A

capacidade cultural do homem é conseqüência da complexidade e plasticidade do seu sistema

nervoso”. Somente o homem atingiu tal nível de complexidade e adaptabilidade que permitiu

o desenvolvimento de uma elaboração cultural que se não é a principal, é uma das fontes mais

extraordinárias da inteligência humana, qual seja a capacidade de comunicar-se com outros

indivíduos a partir da linguagem.

A tese central de Hoebel é mostrar que é a capacidade psíquica e orgânica presente no

homem o fator que o difere de outros animais. É, pois, com essa capacidade que o indivíduo

pode controlar coisas tão simples como a hora, a caça e mesmo produzir determinados

artefatos materiais e simbólicos. Aquilo que é considerado arte: pintura, escultura, etc, enfim,

pode realizar determinadas intervenções na natureza, de diferentes proporções.

Pelo exposto, dá para ter uma idéia da dimensão do problema que é definir cultura. A

noção de cultura se estende a vários domínios da existência humana. Envolve tanto a

dimensão psíquica ou racional do homem, como também o aspecto social e,

conseqüentemente, os valores materiais e espirituais que dizem respeito às qualidades

inerentes ao homem. (PONTES, 2002a, p. 72).

Essa pesquisa não busca trazer respostas definitivas, nem muito menos julgar ou

analisar criticamente uma ou outra definição de cultura, tentando justificar lacunas ou

desacertos. Contudo, acredita-se que as diferentes posições a respeito do tema podem servir

ao embasamento teórico frente à questão da inter-relação existente entre cultura, língua e

sociedade.

A abordagem baseia-se na concepção de cultura formulada por Clifford Geertz (1978,

p. 15), que caracteriza a cultura como “sistema simbólico”. O autor defende um conceito de
32

cultura essencialmente semiótico, através do qual os símbolos e significados são partilhados

pelas pessoas que convivem num determinado sistema cultural. Esses devem ser vistos, na

concepção de Geertz, não através de uma descrição densa, mas “semanticamente densa”.

E na trilha de Marx Weber, Geertz declara:

o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo


teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto
não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 1978, p.
15).

Essa procura de significado, na concepção do autor, está em extrair de um evento ou

práxis social o sentido, até que se possa compreender o valor que está por trás de um

acontecimento, de uma estrutura simbólico-significativa, presente em qualquer cultura, em

qualquer sociedade. E concebendo a cultura numa estrutura que se opera através de “signos

interpretáveis”, Geertz continua:

a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os


acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma
inteligível – isto é, descritos com densidade. (Ibid, p. 24).

Deve-se atentar, pois, para o fato de que os símbolos se constituem num universo

particular de cada cultura. A interpretação de cada fenômeno cultural, um gesto, um

comportamento, por mais simples que aparente ser, deverá ser visto ou interpretado em

função do que a cultura estabeleceu para si, em termos de implicação e sentido. Assim, cada

cultura, cada grupo social em específico ou “comunidade cultural” estabelece as maneiras de

agir, de interpretar ou conceber uma realidade e a forma de comunicação que se deve

estabelecer entre os seus atores, usuários.

Vê-se, assim, que a cultura consiste em estruturas de significado socialmente

estabelecidas e que “os atos são marcos determinados”. Um exemplo disso é que, ao
33

encontrar-se em terras alheias, o indivíduo logo se depara com tradições diferentes da qual

não está acostumado e sente-se, de certa forma, “perdido” no novo ambiente. Em outras

palavras, sem entender a sociedade e a cultura com suas próprias relações sociais e valores, é

impossível interpretar e entender uma realidade divergente e também muito difícil conviver

com ela. (DA MATTA, 1991, p. 34).

3.1 NORMAS E PADRÕES SÓCIOCULTURAIS

A participação dos indivíduos na cultura de uma sociedade não pode ser encarada

como um evento fortuito e fora de contexto. Como considera Hoebel (1952, p. 212), os

padrões integrados de comportamento são fundamentados a partir dos “hábitos de massa”.

Qualquer evento criativo e manifesto não pode, em hipótese alguma, ser classificado como

parte da cultura da sociedade, se fosse conhecido apenas por um indivíduo. É o aspecto de

coletividade um dado primordial que caracteriza a existência de todas as culturas.

Na vida em sociedade, os indivíduos estão sujeitos a submeter-se a certos padrões de

comportamentos que se configuram em “hábitos de comportamento”. É o que afirma

categoricamente Hoebel (op. cit., p. 212), embasando-se nas idéias de William Graham

Sumner:

Cada nôvo indivíduo, quando nasce ou entra no grupo, é submetido ao


processo de treinamento ou doutrinação, hoje denominado
enculturação [...] Os indivíduos são modelados mais ou menos de
maneira uniforme segundo o molde comum. Um mínimo de
padronização é o destino de todos. (sic).

Contudo, é preciso salientar que as normas não se aplicam uniformemente por toda

uma sociedade. Existem determinados modelos de conduta que valem sem distinção para

todos os membros de uma sociedade, são as chamadas normas universais. Essas, como a
34

própria denominação indica, dizem respeito às convenções que se aplicam de maneira global

aos membros da sociedade, e impossibilitam desvios de conduta. É oportuno dizer que a

proibição do incesto, de que já falamos aqui, é um caso de norma universal.

Observe-se ainda que nenhuma sociedade é homogênea. Existem padrões culturais que

variam de acordo com cada sociedade em específico. Determinadas distinções sociais são

fundamentadas em função das variáveis como sexo e idade.

Assim, as distinções presentes nas relações baseadas nessas duas categorias podem ser

consideradas como norma universal. Contudo, é a dinâmica social interna que define os traços

específicos de comportamento para as relações que se estabelecem entre os sexos e entre os

grupos de idades e mesmo de gerações diferentes. “Isto significa que existem subgrupos

internos em toda sociedade. Cada um deles tem suas próprias características de

comportamento, as quais se aplicam apenas aos seus membros. Essas normas são conhecidas

como específicas”. (HOEBEL, 1952, p. 213).

Assim, embora algumas delas possam ser partilhadas por todos os adultos é bem

possível que as mesmas não sejam compartilhadas por crianças, do mesmo modo que muitas

idéias e atividades adultas são partilhadas apenas pelos membros de certos agrupamentos em

sociedade, como homens, mulheres ou artífices especializados. (LINTON, 1945, p. 48).

Uma outra questão importante a ser considerada é que os elementos partilhados

socialmente não obedecem a uma estrutura permanente e estática, alheia a inovações no eixo

do tempo. Muito pelo contrário, as culturas estão sujeitas a mudanças e elas se alteraram com

o passar do tempo pura e simplesmente porque a humanidade, no ensejo de empreender novos

inventos, angariar novas conquistas, está sempre redefinindo e reformulando seus conceitos,

suas visões face ao mundo.

Não é preciso dizer que a realidade da sociedade brasileira no séc. XIX é

profundamente diferente da que temos hoje em dia, seja no seu aspecto econômico e político e
35

geográfico, seja quanto ao desenvolvimento nas relações de classe. Enfim, toda a conjuntura

sociocultural da sociedade brasileira mudou e muito de lá para cá.

Como ressalta Tomasello (2003, p. 5), “as tradições e os artefatos culturais dos seres

humanos acumulam modificações ao longo do tempo”. Para ele, muito das mudanças

culturais significativas nas sociedades, tais como as que são operadas no sistema religioso,

político e econômico num grupo social, são resultantes de cooperação, “tanto simultânea

como sucessiva ao longo de gerações e de muitas pessoas e de uma maneira que nenhuma

pessoa ou grupo de pessoas pretendia ou teria previsto”.

O axioma de Leibniz “a natureza não dá saltos” parece ser inteiramente aplicável à

questão das mudanças culturais de que trata Tomasello. O fato é que as mudanças são

fundamentais do ponto de vista histórico-cultural de uma sociedade. É evidente que a

sociedade sofre transformações e com elas também os indivíduos incorporam mudanças, mas

é correto afirmar que as transformações não ocorrem abruptamente. Com efeito, as mudanças

não são fortuitas; haverá sempre uma ligação entre um evento cultural novo e um mais

recente; ademais, elas são organizadas paulatinamente a partir de um processo coletivo, como

já foi dito antes.

A capacidade de criar tradições e artefatos materiais e acumular suas experiências

exigiram do homem não só a capacidade de invenção criativa, mas também um modo de

transmissão social que garantisse a sofisticação de seu aparelho cultural e impossibilitasse o

retrocesso desse processo. Segundo Tomasello (Ibid., p. 6), a evolução e acumulação das

experiências culturais só foi possível graças ao chamado “efeito catraca” - através do qual um

produto ou prática recém-inventada preserva-se e aperfeiçoa-se até que surja uma outra forma,

mais aperfeiçoada, que possa substituí-la.

Desse modo, a catraca cultural consiste na atividade de atualizar o “gen cultural”, ou

seja, promover a transposição da aprendizagem cognitiva de uma geração à outra. É o que diz
36

Tomasello (2003, p. 9): “O mais importante é que a evolução cultural cumulativa garante que

a ontogênese cognitiva humana ocorra num meio de artefatos e práticas sociais sempre novos

que, em qualquer tempo, representam algo que reúne toda a sabedoria coletiva de todo o

grupo social ao longo de toda a sua história cultural”. Simplificando, a evolução cultural

cumulativa é a chave para as impressionantes realizações cognitivas humanas.

Todos os seres humanos estão destinados a viver num certo tipo de ambiente social

para se desenvolver cognitiva e socialmente. Tal ambiente social, a cultura, é, como ressalta

Tomasello (Ibid, p. 109), nada mais do que o “nicho ontogenético típico e exclusivo da

espécie para o desenvolvimento humano”. Traduzindo, a organização e o pensar de uma

sociedade dependem, intrinsecamente, do modo como é configurada a cultura.

Idéia bastante semelhante a essa é a que é apresentada por Kroeber apud Laraia (1975,

p. 70), ainda que numa perspectiva diferente. Este define a cultura como sendo “um meio de

adaptação aos diferentes ambientes”. Para ele, os comportamentos seguem um curso

determinado pela cultura e o homem é um ser modulado pela cultura, ou seja, age de acordo

com o modelo de cultura que lhe foi transmitido. Ele necessita, pois, de construir seu

“habitat” social. E a cultura permite ao homem não somente adaptar-se em seu meio, mas

também este meio adaptar-se ao próprio homem, as suas necessidades e projetos, passando

por um processo de aprendizagem social.

A Teoria de Tomasello parte do princípio de que a cognição humana apresenta

qualidades inerentes e distintas das de outras espécies primatas porque é 1) filogética (tem

raízes no processo evolutivo do homem); é ontogenética (a aprendizagem cultural não cessa,

acompanha o homem do nascimento até a morte) e 3) é histórica (o homem constrói artefatos

ao longo do tempo, acumula-os e insere sempre algo de novo em sua cultura).

O ponto central que norteia toda essa teoria é que a cognição é um processo que se dá

socialmente. O conhecimento é partilhado e construído a partir da interação. A cognição não


37

está na mente, ela é produto do reconhecimento do outro, estabelece-se através de um vínculo

que se forma historicamente. É por meio de uma cultura que o indivíduo constrói sua

identidade, enquanto se reconhece através do outro. Estar inserido numa coletividade é o que

faz dele, ao mesmo tempo, um ser individual.

Nesse contexto, o sistema cognitivo humano é extremamente eficaz no sentido de

promover uma aprendizagem colaborativa. A humanidade desenvolveu um sistema de

transmissão cultural e cumulativa que pode ser entendida, nesse caso, como “uma forma

particularmente poderosa de inventividade colaborativa ou sociogênese”. (TOMASELLO,

2003, p. 56).

A primeira forma de sociogênese consiste no resultado que se obtém através do “efeito

catraca” que, como já foi dito, consiste na herança e reformulação de uma prática ou de

artefato simbólico e lingüístico. A segunda diz respeito à colaboração mútua existente entre os

indivíduos, na tentativa de solucionar um problema.

O processo de sociogênese humana ocorre toda vez que é criada alguma coisa, através

da interação social cooperativa. Nesse sentido, a aprendizagem cultural humana apresenta-se

em três níveis: “imitação”, “instrução” e “colaboração”.

Os tipos básicos de aprendizagem cultural, sobre os quais referiu-se acima, “são

particularmente poderosos porque se baseiam na adaptação cognitiva exclusivamente humana

para compreender os outros como seres intencionais iguais a si mesmo [...]”. (Ibid., p. 54).

Conclui-se que a capacidade exclusiva, existente apenas no homem e que o torna

capaz de realizar conjuntamente atividades e novas aprendizagens e de tirar proveito de suas

experiências sociocognitivas, é a presença da linguagem. Assim, o desenvolvimento cognitivo

é resultado das relações possibilitadas pelo uso da linguagem, da mesma forma que o

desenvolvimento lingüístico só é permitido a partir da interação entre os indivíduos, através

das experiências comunicativas. A língua, em função dos princípios que acabamos de afirmar,
38

viabiliza as chances de perspectiva e elaboração de conhecimento e compreensão do mundo

objetivo.

Tendo-se delineado os postulados teóricos fundamentais dos lingüistas e antropólogos,

os quais procuraram estabelecer a relação entre língua, cultura e sociedade, far-se-á uma

revisão sucinta da Literatura de Cordel, a fim de situar o corpus dessa pesquisa.


39

4 A LITERATURA DE CORDEL

Chamem um cantador, sertanejo, um desses


caboclos distorcidos, de alpecartas de couro e
peçam-lhe uma cantiga. Então sim. Poesia é
no povo (...)
Celso de Magalhães

A Literatura Popular, chamada pelos franceses de “colportage”, tem o seu marco

inicial pela divulgação de histórias tradicionais, as ditas novelas de cavalaria. Ao lado dessas

novelas, narrativas de amor, de guerras, de viagens, verdadeiras epopéias, passaram a surgir,

no mesmo tipo de poesia e feito popular, a difusão de fatos recentes, de acontecimentos

sociais que iam adquirindo cada vez mais a fisionomia do povo e “caindo em seu gosto”. O

Cordel traduzia-se assim como fonte de informação, bem antes do jornal existir.

A origem do nome Cordel está relacionada à forma como eram vistos os folhetos -

dependurados num cordel (corda) ou barbante quando expostos nas casas ou feiras livres onde

eram vendidos. Também em mercados, romarias e praças públicas, portas de engraxataria, os

folhetos eram encarreirados e presos a uma corda para serem vendidos, como hoje ainda o

são.

É comum encontrar nesses locais o próprio vendedor, poeta ou cantador, que canta ou

recita versos e seduz o seu público que se aproxima do artista querendo ouvir as suas

histórias. Para tornar a narrativa ainda mais atraente, o cantador muitas vezes a interrompe,

causando expectativa por parte do ouvinte que, para conhecer o final da história, deverá

“comprar o folheto”.

A Literatura de Cordel tem seu surgimento no quadro das literaturas ibéricas. No

Nordeste, tem raízes lusitanas, expande-se e mantém-se entre nós, assim, como declara

Cascudo (1978, p. 170): “Esses livros vêm do século XV, do XVI, XVII e continuam sendo

reimpressos em Portugal e Brasil, com um mercado consumidor como nenhuma glória


40

intelectual letrada ousou possuir”.

Marcada pelo conjunto de características que traduzem o seu aspecto volante, além da

temática que desenvolve, é por meio da linguagem que a Literatura de Cordel mais evidencia

o universo vocabular e típico do homem nordestino.

Segundo Batista (1977, p. 4), fatores de formação social contribuíram para que a

literatura oral “tomasse pé” no nordeste - a organização da sociedade patriarcal; o surgimento

de manifestações messiânicas; o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos; as

secas periódicas, provocando desequilíbrios econômicos e sociais; as lutas de família, entre

outros, para que se verificasse o surgimento de grupos cantadores como manifestação do

pensamento coletivo, ou seja, da Cultura Popular.

Além do Nordeste, podemos encontrar tipografias divulgadoras dos folhetos em outros

estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, de maneira esparsa. Em Belém

do Pará também se pode encontrar uma produção bastante considerável.

A Literatura de Cordel passa a ser modelo de identificação de massa popular, usando

linguagem tipicamente do povo e mantendo distância de toda literatura que siga os moldes de

composição e de métrica, afastando-se totalmente da literatura tradicional.

Cascudo (1978, p. 168), sobre o sentido verdadeiro da Literatura Popular, assim

considera: “A literatura oral é a própria mentalidade da massa coletiva, foliona, religiosa,

crédula, inimiga do parasitismo fradesco e aristocrático, da ignorância bestial, da luxúria e

simonia vulgares”.

Esse escritor norte-riograndense da Cultura Popular expressou, em termos gerais, que

o que torna a Literatura de Cordel viva ainda nos dias de hoje, apesar de todas as dificuldades

de mantê-la viva, é a tradição:


41

É uma força obscura e poderosa, fazendo a transmissão, pela oralidade, de


geração a geração. Ninguém defende essa virtude mnemônica. Nem há um
exercício para a sua perpetuação. Antes todos negam possuir o patrimônio da
história e anedotas, mitos e fábula. (CASCUDO, 1978. p. 168).

Considere-se o Cordel, uma literatura que une o artesanato ao fenômeno social,

porque, na verdade, resgata os aspectos vivos do mundo. Não obstante, por meio de uma

linguagem bastante simples, comunica-se com o povo, numa maneira particular dos

contadores de história permitindo a informação. O vocabulário típico, cujo conteúdo

semântico é bastante peculiar, reflete o repertório vocabular presente nas feiras livres do

nordeste.

O período de maior culminância da Literatura de Cordel no Brasil foi entre as

décadas de quarenta e cinqüenta, época que coincide com o predomínio do governo de

Getúlio Vargas. Naturalmente, há uma significativa produção de folhetos, versando fatos

importantes, ligados a grandes personalidades políticas da época, entre as quais o próprio

Vargas. (COSTA et al., 1978, p. 19).

Mas, por volta de 1958 o Cordel nordestino atravessa um período de queda na

produção, é a chamada “crise do Cordel”. O número de tiragens e, conseqüentemente, o de

gráficas especializadas e de autores e/ou ilustradores, bem como todos os processos ligados à

circulação da poesia popular, ficariam prejudicados. Entre as causas possíveis dessa crise,

urge apontar a disseminação dos meios de comunicação de massa, tais como o rádio e a

televisão e a incorporação de valores advindos de uma cultura urbana, pelas populações

rurais, público de excelência.

Estando quase suprimida ou esquecida durante décadas, a literatura de folheto passa

por uma reviravolta, em inícios da década de 70, garantindo novamente sucesso junto ao

público. Nesse período, a crescente indústria da comunicação passa a se valer desse tipo de

manifestação literária e grupos artísticos tentam recriá-la; fazem-se inclusive filmes, novelas,
42

explorando a sua temática e linguagem. Desse modo, a publicação de Cordéis aumentava

gradativamente.

Apesar de a Literatura de Cordel expressar a cosmovisão das massas de origem

nordestina e raízes do povo e em linguagem do povo, podendo ser vista como um modelo de

identificação dessas massas, ela não constitui objeto apenas de interesse ao público popular.

Os relatos históricos em versos, passaram a despertar a atenção de jornalistas e professores,

por volta das décadas de 60 e 70, inclusive de teóricos de outras nacionalidades que não a

brasileira, como Mark J. Curran, Candance Slater, Raymond Cantel ou Joseph M. Luyten

(SARAIVA, 2004, p.127).

O fato é que o Cordel passaria a ser visto como um instrumento de informação ou

jornalismo popular, nos qual se versava os assuntos do cotidiano das massas. Desde então os

estudiosos tratariam a Literatura de Cordel como crônica poética e histórica do século XX.

Um dos pontos que mais chamou a atenção desses cientistas é o estilo particular do

cordelista, que consegue reunir na composição poética uma mistura de fato e ficção. O poeta

popular, ao mesmo tempo em que relata fatos transcorridos no dia-a-dia, vale-se do poder de

criação e de certa liberdade para expressar os dados históricos. Na crônica de Cordel o poeta

não emite a notícia de maneira imparcial, como ocorre no jornalismo típico. A transmissão de

qualquer acontecimento é sempre projetada sob o olhar crítico do poeta, que compartilha com

os valores místicos ou religiosos de seu público.

Significativas são as afirmações de Mark J. Curran (2004, p. 562), ao comentar sobre

os processos históricos que movem o discurso no Cordel. Esse cientista da Cultura Popular

atenta para o processo de inventividade literária na crônica histórica e popular, referindo-se ao

modo como o poeta consegue mesclar “verdade histórica” e “ficção”:


43

[...]o poeta cordeliano nem pode nem poderá tratar o grande acontecido
como um fenômeno jornalístico isolado. Ele vê o evento sob a perspectiva
de sua própria cosmovisão, e igualmente importante, da sua tradição literária
popular, isso é, da tradição cordeliana total. Por isso, escreverá utilizando
uma linguagem popular, às vezes emprestada do romance, aquela narração
cordeliana de amor, sofrimento e aventura de discurso heróico e de ficção.
[...].

Desde o início do Cordel foram os pesquisadores, folcloristas e poetas populares que

ajudaram a preservar a memória de pelo menos um século da história do povo nordestino.

Entre eles estão os “imortais” Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista,

Manoel Tomas de Assiz, Zé Vicente, João Martins de Ataíde, Cuíca de Santo Amaro,

Rodolfo Coelho Cavalcante, José Soares Franklim Maxado, Manoel d’Almeida, Severino

Borges da Silva; os pesquisadores e folcloristas brasileiros, Théo Brandão, Átila Almeida,

Sebastião Nunes Batista, Orígenes Lessa, Veríssimo Melo e Mário Souto Maior, os maiores

expoentes da cultura popular.

De modo efetivo, o folheto de época tem testemunhado os fatos relevantes que

atravessam a História do Brasil e passa a servir como documento vivo de cem anos de

realidade do país.

Atualmente, ainda que com uma produção literária mais esparsa, os poetas cordelistas

têm conseguido superar as dificuldades e a falta de apoio por parte das instituições sociais. O

fato de que a Literatura de Cordel consegue, ainda nos dias de hoje, atrair um público leitor

considerável, independente do objeto de interesse, é prova fundamental de que ela representa

uma necessidade a esse público, enquanto instrumento autêntico de expressão e comunicação

da realidade.

As observações feitas ao longo do trabalho orientaram-se no sentido de esboçar as

informações fundamentais a todos àqueles que se ocupam em pesquisar a poesia popular, nos

quais se incluem os dados sobre origem, função e evolução do Cordel nordestino; a variedade

temática dos folhetos, o uso da linguagem na Literatura Popular. Finalmente é preciso


44

observar que a multifacetada Literatura de Cordel nordestina merece um estudo mais

cuidadoso por parte daqueles que pretendem pronunciar-se a respeito.

Dando procedimento à fundamentação teórica desse estudo e considerando que a

mulher destaca-se com relevância nos assuntos mais versados na Literatura de Cordel,

proceder-se-á a uma abordagem sobre os aspectos antropossociais dessa literatura, cujos

conceitos servirão de base à análise prevista.


45

5 A MULHER NO CONTEXTO SOCIOCULTURAL

Não se nasce homem ou mulher,


vem-se a sê-lo.
Simone de Beauvoir

Discutir sobre a questão feminina no contexto da formação da sociedade brasileira,

inapelavelmente nos remeterá ao tema família. Esse parece ser o eixo central, através do qual

se desvelam os conflitos socioculturais, os antagonismos existentes entre os sexos, entre as

classes e mesmo entre as raças, as construções ideológicas (convenções culturais).

A discussão sobre a condição da mulher, nesse trabalho, reporta-se, sobretudo, ao

perfil patriarcal que, na visão de um Gilberto Freire, configurou-se nas relações sociais, nos

limites do engenho ou fazenda, a partir da conquista e divisão de terras brasileiras ainda no

início da colonização, mas também com relação às mudanças e incorporação dos novos

padrões de vida, assimilados com o intenso movimento migratório das populações rurais para

as cidades no início do desenvolvimento e urbanização em nosso país.

Educadas estritamente para saberem lidar com o ambiente doméstico, de modo a

desenvolver um perfil próprio de esposa, as moças da classe alta e média na sociedade

brasileira dos séc. XVIII e XIX viviam, desde cedo, à espera de um marido. Chegava à

puberdade e já era tempo das meninas deixarem os lares, de infância tão pouco vivida, para

dedicarem-se à nova vida de casadas.

Alicerçado pelo ideal romântico de uma união feliz, marcada pela paixão e pela moral

cristã religiosa, o casamento era para as jovens da alta e média classe de nossa sociedade, do

séc. XIX, o “sonho” de realização.

Para Saffiotti (1979, p. 168), foi a falta de perspectiva de um sistema educacional de

qualidade, de um lado, que tornou a mulher burguesa, durante a fase de colônia e de império

no Brasil, e, de outro, a falta de expectativa da sociedade para com o sexo feminino, o que a
46

tornou vulnerável à figura do homem – pai ou marido. Nas palavras da autora: “Tudo indica

que a mulher branca da casa-grande, abafada pela rigidez da educação que recebia, pela falta

de instrução e pelas sucessivas maternidades, submetia-se à autoridade do pai ou do marido”.

Não raras vezes, essas moças eram obrigadas a casar contra a vontade, mesmo não se

conformando com a escolha do esposo, feita pelo pai. Em geral, o casamento, mesmo na

segunda metade do séc. XIX, dava-se com o objetivo último de usufruir vantagens

econômicas e políticas, poder e prestígio social.

O outro destino que se podia cumprir na vida das moças, com exceção do matrimônio,

era a vida celibatária. Restava, pois, tomar para si ou a vida de solteira, junto aos pais, ou a

vida religiosa num convento.

Ter uma “vida de solteira” era para a mulher da época, nessas instâncias, bastante

desvantajoso, uma vez que teria de continuar a mercê de seu pai e dependente financeiramente

deste, impossibilitada de ter vida pública, a não ser em companhia da mãe, além disso, não

usufruiria seu papel sagrado de mulher (esposa e mãe), tendo apenas o consolo de poder

cuidar dos sobrinhos. (STEIN, 1984, p. 30).

Como é sabido, a maternidade era estimulada e verdadeiramente glorificada pela

Igreja, mas apenas para a mulher casada. A mãe solteira (note-se que não há uma

correspondência do termo no masculino - pai solteiro) carregaria o peso da culpa e estaria

exposta à censura, em geral acompanhada de obstáculos que sucedia a todas as mulheres

nessas condições.

Enclausurar as filhas desobedientes em conventos foi, para os pais da classe

dominante, a solução ideal para que essas se conservassem ainda donzelas. “Não eram raros

os casos de internamento de moças solteironas em conventos, quando o pai suspeitava de sua

má conduta e, embora menos freqüentes, maridos havia que para aquelas instituições

mandavam as esposas inconvenientes”. (SAFFIOTI, 1979, p. 169).


47

Vê-se, por conseguinte, que o único destino satisfatório para a mulher perante a

sociedade é o de entregar-se à vida de casada, de total obediência ao marido.

5.1 AS MULHERES NO SERTÃO NORDESTINO

No Sertão nordestino, foi hábito costumeiro as nubentes mostrarem seus lençóis

íntimos aos parentes, como prova de que tinham sido desfloradas pelo esposo nas núpcias. Se

não exibisse os panos, aparecia logo o prognóstico, - “Aquela que não mostra os panos”, -

como que pondo em dúvida a condição casta da nubente. A exibição da prova de virgindade

ocorreu do Rio Grande do Norte a Alagoas, e muito provavelmente, para o norte e para o sul

dessa região. (CASCUDO, 1963).

Nessa região, onde as diferenças entre os papéis feminino e masculino foram ainda

mais cristalizadas pelo tipo de organização patriarcal que se estabeleceu na região, cuja

idealidade repousava na vontade masculina, não era de se estranhar a aceitação resignada por

parte da mulher, “o par que lhe era mais do que sugerido – praticamente imposto - pela

família”. (FALCI, 1997, p. 258).

O casamento da elite sertaneja significava um compromisso entre as famílias dos

noivos. Conta-nos Faria (1996, p. 59) que a escolha dos noivos foi, muitas vezes, motivo de

surpresas para os jovens, postos diante do outro, pela primeira vez, no dia da cerimônia.

Sob a providência de saraus nas fazendas, transcritos em livros de memória e diários

de família, as cerimônias das filhas dos ricos fazendeiros da região nunca eram realizadas na

igreja da redondeza. Nas festas de casamento, esbanjavam-se comida. Nas vésperas,

mandavam-se matar uma novilha gorda, carneiros, porcos, perus e galinhas. Na sala, exibiam-

se um altar enfeitado cuidadosamente pelas mãos das mulheres mais prendadas. (FARIA,

1996, p. 60).
48

Não foram raras as ocasiões em que a moça, descontente com a escolha do pretendente

e enamorada de outro rapaz, deixava-se raptar. A moça raptada era deixada em casa de algum

amigo da família importante, que mandava, no amanhecer do dia seguinte, comunicar o fato

aos pais. 1

Caso a moça raptada não se casasse, ficaria mal vista por toda sociedade. Nessas

condições, seria preciso “lavar a honra” do pai com a morte ou castração do malfeitor. “A

vingança era mandada fazer pelo pai ou irmão para limpar a honra da família, numa sociedade

em que a vindita era muito usual e os matadores profissionais nunca faltavam”. (FALCI,

1997, p. 247).

O casamento das moças fugidias contava com cerimônias bem mais modestas. Com

número de pessoas restrito, as mais próximas da família e os padrinhos dos noivos. Após a

cerimônia, os noivos se dirigiam, acompanhados do dono da casa em que fora depositada a

moça, à residência dessa, implorando a benção e perdão ao pai da moça. (FARIA, 1996, p.

61).

No Sertão nordestino, a formação concedida às mulheres era no sentido de

desenvolver a sua especialização nas prendas domésticas. Enquanto que os homens de elite

tinham o privilégio de estudar fora, as mulheres quando muito aprendiam a ler e a escrever,

com auxílio de professores contratados pelos pais, em aulas ministradas na própria casa.

Mantinham-se cada vez mais longe das ruas as moças, à medida que se mantinha a “boa

educação feminina”.

Nesse Sertão de hierarquias rígidas, tal como advertiu Falci (1996, p.60), distinguiam-

se, pelas divisões de classe sociais e econômicas, os homens das mulheres, os ricos dos

pobres, os escravos dos senhores e os brancos dos caboclos.

1
Na casa-grande nordestina, foi comum que os quartos das filhas-moças ficassem sempre no centro do edifício
justamente para evitar os perigos de rapto (FONSECA, 1997, p. 531).
49

Entre as mulheres, as diferenças de condição social puseram de um lado a senhora,

dama, as “donas fulanas”, estas eram as categorias de prestígio e, de outro, as mulheres

pobres, as chamadas “cunhãs”, “téudas” e “manteúdas”, dependentes financeiras dos homens,

em geral, senhores de engenho, fazendeiros, homens de prestígio na escala social.

Quanto à categoria de pior prestígio social, assinale-se a categoria da mulher escrava,

esta vivendo totalmente a mercê de seus senhores, exercendo os mais variados serviços, na

figura da mucama, ama-de-leite, cozinheira, bordadeira, lavadeira, engomadeira, costureira ou

doceira, funções que foram incorporadas ao espaço das senhoras de elite, ou mais

especificamente, à esfera doméstica.

É importante observar que as mulheres pobres, não gozando de status ou de privilégio

como as mulheres de elite, desde cedo, tiveram que encarar os mesmos afazeres domésticos e

sujos, realizados pelas mãos de mulheres escravas.

5.2 CONCEPÇÃO CRISTÃ SOBRE A NATUREZA FEMININA

Concebendo a família como a “célula mãe da sociedade” e uma vez afirmando nela

haver os princípios mais sagrados, a igreja católica exerceu durante o período colonial

influência preponderante, quase mesmo exclusiva, na formação cultural brasileira”. (STEIN,

1984, p. 38).

Levando às últimas conseqüências a divulgação da promessa de uma vida feliz,

assegurada pela benção do amor divino, assim proclamava o texto de Leão XIII, no Arcanum

Divinas Sapientiae (sobre a constituição da família), com data de fevereiro de 1880 (Ibid., p.

39):
50

O homem é o chefe da família e a cabeça da mulher: esta, todavia, por isso


que é a carne da sua carne e osso dos seus ossos, deve submeter-se a
obedecer a seu marido, não à maneira de uma escrava, mas na qualidade de
companheira, para que não falte nem a honestidade, nem a dignidade na
obediência que ela lhe prestar.

Mesmo na segunda metade do séc. XIX, a forma exclusiva de relacionamento sexual

admissível era aquela erigida pelos dogmas cristãos. À igreja coube o papel de influenciar na

vida mais íntima dos casais. Impôs, primeiro, que a atividade sexual ocorresse somente após o

casamento. Segundo, restringiu o ato sexual com fim único de propagação da espécie humana.

Qualquer comportamento sexual que excedesse tal limite seria, certamente, para a igreja e,

conseqüentemente, à sociedade, considerado pecaminoso e sujo.

Preocupados com as transgressões provocadas pela devassidão e o pecado das

mulheres, os padres combatiam, até mesmo nos confessionários, através de pregações e

castigos, “a natureza nociva da mulher pecadora”. Os manuais de confissão seriam

obcecadamente preparados no combate à “má conduta das brasileiras afeitas à prostituição”.

Para reverter a situação e conter o perfil destruidor da natureza feminina, os manuais

estabeleciam as regras para as relações matrimoniais: a mulher deveria manter-se pura e fiel

ao marido e voltada à criação dos filhos; o marido, por outro lado, retribuiria a dedicação da

esposa através do respeito mais absoluto, ou seja, contendo-se durante o coito, de modo que a

entrega completa à relação sexual nunca deveria ameaçar a qualidade de vida cristã do casal.

A abstinência e a castidade eram as únicas maneiras de precaver-se das “imundícies” do

mundo.

Fica desde já entendido que a preservação da integridade física da mulher, regra

necessária para a preservação da “honra feminina” e, conseqüentemente, da “honra masculina”

(do marido), depende em grande escala do enclausuramento da esposa, via necessária à

seguridade da sua imagem modelar, sempre na retidão de seu comportamento sexual. É o que

observa LOPES (1989, p. 25):


51

Como ser perigoso e frágil que era, a mulher tinha de manter-se fechada: em
casa do marido, em casa dos filhos, se viúva, ou no convento quando freira
ou como recolhida se lhe faltasse a guarda masculina de um marido que se
ausentou ou morreu. Sempre um espaço restrito e controlado. E aquela que
se aventurava a maiores espaços perdia irremediavelmente a estima social.

Foi com esse clima de interdições nas relações familiares que se erigiu a sociedade

moderna burguesa. A família passou a desencadear uma série de princípios fundados na

preservação da essência do lar e restrições à ligação conjugal, controlada pelos princípios de

boa conduta, fundamentada, além de tudo, nos moldes românticos.

Contudo, o rigoroso controle de abstinência e fidelidade, na prática, ao que tudo

indica, funcionou apenas para o sexo feminino. Ancorando-se num hipotético destino

anatômico que limitava o papel sexual da mulher, a sociedade manteve um duplo padrão de

moralidade para com os dois sexos. De um lado, privou a liberdade dos maridos para com as

esposas legítimas, de outro não impediu que esses cedessem “às tentações da carne” e

extravasassem os impulsos sexuais, fora do casamento.

Relacionando os fatores que motivaram o desregramento dos homens, observa

Saffiotti (1979, p. 167): “Dada a socialização da mulher branca para o desempenho dos papéis

de dona-de-casa e mãe de família legalmente constituída, necessária se fazia a existência de

uma classe de mulheres, com as quais os jovens brancos pudessem praticar as artes do amor

anteriormente ao casamento”.

Para poupar a castidade das moças até o casamento, ao mesmo tempo em que era

preciso extravasar os “instintos masculinos”, contidos em respeito à figura da esposa e da

moça pura, a Igreja e mesmo toda a sociedade não só foi condescendente, como de certa

forma incitou as experiências sexuais extraconjugais por parte do homem, fazendo “vistas

grossas” à prática de desregramento sexual masculino. 2

2
“Elevada à categoria de pecado venial, e devendo pois ser confessada, a fornicação simples permanecia na
mentalidade dos primeiros colonos como algo que fazia bem, e que não era pecado dormir com mulheres
52

Nesse sentido, a prostituição, por mais que fosse uma atividade transgressora aos olhos

da igreja e da sociedade, segundo observa Priore (2003, p. 34):

Constituía-se a serviço da ordem socioespiritual no mundo moderno. No


Brasil, no entanto, as características que a tornavam um mal necessário vão
misturar-se com outras práticas consideradas pelas autoridades como
transgressoras, fazendo com que a Igreja enxergasse, em cada mulher que
infringisse as normas, uma prostituta em potencial [...] os comportamentos
tidos por desviantes e a prostituição eram tênues.

5.3 A FAMÍLIA NO SISTEMA PATRIARCAL BRASILEIRO E A MORAL SEXUAL

Somente com o cultivo da terra, do qual obteve apoio da coroa portuguesa, a família

começa a se estabelecer. Organiza-se a família numa dupla estrutura: a nuclear, resultado do

laço entre marido, esposa e prole legítima (família branca formal), e outro grupo marginal,

resultante dos laços entre o senhor de terra com seus escravos e agregados, índios, negros,

mestiços e a prole resultante da mestiçagem do branco com suas escravas.

Como se sabe, no início da colonização do Brasil, não havia aqui no Brasil o exercício

legal do matrimônio. A vinda dos portugueses para o Brasil-colônia visava proveitos

econômicos. Normalmente, os portugueses instalavam-se na terra provisoriamente, deixando

suas esposas legítimas em Portugal, muito embora mantivessem relações extraconjugais com

as mulheres que estavam em condição submissa, índias e negras na maioria das vezes.

As discrepâncias havidas entre o sistema normativo, que pretendia implantar um

modelo ideal de família, o burguês, e o contexto familiar, presente pela maioria das mulheres

das classes mais subalternas de nossa sociedade, atravessavam os séculos de nossa história e

mais uma vez trariam prejuízos somente ao sexo feminino.

públicas”. A primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia, em fins do século XVI, revela a espontaneidade de
afirmações consideradas heréticas, mas que deviam ser de prática corrente na colônia. Diogo Nunes, por
exemplo, dizia que bem podia ele dormir carnalmente ali com qualquer negra d’aldeia e que não pecava nisso
com lhe dar sua camisa ou qualquer coisa [... ] “. (PRIORE, 2003, p. 40).
53

Sobre as contradições havidas entre a norma oficial dominante, que ditava um modelo

único exemplar de mulher, com a realidade vivida pela maioria das mulheres das classes

subalternas de nossa sociedade, durante o Brasil-colônia, Priore (2003, p. 30) ressalta:

Ao discurso monocórdio sobre seus comportamentos, ou os que deveriam


adotar, elas respondiam com práticas tidas por desabusadas, mas apenas
resultantes de suas condições materiais de vida. Ao público escândalo de
tantos concubinatos e mancebias somavam-se filhos tidos por fragilidade da
carne humana, fora de qualquer laço conjugal. A maternidade, era um laço
que unia mães e filhas num mesmo ofício:o da prostituição.

O concubinato foi um sistema típico de organização familiar das camadas subalternas,

ora reproduzindo o modelo de casamento burguês, unindo mulheres e homens solteiros, ora

caracterizado pelo par formado por mulheres viúvas ou solteiras e homens casados.

Não se pode dizer, pois, que a moral burguesa ficou alheia às camadas mais populares.

Os fatos mostram que, desde o período colonial, as uniões ilegais se davam, sobretudo, devido

às dificuldades de ordem financeira – não fossem os custos da cerimônia e a existência de

dotes, como nos matrimônios das classes mais abastadas, decerto a fórmula de casamento

seria respeitada.

De fato, a moral sexual teve características muito peculiares no âmbito das classes

subalternas. Em geral, preservava-se a virgindade da moça na espera de garantir um “bom

casamento”, do qual toda a família pudesse tirar proveito. A preservação da virgindade, nas

classes mais pobres, tem mais a ver com a esperança depositada no livramento da miséria, do

que a mera absorção dos ideais conservadores da burguesia dominante.

Não foram raros os casos em que mulheres, vítimas do preconceito e da marginalidade

da sociedade por não serem mais virgens, não contando com o apoio e aceitação da família,

tiveram que se pegar com a prostituição. Note-se que não existia outra alternativa de

sobrevivência, dadas as expectativas definidas para o sexo feminino, senão o casamento.

(FONSECA, 1997, p. 532).


54

Novamente o peso do não cumprimento ao padrão familiar rígido, moralizante,

recairia sobre as mulheres. Listas infindas de processos por parte de maridos que, pleiteando a

guarda de filhos acusavam suas ex-mulheres de falta de moral e de boa conduta. Estava,

portanto, seguindo a ótica do sistema dominante e conservador, em xeque o comportamento

sexual da mulher e não qualquer falta de zelo com as crianças.

A preservação da integridade da mulher e da sua capacidade em administrar um lar e

cuidar dos filhos, era mais ou menos proporcional à capacidade em zelar pelo próprio corpo.

(LOPES, 1989, p. 22).

Para a mãe viúva, o artesão desempregado, o operário, o imigrante, a prostituição

esteve muitas vezes indispensável à sobrevivência e manutenção da família. Por isso mesmo,

poderia significar muito menos um desvio da retidão moral e muito mais a única alternativa

aberta às mulheres de origem pobre e com nível de escolaridade precário.

Para melhor definir a imagem das antepassadas mulheres pobres, mães e solteiras,

prostituídas, na visão da sociedade, vejamos a descrição de Fonseca (1997, p. 534):

[...] A figura da prostituta se localizava na encruzilhada entre o estereótipo


aterrorizante da mulher decaída e a realidade vivida por um sem-número de
amásias, mães solteiras e crianças ilegítimas; em outras palavras, entre a
condenação pela moral burguesa e a tolerância tácita para com um modo de
vida que se desviava radicalmente da norma oficial.

Como se pode ver, foi a moral social, sustentada pelo discurso misógino do Estado e

pela Igreja, a responsável por definir o confinamento da mulher na esfera privada. Mas a

moral social, que cristalizou por meio de discursos a crença nas mulheres como seres

submissos e inferiores aos homens, com o desenvolvimento da industrialização e urbanização

de nosso país, passava a sofrer declínios e a preocupar os diversos setores sociais de nosso

país.

A participação feminina no mercado de trabalho, antes restrito ao homem, era a

primeira causa da instabilidade do sistema dominante masculino.


55

Não demoraria, pois, para que as mulheres ficassem estigmatizadas e as trabalhadoras

pobres, acusadas de abandonarem suas crianças. Eram, pois os maridos descontentes com a

situação, que reclamavam sobre a desordem nos lares, alegando a culpa feminina.

No Brasil, o Positivismo foi, desde então, a doutrina filosófica que mais radicalmente

perseverou entre os ideais iluministas importados da Europa. As teses positivistas reprovavam

severamente a participação mais ativa da mulher na sociedade. Segregando os sexos e

instaurando no terreno da natureza a divisão dos papéis masculinos e femininos, o positivismo

propagou por todos os lados a sua mensagem misógina – sobre a qual ao homem cabia a

participação da cultura objetiva e espiritual; à mulher, a missão exclusiva de educadora e

mantenedora do lar. (SAFFIOTI, 1979, p. 22).

Foram com essas teses que os jornalistas, teólogos, juristas e médicos argumentavam a

fraqueza e a nocividade do sexo feminino, dificultando a sua inserção no mundo do trabalho.

Na defesa da “honra feminina”, da educação das crianças e da dedicação aos maridos,

as investidas do público masculino funcionara desde então no intuito de coibir a sua

participação efetiva feminina no trabalho. A mão-de-obra feminina ameaçava, de fato, a

norma oficial, como salienta Fonseca (1997, p. 517): “ditava que a mulher devia ser

resguardada em casa se ocupando dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam

o sustento da família trabalhando no espaço da rua”.

Impedidas de ocupar cargos administrativos de maior reconhecimento social, as

operárias das fábricas, contratadas no início do desenvolvimento industrial do país, estavam

jurídica e politicamente subordinadas aos homens de melhor posição, que tinham acesso aos

cargos diretores das empresas, tais como os de mestre, contramestre e assistentes.

Tal como ocorria na Europa, após o surgimento da industrialização, a mão-de-obra

feminina era mais barata do que a do homem e a opressão era bem maior para aquelas que

tinham filhos e precisavam sustentá-los. Nessa época, os salários eram extremamente baixos,
56

incompatíveis com as altas jornadas de trabalho. Além de tudo, as funcionárias não gozavam

de direitos trabalhistas, como os que prevêem as leis trabalhistas hoje em dia, quais sejam:

férias, décimo terceiro salário, licença gestante e auxílio maternidade.

Conclui-se, assim, que apesar da inserção feminina no mercado de trabalho, a mão-de-

obra feminina era vista como secundária e a mulher continuaria sem poder competir de igual

para igual com o homem no mercado de trabalho.

A ocupação de cargos de baixo prestígio social estava ligada, pois, ao descrédito no

trabalho feminino. Em virtude das mais variadas repercussões simbólicas e representativas em

torno da imagem feminina, essas ocupações de baixo prestígio trariam toda ordem de

discriminação com relação à mulher.

O panorama sociocultural da sociedade brasileira reflete clara e imediatamente as

desigualdades decorrentes do sistema patriarcal que engendrou as relações sociais, ainda no

período de formação da nação.

Os estudos mostraram que a opressão sobre o sexo feminino deu-se com o sustento de

um discurso misógino, fundamentado para coibir qualquer oportunidade de alcance do

privilégio, prestígio e poder social à mulher, impossibilitando a sua participação na vida

pública.

Considerando-se essas reflexões, no capítulo seguinte, proceder-se-á, finalmente, à

análise dos Cordéis, cerne dessa pesquisa. Antes disso, a fim de situar os postulados teóricos

que embasam a pesquisa, far-se-á o detalhamento da metodologia utilizada.


57

6 METODOLOGIA, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS

6.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE

Tendo em vista as hipóteses levantadas e os objetivos definidos neste trabalho, as

atividades foram sistematizadas em coleta, seleção e revisão dos dados bibliográficos.

O corpus deste trabalho é composto de 20 Cordéis, versando sobre a mulher nos mais

diversos aspectos da realidade nordestina. São eles:

1. A deuza do cabaré: A meritriz orgulhosa. João Severo da Silva. João Pessoa, 1985.

2. A língua da mulher faladeira. Rodolfo Coelho Cavalcante. 3. ed. Salvador:

Tipografia Ansival, 1977.

3. A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia. Manoel Monteiro. 4. ed.

Campina Grande: Gráfica Martins, 2002.

4. A mulher e o cangaço. Francisca P. dos Santos. Ceará: Xilo. Hamurabi Batista,

1997.

5. A mulher no lugar do homem. José Pacheco. s.n.t.

6. As duras lamentações de uma coroa. Abraão Batista. Juazeiro do Norte. s.d.

7. As modas escandalosas de hoje em dia. Rodolfo Coelho Cavalcante. s.n.t.

8. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. José da Costa Leite. Recife. s.d.

9. História da mulher da língua grande. Minelvino Francisco Silva. s.n.t.

10. Maria Bonita. Mulher macho, sim, senhor. Rodolfo Coelho Cavalcante. Salvador,

1983.

11. Nascimento, vida e morte de uma coroa. Abraão Batista. 2. ed. s.d.

12. O abc das mulheres. Manoel Amaro de Melo. Guarabira. s.d.

13. O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia. José Pedro Pontual. s.n.t.

14. O mundo pegando fogo por causa da corrução. José Costa Leite. Condado-PE. s.d.
58

15. O mundo vai estourar do jeito em que se vive. Franklim Maxado. Bahia. s.d.

16. O poder oculto da mulher bonita. João Martin de athayde. Juazeiro do Norte-CE.

s.d.

17. O que uma coroa deve fazer para se casar. Abraão Batista. 2. ed. s.d.

18. Os amores de José e a traição de Maria. José Camilo da Silva. Recife:

Universidade Federal de Pernambuco/ DEC. s.d.

19. Sofrimento das solteiras para arranjar marido. José Acaci. Rio G. Do Norte. s.d.

20. Uma mulher traiçoeira. José Pedro Pontual. Editor Edson P. da Silva. Recife. s.d.

A análise dos folhetos aqui citados será de cunho lingüístico. Nesse sentido, voltar-se-

á, primordialmente, à apreensão do léxico utilizado para designar a mulher na Literatura de

Cordel. Privilegiar-se-á o nível do léxico, visando a detectar os elementos lingüísticos e

extralingüísticos que possam estar vinculados aos efeitos de produção de sentido.

Proceder-se-á a uma análise léxico-semântica dos termos referentes à figura feminina

na Literatura de Cordel, a partir de uma perspectiva sociocultural, a fim de averiguar de que

maneira a linguagem reflete a condição da mulher no contexto da sociedade nordestina. 3

O primeiro momento do trabalho foi reservado à leitura dos folhetos, escolhidos como

corpus da pesquisa, para se detectar e selecionar os itens lexicais que remetem à figura

feminina. A princípio, o trabalho contou com uma amostra de cinqüenta folhetos de Cordel,

cujo critério definido foi a seleção dos folhetos por títulos, os quais esboçavam a temática

feminina, numa formulação caricata, como é natural nos Cordéis.

Em seguida, fez-se a leitura dos folhetos. Nesse momento, a finalidade foi observar

quais as características femininas que mais perfilavam nos Cordéis.

3
A transcrição dos fragmentados, retirados dos Cordéis em análise, estará compatível com a grafia apresentada
nos textos originais.
59

Tendo-se em vista a freqüência com que as temáticas eram tratadas nas narrativas,

seguiu-se a uma seleção mais criteriosa para o corpus. A partir de então, foi possível deduzir

trinta dos cinqüenta folhetos, ficando o corpus com um total de vinte. Para tanto, localizaram-

se, dentre os cinqüenta Cordéis aqueles que mais visivelmente refletiam os níveis de

depreciação feminina, segundo os ícones “da beleza”, “da moda”, “da submissão”, “da

valentia”, “da sedução” e “da astúcia”.

Para a realização desse estudo, desenvolveu-se uma revisão literária sobre o assunto,

em função da problemática e com a finalidade de instrumentá-lo.

A investigação foi desenvolvida respaldando-se, sobretudo, nos pressupostos teóricos

da Lexicologia, da Semântica, da Sociolingüística e da Etnolingüística, além de outras teorias

correspondentes aos propósitos do trabalho, entre as quais, a Teoria dos Campos Semânticos e

a que ficou conhecida como Hipótese Sapir-Whorf, cujos conceitos açambarcam a relação

entre “língua”, “cultura” e “sociedade”.

Durante o processo de evolução das atividades, buscar-se-á, sempre que houver

necessidade, outras disciplinas que possam fornecer subsídio à interpretação e compreensão

dos aspectos lingüísticos.

Em conformidade com as características de caráter qualitativo, essas etapas não se

constituem em momentos estanques de investigação. A análise, por exemplo, deve estar

presente desde o início, com vistas a possibilitar a constante reavaliação do material teórico

adotado, bem como da adequação das técnicas de coleta de dados, tornando-se uma

dificuldade encontrar o meio que separa os diversos momentos desta pesquisa.


60

6.2 ANÁLISE DO CORPUS

6.2.1 A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa

A profissão mais antiga do mundo, o meretrício, nem sucumbiu perante a pressão de

cunho moral sexual das sociedades, nem desapareceu com as mudanças no perfil das relações

amorosas e sexuais dos últimos tempos – é oportuno observar o papel sexual da prostituta em

épocas passadas, quanto à iniciação dos homens inexperientes no sexo e nos extravasamentos

dos maridos insatisfeitos sexualmente no casamento.

O fato de o meretrício estar literalmente relacionado “aos prazeres da carne” e à

promiscuidade sexual, condenada pela Igreja, fez surgir uma série de mitos e medos sobre a

conduta e o desejo sexual feminino.

Não é à toa que a imagem da prostituta bela, que seduz o homem com a beleza de seu

corpo e com a volúpia desenfreada, é esboçada freqüentemente por meio das trovas. Nos

Cordéis, as mulheres belas freqüentemente recebem o qualitativo “deusa”, usado para referir-

se às mais bonitas e sedutoras. Esse qualitativo envolve uma variedade de matizes de sentido,

traz à tona elementos místicos como “magia”, “natureza”, “sensualidade”, “fecundidade”,

para citar alguns.

O designativo “deusa do cabaré”, no texto em estudo, é usado para enfatizar a

capacidade de sedução da prostituta. A ênfase nos atributos físicos da personagem, que se faz

presente desde o próprio codinome “Deusa”, fica impressa nos versos “porque a sua beleza”

e “por nenhuma era igualhada”:

Por Deusa do Cabaré


Ela foi classificada
Porque a sua beleza
Por nenhuma era igualhada
Por isso entre as mulheres
Era a mais dezejada
61

Os sintagmas “corpo esbelto”, “olhos negros”, “estátua de carne”, “a mais desejada”,

“morena da pele fina”, “elegante menina”, “boniteza", “por ser linda e atraente”, “muito

cobiçada”, “mimosa fada” e “mulher formosa” formam o campo lexical da sedução feminina,

retratada na figura de Deusa, a meretriz.

O fato de a prostituta carregar o sema “morena” remete à sensualidade da mulher

negra, essa mais ardente e mais concupiscente no sexo do que a branca.

A idéia de que as prostitutas destoam com o padrão ideal de mulher na sociedade,

porque são dadas à luxúria e à lascívia e a vaidade, é impressa a seguir:

Rosalina em Salvador
Entregou-se a vaidade
Deu expansão ao seu genio
Saciou sua vontade
Fazendo vida noturna
Nas Boites da cidade

O termo “boite”, no português brasileiro boate, é originário do francês “boîte”. Esse

termo entrou no português duas vezes, com acepções distintas e diferentes adaptações

prosódicas. A acepção clássica do português é “bueta” (séc. XV), “boceta”, “caixa” e, mais

modernamente (séc. XX) “estabelecimento comercial, que funciona à noite, e em geral, consta

de pista de dança e palco de atrações artísticas”, conforme o Dicionário etimológico nova

fronteira da Língua Portuguesa (1994) e o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua

portuguesa (1999). Em pequenas cidades de interior, o correlato de boate é “cabaré”, também

de origem francesa. (Cf. significação da palavra “cabaré” na análise do folheto O malandro e

a piniqueira...).

Interessante observar o espaço em que se insere a prostituta - quando sai à rua é à

procura de um cliente, para depois voltar novamente ao espaço fechado do prostíbulo. Nesse

contexto, a rua equivale ao próprio “cabaré”, em termos de ausência de normas e de preceitos

morais.
62

Nesse contexto, a prostituta tem a oportunidade única de salvação, no amor

incondicional de seu amado, assemelhando-se a tantas personagens de contos fantásticos e

maravilhosos, que contam com a figura do “maravilhoso príncipe” para salvá-las.

Mas Deusa, diferentemente das personagens infantis, não se sente feliz nos braços do

amado e nem submissa a ele:

Eu fiz a maior ansneira


Em me casar tão moderna
Pra viver prisioneira
Prefiro viver liberta
Como em tempo de solteira

A personagem, por expor o próprio corpo, oferecendo-o como mercadoria e por querer

voltar à vida de meretriz, é castigada. A transgressão feminina é apontada, pois, enquanto

heresia espiritual, juntamente com a noção do sobrenatural maléfico que brota da impureza

feminina.

O rebaixamento da personagem é observado através do discurso em primeira pessoa,

nas expressões de súplica pelo perdão a Deus. O campo do apaziguamento espiritual assinala-

se na oposição fundamental: “pecado e misericórdia”. A confissão dos pecados, alternativa

posta no plano da piedade divina, aparece como possibilidade única de salvação e libertação

do espírito maligno:

Nessa hora ajoelhou-se


Pedindo perdão a Deus
Dizendo Senhor perdoa
Os grandes pecados meus

No setor substantivo, apresentam-se as virtudes que granjeiam a salvação, tais como

“compaixão”, “perdão”, “redenção”, “arrependimento”, “súplica” e “clemência”.

No campo do sofrimento, inserem-se os substantivos correlatos: “aflição”, “dor”,

“tristeza”, “pranto”, “infelicidade”, “padecimento”, “sofrimento”, “humilhação”, que refletem


63

o estado de desengano da prostituta Deusa, em relação à doença que lhe aflige. O campo

ganha mais expressividade em: “faces banhadas em pranto de dores”, “lágrimas de

amargura”, “noites tempestuosas”, “xagas tão grengrenosas”, como se pode ver a seguir:

Outrora eu me jugava
Uma rosa entre as rosas
Hoje estou vendo meu corpo
Em xagas tão grengrenosas
Que já não suporto mais
As dores tão espinhosas

A carga emotiva do desespero da prostituta Deusa eleva-se nas colocações “um ente

tão infeliz”, “a minha desgraça”, “não suporto mais pelas sargetas dormir”, “exposta ao

relento”, “sem ter o que me cobrir” e “prostrada nesse chão duro”. O campo do desespero e do

sofrimento completa-se com o campo da culpa – inserem-se os delitos, a responsabilidade da

mulher pela própria desgraça.

A minha desgraça fiz


Abandonei meu esposo
Só porque tinha inveja
Do viver de meretriz

A morte é anunciada através das expressões substantivas e verbais: “meus últimos dias

de vida”, “encerram os dias seus”, “meu fim vai ser muito triste”. Também há um número de

expressões metafóricas que sentenciam a morte: “minha matéria ta se transformando em pus”,

“ruída dos tapurus”, “no bico dos urubus”, “encerraram os dias seus”, “últimos fios de vida”.

A morte pode ser interpretada como o destino das mulheres pecadoras e infiéis, ou melhor,

como o desfecho da miséria feminina:

Vejo que a minha matéria


Ta se transformando em pus
Prostrada nesse chão duro
Ruida dos tapurus
Meu fim vai ser muito triste
No bico dos urubus.
64

Para o homem, a “mulher da vida” saudável é diferente da “mulher da vida” doente. O

estágio de putrefação da carne, que significa a culminância da doença, num sentido

metafórico, é também a culminância da ausência do desejo masculino, no momento em que a

mulher, não tendo mais um corpo pronto para servir, é repudiada.

Vale salientar que, no imaginário popular, a “mulher da vida” é aquela a que o mundo

reserva às doenças contagiosas. Em situação análoga a de uma prostituta doente, a mulher que

corresponde aos preceitos da sociedade, a mulher virtuosa, é aquela que, em seu estado de

doente, é apenas uma enferma, digna de cuidados, exatamente o inverso daquela para quem a

sociedade só devolve o desprezo.

Por fim, a morte poderia ser entendida, como um alívio, não exatamente para a

prostituta, mas para a sociedade e para o homem, que não se sente bem diante de uma mulher

doente, decaída. Quanto ao desprezo da prostituta, por parte do homem, significa, mais

especificamente, que ele não mais a quer enquanto ser feminino.

Concluída a análise de A deusa do cabaré: a meritriz orgulhosa, apresenta-se, a

seguir, sua sistematização na figura4.

4
Os termos correspondentes às obras originais consultadas, que serviram à ilustração dos campo-léxicos são, nos
esquemas, apresentados em negrito.
65

MERETRÍCIO

VIDA DE ORGIA
CONDENAÇÃO
DIVINA

DEUSA DO CABARÉ PECADO

SOFRIMENTO

FACES BANHADAS EM
TRAIÇÃO
PRANTO
VOLÚPIA
LUXÚRIA ORGULHO LÁGRIMAS DE
AMARGURA

NOITES
TEMPESTUOSAS

XAGAS
GRENGRENOSAS

MORTE

FIGURA 1 – Campo léxico-semântico em A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa.

6.2.2 A língua da mulher faladeira

A imagem da mulher difamatória e caluniosa há muito tempo tem sido difundida na

cultura popular. O texto A língua da mulher faladeira apresenta uma riqueza de termos que

visam à definição da mulher de natureza difamatória e maldizente, tal como se apregoa na

sociedade.

Dentre os mais expressivos termos que remetem à figura da mulher, nessa perspectiva,

destacam-se o de “mulher da língua comprida”, “mulher faladeira”, “mulher linguaruda”,


66

“fuxiqueira” e “légua de beiço”. (Cf. análise do folheto História da mulher da língua Grande,

que também faz parte do corpus da análise).

“Arenga”, “anarquismo”, “reclamação” incluem-se no campo associado ao perfil de

“mulher difamatória”, remetendo à idéia de que a “mulher faladeira” nunca está contente com

a vida que tem e por isso só faz reclamar, blasfema contra Deus e espalha discórdia. O poeta,

assim, declara:

Fala do pobre peixeiro


Por vender peixe muito,
Mete o pau no Açougueiro
Em pesar osso graúdo,
Arenga com o verdureiro
Anarquisa com o leitero,
Reclama de Deus e tudo.

No imaginário social, a palavra que é proferida pela boca de uma mulher é carregada

de sentido. Uma praga proferida por uma mulher é diferente de outra, proferida por um

homem. A história sempre recusou dar ao feminino o direito ao discurso, porque a figura

feminina esteve durante muito tempo inserida numa tradição maligna e assim associada à

figura do Diabo. Note-se que as mulheres eram as grandes feiticeiras do passado, tinham elas

uma maior aproximação com a personificação do mal, com as pragas, regionalmente falando.

O tabu da palavra feminina é, senão, a conseqüência do desvio da natureza santa ou

sagrada da palavra que, segundo a Bíblia, foi ocasionado pela “boca” de uma mulher. Assim,

expressa o poeta:

Não há praga mais ruim


Do que mulher faladeira,
No lugar que ela reside
Falta água na torneira,
Nem a galinha produz,
Há desarranjo na luz
E a casa só tem goteira!
67

O ícone da miséria e da má sorte é, pois, um dos que mais se assinalam sobre a

imagem da mulher. A “mulher faladeira” é freqüentemente associada ao azar, pelo poder

danoso que tem de desencadear a má sorte no mundo. A associação da figura feminina a um

mau presságio, evidencia-se na expressão “azar de sexta-feira” que, no texto, está remetendo à

presença nociva de uma mulher potencialmente ameaçadora, ou seja, àquela que fala demais:

Só comparo Dona Júlia


Com azar de sexta-feira
Ou buzina disparada
No ruge-ruge da feira

A expressão “ruge-ruge” refere-se ao entra e sai da feira, típico de feira no interior. O

Dicionário da Língua Portuguesa elaborado por Antenor Nascentes (1959) registra o termo

como “ruído de pano que roça o chão”; “ruído da seda atritada”; “confusão”, “atropelo’,

“desordem”. Portanto, depreende-se o teor negativo desses termos, nas comparações feitas no

tocante à mulher.

Usando de um tom de deboche pitoresco, o poeta, faz analogia entre “mulher” e

“gagueira”, expressando a idéia da dificuldade que é conviver com o sexo feminino. A

gagueira traz o sema da “anomalia” e aqui aparece como simples pretexto para expressar a

agonia e a intranqüilidade do homem em relação à presença feminina.

Ou um gago a explicar
Um caso expetacular
Queira o ouvinte ou não queira

Em resumo, toda abundância de termos utilizados pelo poeta com relação à mulher

tem, como fim, admoestar contra o mal que pode ser causado se a ela for reservado o direito à

palavra.

Explicita-se, a seguir, o esquema constando o campo léxico-semântico em A Língua

da mulher faladeira, com vistas a uma melhor compreensão do texto.


68

MULHER FALADEIRA

MAL PARA A SOCIEDADE

RUIM
PRAGUENTA
COMPRADORA DE
TORMENTO PARA
DISCUSSÃO
O MARIDO
LINGUARUDA

BUZINA
DISPARADA

LINGUA
COMPRIDA

FIGURA 2 – Campo léxico-semântico em A língua da mulher faladeira.

6.2.3 A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia

O exame da mulher de antigamente como modelo ideal, em contraste com o

comportamento da mulher de hoje em dia, mais ativa e, por isso, ameaçadora da ordem e da

moral, tem como fim exibir uma perspectiva de valoração, do ponto de vista patriarcal e

conservador.

No que diz respeito à emancipação feminina, as modificações sempre foram sentidas

como uma corrosão dos valores, uma ofensa ao modelo dominante.

A incorporação de novos modelos de vida no comportamento das mulheres, mais

exatamente, nas três primeiras décadas do séc. XX, tais como novas formas de vestir, de
69

arrumar os cabelos, de usar a maquiagem, as alterações inclusive nas novas formas de lazer e

ocupação, todas elas causaram grande choque de valores e concepções na mentalidade de toda

a sociedade brasileira.

Os vocábulos “toca”, “espartilho”, “ampoleta”, “saia justa”, que se incorporaram à

nova realidade feminina, no contexto das mudanças de postura e de valores, foram, aos olhos

dos conservadores, ingredientes que atentavam contra o pudor e a decência feminina, além de

que faziam cair por terra o tradicional modelo de conduta a que as mulheres já estavam

acostumadas. O excesso de enfeites e os cuidados que a mulher passava a ter em função da

nova moda eram, na ótica masculina, um sinal de mau gosto e artificialismo que atingia a

beleza feminina natural.

O comportamento da mulher moderna, que cede à influência da moda, opõe-se ao da

obediente aos padrões antigos, cujas vestimentas e penteados “ocultavam-lhe a sensualidade”,

tal como evidenciam os versos seguintes:

Touca, espartilho, ampoleta,


Moda ousada era cocó
Se o rapaz pedisse um beijo
Ficava falando só
Sem casar, só via mesmo
Mão, pescoço e mocotó.

Como o perfil traçado para a mulher virtuosa era o de esposa e mãe recatada, a mulher

moderna e antecipada, “cheia de liberdades”, “de roupas apertadas”, “de braços e beijos com

os homens”, seria o exemplo mais visível da decadência dos padrões antigos e da decência

feminina, antes sedimentados a partir de comandos morais.

Exemplificando a conduta respeitosa que seguia a mulher de antigamente e afirmando

nela haver os princípios de nobreza feminina, ou seja, o de reprodutora e submissa ao marido,

tal como se pode apreender nos versos “vivia para o marido” , “e para fazer menino”, o poeta

assim se expressa:
70

Naquele tempo a mulher


Era um ser quase divino,
Vivia para o marido
E para fazer menino,
Mulher não falava grosso
Homem não falava fino!

Fora do espaço social determinado a elas, ou seja, o lar, as mulheres seriam descritas

como sensuais ou dissolutas, indiferentes aos deveres conjugais. Endossar-lhes-iam, pois, os

estereótipos de criaturas “fáceis e sem-vergonhas”.

A mulher mais emancipada e contrária aos costumes tradicionais simboliza sempre o

obscuro. O episódio da criação da “terrível Eva” e, em seguida, a queda do homem, que

sucedeu com a criação feminina, no livro de Gênesis da Bíblia, é um dos episódios mais

simbólica e lingüisticamente construídos para demonstrar a natureza maldita e submissa da

mulher. A Literatura de Cordel, que guarda as crenças e concepções míticas e religiosas do

povo nordestino, reflete essa concepção:

Deus após formar o mundo


Achou que era preciso
Povoá-lo, fez Adão,
Mas fez Eva sem juízo
E deixou os dois flertando
No pomar do Paraíso...

Segundo a narração bíblica, Deus criou o homem para viver livre do pecado e dos

dissabores que esse causaria para a espécie humana. Mas a mulher traiu a confiança de Deus,

trazendo a “perdição”. Fiel a Satanás e contrariando as normas do Criador, ela mostrou-se

fraca, deu provas que não é prudente que se lhe dê credibilidade. A mulher é, por essência,

passível de ser enganada e usada por Satanás.

Por esse prisma, os verbetes “dengosa e faceira” compõem o campo semântico da

malícia feminina. Assinala-se o gosto que a figura feminina tem em atentar contra o “pudor” e

a “vergonha”. A arma feminina consiste exatamente na habilidade de seduzir o homem com


71

malícia e encanto, obtendo dele a satisfação de entregar-se aos “prazeres carnais”. A citação a

seguir justifica essa interpretação:

Você imaginou
Eva dengosa e faceira
Tendo só por vestimenta
Uma folha de parreira?
Não precisava nem Cão
Para Adão fazer besteira.

Na concepção cristã, foi a mulher quem depositou a intranqüilidade no mundo. A

partir dela, instalaram-se todos os problemas e misérias do mundo. A referência aos tempos

antigos, isentos ainda do pecado, em contraste com o “abuso” do sexo feminino, que trouxe os

maus tempos, pode ser aqui interpretado como um dos mais pesados fardos os quais a culpa

feminina foi capaz de trazer para a humanidade, a necessidade de subsistência. Reforçando a

consideração de que os tempos antigos eram melhores, o poeta assinala:

Trabalhar não precisava,


Adão vivia contente,
Só arruinou ao juntar-se
Eva, a maçã e a serpente.

Os vocábulos “maçã”, “mulher” e “serpente”, na estrofe citada, são construções

metafóricas que simbolizam o desequilíbrio, a instabilidade e o declínio do homem. Os três

elementos denotam a maldição lançada por Deus, em conseqüência do pecado feminino.

Na estrofe seguinte, o poeta utiliza jogos polissêmicos para fornecer uma imagem

erótica da mensagem:

Porque Deus disse a Adão


Coma tudo, porém,
Não “coma” a maçã de Eva,
Adão lhe disse: Está bem!
Mas veio a peste da cobra
Para estragar o xerém.

No sentido que remete ao léxico, nesse contexto, a maçã representa o encanto e a


72

sensualidade feminina; a serpente, a camuflagem, a capacidade da mulher insinuar-se para

então “dar o bote”, quer dizer, conseguir o que quer do homem. No ideário místico e religioso

do povo nordestino, a serpente reflete uma imagem negativa porque sempre remete à “culpa”;

ela representa o “caos e a maldade”, prescinde também da associação com o próprio Satã.

Daí, a propagada natureza “lasciva e masoquista” da mulher.

Todas essas representações reforçaram o valor dado às relações convencionais, as

quais estabeleceram as diferenças de papéis entre homem e mulher e que se refletem por meio

da língua.

E como, no modelo tradicional, a mulher deveria viver econômica e moralmente

dependente do marido e do modo como a segregação dos sexos estava definida, a conquista

do trabalho feminino apenas poderia ser sentida como uma ameaça à ordem e aos costumes da

sociedade. Em decorrência da posição de esposa, a mulher passava a ser a “dona-de-casa”, o

designativo de quem é esposa e trabalhadora doméstica, que manda e que cuida do lar.

Enquanto que a mulher era, até décadas atrás, socializada para cumprir o destino de

dona-de-casa, o homem o era para trabalhar fora. Era o trabalho o que afinal conferia ao

homem o direito de expressar com pleno poder as primeiras e as últimas ordens no âmbito da

família. A frase “homem com H” é um dos termos que serve de elogio aos homens de conduta

autoritária e machista, como revela o trecho seguinte:

Onde tem homem com “H”


Uma lei s’estabelece
A mulher diz: sim, senhor!
Porque sabiá reconhece
Que manda quem tem a força
Quem tem juízo obedece.

E assinalando, de maneira elogiosa, a devoção com que a mulher de antigamente, “por

instinto nato”, exercia as obrigações domésticas, o poeta assim se expressa:

Antigamente a mulher
Pelo seu instinto nato,
73

O serviço que fazia


Era “ver” lenha no mato,
Catar pulgas no cachorro
E limpar bosta de gato.

Sob tal ponto de vista, a participação feminina no orçamento familiar ameaçava a

integridade moral do homem. Em primeiro lugar, feria o ícone de macheza ao qual sempre

esteve ligado o sexo masculino, ou seja, significava a falta de responsabilidade e fraqueza

masculina por não prover sozinho as necessidades da família.

E os malefícios da entrada da mulher no mercado de trabalho vão além das ameaças à

integridade moral masculina. A atividade feminina assustava, principalmente, porque podia

comprometer a estrutura política e econômica – com as mulheres trabalhando, poderiam os

maridos ficar sem emprego.

De fato, nos anos vinte, a larga inserção da mulher no espaço de trabalho foi devido à

preferência dos empregadores pela mão-de-obra feminina, mais barata.

Na estrofe seguinte, vê-se como a participação feminina no trabalho é sinônimo de

instabilidade do emprego do homem:

Elas estão todo dia


Tomando o nosso lugar
Se continuarem assim
Só o que vai nos sobrar
É o tanque de lavar roupa
E o ferro de engomar.

O autor considera ainda as mulheres “folgadas”, àquelas que escolhem as profissões

típicas do homem. Fica subentendido que a conquista do espaço no mercado de trabalho é,

conseqüentemente, a perda da feminilidade.


74

Hoje elas são folgadas,


Escolhem até a profissão
Querem se igualar a nós
Só falam em liberação
Umas já dirigem trem
Outras pilotam avião.

Já a profissão de “rezadeira” e de “artesã”, tradicionalmente femininas, pela

característica social difusa e marginal que possuem, são as únicas profissões, além das tarefas

da típica dona-de-casa, que não ameaçam a ordem e por isso são apreciadas pelo poeta:

Em algumas profissões
A mulher dava primeira,
Ninguém ganhava pra elas
Nas artes de rezadeira
Fazer panela de barro
Tecer balaio e esteira.

As mulheres dessas profissões baseiam-se em saberes transmitidos de mãe para filha

e entre vizinhas, mulheres analfabetas e de origem humilde.

A rezadeira ocupa-se dos mistérios relativos à religião, concorrendo ora com o

médico, ora com o padre, para afastar os males físicos e espirituais que se manifestam através

de fluidos sobrenaturais.

Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), a mulher rezadeira é uma idosa,

que resguarda poderes de cura por meio de “benzimento”. Suas rezas constituem cura para

“quebranto”, “mau-olhado”, “vento caído”, enquanto desenha cruzes sobre a testa ou cabeça

do doente com pequenos ramos de folhas verdes, que murcham quando detêm o espírito

maligno que trouxera a doença.

Já o serviço da artesã aparece como indispensável, na medida em que se esmeram os

objetos fundamentais do ambiente doméstico, mais precisamente da cozinha, espaço

feminino por excelência.


75

E a preocupação com o novo comportamento da mulher dos últimos tempos culmina

na questão da preservação da virgindade das moças.

Como se sabe, a moral sexual imposta pelo sistema patriarcal obrigava que as moças

se conservassem virgens até o casamento. Na relação conjugal, por questões da hierarquia

existente entre os sexos, o marido tinha o direito de fazer a “inspeção”, ou seja, submeter a

esposa à prova da virgindade. Caso outro homem tivesse “passado a mão na moça”, ou seja,

desvirginado-lhe, o marido tinha o direito de devolvê-la aos pais. A mulher era reduzida à

condição de um objeto, como uma mercadoria que poderia ser devolvida, caso não causasse

satisfação por parte do dono (o marido). A ilustração a seguir pode constatar a afirmação:

Se o marido descobrisse
Na hora da “inspeção”
Que antes dele outro homem
Havia passado a “mão”
Tinha o direito de
Fazer a devolução.

Nesse estudo, o artifício lingüístico utilizado para conduzir a representação da

soberania do homem sobre a mulher, é a ambigüidade. Os vocábulos “buraco” e “pedaço” são

intencionalmente utilizados pelo poeta com referências aos órgãos sexuais reprodutores

masculino e feminino.

Adão ficou perturbado


Vendo um defeito daquele,
Pois o que faltava nela
Estava sobrando nele,
Para tapar o buraco
Meteu o pedaço dele.

Os versos denunciam a posição de servidão da mulher durante o coito, tais como

evidenciam as expressões tapar o buraco” e “meteu o pedaço”. O conjunto semântico revela,

nesse contexto, o menosprezo pelo sexo feminino.


76

Finalmente, o poeta retrata a mulher decente como aquela que “leva uma vida

honesta”. Para isso, permanece o maior tempo possível reclusa em casa. Uma mulher

recatada, não sai pela vizinhança com o intuito de fazer intrigas. É o que observa o poeta por

meio dos versos “não vive de porta em porta” e “e nem gosta de cachorrada”.

Quando a mulher é honesta,


Leva a vida recatada,
Não vive de porta em porta
Nem gosta de cachorrada

Grosso modo, pode-se apreender que a mulher bendita é a mulher de antigamente, a

mulher celibatária, voltada para os papéis tradicionais femininos e que preserva a hierarquia

existente entre os sexos. A mulher maldita e devassa é toda aquela que defrauda o antigo

sistema, ou seja, aquela que assume um patamar de igualdade com o homem na vida

econômica e social.

Concluindo essas considerações, o esquema a seguir dá uma visão precisa da relação

entre a mulher de antigamente e a de hoje em dia.


77

MULHER

OBRA DA
NATUREZA ANTIGAMENTE HOJE DESTRUIÇÃO DA MORAL
E DO PUDOR

DEMONÍACA
(EVA)
BENDITA
(VIRGEM MARIA)

TRAIÇOEIRA
CIUMENTA
SUBMISSA
DEVASSA, OUSADA
(CASADA)

VALENTE, LIBERTA
DESTEMIDA
MÃE PRENDADA INDEFESA
TRABALHA FORA

REZADEIRA RECATADA
USA TOUCA,
MANDONA, ESPARTILHO,
FOLGADA, AMPOLETA,
COZINHEIRA ESCOLHE A ROUGE,
VIROU O JUIZO
PROFISSÃO BATOM

ALHEIA ÀS CONVENÇÕES
FIEL ÀS CONVENÇÕES

FIGURA 3 – Campo léxico-semântico em A mulher de antigamente e a mulher de hoje em


dia.

6.2.4 A mulher e o cangaço

Um dos assuntos mais curiosos, o qual aparece como indissociável da figura de

Lampião, é o da entrada da mulher no cangaço, instituída por Lampião. Antes da entrada de

Maria Bonita no cangaço, a presença de mulheres nos acampamentos visava tão somente à
78

satisfação das necessidades viris dos homens, normalmente prostitutas, com quem deviam ter

contatos passageiros e de total desprendimento amoroso.

A mulher só ingressou
A partir de Lampião
Muita coisa mudou
Com a sua opinião
Pois Maria interfiria
Da maneira que podia
Em cada situação.

Desse modo, a permanência das mulheres no grupo e a configuração das relações

amorosas num plano mais estável, como se deu a partir de Lampião, consistiu na primeira

transgressão ao código de honra do cangaço. Os vocábulos “ingressou” e “interfiria” remetem

à quebra de paradigma instituída pela entrada da mulher.

O cangaço caracteriza-se como o período em que o Sertão nordestino tornou-se palco

de lutas, mantidas entre os coronéis, adversários políticos que formavam suas próprias tropas

para garantir a preservação de suas propriedades, grandes extensões de terra. O cangaceiro,

inicialmente chamado de “jagunço”, mais tarde “capanga”, configurou-se como um tipo em

defesa dos coronéis, chefes políticos, ricos fazendeiros e senhores de engenho. A esses,

ligava-se por questões hierárquicas garantidas pelo sistema patriarcal. Esse tipo formava o

grupo de cangaceiros dependentes.

Porém, há a existência de um segundo tipo de cangaceiro, - que seguiu de modo

independente da figura do coronel e propagou as façanhas e sangrentas lutas travadas pelo

grupo de cangaceiros que mais assolaram o Sertão nordestino. As verdadeiras gestas que

relatam o ciclo do cangaço, nas cidades nordestinas, aludem aos feitos de bravura e destemor

dos cangaceiros Antônio Silvino e Lampião.

Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), o designativo “cangaço” é

derivado de “canga” e é usado no Nordeste desde 1834. A primeira acepção da palavra remete

ao modo como o bandido ou bandoleiro era obrigado a carregar consigo os bens conseguidos
79

nos arroubos contra os ricos fazendeiros; reporta-se, mais especificamente, à tarefa árdua de

conduzir o peso das armas, das munições, incorporando verdadeiros feitos relativos aos

animais de carga, nas longas travessias do Sertão.

No tocante à origem do cangaço, é importante assinalar que, embora Lampião tenha

conquistado grande fama e a ele ser atribuído o maior movimento de lutas, os registros

mostram, antes dele, a existência de combates de cangaceiros, sob a liderança do Mestre

Cabeleira, cujas ações também constituíam um manifesto político-social contra a opressão da

população pobre no meio rural do Nordeste, como mostra o folheto em estudo:

0 Cangaço começou
Com o mestre Cabeleira
Foi dele que iniciou
Toda aquela pasmaceira,
Pela falta de justiça
E também pela cobiça
Começou a bagaceira

A situação de violência reporta-se ao bando de Cabeleira, como é mostrada através dos

vocábulos: “pasmaceira” e “bagaceira”. A palavra “pasmaceira” remete à “contemplação de

um fato sem interesse justificado”, ou à “uma admiração tola”, “idiota”, “imbecil”. O

Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) abona

essas acepções. Quanto à acepção do vocábulo “bagaceira”, este destaca, em sentido figurado,

o clima hostil que se travara no sertão, desde as lutas do cangaço.

A quebra do paradigma do cangaço tem a ver com o modo pelo qual a mulher

conseguiu se adaptar ao mundo masculino do cangaço, sem abandonar os preceitos femininos.

Determinados ideais, que eram defendidos pelos cangaceiros, foram tomados com a mesma

intensidade ou mais pelas mulheres. Os atos de violência contra o estupro, por exemplo, eram

repelidos, cruelmente e com a mesma intensidade com que faziam os cangaceiros, ao

exterminar o criminoso ou algoz que violasse a honra das donzelas.


80

Cabe observar que a entrada da mulher nos bandos só foi possível porque ela deixou a

submissão, o trabalho doméstico e passou a ocupar as frentes de batalha.

Essas mudanças são referendadas no vernáculo do Cordel analisado, A mulher e o

cangaço, sobretudo através dos termos convergentes “amenização” e “mudando essa visão”,

que giram em torno da questão da violência. A importância da mulher, nesse quadro, fica

mais latente através das expressões “força feminina” e “ingressando de menina”:

Violência era o lema


Desse bando no sertão,
Porém, para este tema,
Houve uma amenização
Com força feminina
Ingressando, de menina,
Mudando essa visão.

O fato de que alguns crimes foram poupados pelas mulheres, contrariamente ao clima

hostil existente na figura do cangaceiro, mostra que a mulher, apesar de seu ingresso no

bando e da incorporação de atribuições masculinas, ainda resguardava valores relativos à

feminilidade: + bondade, + compaixão, + meiguice, + intuição, + beleza.

Em todo o texto, há pólos significativos que retratam a ambivalência da personalidade

da cangaceira. Entre as oposições mais expressivas podem-se destacar: “mais bonita”/ “bola

prateada”; “batom e fita”/ “andava bem armada”; “enfeite”/ “bala de aço”. Cada conjunto de

oposição encontra-se definido, separadamente, nas estrofes.

Quanto à prática de estupros, é pertinente observar que essas eram exercidas

especificamente no bando de Lampião. Essa prática poderia servir de constatação da real

preocupação do cangaceiro em auto-afirmar-se diante dos outros homens, dando verdadeiras

provas de virilidade e potência, estas, orientadas no sentido de reforçar a virilidade em grupo,

uma vez estabelecidas a partir da violência sexual coletiva. Tal fato encerra uma contradição

- ao mesmo tempo em que o cangaceiro defendia a todo custo a honra das moças donzelas de
81

condição mais humilde, ou das daquelas que consistiam seu objeto de veneração, não evitava

a prática de estupro com outras mulheres, as de elite.

Nesse ponto, cabe ressaltar a preocupação com a virilidade, que é, segundo Bordieu

(2003, p. 64):

(...) entendida como capacidade reprodutora, sexual e social. Mas também


como aptidão ao combate e ao exercício da violência, sobretudo em caso de
vingança, é, acima de tudo, uma carga. Em oposição à mulher, cuja honra,
essencialmente negativa, só pode ser defendida ou perdida, sua virtude
sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem verdadeiramente
homem é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que
lhe é oferecida, de fazer crescer, sua honra buscando a glória e a distinção na
esfera pública.

O paradigma fundamental da honra, enquanto poder do homem, situa-se na fronteira

entre a “virilidade e a violência”, manifestando-se, paradoxalmente, na temeridade do homem

em deixar transparecer que falhou, o que significa não ter sabido lidar com a companheira.

É, sobretudo, o medo de ser tachado de “corno”, de ser tomado como “mole” ou

“fraco”, perder o status de “homem macho”, conseqüentemente, o respeito e a admiração dos

companheiros, que o cangaceiro traído se sente preso a uma armadilha: para livrar-se da

humilhação de ser enganado, deve tirar a vida da companheira.

A história da repressão ao adultério feminino obteve a mais alta repercussão com o

caso da cangaceira Lídia, companheira de Baiano.

A seqüência dos sintagmas “Baiano amava lídia”, “que amava Bem-te-vi” deixa

entrever a existência de um triângulo amoroso na relação entre Baiano, Lídia e Bem-te-vi.

Fica evidente também a paixão não correspondida de Baiano pela cangaceira. Verifique-se

melhor por meio da estrofe:

Baiano amava lídia


Que amava Bem-te-vi
No entanto, nesse dia,
Uma lei se fez agir:
Sua lei foi de pulada
Para ter honra lavada,
Como chamam por aqui.
82

Morrer a “golpes de Faca”, “pau ou de bala crivada”, “duma rajada”, “lei de paulada”

são expressões utilizadas no texto para denominar o nível cruel e brutal em que eram

conduzidas as penas para o adultério feminino. A morte de Lídia, colocada num plano

simbólico, representa, nessas circunstâncias, a defesa da honra. Assim, para ter honra lavada,

como diz o sertanejo, é que5ele prossegue com a “prova da macheza”, como consta no verso,

que significa retirar a vida da companheira.

Quanto à combinação dos elementos, como “audácia”, “coragem” e “valentia”,

qualidades tomadas como inerentes ao universo masculino, manifestas agora na figura da

cangaceira, denota uma inversão das práticas e valores do cangaço. Os vocábulos que se

destacam no campo da valentia são “briga”, “montaria” e “pontaria”, e aludem às novas

atribuições femininas instituídas no bando:

Na briga e na montaria,
Vou citar aqui Otília,
Com destaque para Sila
que merece honraria.

A realização de alguns serviços domésticos tidos como femininos, quando passam a

ser exercidos pelos cangaceiros, também reflete uma quebra do perfil machista dos homens do

cangaço. As oposições “cabra/ comida” e “mulher/ servida” denunciam essa inversão de

papéis.

No cangaço a comida
Pelo cabra era feita,
A mulher era servida

5
Além das cangaceiras Maria Bonita, Dadá e Lídia, podemos citar como uma das personalidades mais
importantes, no que se refere à redefinição dos papéis do cangaço, a cangaceira Sila, companheira de Zé Sereno.
Dentre as cangaceiras de menor repercussão, mas que não puderam passar despercebidas na História e na
Literatura, encontram-se Enedina, Inacina, Maria de Pancada, Neném, Otília, elas são citadas no folheto desta
análise.
83

A presença feminina no cangaço fragilizava a noção machista de homem viril e

guerreiro e a de sexo frágil para a mulher. Melhor dizendo, tornava inegável o fato de que a

mulher podia se portar como guerreira e de enfrentar as mesmas batalhas ao lado dos homens.

No campo das relações amorosas, tornou frágil a noção de virilidade masculina e a

compreensão de que, para ser macho, era preciso manter contato sexual com várias mulheres,

sem apego ou compromisso com nenhuma das parceiras, sempre com contatos efêmeros.

Em suma, a idéia fundamental do texto é que a mulher consegue, a partir de sua

entrada no cangaço contribuir para a reconstrução de alguns papéis e valores existentes no

cangaço, rompendo com determinados estigmas sociais. Todavia, não consegue avançar no

que diz respeito à desigualdade relativa ao código de honra, que prevê a monogamia apenas

para o sexo feminino.

Bastante complexa é a entrada da mulher no cangaço, considerando-se a concepção até

então existente sobre sua fragilidade e dependência. Contudo, em sendo assim, o momento é

mostrado no esquema a seguir.


84

MULHER NO CANGAÇO

CRISTALIZAÇÃO DA
ROMPIMENTO COM A INTERFERÊNCIA NO TRADIÇÃO
TRADIÇÃO COMPORTAMENTO
MASCULINO
PUNIÇÃO E
ADULTÉRIO
AMBIENTES, MONOGAMIA
MODAS E AMENIZAÇÃO DA FEMININA
COMPORTAMENTOS VIOLÊNCIA CONTRA
A MULHER
MORTE

VIDA DE SERVILISMO
CANGACEIRO E SUBMISSÃO
FACA, PAU,
GUERREIRA BALA
CRIVADA
SEMELHANTE
AO HOMEM

VALENTE

FIGURA 4 – Campo léxico-semântico em A mulher e o cangaço.

6.2.5 A mulher no lugar do homem

A identificação das mulheres trabalhadoras com o mundo privado e doméstico é o

reflexo da estrutura cultural patriarcal e paternalista, que perpetuou a crença na incapacidade

feminina e a noção da natural dependência da mulher em relação ao homem. No caso da

sociedade nordestina, essa operou com mais nitidez os valores culturais do patriarcado,

recrudescendo a relação da mão-de-obra feminina com o setor doméstico.

A mulher nordestina durante muito tempo foi identificada com o mundo social privado

e doméstico, independente da classe social a que pertencia. O modo de viver da gente do

Sertão e as formas de subsistência e sobrevivência da maior parte da população foram todas

fundamentadas ainda nos tempos de escravidão.


85

A vida de mulher branca, de dependência e submissão ao marido e a da mulher

escrava, a de mucama, ama-de-leite, cozinheira, bordadeira, lavadeira, engomadeira,

costureira, doceira, entre outras atribuições, foram incorporadas ao espaço das senhoras de

elite ou, mais especificamente, à esfera doméstica, conforme foi falado anteriormente. A

mulher pobre e livre, não gozando de status ou do privilégio de casar-se com marido rico,

desde cedo, teve que encarar os serviços domésticos, sendo obrigada, pois, a exercer os

mesmos afazeres domésticos que eram realizados pelas mãos das negras. Os trabalhos

caseiros ficaram, desde então, associados exclusivamente ao sexo feminino.

O trabalho da mulher
Para que não fale o povo
É amarrar uma cabra
Dar leite a um gato novo
Tratar duma bacorinha
Botar milho pra galinha
E reparar se tem ovo

A abertura de possibilidade de trabalho significava um comprometimento nas bases da

organização paternalista dominante, fazendo-se sentida pelos conservadores como o mais

completo caos da sociedade. O primeiro agravo era “a mulher tomar o lugar do homem”,

como mostra a idéia a seguir:

Hoje se torna difícil


Emprego para rapaz
Nos estabelecimento
Dos homens industriaes
Porque a moça sabida
É muito mais preferida
Nas casas comerciais

O campo da domesticidade se organiza pelas expressões: “amarrar uma cabra”, “dar

leite a um gato novo”, “tratar duma bacorinha”, “reparar se tem ovo”, “varrer casa e fiar”,

“deitar galinha e piruá”, “lavar prato”, “catar pulga no vestido”, “catar pulga no gato”, “botar

milho pra galinha”.


86

As expressões pitorescas “e tratar dos seus filhinhos” e “também catar bichinhos nas

barbas de seu marido” designam a desvalorização social feminina.

A noção antiga de que o trabalho era compatível somente com a figura masculina, está

por trás das expressões a “mulher passou na frente”, “tomando o lugar do homem” e “tomou

as calças da gente”.

A idéia de que o homem está perdendo espaço e o emprego e a mulher ocupando o seu

lugar, é reiterada na seguinte estrofe:

Meu primo pediu emprego


Na loja de seu Bernardo
Ele lhe disse eu não tenho
Emprego para barbado
Todo o meu negócio agora
Quem faz è moça e senhora
Que me dar mais resultado

O êxito em se colocar uma mulher bonita no trabalho se dá em decorrência de ela

atrair fregueses do sexo masculino. Fica subtendido que a mulher só é útil em funções nas

quais ela permaneça com suas qualidades femininas, docilidade, meiguice, paciência. Daí,

sua natural vocação para telefonista, recepcionista, secretária, professora (principalmente de

crianças), entre outras que para a sociedade são profissões quase sempre consideradas

secundárias. O termo “barbado”, no Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua

Portuguesa (1999), é definido como “adulto”, “marmanjo”, “homem”. Esse termo, na fala

comum do povo, é usado para remeter, em tom de ironia ou deboche, a incompetência,

desvio ou incapacidade do homem de se portar como tal, em um dado momento.

A combinação das circunstâncias de negação, a partícula “não” com a de espaço

“agora”, impõe uma maior ênfase na idéia de que nos tempos atuais o homem não tem mais

serventia nos cargos empregatícios, uma vez que esses passam a ser ocupados pelas

mulheres.
87

No campo das mudanças comportamentais femininas, assinala-se uma reconstrução de

valores, visualizadas em forma de novas atitudes, pensamentos e práticas sociais:

Escanchar-se em bicicleta
Isto pertence a rapaz
Como também futebol
Que coizas tristes falaes
Esses lugares não tomem
Porque so pertence a homem
Mulher que pensa não faz

Está no imaginário popular que se a mulher andar de bicicleta pode perder a

virgindade. Assim, a posição de sentar na bicicleta não é adequada “às moças de família”, que

devem sempre estar de pernas fechadas e a bicicleta impossibilita isso.

O texto aponta, pois, as mudanças havidas entre os padrões de comportamento antigos

e novos, tratando, sob um prisma negativo, a incorporação de novos modelos, principalmente

quanto à inserção feminina no mercado de trabalho, refletida numa postura aterrorizante ao

homem. Daí, concluímos com a apresentação do esquema a seguir, para melhor compreensão.
88

MUDANÇA DE PAPÉIS
FEMININOS

IGUALDADE COM O HOMEM PERDA DO


STATUS
MASCULINO

VOTA FOI VOTANTE


NO TEMPO DA MEDO
ELEIÇÃO

BICICLETA FRUSTRAÇÃO
ENCANCHAR-
SE EM
BICICLETA
JOGA
FUTEBOL VESTE CULOTE E
PERNEIRA

TRABALHA FORA TOMA O LUGAR


DO HOMEM

FIGURA 5 – Campo léxico-semântico em A mulher no lugar do homem.

6.2.6 As duras lamentações de uma coroa

No dizer popular, uma coroa é uma pessoa que está passando da maturidade à velhice;

é, na concepção da pessoa que fala, alguém idosa ou de idade ultrapassada6.

Costuma-se dizer que quando uma pessoa chega aos trinta anos de idade, passa a ser

coroa, porém, o mesmo designativo recebe uma apreciação diferenciada, conforme a

aplicação para os sexos feminino ou masculino. Ambos os empregos possuem o sema da

idade, embora esse designativo seja normalmente empregado com relação à mulher, num

sentido pejorativo. Já com relação ao homem, o fato de ser “coroa” significa, na maior parte

das vezes, tornar-se mais maduro e mais autoconfiante, mais envolvente ou mais viril.

6
O autor deste folheto de Cordel aborda o mesmo tema em Vida e morte de uma coroa, descrevendo em
pormenores “o que é ser uma coroa”. Em outro folheto ainda, intitulado O que uma coroa deve fazer para se
casar”, o poeta apresenta uma receita de oito páginas para o alcance desse objetivo. Esses folhetos estão inclusos
no corpus da análise.
89

Quase via de regra, a idade de trinta anos no homem representa o momento propício

da decolada na carreira. É, desse modo, o momento propenso às chances de êxito no âmbito

profissional e na vida pessoal, quando acumula o maior número de conquistas femininas. Para

a mulher, de modo adverso, essa idade significa a ruptura com a felicidade. Esse período pode

ser mais desvantajoso se, nessa idade, a mulher não tiver conseguido arranjar um homem, um

marido. É quando se atesta, nesse sentido, a ineficiência no poder de conquista feminino e,

portanto, a eliminação de todas as possibilidades de sucesso na vida.

As duras lamentações de uma coroa transmitem o sentimento de desespero e angústia

feminina, quando é chegada a velhice. A fase da adolescência, mencionada como sendo os

tempos gloriosos, onde a mulher tira proveito da vida, é lembrada nas expressões de lamento,

“quem me dera que eu tivesse 17 anos de idade”:

Se eu tivesse esses anos


Com toda sinceridade
Eu namorava todo homem
Que vivesse na cidade!

Quando o objetivo único da mulher deveria ser conquistar um companheiro, a

característica feminina que mais contava era a beleza. Mas ao lado dela, a mulher precisava

apresentar outros: ser “sabida”, “fácil” e “ligeira”, vocábulos que condizem com o perfil

feminino estabelecido pela sociedade.

A recordação da personalidade “Cleópatra”, na fala da mulher, representada pela

“coroa”, expressa a inveja da habilidade da princesa egípcia, que pôde usar dos seus artifícios

naturais para atrair os homens e conseguir deles o que queria.

Quem me dera que eu fosse


Jovem, bonita e faceira
Eu só vivia entre os homens
Como uma dama primeira
Eu era como Cleópatra
Sabida, fácil e ligeira
90

A falta de um corpo jovem, a perda da beleza, reflete a falta de qualquer perspectiva

para a mulher, quando se tem uma idade mais avançada. A velhice significa, pois, a perda do

vigor feminino, o padecimento e abandono:

Mas agora eu estou só


Triste e desiludida
Já passei dos 33

A velhice não é encarada como sinal de maturidade e experiência, um decurso normal

da vida, mas como uma desgraça, insucesso na vida de uma mulher, em função da perda da

aparência anterior – “a pele está frangida”, “já passei dos 33”, “como perdi a sacudida”, que

demonstram o sofrimento provocado pela depreciação das qualidades no tempo de juventude:

Como perdi a sacudida


Se eu subo a minha sáia
A minha pele está frangida!

Existe uma variedade de termos na fala do povo para designar a mulher idosa ou que

já tenha passado da idade de se casar: “bofe”, “sucata”, “courão”, “bucho”, “fúfia”, “surrão”,

“tia”, “bagulho”, “fulustreca”, “traste”, “maroca”, “caritó”. Todos eles estão carregados

semanticamente de significados para categorizar a mulher velha como um ser imprestável -

uma “mulher velha” e “cheia de pelancas”, que como diz o dito popular, “já deu o que tinha

que dar”. (Cf. em Calepino potiguar: gíria norte-riograndense).

A associação da idade avançada com a desgraça feminina, é apresentada nos versos a

seguir:

Agora estou desgraçada


Não há quem queira mais...
91

A expressão da condição desgraçada da mulher em virtude da idade, conseqüência da

falta de interesse dos homens com relação a ela, é posta em ênfase na construção da estrofe

apresentada:

Quantas vezes eu rezei


A trezena de Santo Antônio
Parece até ser armada
Do horroroso demônio...
Vou rezar a cabra preta
Mas garanto meu patrimônio.

“A trezena de Santo Antônio”, mencionada no discurso em 1a pessoa, manifesta o

apelo da personagem pelas rezas, quando o objetivo único é arranjar casamento. As trezenas

de Santo Antônio são rezas tomadas pelo católico em devoção ao santo, nos treze dias

anteriores à festa em devoção e homenagem a ele. O número de dias é uma reminiscência ao

dia de seu falecimento, no dia 13 de junho de 1231.

As rezas a Santo Antônio representam o mais alto sentido de desespero da personagem

em relação às chances de casamento, sentidas como nulas.

Santo Antônio é, na imaginação que o povo nordestino concebeu, uma figura

milagrosa e protetora, cujo poder por excelência é conceder a realização de casamentos, não

frustrando as esperanças das moças casadoiras. Daí por que, vulgarmente, é chamado santo

casamenteiro, Santo Antônio é o santo da lenda e das tradições populares, aquele cujo poder

alcança a ressurreição dos mortos, a cura de doenças, o alívio no bolso dos ricos em defesa

dos pobres, o livramento das misérias e das causas mais difíceis. Fica na mente do povo o seu

mais alto exemplo de honestidade, humildade e prodigalidade para com os mais necessitados.

A investida na reza da cabra preta, como substituição à trezena, configura uma

mudança na crença religiosa. A cabra preta significa, na expressão popular, o ritual de

feitiçaria em que se evoca a figura do Diabo. Nesse contexto, o pacto com o diabo constitui a

última chance de casamento da personagem.


92

De diversas maneiras, a mulher procura superar suas diferenças, principalmente, a

beleza, que está relacionada, normalmente, ao olhar masculino, pois a beleza só lhe é

prazerosa quando, através dela, a mulher consegue seduzir um homem. Os contos infantis

incorporam esse estereótipo: a madrasta da Branca de Neve é um exemplo clássico disso.

Ademais, as designações que competem para a depreciação da mulher, no folheto,

relacionam juízos referentes à imagem feminina em função da idade. Fica entendido, pois,

que não há espaço para a velhice no campo da beleza, ou vice-versa.

A sistematização das “lamentações de uma coroa” permite uma melhor compreensão

do que a mulher tem que enfrentar quando não casa cedo, conforme se vê na página seguinte.
93

LAMENTAÇÕES

PLANO MORAL E PLANO MATERIAL


ESPIRITUAL

MALES
VELHICE

BEATICE DÓI O PANARIÇO


REJEIÇÃO
MASCULINA
REZA PARA
ENDURECE O MEU
CONSEGUIR TOITIÇO
CASAMENTO EU SÓ POSSO
ACREDITAR QUE
NEM DIABO ME
E AS PERNAS
TREZENA QUEIRA
NÃO
DE SANTO
AGUENTAM...
ANTONIO

FIGURA 6 – Campo léxico-semântico em As duras lamentações de uma coroa.

6.2.7 As modas escandalosas de hoje em dia

A preocupação com os valores e o temor da degradação dos costumes é a causa mais

eminente do saudosismo dos tempos passados, sobre os quais os cantadores sertanejos

reservam as maiores lembranças. Esses recordam, como lembra Cascudo (1973, p. 152),

“como se tivessem vivido há cem anos, cenas de simplicidade longínqua, o respeito dos

filhos, a veneração da esposa, a candidez dos filhos”.

É nesse sentido que o poeta, revoltoso com a falta de decência feminina, como que

sentindo falta da tranqüilidade dos antigos tempos, esbraveja:


94

A decência atualmente,
Pra muitos não vale nada!...
Uma mulher de respeito
Seja solteira ou casada
Se ela não andar nua
Se requebrando na rua..,
Dizem que ela ê uma errada!

A ação de requebrar (de re+quebrar), conforme o Novo Aurélio século XXI: o

dicionário da Língua Portuguesa (1999), significa “saracotear”, “rebolar”, “remexer”. Usa-se

normalmente a expressão “requebrar os quadris”, ou a substituição dela por alguns de seus

correlatos, no intento de referir-se ao andar insinuante ou provocante de uma mulher.

O campo do escândalo organiza-se, pois, com os termos “andar nua” e “requebrando

na rua”. Esses, numa relação disfórica, estão relacionados moralmente, com o aviltamento do

corpo feminino.

Os versos “com doze anos começa” e “com o cabelo feito moça” referem-se à

mudança da fase de meninice à de puberdade. O vocábulo “moça” está intrinsecamente ligado

ao momento em que a menina é ”batizada” com o fluxo menstrual, um momento expressivo e

simbólico do ponto de vista das crendices e superstições nordestinas acerca desse fenômeno.

O Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999) também

apresenta a acepção de “moça” como “jovem”, “rapariga”, “mulher púbere”, “mulher madura

que não é velha”. Percebe-se, assim, que o sentido do termo tem relação específica com a

questão da honra feminina. Por isso, toda a preocupação dos pais, com o fato de que é nesse

momento que a moça pode perder a virgindade, adquirir uma gravidez indesejada, e tudo isso

tem relação com a primeira menstruação.

A reprovação do poeta sobre o comportamento da moça incide no fato desta tornar-se

independente e, portanto, suscetível e desejosa de perder a própria honra (antes tão

resguardada pelas mulheres), na concepção de que se a mulher se iguala ao homem passa a ter

atitudes que não condizem com sua feminilidade:


95

Infelizmente hoje em dia


Se o rapaz é moleirão
Não beija a moça com força
Quando está na escuridão
E se com ela não bole...
Diz ela que ele é mole
Não serve pra ela, não!

A expressão “ele é mole”, que converge para outras acepções populares como “negar

fogo e não dar conta do recado”, deixa entrever que, mesmo incorporando novos modelos de

conduta, a mulher moderna ainda conserva preceitos antigos, como o de considerar que o

homem só é viril quando toma a iniciativa, que esse tem por natureza um instinto sexual

incontrolável. Deduz-se que o rapaz é “moleirão” quando não a deflora, ou não aproveita o

fato de que ela está vulnerável a ele.

O texto em tela tem como objetivo mostrar que as mudanças verificadas na

humanidade são decorrentes da depravação e da corrupção dos antigos valores, apontando a

mulher como a mais responsável pela decadência dos costumes remotos, tidos como ideais,

numa visão machista para os dias atuais, e que essas mudanças se apresentam como modas

escandalosas, o que leva a uma visão da “moça ajuizada” e da “moça sem juízo”. É o que

mostra o esquema a seguir.


96

MODAS

ADESÃO AOS COSTUMES


MOÇA AJUIZADA MOÇA SEM JUÍZO MASCULINOS

INVASÃO DOS
SEMELHANTE ESPAÇOS
MANUTENÇÃO DO ESTILO AO HOMEM COMPORTAMENTO PÚBLICOS
CONSERVADOR

PULANDO EM PRAÇA PÚBLICA


BEBE
SE REQUEBRANDO NA RUA

FUMA

VESTE CALÇA
DE HOMEM

FIGURA 7 – Campo léxico-semântico em As modas escandalosas de hoje em dia.

6.2.8 Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia

No texto em estudo, há o destaque para o campo da beleza e sedução feminina. Nesse,

foram listados os termos que caracterizam o modelo de mulher ideal, segundo a visão

masculina. No campo da beleza e sedução, enumeram-se os atributos femininos, tais como a

beleza, a doçura, o calor e a ternura; esses constituem os principais pré-requisitos para que

uma mulher seja aceita do ponto de vista do poeta.

A supervalorização do conceito de + beleza feminina está relacionada ao de +

saciedade do homem. Daí, uma forte conotação entre os prazeres do corpo e o prazer dos

alimentos. No item beleza, o perfil feminino, que objetiva o agrado do homem, corresponde a

três ingredientes fundamentais: não basta ser bela, a mulher tem que ser “carinhosa”, “fogosa”

e “gostosa”. A estrofe abaixo serve de exemplo:


97

Beijo de mulher bonita


Tem gosto de mascatel
É farinha de castanha
Quando é traçada com mel

A impressão de saciedade sexual do homem fica subentendida nos vocábulos “paz”,

“amor”, “honra” e “amizade”. As metáforas “fome de amor” e “preenche a necessidade”

deixam entrever a idéia de semelhança do corpo feminino com o alimento propriamente dito,

capaz de saciar a fome de carinho, prazer, desejo, etc. Esse conjunto de sensações insere-se no

campo do desejo, o qual pode ser exemplificado através da estrofe a seguir:

Beijo de mulher bonita


Preenche a necessidade
E a fome de amor
Com toda sinceridade
E o homem com ela sente
Paz, amor, honra e amizade

Os vocábulos “fome” e “necessidade” enfatizam o lado instintivo sexual masculino e

machista, colocando a mulher como alimento capaz de saciar esse instinto, conforme foi dito.

A palavra “beijo” inclui-se tanto no campo da sexualidade, enquanto carícia trocada

entre os namorados ou amantes, quanto no campo da amizade, significando um ato comum de

afeição ou cumprimento travado entre pessoas da mesma família ou com parentesco próximo.

A ação de beijar é amplamente inserida num contexto simbólico, significando, num contexto

de malícia e de suspeita, o sentido de traição - o beijo de Judas Iscariotes em Jesus, está

inserido num contexto da traição e prenúncio de morte – logo após ter traído a seu Mestre, o

apóstolo se suicida. Com efeito, a relação beijo/ traição parece provir daí.

No Nordeste, ainda é muito comum entre o povo dizer-se “cheiro”, no lugar de beijo,

como observa Cascudo, em sua obra Superstição no Brasil (2002). Essa palavra é revestida de

afetividade, principalmente na fala das mães nordestinas, na troca de carícias dirigidas aos

filhos menores, as quais abusam da expressão “Dá um cheirinho na mamãe!”.


98

Mas, na verdade, o cheiro insere-se num contexto ambivalente, - é usado, ou para

registrar um maior teor de afetividade, imprimindo uma atmosfera de pureza, de carícia

angelical, ou pode apresentar um fundo de malícia e refletir uma essência voluptuosa. Nesse

caso, é importante escrever que dificilmente a frase “dar um cheiro no cangote”, poderia ser

inserida no primeiro contexto.

Verifica-se uma dupla idéia na expressão “mulher boa”, presente no texto, dado que

essa expressão tanto serve para designar, literalmente, uma mulher bondosa ou virtuosa,

quanto imprime, maliciosamente, a conotação de mulher “gostosa”, “boazuda”, “de físico

provocante”, acepções de acordo com o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua

Portuguesa (1999) e o Dicionário de palavrão e termos afins (1998).

Não existe nada melhor


Do que uma mulher boa
Bonita e bem carinhosa
Agrada a qualquer pessoa

Quem beija ela sente


Amor, carinho e quentura

A combinação sinestésica entre a beleza feminina e os sentidos, - visão, olfato e

paladar, tem como efeito, reiterar a idéia do tesão, do prazer masculino. Assim, a seqüência de

vocábulos “amor”, “carinho” e “quentura” insere- se no campo da volúpia feminina.

De modo inverso, a “mulher feia” é negativamente posta no plano da recusa e da

insatisfação masculina. Portanto, as comparações pejorativas, que remetem a esse tipo de

mulher traduzem sensações desagradáveis, tais como “dor”, “incômodo”, “medo” e “choro”,

de forma preconceituosa. Essas sensações estão expressas nos trechos a seguir:

Carinho de mulher feia


É murro, coice e patada
Empurrão, pota-pé
Beliscão, soco e dentada
99

Carinho de mulher feia


Eu nem quero nem de graça
Até de longe faz medo

Os versos apresentados refletem uma analogia entre mulher feia e alguns animais. Os

vocábulos “coice” e “patada”, “baleia” e “macaco” são os designativos mais depreciativos,

usados para reforçar as semelhanças existentes entre os humanos e os outros seres. O

designativo “macaco”, quando usado para referir-se ao sexo feminino, é quase sempre com o

objetivo de insultar a mulher negra.

Carinho de mulher feia


Além de singelo fraco
Se parece uma baleia
Cada olho é um buraco
E o bafo da boca dela
Tem catinga de macaco

Beijo de mulher feia


Tem catinga de monturo
Tem gosto de café frio

No Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense (1980), o verbete “macaca” é

registrado como “mulher que está sempre a reclamar de tudo”. O sentido do verbete traduz

claramente o comportamento agressivo do homem sertanejo com relação à mulher.

As expressões “catinga de macaco”, “catinga de monturo” e “bafo” são usadas,

pejorativamente, com a finalidade de atingir o negro. A alusão aos termos em relação ao beijo

da “mulher feia” aparece como simples pretexto para depreciar a negra, tecendo um paralelo

entre ela e o macaco, tanto do ponto de vista da aparência física, quanto do odor. Essa

produção de sentido fica mais evidente pela organização do campo da raça, cujos semas mais

evidentes são “monturo” e “café”. 7

Enfim, o texto pretende mostrar que a mulher é aprazível na concepção do homem,

enquanto dotada de atributos físicos, quando sua única função é utilizar o corpo para agradá-
7
Essas mesmas idéias aparecem novamente no folheto “O malandro e a peniqueira...”.
100

lo. Por isso, a constante vaidade da mulher com o corpo, com o cheiro e com todos os

artifícios necessários para instrumentá-lo a essa função, são, nesse contexto, vistos como

positivos.

O esquema a seguir, esboça, resumidamente, a análise do texto em estudo:

ESSÊNCIA FEMININA

MULHER BONITA MULHER FEIA

DESAGRADO AO
SENSUALIDADE PRAZER AO HOMEM NÃO -
PATROA
SENSUALIDADE HOMEM

NOJO E
REPUGNAÇÃO PROVOCA
ESTIMULANTE DOS SENTIDOS BEIJO
SINGELO E
FRACO RAIVA FADIGA
BEIJO ENJÔO
CHEIRO AMOR,
CARINHO,
DOCE COMO AMARGO
MANGABA QUENTURA
DE COISA
BOA BAFO TEM CATINGA DE
MACACO

TEM CATINGA
DE MONTURO

FIGURA 8 – Campo léxico-semântico em Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia.


101

6.2.9 História da mulher da língua grande

Na Cultura Popular, a imagem que se espraiou sobre a mulher foi a de que ela é

naturalmente difamatória e caluniadora, como dissemos na análise do folheto A Língua da

Mulher Faladeira.

O termo corrente “mulher tem a língua grande” ou “mulher de língua comprida”,

remete à mulher “fofoqueira”, ou seja, a que vive reparando e comentando sobre a vida dos

outros, conforme registra a obra Calepino potiguar: gíria norte rio-grandense (1980). Há

todo um conjunto de estrofes que fornecem significações humorísticas e irônicas acerca da

imagem feminina, no sentido de reforçar a associação entre a fala da mulher e a destruição:

A mulher da lingua grande


Quero aqui aconselhar
Corte a metade da língua
Para não te condenar
Porque do jeito vai
Ela vai te devorar.

Os verbos “condenar” e “devorar” são os núcleos da informação sobre o perfil

maligno da mulher, construído em função de uma postura preconceituosa e machista em

relação ao sexo feminino. Essas idéias são impressas novamente na estrofe a seguir:

Mete o pau
Ela se dana a falar
Fazendo a maior zuada
Pois a língua dela ataca

Na linguagem popular, “meter o pau” em alguém significa difamar. O vocábulo “pau”,

associado ao termo “ataca” insere-se no campo da agressão e é semanticamente usado para

referir-se ao comportamento difamatório da mulher, passando a considerar o uso da palavra

pelo sexo feminino, potencialmente destruidor e maléfico.


102

Encontra-se, no folheto analisado, uma abundância de vocábulos e expressões para

definir a mulher desse perfil: “linguaruda”, “mulher da língua grande” e “fuxiqueira” são

alguns dos designativos mais freqüentes na linguagem popular.

A categorização de “mulher da língua grande”, presente no próprio título do Cordel, é

correlata do designativo “linguaruda”, podendo significar “alguém que não consegue guardar

segredo”; ela é cognata da expressão “bate com a língua no dente”, como revelam os versos a

seguir:

Mulher da lingua grande


Não se confia um segredo
Porque ela põe na rua
No outro dia bem cedo

A mulher que desagrada, ou seja, a “mulher da língua grande”, é aquela que toma

partido da vida dos outros. Essa, na visão do poeta, é, pois, passível de receber punição física,

é quem merece “cair na peia”, isto é, “castigo com açoite”, “surra”, acepções registradas no

Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003). O

Cordel referenda as expressões presentes na linguagem popular:

Porque leva a sua vida


Só falar da vida alheia,
Pra deixar o mau costume
Merece cair na peia.

A mulher faladeira é também aquela que não cansa no seu discurso repetitivo:

A mulher da língua grande


Fala que o filho é seboso
Que a nora é fuxiqueira
Que o genro é preguiçoso,
Que a filha è sapatão,
Que o marido è vaidoso.
103

A essência pejorativa dos termos utilizados com referência à mulher é um reflexo do

conceito machista, discriminatório e depreciativo sobre a figura feminina, nos moldes

patriarcais de nossa sociedade.

Agora sou uma desgraçada


Com meus dentes amarelos
Estou de bucho quebrado
Que não vejo os meus chinelos

Muitos são os termos usados para referir-se à mulher, seja em relação a atitudes que

desagradam: “faladeira”, “assanhada”, “atrevida”, ou, mesmo, por seu aspecto físico; se não é

bonita, nem jovem, crescem os adjetivos que lhes são dirigidos, sempre de forma depreciativa.

Conclui-se que a mulher tem valor na sociedade enquanto goza de boa aparência física

e quanto menor for sua idade. As designações, que competem para a depreciação da mulher,

relacionam juízos referentes à imagem feminina relativa a seu tempo de vida. Não há espaço

para a velhice no campo da beleza, ou vice-versa.

A síntese da análise de História da mulher da língua grande encontra-se no esquema a

seguir.
104

MULHER DA LÍNGUA GRANDE

NATUREZA DIFAMATÓRIA MERECE


PUNIÇÃO

PECADO DE EVA
DESRESPEITA AS
AUTORIDADES E AOS
LÍNGUA REPRESENTANTES
GRANDE BATE COM DA IGREJA
A LÍNGUA
NO DENTE

PADRE E
FREIRA
ELA SÓ VIVE
A FALAR

SUA LÍNGUA
SE DANA A DELEGADO,
COÇAR JUIZ,
PROMOTOR,
ESCRIVÃO,
SOLDADO E
PREFEITO

FIGURA 9 – Campo léxico-semântico em História da mulher da língua grande.

6.2.10 Maria Bonita – mulher macho, sim, senhor

Maria Bonita é o símbolo de força, de valentia e coragem da mulher sertaneja, pela

coragem em entrar para o cangaço e lutar em pé de igualdade com o homem cangaceiro e

destemido.

A cangaceira Maria Bonita é uma figura antagônica, tanto do ponto de vista da

estética, quanto da moralidade. Era chamada de princesa, pelo seu companheiro Lampião, por

despertar no sertanejo o sentimento de admiração em torno de sua beleza. Ao mesmo tempo

Maria Bonita significou, aos olhos das sertanejas, um exemplo de coragem e heroísmo ao
105

conseguir penetrar no bando e por ter conseguido o respeito e a admiração dos cangaceiros,

para quem a valentia e a coragem eram, por excelência, qualidades masculinas.

A entrada do cangaço só pode ser vista como positiva, no momento em que a mulher

deixa o papel estipulado socialmente para uma mulher nordestina, o de mulher pobre e

submissa e adentra-se num universo essencialmente masculino, que é o cangaço.

Desse modo, Maria Bonita não só vai ser respeitada, como também admirada, porque

consegue agregar os semas masculinos “valentia”, “coragem”, “intrepidez”, “ferocidade”.

Mas, principalmente, porque não precisara utilizar-se do carma da beleza como arma de

sedução para entrar no cangaço. Ou seja, apesar de ser bela, não obteve em nenhuma instância

a aceitação ou o reconhecimento por parte do grupo, em função dessa qualidade.

Além do mais, Maria Bonita impôs-se, não por ser a mulher de um líder, mas através

de seu caráter, conseguindo ser respeitada e temida até mesmo pelos próprios homens do

cangaço.

O cabra que faltasse


Respeito se arrependia
Macaco na unha dela
Se descuidasse perdia
Porque ela em sua mira
Por detrás na macambira
Quem a enfrentasse morria

Os termos “o cabra”, “cangaceiro”, “valentão” ou “capanga”, e também “o criminoso”,

ou “pistoleiro”, como consta no Dicionário lingüístico-literário de termos

regionais/populares - Norte/Nordeste (2003), do modo como são utilizados na estrofe, põem

em enlevo a postura invencível e viril da cangaceira Maria Bonita, ou melhor, destaca a

autoridade da cangaceira em relação à figura masculina, colocando-a como um ícone maior

entre as outras figuras do cangaço, sejam essas masculinas ou femininas.

No que diz respeito às outras mulheres que entraram no bando vale salientar que,

nenhuma outra conseguiu atingir o mesmo nível de ascensão que Maria Bonita, ainda que
106

tenham abandonado suas famílias e provocado um desequilíbrio na própria estrutura familiar

para entrar no bando.

Mesmo após a entrada no bando, Maria Bonita conserva os preceitos femininos

normalmente esperados de uma mulher, tais como “beleza”, “vaidade”, “lealdade”,

“monogamia” e “apego à religião”, apesar do ambiente hostil no qual se encontra, até pelas

condições climáticas e a convivência com homens rudes. Nesse sentido, a visão que

estabelece com relação ao seu perfil de mulher é eufórica, pois é essa incorporação de

atributos tanto femininos, quanto masculinos que a torna um ser superior, “uma heroína”, do

ponto de vista do cordelista:

Maria Bonita era,


Mulher macho, sim, senhor,
Porque na hora da luta,
Era a fera do terror,
Era a cobra cainana
Ou a tigre sussuarana
Que todos tinham pavor.

O apego às normas convencionais propostas à imagem da mulher nordestina, tais

como a fidelidade ao marido e a tradição religiosa, mais uma vez pode ser demonstrado

através da estrofe seguinte, notadamente nas expressões “mulher valoroza”, “nunca traiu seu

amante” e “fiel à religião”, como se vê no trecho a seguir:

Nunca traiu seu amante


O amava de coração
Matava, sim, é verdade,
Quando havia precisão
Mas era conscienciosa
Como mulher valoroza
Fiel à religião

Engajada na rebelião social política, a cangaceira Maria Bonita vai assumir o posto

masculino, sem deixar perder as suas qualidades femininas. À medida que a cangaceira

assume determinados papéis e responsabilidades tipicamente masculinas, como a liderança no


107

bando de homens, papel inerente ao homem, transgride os padrões de conduta sexual

previstos. A expressão “mulher macho”, que lhe é reservada, é um reflexo disso.

A palavra “macho” remete a acepções tomadas tipicamente ao sexo masculino, tais

como “amante”, “amásio”, “tipo forte”, “viril”, “valentão”, sobre a definição do Calepino

potiguar: gíria norte-riograndense (1980, p. 288) e deu origem a toada original nordestina

“Paraíba masculina, mulher macho sim senhor”.8

É interessante observar que, antes da entrada no cangaço, Maria Bonita atendia ao

modelo de mulher vigente na sociedade nordestina. No tempo em que o casamento no Sertão

era a única alternativa de livramento da miséria e da fome, para as moças e da própria família,

Maria Bonita casa-se para atender às exigências por parte da tradição rígida de obediência ao

pai. Nesse ponto, ela corresponde ao modelo de submissão imposto ao sexo.

Maria Bonita era


Mulher pobre do Sertão,
Casada com um sapateiro,
Sem ter uma profissão;
Sem freqüentar a escola
Casou-se com um lambe-Sola
Quase por Obrigação.

Percebe-se claramente a condição social e a falta de expectativa da mulher nordestina,

que responde quase sempre pelo estigma da mulher pobre, cuja única esperança é depositada

num casamento. Também se desvela o estigma de classe sobre o qual convive esse tipo de

mulher, que é o de relacionar-se apenas com homens de situação econômica desfavorável. As

expressões “casou-se com um lambe-sola” e “mulher pobre do Sertão” compõem

semanticamente essa idéia. “Lambe-sola”, quer dizer sapateiro, tal como registra a obra

Geringonça do Nordeste: a fala proibida do povo (1989). A profissão do sapateiro é, desse

modo, condizente, com a mulher pobre sertaneja.

8
Dái as insígnias em relação à sertaneja, como mulher valente, brava, rude, guerreira, muitas vezes contribuindo
para uma imagem depreciativa ou debochada sobre a mulher nordestina.
108

Ainda sobre a questão do casamento, o cordelista evidencia que, ante a circunstância

de miséria, essa opção significa a única salvação e o livramento de ser “mulher-perdida”, ou

seja, tornar-se “meretriz” ou “prostituta”, como registra o Novo Aurélio século XXI: o

dicionário da Língua Portuguesa (1999). Observe-se por meio do trecho:

A mulher nova, cheia de vida,


Pra não ser mulher-perdida
O casamento aceitou.

A presença da mulher no cangaço, novamente mencionada nas passagens a seguir,

desmantela o arquétipo de mulher frágil e totalmente dependente do homem:

Maria Bonita
Não suportava a moleza
Do seu infeliz marido
E a pobreza dos pais
Naquele Sertão sofrido,
Vivendo por comida
Dizia que a melhor vida
Era a do homem bandido

O vocábulo “moleza”, remetendo a característica inerente a Neném, marido de Maria

Bonita, objetiva mostrar o contraste existente entre o perfil desse homem, - covarde, passivo e

acomodado, em relação ao perfil masculino existente na figura de sua esposa. Tem-se, pois,

uma inversão no modelo estabelecido de homem e de mulher sertaneja: tanto Neném carrega

semas femininos, quanto Maria Bonita detém os semas da “força”, da “coragem”, do

“dinamismo”, previsto apenas para um homem.

Em poucas linhas, o Cordel expressa a idéia de que a mulher pode até tomar um outro

rumo para a sua vida, incorporar ideais masculinos, mas não pode sair do seu universo

feminino. Por isso, a cangaceira não aceita desvencilhar-se de determinados preceitos antigos,

como o da fidelidade ao companheiro e da crença religiosa.


109

O esquema exposto ilustra melhor as relações semânticas básicas entre os vocábulos

coletados no folheto:

MARIA BONITA

ANTES DEPOIS DO
CANGAÇO QUEBRA DA TRADIÇÃO
MODELO CONSERVADOR
SEPARA-SE E
ABANDONA
SUBMISSÃO CASOU-SE COM AO MARIDO
LAMBE-SOLA LIBERDADE
QUASE POR
OBRIGAÇÃO
ENTRADA FEMININA NO
AO PAI E MARIDO CANGAÇO

VIDA DE CANGACEIRA

FIDELIDADE/
CRENÇA

FIGURA 10 – Campo léxico-semântico em Maria Bonita, mulher macho, sim, senhor.

6.2.11 Nascimento, vida e morte de uma coroa

Segundo o Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), o termo

“coroa” indica uma pessoa que está passando da maturidade à velhice.

Nas culturas primitivas, o homem velho, ou “ancião” era uma pessoa respeitável e

venerada, alguém admirado pelas gerações mais jovens por ter o poder de acumular as

experiências, as tradições de seu povo e, por conseguinte, o poder de transmiti-las às novas

gerações. Já as mulheres de idade não aparecem ligadas à tradição, pelo que produziram ou

transmitiram, ao saber que edificaram ou comunicaram. Vítimas de uma topografia andrógina,


110

parece que elas ficaram relegadas apenas à feitiçaria, que passou a ser encarada como

essencialmente feminina, um saber transmissível das mães às filhas.

Acredita-se, pois, que de algum modo essas concepções foram assimiladas nas

culturas ocidentais e mais particularmente na nordestina, uma vez que a mulher foi posta,

quase sempre, em segundo plano.

Existe um juízo de valor relativo ao tempo para cada um dos sexos em especifico – a

mulher é chamada de “coroa” logo quando chega aos trinta. O homem recebe esse designativo

normalmente por volta dos quarenta anos, quando se detecta alguma marca de idade, através

dos cabelos ou barba grisalha. Assim, a velhice do homem é detectada do ponto de vista

material, físico, enquanto que a feminina é apenas determinada por um critério virtual, de base

cultural.

Os estigmas femininos normalmente são tratados sob o ponto de vista da natureza:

Estudando a Natureza
Pude eu classificar
O comportamento delas
E assim vou relatar
Vários tipos de coroas

A maior parte das vezes, uma mulher é chamada de “coroa” quando não chega a casar.

O sentido pejorativo, do qual normalmente é dotado o termo, tem a ver com o pânico das

mulheres ao perder a juventude.

A implicação maior, relativa à questão da idade, tem relação imediata com a questão

do casamento. Assim, se aos trinta anos a mulher ainda não está casada, significa que o seu

projeto de vida se consumou, e que não há mais alternativa de realização pessoal.

O esquema a seguir demonstra as informações principais contidas no folheto

analisado:
111

IDADES

NASCIMENTO E VELHICE MORTE


VIDA MOCIDADE
18 AOS 25
DOS 26 AOS 33
DOS NOVE AOS
TREZE ANOS IDADE LIMITE

DOS 33 AOS 40
OPORTUNIDA
DOS 13 DE DE
AOS 17 ENCONTRAR
ANOS O PALETÓ DEPOIS DOS 37

AOS 50

AOS 60

FIGURA 11 – Campo léxico-semântico em Nascimento, vida e morte de uma coroa.

6.2.12 O abc das mulheres

No universo típico e tradicional da cultura nordestina, o “amor” é um elemento central

que fundamenta as relações pessoais e sociais.

Situando o amor nos limites da sexualidade, definindo-o num plano metafísico

(propondo a sublimação dos impulsos sexuais), isto é, domesticando as paixões e os desejos

libidinosos que podem atrapalhar a relação de um casal, a nossa cultura estabeleceu um amor,

baseado na amizade e no companheirismo.

No campo do amor, prescrevem-se os valores cerceados por comandos morais, típicos

de uma cultura pautada nos moldes patriarcais.

E É assim que a mulher


Ama ao homem e quer bem
E o homem de caráter
Amar a ela convém
Êle tendo amor a ela
Ela amor a êle tem.
112

Os vocábulos, usados com referência à mulher e ao homem, revelam assimetrias de

sentido, em função do valor que normalmente se atribui a cada sexo. De maneira geral, são

consideradas qualidades típicas do homem as que trazem o sema da virilidade, tais como: a

“coragem”, o “caráter firme”, a “inteligência”, o “discernimento” e a “força”. De modo

inverso, as qualidades que se ligam ao sexo feminino são “passividade”, “fragilidade” e

“recato”.

Na cultura nordestina, a crença de que a natureza feminina fez da mulher um ser

dotado biologicamente para constituir um lar e estar ao lado do esposo, pode ser sentida nos

versos a seguir, notadamente, nos vocábulos “bondade”, “carinho”, “vergonha”:

A A mulher é carinhosa
Por obra da Natureza
Pode ser feia ou bonita
Ela tem toda grandeza
E ela tendo vergonha
Pra mim é uma beleza

Na região Nordeste, pelo menos em áreas mais afastadas do contexto da urbanização,

onde as transformações sociais são incorporadas mais lentamente do que nas grandes cidades,

ainda hoje se percebe que o modelo de mulher ideal é aquele que atende aos pré-requisitos de

esposa, mãe e dona-de-casa, papéis que exigem dedicação ao esposo e abnegação quase que

totalmente da vontade própria. Os “caros” valores femininos condizem, pois, com a tríade: lar,

casamento e família.

A imagem positiva das mulheres solteiras faz parte do campo semântico do “respeito”,

da “pudícia”, da “vergonha”. A lexia “vergonha”, aliás, é um valor necessário para a pureza

feminina, condiz com a + pureza, + castidade.

As mulheres que não seguem os preceitos morais impostos pela sociedade são

mulheres que não merecem crédito na sociedade. A elas normalmente são atribuídos
113

designativos como “sem-vergonha”, “mulher fácil”, “prostitutas”, “putas”, entre muitos

outros.

Dado que a idéia do “amor” sublime, conjugal, deveria projetar-se na mulher por meio

de uma “alegria serena”, sentimentos comedidos e uma vez esperando-se da mulher

“paciência e bondade”, para superar as fraquezas do sexo masculino, não convinha que a boa

mulher excedesse aos ímpetos da paixão, tendo acessos de “roedeira”, ou seja ciúme, tal como

apresenta o Dicionário de palavrão e termos afins (1998), a obra Calepino potiguar: gíria

norte-riograndense (1980) e o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa

(1999).

A mulher ciumenta, na ótica masculina, sempre traz estragos para a vida do casal,

atrapalha a prosperidade porque interfere na autoridade masculina. O ciúme desperta a

“maldade” da mulher, que em função de malícia (e desorientamento), em geral, desobedece

ao homem, passa a “ser bruta”, ou seja, indelicada e a “falar asneiras”. Enfim, é o ciúme que

traz à tona toda a natureza subversiva do sexo feminino:

C Caçoada com mulher


Não quero por brincadeira
Quando ela está brincando
Começa a dizer asneira
Se ela for ciumenta
Vai morrer de roedeira

Conclui-se, assim, que o antípoda de mulher “boa”, “bondosa”, no contexto da relação

matrimonial, é a mulher ciumenta.

A imagem feminina condiz, no contexto da sociedade nordestina, com o arquétipo de

mulher “faladeira”, “tagarela” e que “adora fazer mexerico”. Em geral, é essa visão que é

representada através de uma “sogra” ou de uma “madrasta”, todas “megeras”. Também é uma

constante o ícone de esposas irresponsáveis, “alcoviteiras”, atreitas ao esquecimento dos


114

deveres conjugais. Essas mulheres não cansam de sair de vizinha em vizinha, igualmente

mulheres de más línguas, que estão sempre ocupadas em reparar a vida dos outros.

Juro que mulher não tem


Coragem de enfrentar luta
Só tem coragem na língua
Fala e depois escuta
Tôdas não são malcriadas
Mas tem ciumenta e bruta.

O poeta popular encontra, cada vez mais, inspiração para destratar a mulher, visando a

agradar o público masculino, que se diverte com isso. Assim, ataca a moral, os bons costumes

e até mesmo, sua aparência física.

A preocupação com a beleza feminina é outro traço típico de nossa cultura. Em

decorrência de preceitos antigos de feminilidade e masculinidade, a beleza feminina foi muito

cedo posta em elevo, em detrimento de sua capacidade intelectual.

A partir do completo menosprezo e descrença na inteligência feminina, criou-se o

estigma de que mulher sendo bonita, não pode ser inteligente. Ou que se é bonita, não precisa

trabalhar.

Conseqüentemente, sempre houve o menosprezo pelas mulheres feias, como revela o

dito popular “mulher feia não dá palpite”, ou “mulher feia é como sucata”, “não tem lugar no

mercado”, referendando-se de forma acentuada, no Cordel, objeto científico do presente

estudo, valores que se perpetuam ainda hoje, com relação ao culto à beleza feminina.

G Gosto de toda mulher


Sim da que é carinhosa
Sendo pobre é muito mansa
Sendo rica é bondosa
A feia não me agrada
Sendo bonita é gostosa.

Como se viu, no campo das relações amorosas conjugais, inserem-se variados valores

paradoxais, tais como: “ciúme”, “casamento”, “traição”, “honestidade”, “bondade”, “afeição’,

“mentira”, “falsidade”.
115

B Boa mulher aquela


Que sabe fazer carinho
Ela gostando do homem
Nunca deixa êle sòzinho

Levando-se em conta que o princípio da serventia doméstica feminina é a perfeição e o

agrado ao homem, a arte de agradar compõe o rol dos caprichos femininos. A mulher

“perfeita” é aquela que tem o cuidado de preservar suas “graças naturais” e despertar o

interesse e a admiração por parte do marido:

F Fica a mulher satisfeita


Quando o homem lhe adora
Se ele lhe abandonar
Ela de tristeza chora

Incorporando virtudes contraditórias, a mulher deveria ora exibir-se para o marido, ora

comportar-se no modelo tradicional de recato e submissão, respondendo às expectativas

sociais impostas ao modelo de perfeição: eficiente no lar, - mãe cuidadosa e esposa fiel e

submissa.

Entre duas figuras antitéticas, eis que se insinuam duas imagens distintas da mulher:

uma que possui um corpo, uma aparência e uma sexualidade, e uma outra, uma mulher

voltada quase completamente ao trabalho doméstico, ao casamento, à família e à religião.

Como que prevenindo os homens do poder de sedução das mulheres, o poeta diz:

I Inocente vive o homem


Pensando que mulher presta
Ela enganando a êle
Nada de bondade resta
A mulher é como música
Só tem beleza na festa.

É nesse elenco de imagens, que se mistura ao conflito das diferenças entre os sexos,

que aparecerão descrições da imagem da mulher “maliciosa”, imperfeita e cheia de

“maquinações”.
116

O atributo de interesseira e usurpadora é uma das mais freqüentes características

negativas aludidas ao sexo feminino. A indecência feminina é aqui frisada a partir da projeção

de sua natureza torpe e insaciável.

Pode-se comprovar lingüisticamente essa visão principalmente a partir das frases do

tipo, “êle dá e ela aceita” e “ela não se endireita”:

U Uma me disse outro dia


O homem nunca me enjeita
E o que ela pedir
Êle dá e ela aceita
E assim de tôda forma
Ela não se endireita.

Esse Cordel, como os demais, vem reforçar a discriminação da mulher quando ela se

mostra capaz para funções ditas masculinas e, principalmente, tornando-a mal vista, alvo de

pilhérias e deboche por parte de tantos quantos compartilham desse preconceito exagerado.

O esquema, apresentado na página seguinte, apresenta uma visão geral do Abc das

mulheres.
117

AMOR
(CASAL)
AFIRMAÇÃO NEGAÇÃO

FAMÍLIA/ CASAMENTO
DO LAR GERAL ESPECÍFICA

POSIÇÃO
SOCIAL MALÍCIA
FEMININA BRUTA
SERVIÇOS

PRAGUENTA
ESPOSA CHIFREIRA
ATENÇÃO
AO MARIDO FILHOS FALSA
CIUMENTA
DEDICAÇÃO ALCOVITEIRA ROEDEIRA

BONDADE- GASTADEIRA
(

VERGONHA
PERDIÇÃO
DO HOMEM-
RUÍNA DA
SUBORDINAÇÃO DOMINAÇÃO/PROTEÇÃO FAMÍLIA

FIGURA 12 – Campo léxico-semântico em O abc das mulheres.

6.2.13 O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia

A empregada doméstica faz parte do grande contingente de mulheres que precisa

trabalhar fora de casa a fim de suprir as suas necessidades de sobrevivência. Devido às

imposições do mercado de trabalho e à falta de qualificação profissional para a ocupação de

outras funções empregatícias, muitas moças pobres vêem, como única alternativa para livrar-

se da miséria, o trabalho nas “casas de família”.

A participação da figura feminina em diversas profissões só tem aumentado nos

últimos anos e sendo o trabalho doméstico destinado culturalmente ao sexo feminino, esse

papel “acaba sobrando” às mulheres de condição sócio-econômica menos favorecida. É


118

importante observar, ainda, que é a mulher de cor quem mais predomina nessa categoria

empregatícia.9

A preservação do emprego doméstico estratifica as relações estabelecidas pelo sistema

dominante - primeiro, opõe-se à quebra do paradigma do espaço doméstico uma vez que

continua reservando as atividades “do lar”, quase exclusivamente, ao sexo feminino. É,

portanto, sexista; segundo, mantém e estimula, cada vez mais, a exploração das mulheres

pelas próprias mulheres, poupando das responsabilidades domésticas apenas as da elite. É,

portanto, classista; terceiro, porque elege como funções superiores àquelas antes reservadas

apenas ao sexo masculino e como inferiores as que se enquadram ainda no sistema

conservador.

A empregada doméstica, numa visão estereotipada, é vista como “a peniqueira”, - a

empregada doméstica quase nunca é chamada pelo nome. Essa expressão coisifica a mulher, a

partir de sua ocupação profissional. Confere, pois, invisibilidade a essa categoria,

desvalorizada e marginalizada, perante a sociedade.

Depreende-se que, o vocábulo “peniqueira”, é o termo mais pejorativo para designar o

serviço doméstico feminino. O sentido depreciativo provém da relação entre a profissão e o

penico, “vaso apropriado para nele se urinar e defecar”, conforme registra o Dicionário

lingüístico-literário de termos regionais /populares - Norte/Nordeste (2003).

Embora o termo “peniqueira” tenha caído em desuso, o termo ainda vive e anda

impresso em livros, ou mesmo “nas bocas” das pessoas das classes menos favorecidas, que

não recorrem à outra palavra com significação análoga, ao que faz parecer, porque qualquer

outra não terá o poder de suprir o raciocínio.

9
“Estruturalmente essa relação social de dominação-subordinação torna ao mesmo tempo muito próximos
patrões e empregadas de condição muito desigual, caracterizando-se por isso, politicamente, como uma relação
injusta e intrinsecamente violenta. A violência implícita nessa relação ordinariamente é mantida sob controle,
por mecanismos de dominação e cooptação, características da ordem autoritária (paternalista inclusive) que
permeia as relações familiares, assim como as relações patronais”. (FARIAS, 1983, p.11).
119

A alcunha da empregada doméstica deve ter relação imediata com o papel da negra

nos tempos de escravidão. Sabe-se que nesses tempos não existiam banheiros e que era tão

somente a escrava quem ficava responsável pelo “serviço sujo”, ou seja, limpar os dejetos dos

penicos dos seus senhores. Essa é uma associação relevante do ponto de vista do racismo, a

associação dos serviços inferiores, porquanto exercidos pela camada negra, marginal e

dominada.

O fato de a empregada doméstica pertencer à classe subalterna reserva a ela o

relacionamento com pessoas de condição social semelhante ou mesmo inferior a dela. Daí

vem à relação com o malandro, personagem do texto, que é um sujeito pobre, sem caráter.

“O malandro”, representado numa visão caricaturada, exótica, é uma figura que vive

de esperteza, não no sentido da inteligência, mas no de saber fazer falcatruas, praticar roubos

e manipular as pessoas. O “malandro” carrega os semas do ócio: ele é um “gigolô”, ou seja,

aquele que manipula “a peniqueira” para tirar proveitos econômicos, e é a falta de instrução o

elemento que mais colabora para que ela seja explorada facilmente por ele, sexual e

economicamente, embora não tenha intenções em manter um relacionamento estável e ético

com aquela. Essa é a visão que corresponde, no imaginário coletivo, à figura do “malandro”.

Outra visão que brota do imaginário coletivo é da empregada doméstica como objeto

sexual do patrão. O distanciamento do seu próprio ambiente familiar e, conseqüentemente, a

ausência do resguardo dos pais, a torna suscetível às investidas de exploração sexual por parte

do patrão. A relação entre a entrada no emprego e a condição de virgem fica subentendida nos

versos “tenho visto peniqueira” e “que se emprega donzela”.

A situação da empregada doméstica, nesse contexto, por conseguinte, é disfórica: há

um temor tanto da parte das donas-de-casa que temem as investidas extraconjugais de seus

maridos e há o temor da empregada em ser abusada sexualmente pelo patrão.


120

No texto, a relação da empregada doméstica com a prostituição fica evidente nos

contextos de espacialização. Essa é percebida nas expressões “na praça”, “na esquina”, “na

casa”, “na cadeia” e “no cabaré”. O vocábulo “cabaré” designa, conforme o Novo Aurélio

século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), a “casa de diversões onde se bebe e

dança e, em geral, se assiste a espetáculos de variedades”. A palavra “cabaré” no texto tem

como intenção remeter ao modo de vida dissoluta da doméstica, de acordo com os ambientes

de marginalização, tais como a rua, praças, esquinas, lugares estratégicos de prostituição

feminina.

No Recife eu tenho visto


O mercado São José
Tanta da nega nogenta
Que eu não sei como é
Com os Malandros em folia
E lá na rua da Guia
Ai sim! é cabaré.

A visão preconceituosa do poeta é reforçada pela inclusão de espaços considerados

socialmente como indignos para uma mulher de respeito freqüentar. A praça conota um certo

valor pejorativo, exatamente por se tratar de um lugar onde as prostitutas ou “garotas de

programa” (para citar um termo mais moderno), expõem-se e oferecerem seus serviços

sexuais à clientela masculina.

A “casa” poderia ser interpretada como o lugar onde a empregada doméstica, a

“peniqueira”, desempenha as tarefas predominantemente femininas, quais sejam lavar, passar,

limpar, cuidar das crianças, entre outras. É, pois, um tipo de ocupação em que essas mulheres

executam o trabalho doméstico no lugar de outras mulheres, as chamadas “donas-de-casa”,

nos serviços que lhes são culturalmente atribuídos. Representa, pois, o modelo da ordem, do

equilíbrio, da estabilidade e da normalidade.

O lado de fora, ou seja, a “rua”, é o espaço de realização das manobras perigosas que

somente as mulheres de conduta duvidosa, a mulher prostituída, ou melhor, “a peniqueira”,


121

normalmente insiste em ocupar. Por esse prisma, ela representa a desordem e a vergonha.

Delinea-se, nesse sentido, uma visão preconceituosa com relação à empregada doméstica. No

olhar do poeta, as empregadas domésticas, “as peniqueiras” são dadas à prostituição. É o que

confirma o trecho a seguir:

Na praça Sérgio Lorêto


Hoje não mais de primeiro
Era tanta piniqueira
Com malandro maloqueiro
Que uma moça honrada
Só passava enjuriada
Dos seus daquelas fuleiras

A temporalização está marcada pelas palavras “noite”, “até mais tarde”, “agora, de 10

horas por diante”. Esses termos, na narrativa, referem-se ao momento em que geralmente

ocorre a prostituição feminina, é nesse horário que podem acontecer as investidas e aventuras

sexuais dos homens, na busca por amantes ou prostitutas.

Os temas passam a ser materializados lingüisticamente através de muitas figuras. O

tema da prostituição se desvela nas figuras da sedução, como por exemplo: “sobrancelha

raspada”, “metro e meio de pano” e “saia ligada”:

Metro e meio de pano


Prá fazer saia e casaco
Outra anda quase nua
Com o tal vestido saco
Muita com saia ligada
E sobrancelha raspada
Dizendo agora emburaco

O tema sócio-econômico da inferioridade da empregada doméstica remete aos termos

“piniqueira”, “motorista de fogão e da chinica”, “de comprar no armazém”. No texto, esses

termos traduzem o estigma de inferioridade que carrega a empregada doméstica na sociedade:

E em Nazaré da Mata
Tem piniqueira também
Pensa que é alguma coisa
Coitada não é ninguém
122

E motorista de cangica
Do fogão e da chinica
E comprar no armazém

O tema do racismo transparece através dos termos “nega nogenta” e “cabelo

pichauim”; este último adjetivo remete à “carapinha”, isto é o “cabelo crespo”, “lanoso”,

“encaracolado dos negros”, segundo a reserva do Dicionário lingüístico-literário de termos

regionais/populares - Norte/Nordeste (2003).

A adjetivação “nogenta” remete a todo um desprezo sobre a figura da negra, conforme

assinalado na estrofe abaixo:

Uma nega de Paudalho


Foi empregar-se em Recife...

Um diadema encarnado
Pra prender o pichauim...

Os temas do “machismo e da sexualidade” entrecruzam-se, na verdade, em todos os

momentos da narrativa. A idéia da negra, como símbolo e objeto de prazer masculino, é

expressa a partir da alusão aos encontros e investidas sexuais da “peniqueira com o

malandro”:

A piniqueira a noite
Bota aceia do patrão
Lava os pratos enxuga a pia
Tira as cinzas do fogão
Depois ageita tudo
Vai esperar o sambudo
As 10 horas no portão

Num sentido lato, o texto reflete a visão estereotipada da raça negra enquanto inferior

e malfazeja, ideal apenas para o trabalho e para “levar peia”, ou seja, receber castigos. Num

sentido restrito, assinala o preconceito e marginalização sobre a figura da negra, no protótipo


123

de objeto sexual, ora do patrão, ora do malandro. Note-se que o instinto sexual latente, a

feitiçaria e a disposição para a transgressão foram insígnias que mais pesaram sob essa mulher.

Dadas essas considerações, a análise é feita no gráfico a seguir:

EMPREGO DOMÉSTICO

CONTROLE DA
RELAÇÕES PATRONAIS DOMESTICIDADE

DOMINAÇÃO
PATROA SUBORDINAÇÃO
PRECONCEITO E
MARGINALIZAÇÃO
NOJO E COM A DOMÉSTICA EMPREGADA DOMÉSTICA
REPUGNAÇÃO ELITE
(PATROA)

PROSTITUTA VIVÊNCIA DE SUBORDINAÇÃO

EXPLORAÇÃO
FULEIRAS E VADIAS SERVIÇO
SERVIÇO EM CASA
CHAUFFER DE FOGÃO EM TEMPO ALHEIA
INTEGRAL
LADRA/ SUSTENTO
ROUBA O PATRÃO FAMILIAR

NÊGA NOGENTA BAIXO NÍVEL


DE
ESCOLARIDADE
STATUS INFERIOR

FIGURA 13 – Campo léxico-semântico em O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da


orgia.

6.2.14 O mundo pegando fogo por causa da corrução

A palavra “mundo”, no seu sentido mais freqüente, expressa a designação da

humanidade. Numa acepção religiosa, é muito usada como designativo de profano, impuro,

contrastando com o de céu, no sentido de “purgatório”, espaço divino, destinado “à

purificação das almas” sob o pecado.


124

Daí provém a idéia de “maldade”, “vaidade” e “perdição”, que subjaz a idéia da culpa

feminina e que se perfaz no ideário cristão, como se pode constatar nos versos seguintes:

Do jeito que o mundo vai


Não tem jeito que dê jeito
Moça namora casada
E tem casado sem respeito
Mocinha nova e bacana
Abraça a vida mundana
E no caberé vai de eito

Verifica-se que o repertório é vasto para a expressão da profecia dos maus tempos. A

fé religiosa, presente no homem sertanejo, fê-lo pensar que os desequilíbrios naturais e a

miséria que oprime seu povo são conseqüentes do castigo mandado por Deus, contra a

maldade humana. O campo lexical da perdição, nesse sentido, é dominado pela palavra “fim”:

Só se ver é carestia
Em toda face da terra
Nosso tempo está chegando
E a profecia não erra
Do brejo até o sertão
Só se vê lamentação
Peste, fome, sêca e guerra

A riqueza do campo se acentua na expressão do comportamento feminino. São

predominantes as expressões que mencionam a responsabilidade feminina sobre a destruição

do mundo.

Casada deixa o marido


Abraça outro e venera
Moça na praia se deita
E diz ao noivo: aproveita
Que estamos no fim da era

A nudez e o adultério aparecem como os mais predominantes fatores de destruição da

mulher e do mundo. A formulação de base verbal é que é mais rica, contendo: “casada deixa
125

outro”, “abraça outro e venera”, “tomando banho sem saia”, “mostrando as côxas de fora”,

“só não dança cabaré”, “está levando de eito”, etc.

...Mocinha de hoje
Está levando de eito
Mocinha com 13 anos
Namora qualquer sujeito
E beija êle na praça
Só falta vê-se a fumaça
Dêste mundo sem respeito

O tempo piorou mais


Depois que a saia encurtou
Acabou-se a produção
Até o inverno faltou
Só se ver é amargura
Nunca mais se viu fartura
Somente a fome aumentou

A expressão adverbial de tempo “daqui pro fim de 80”, remetendo ao caos, instalado

em função da indecência e inversão dos papéis sexuais femininos e masculinos, retrata todo o

inconformismo do poeta, que prevê a inclinação dos tempos mais recentes para o caos, ou

mesmo o fim, e para essa previsão coloca a figura feminina como culpada.

Por todas as partes da narrativa, fica posto o modo como o nordestino, mais

particularmente o sertanejo, reage ao mundo moderno, metropolitano com dificuldade.

O esquema em campos léxico-semânticos, a partir dos vocábulos retirados da obra,

pode ser visualizado a seguir.


126

CORRUÇÃO DO MUNDO

CRISE
ORGIA E PECADO PROFECIA CONSEQUÊNCIAS FOME

DESGRAÇAS CARESTIA
ESTAMOS NO FIM NO MUNDO PESTE
DO MUNDO
SECA

O MUNDO VAI GUERRA


PEGAR FOGO

O FIM DA ERA
FALADA

NADA DE BOM
SE ESPERA

FIGURA 14 – Campo léxico-semântico em O mundo pecando fogo por causa da corrução.

6.2.15 O mundo vai estourar do jeito em que se vive

Neste campo foram listados os termos que caracterizam as “irregularidades” do mundo

moderno, essas são contempladas no plano da “imprudência”, aludindo-se, mais uma vez, a

questão da indisciplina ou abuso do comportamento feminino.

O campo da “indisciplina” é formado com os vocábulos “fumo”, “drogas”, “álcool”,

“folia”. Esses vocábulos carregam o sema do êxtase e do prazer que, na ótica conservadora,

significa a diminuição da imagem do homem, decorrente da omissão na entrega aos prazeres,

e da falta de domínio do corpo e do uso da razão como forma de evitar a queda.

Ninguém suporta a dor


E logo se anestesia
Em fumo, drogas e álcool
E cai logo na folia
Gozar todos os prazeres
É o que lhe sentencia
127

A violação dos valores morais sexuais é manifesta a partir da mulher, quando ela

abandona os antigos valores e costumes e entrega-se à devassidão. A deficiência da

preservação da virgindade é a depreciação das virtudes, como demonstram os versos “não se

tem mais virgindade” e “como virtude moral”.

O aparecimento da “pílula” elimina a função eminente da mulher enquanto

progenitora. Subtende-se a idéia de que a decadência é projetada a partir do momento em que

a mulher passa a exercer o seu direito à sexualidade, com o uso do anti-concepcional, tanto do

ponto de vista da relação sexual propriamente dita, como quanto pela negação à procriação.

A censura sexual feminina permeia todos os aspectos que se ligam à ruptura da

personalidade feminina nos moldes tradicionais antigos, pautados na satisfação alheia,

porquanto através do prazer sexual do marido, da aprovação da sogra, das amigas, aprovação

dos familiares, - quando as mulheres eram vistas e reduzidas ao agrado, ou a atração de

outrem.

O uso da “pílula” é o primeiro índice de libertação da mulher burguesa e esse

favorecia a eliminação de sua condição de procriadora, à medida que favorecia o

desaparecimento de outros signos de opressão feminina, como por exemplo, o poder de

decidir o momento e a freqüência da relação sexual, antes privilégio único do homem.

Por fim, o conjunto de expressões: “não se toma mais pé”, “ninguém distingue quem

é”, “ninguém bota mais a mão no fogo”, imprime todo o tom de desconfiança e descrédito

com relação às pessoas de hoje em dia e isso em função da incorporação da parte delas às

novas formas de vida.

A partir dessas considerações a análise do campo léxico-semântico deixa bem clara a

postura da época, bem representada como a “Era da hipocrisia”.


128

ERA DA HIPOCRISIA
DEGENERAÇÃO
DA MORAL

VALORES LIBERAÇÃO
SEXUAL FEMININA

NÃO SE TEM
DIGNIDADE
PODER DE
DECISÃO
CONTROLE
O CASAMENTO
NÃO SE TEM JÁ DE FILHOS
ERA
MAIS
VIRGINDADE

PÍLULA
MULHER SE VESTE ANTI-
DE HOMEM CONCEPCIONAL

FIGURA 15 – Campo léxico-semântico em O mundo vai estourar do jeito em que se vive.

6.2.16 O poder oculto da mulher bonita

A mulher ocupou um espaço expressivo no imaginário masculino. Oscilando entre a

bondade e a maldade, entre a fraqueza e a insensatez, natureza dócil e angelical e lasciva. De

um modo geral, a situação frágil da mulher contrasta-se, essencialmente, com a intensidade de

sua natureza astuciosa, maliciosa, feiticeira ou diabólica. É essa imagem que vagueia no

campo da Literatura.

Na base dessas contradições, a beleza é situada como a arma mais diabólica e eficaz

feminina para exercer total domínio sobre a figura do homem. É a partir dessas noções que o

Cordel em análise se centra. Verifique-se o trecho a seguir:

Falo com todo irracional ou gente


Todo vivente que no mundo habita
Tudo se curva e rende homenagem
A querida imagem da mulher bonita
129

O verso “se curva e rende homenagem” pressupõe a inversão de comportamento no

homem, quando esse é posto numa situação de reverência e submissão à personalidade

feminina, em função de seu estado de encanto pela beleza feminina.

A beleza, nesse contexto, funciona como uma espécie de feitiço, um carma feminino: é

capaz de fazer desequilibrar vários perfis e condutas esperadas de um homem: “faz até o

homem corajoso, bruto como uma fera, tornar-se mais manso”, como diz o texto. A mansidão

é atribuída em virtude da ausência ou neutralidade do temperamento masculino, uma oposição

ao comportamento agressivo esperado. A dialética “transmuta” o objeto erótico e passivo, ou

seja, a mulher, numa figura insaciável, traidora, inimiga.

Fraco rapaz que gosta da moça


Não tem a força que tem uma catita
Suspende um peso tão demasiado
Por ser namorado da mulher bonita

Num sentido ambíguo, a mesma mulher que vence o homem com seus ardis, é também

aquela que favorece na reconquista das potencialidades masculinas, quando essas encontram-

se esmorecidas, por algum motivo. A mulher bonita, nessa situação, é o “elixir da juventude”,

da força, o “estimulante sexual” natural.

Configura-se o perfil da mulher objeto, que num contexto erotizado e submisso, segue

com a busca em promover a satisfação libidinosa do homem. A construção desse perfil

depende do grau de astúcia feminina, - a mulher perfeita para o homem sabe ousar na

intimidade com ele, ao mesmo tempo transparecendo para a sociedade uma imagem de

mulher discreta e passiva. Isso remete ao que nos diz Bevoir (1980, p. 233):

(...) De dia, ela desempenha perfidamente seu papel de escrava dócil, mas, à
noite, transforma-se em gata, em corça; introduz-se novamente em pele de
sereia ou, cavalgando uma vassoura, participa de rondas satânicas. Por vezes
é sobre o marido que exerce sua magia noturna; porém, é mais prudente
dissimular essa metamorfose a seu senhor; são estranhos que ela escolhe
como presas; eles não têm direitos sobre ela e ela continua planta, fonte,
estrela, feiticeira para eles...
130

Assim, os predicados femininos devem ser fundidos em dois modelos: o que envolve

recato, passividade e dependência masculina; por outro lado, não pode faltar à mulher a

ousadia, - ela deve ser fogosa, quando o assunto é a satisfação sexual do homem.

No Cordel, o perfil dinâmico e combativo do homem, características suscitadas pela

atitude feminina, forma o campo lexical a partir das expressões “velho se torna vaidoso”;

“fica um homem corajoso”; “briga atê com seu amigo”; “cria o nome de reimoso”.

Onde tem mulher bonita


Velho se torna vaidoso
Qualquer sujeito mofino
Fica um homem corajoso
Briga atê com seu amigo
Cria o nome de reimoso

Vale salientar que a vaidade masculina é normalmente diferente da feminina. No

homem, a vaidade está relacionada ao ego, à noção de virilidade. Um homem se sente vaidoso

normalmente quando consegue seduzir e acumular conquistas femininas. O objetivo da

estrofe é demonstrar que a mulher bonita tem o poder de restituir ou revitalizar as qualidades

viris masculinas. Por isso, os vocábulos “corajoso”, “briga”, “reimoso”, este no sentido de

ressaltar o “gênio turbulento”; alguém “que vive com zanga atrevessada na garganta”, como

explica o Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense (1980).

A mulher é um corpo e deve ser o mais cobiçado por todos os homens, um troféu que

tem um único dono, ou seja, o marido. Ao mesmo tempo ela é o alimento, o ânimo masculino,

o constante motivo de renovação masculina.

A idéia da perda da força do homem, como oposição às idéias já mencionadas,

também se estabelece na estrofe a seguir:


131

Fraco rapaz que gosta de moça


Não tem a força que tem uma catita
Suspende um peso tão demasiado
Por ser namorado de mulher bonita

Interessante observar que “catita”, na linguagem popular também significa “mulher

provocante e cheia de dengues”, conforme o Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense

(1980).

Vêem-se os ardis femininos, triunfando sobre o comportamento austero e materialista

do homem. A essência de Eva10 é mais uma vez evocada, como essência sedutora e

irresistível:

Até o homem avarento


Mesquinho de coração
Porém a mulher bonita
Basta apertar-lhe a mão
Dizendo: eu te quero bem;
Ele dá tudo que tem
Fica sem nenhum tostão

O campo léxico da malícia e maldade feminina é enriquecido com a comparação da

mulher de hoje com as figuras míticas que tiveram repercussão na História, tais como

“Dalila”, “Judith”, “Cleópatra” e “Lucrécia Bórgia”.

Dalila, conforme a narrativa bíblica (Jz 16, 4-20), é amante de Sansão, a quem trai, em

troca da recompensa de mil e cem moedas de prata. Compactuando com os filisteus, a mulher

persuade Sansão a revelar o segredo de sua grande força, a fim de destruí-lo. Após algumas

tentativas frustradas, Dalila finalmente consegue desvendar o enigma e corta os cabelos de

Sansão, razão da força, enquanto ele dorme e entrega-o aos filisteus. (Cf. Dicionário bíblico,

1984, p. 209).

10
Mitos e estereótipos são de tempos em tempos evocados e cristalizados através da tv e dos meios de
comunicação de massa em geral, fornecendo uma imagem da mulher brasileira como símbolo sexual. Em
algumas das mais representativas quais sejam as campanhas publicitárias de cerveja no país, evocam a
sensualidade da brasileira através de antigos emblemas de identificação masculina: futebol e mulher, estes,
metaforizados que o são na expressão paixão nacional.
132

A menção à “Judite” no texto tem como sentido ressaltar a importância que essa

mulher teve, no sentido em que se tornou uma heroína para o seu povo. Jovem e viúva, ela

intervém no projeto de destruição da cidade de Betúlia, porque consegue conquistar a

confiança do general do rei, Holofernes, fazendo-o pensar que sua vitória estava garantida.

Judite, quando convidada à tenda de Holofernes para uma ceia, mata-o cortando-lhe a cabeça,

encontrando-se, a essas alturas, o general embriagado. Num ato típico de herói, essa mulher

leva a cabeça do homem assassinado como troféu, à cidade de Betúlia:

Na cidade de Betúlia
No reino da Palestina
Judith matou Holofernes
Mas não fez como Agripina
Judith alcançou vitória
Está nas paginas da história
Com o nome de heroína

Cleópatra foi a primeira mulher de Alexandre Balas, mas, em virtude da conspiração

de seu pai, divorcia-se dele, casando em seguida com Demétrio II Nicator. Cleópatra teve dois

filhos de Demétrio. Matou o primeiro e conspirou para que o segundo subisse ao trono.

Depois, tentou envenená-lo, quando foi descoberta e forçada a beber do próprio veneno que

mataria o filho.

É raro vê-se mulher


Que tenha gênio assassino
Cleópatra fez tudo aquilo
Levada pelo destino
No mundo antigo ou moderno
Deixou um exemplo eterno

Lucrécia Bórgia foi dita a mais bela e cobiçada mulher de toda a Roma no Séc. XV.

Os muitos relatos, que ficaram famosos na história sobre a sua personalidade, ressaltam o

desenho de uma criatura frívola, incestuosa, envenenadora de homens (seus maridos),


133

corrupta e interesseira. A menção a essa personalidade é um recurso utilizado no discurso para

imprimir uma “ilusão de verdade” sobre a maldade como essência feminina.

Como esta existiu muitas


De rara biografia
De encantadora beleza
Como Lucrecia Borgia
Tão mimosa criatura
Que por sua formosura
Fez tudo quanto queria

As quatro personagens gozam de qualidades em comum, tais como beleza, astúcia,

esperteza. No campo da sedução amorosa, o ponto em comum é o fato de que todas elas só se

relacionaram com homens de poder e apenas conseguiram obter status e privilégios em

virtude da beleza. Note-se que em nenhuma instância essas mulheres despertaram a admiração

e a paixão em função da inteligência e do caráter.

Assim, é importante perceber que a analogia do poeta, considerando essas figuras

femininas que tiveram repercussão na História, tem como objetivo atentar para a semelhança

das mulheres em diferentes épocas, aclamando, mais uma vez, a idéia de que a melhor “arma”

que a mulher possui para tirar proveito do homem é a “sedução”.

A figura mostrada, a seguir, expõe as principais relações semânticas existentes no


Cordel em estudo.
134

PODER OCULTO
DALILA
A VIRTUDE
TEM PARTE FORÇA FEMININA JUDITH
COM A BELEZA MULHER BONITA
CLEÓPATRA
LUCRÉCIA
FEITIÇO BORGIA

SEDUÇÃO EFEITO DE
TRANSFORMAÇÕES
NO HOMEM HIPNOSE
EMBRIAGUEZ

FICA UM HOMEM ESTÍMULO


VALENTÃO SUJEITO MOFINO SEXUAL
FICA UM HOMEM
CORAJOSO
VELHO SE TORNA
VAIDOSO

FIGURA 16 – Campo léxico-semântico em O poder oculto da mulher bonita.

6.2.17 O que uma coroa deve fazer para se casar

O projeto de “persuasão e dissimulação” constitui o critério necessário ao êxito na

obtenção do casamento imediato. No campo das dissimulações, encontram-se “não mostre

que sabe a ele”, “e faça o que lhe dispunha”, “nem dê corda demais a ele”, “não demonstre

muito”, entre muitas outras expressões.

Há, na verdade, uma espécie de manipulação real ou simbólica que faz com que a

relação da mulher com seu próprio corpo seja mediatizada por sentimentos de culpa e medo

pelos excessos, pela vergonha, pelo complexo de castidade e da honra. A feminilidade é

cheia de contrapontos no ser próprio da mulher: submissa, carente, amorosa, servil, mas livre

para pensar, mudar, agir, indo de encontro às informações que crivam o discurso sobre as

mulheres e estigmatizam as posturas, que, por sua vez, estão sempre carregadas de

significação moral.

Mas cuidado com o rapaz!


Nunca tanto e nem tão pouco...
135

Dê amor somente em doses


Para o cabra ficar mais louco,
Mas tenha cuidado em voce
Para não ficar no rouco.

A expressão “para o cabra ficar mais louco” entra no campo da malícia sexual, a qual

caracteriza a conquista feminina. O vocábulo “louco”, abandonando a acepção freqüente de

desequilíbrio mental, passa, no sentido figurado, a remeter a um caráter de obscenidade ou

erotismo.

Todo um conjunto de regras, que se definem para que a mulher consiga o projeto de

arranjar um bom partido, está, segundo o poeta, amarrado ao seguimento de certas orientações

ou receitas, de que ela, sendo perspicaz e astuta, não deve descuidar:

Se a moça quer um rapaz


E ele tem mais de uma
Se cuide; faça carinho
Não fique roendo a unha
Não mostre que sabe a ele
E faça o que lhe dispunha.

As receitas de sucesso, nas investidas em conquistar um rapaz, entram no campo da

dissimulação, no contexto em que a mulher, sabendo da infidelidade do amado, deve fingir

não sabê-lo. Deve, nesse sentido, trabalhar sorrateiramente para conseguir que ele fique

apenas com ela. Para isso, não deve exceder em seu temperamento, pelo contrário, “a moça

deve ter paciência”, “ser prevenida”, “nunca ficar aborrecida”. É o que dizem os versos:

Para a mulher dizer não


Deve ter o seu jeitinho
Não diz não mas não entrega,
Isso é o segredinho

A expressão “deve ter o seu jeitinho” é o núcleo da malícia e da dissimulação

feminina. Essa expressão é popularmente usada para se referir a uma forma especial, ou

personalizada, de alguém realizar algo. De acordo com o contexto da estrofe, o vocábulo


136

“jeitinho” remete à coquete, ou seja, à astúcia feminina para conseguir despertar a atenção do

homem.

E as receitas de casamento também se estendem à “coroa”, àquela que já está passada

da idade mas que, frustrada na esperança de um casamento, não pode esquecer que:

A coroa se quer casar


Não abra a boca do mundo
Porque quem é oferecida
Só arranja o vagabundo

Se você faz as trezenas


Não espalhe que está fazendo
Pois o rapaz sabendo disso
Se espanta e sai correndo

O campo lexical da prudência feminina organiza-se pelas expressões “não abra a boca

no mundo” e “não espalhe o que está fazendo”.

A “trezena”, oração de súplica a Santo Antônio, santo casamenteiro, só deve ser

realizada em segredo, caso contrário, o então pretendente pode livrar-se do compromisso.

(Sobre a trezena, conferir análise de As duras lamentações...). “Rezar pra ser casada”, “botar

cartas”, “ser otimista” são expressões que compõem o campo lexical das crendices e

tradições.

A expressão “botar carta” está remetendo à prática de advinhação através das cartas de

jogar. Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), a advinhação pelas cartas é muito

popular desde o séc. XVI. De acordo com a combinação das cartas, a pessoa poderá saber o

que lhe espera no futuro. “As copas e os paus são geralmente felizes. Copas e ouros anunciam

pessoas louras. Paus e espadas, morenas. Espadas e ouro dizem dos perversos, infelizes, mal-

aventurados”. Fica entendido, pois, que a mulher pode misturar todas as fórmulas populares,

contanto que consiga obter o casamento tão esperado.

Finalmente, como se tivesse esgotado todas as possibilidades de a mulher arranjar um

marido, o cordelista aconselha, em tom de consolo:


137

Coroa, não fique triste


Não desespere o coração
- É melhor ficar sozinha
Do que casar sem a razão,
Apanhar, viver intranqüila
E o marido deixar na mão

Fica entendido, portanto, que a mulher tem que casar a qualquer custo e que, para

conseguir o seu projeto de casamento, é só usar de jogos de dissimulação e ignorar os deslizes

masculinos, já que esses são produtos da natureza instintiva do homem.

As relações semânticas contidas no folheto em estudo, podem ser melhor

compreendidas a partir do esquema a seguir:

DOIS TIPOS DE MULHER

MULHER QUE CASA MULHER QUE NÃO CASA

É DISSIMULADA TOLA, VAIDOSA E


MESQUINHA

NÃO ABRA A QUANDO NAMORA SÓ


BOCA NO SABE DIZER O “NÃO”
MUNDO

NAMORA MAIS DE UM
NÃO DIZ NÃO MAS
NÃO SE ENTREGA
QUANDO BROTO FOI
NEGAÇÃO
NÃO DEVE SER
MUITO FÁCIL OU
ATOA SÓ ANDAVA NA
CONTRAMÃO

FIGURA 17 – Campo léxico-semântico em O que uma coroa dever fazer para casar.
138

6.2.18 Os amores de José e a traição de Maria

Na tradição religiosa do sertanejo, reminiscência da tradição das grandes religiões do

tronco judaico (judaísmo, cristianismo e islamismo), o adultério representa o agravo maior

porque fere, principalmente, os direitos sagrados do marido. Homem casado, que praticasse

adultério, que copulasse com prostituta, com mulher divorciada ou mulher não judia, a rigor,

não estava cometendo adultério, mas “fornicação”. A fornicação também era reprovada, não

porque significasse a violação do direito feminino, mas porque atentava à virtude social,

diretamente ligada à virtude sexual, que convinha aos interesses masculinos em conseguir

uma prole numerosa.

Mas a fornicação não ameaçava a estabilidade familiar quanto ao adultério feminino.

Do contrário, parece uma maneira de o homem mostrar que era tanto mais capaz que os

outros, ao conciliar suas aventuras extraconjugais, ao passo que aumentava gradativamente a

prole. Por essas razões, o adultério foi encarado como um pecado e proibida enquanto prática

feminina. 11

A questão do adultério, quase sempre presente nos folhetos de Cordel, coloca-se como

o tema principal do texto em estudo Os amores de José e a traição de Maria.

Nesse folheto, é o homem quem corresponde aos ideais femininos, é ele quem ama e

quem é traído. O adultério da esposa corrobora para a depreciação do sexo masculino, no

olhar do cordelista.

O valor da traição masculina nunca foi semelhante ao do adultério feminino. Desde

muito cedo à mulher foi transmitida a idéia de que o homem deve ter um comportamento mais

liberto, que basta a ela fazer vistas grossas às “escapulidas” extraconjugais, se ela deseja

11
A esposa adúltera e o cúmplice tinham, tal como registra o Velho Testamento, como punição, a morte. Os
acusados de adultério eram perseguidos pelas testemunhas que lhes atiravam as primeiras pedras. Se as primeiras
pedras não conseguissem eliminar os acusados, então todos os presentes podiam colaborar com as pedradas que
quisessem.
139

preservar seu casamento. Isso está há muito tempo presente na tradição da sociedade, que vê a

traição masculina, de certo modo, como uma condição inerente à natureza do homem.

Na linguagem do povo nordestino, o homem que trai é chamado de “cachorro”, “sem-

vergonha” ou “safado” - dificilmente vai ser chamado de traiçoeiro ou enganador, uma vez

sendo um acontecimento natural e esperado pela mulher. Já a mulher adúltera, normalmente,

não escapa aos designativos “traiçoeira”, “fingida”, “enrolona”, “rapariga”, “puta”.

A expressão “se axistir catimbó”, nesse contexto, remete aos poderes mágicos

presididos pelos rituais que podem destituir uma relação amorosa, de acordo com o

imaginário coletivo.

Se axistir catimbó
Fizeram para ele e ela
Que ele era o cravo
E ela era o capela
Ela era o carinho dele
E ele era o carinho dela

A palavra “catimbó”, registrada no Dicionário Pernambucano (1976), como

“mandinga”, “feitiçaria”, “sortilégio”, “sessão ou prática de feitiçaria”; no Dicionário do

folclore brasileiro (2000), apresenta-se na acepção de “feitiços para afastar forças inimigas”,

ou para “provocar a correspondência amorosa” ou simplesmente sexual, etc. Vale considerar

que, quem recorre a essas vias, a esses meios ilícitos a fim de conseguir êxito nas relações

amorosas, no imaginário popular, é, por excelência, a mulher.

Na acepção em que é tomada, a palavra “catimbó” parece convergir para o campo do

adultério, que se reflete nos vocábulos “tramanha”, “pilhéria”, “tapeação”, “corrução”,

versadas no texto.

A inconstância do amor e a deslealdade feminina constituem, portanto, a

desestruturação do casamento, da família. A palavra “questão” sugere divórcio ou separação,


140

implica, no contexto da quebra da relação, um conjunto de práticas e sentimentos negativos,

tais como “pranto”, “desunião”, “ódio”, “inveja”, “intriga”.

E terminou em tristeza
Em prato e desunião
Em ódio, inveja e intriga
Soberba, orgulho e questão
Enrasque, rosse e charada
Malvadeza e ingratidão

As palavras “rosse”, “charada”, “malvadeza” e “ingratidão” traduzem o desacato da

mulher para com o marido.

E o poeta referenda uma personalidade dupla da mulher traiçoeira, que se traduz pela

inconstância de suas atitudes para com o homem. As expressões “tanto tu me faz carinho”/

“como faz ingratidão” passam essa idéia:

Ele acarinha ela


Com uma ardente paixão
Tu é minha santinha
Não use de tapiação
Tanto tu me faz carinho
Como faz ingratidão

“Tapeação” é a qualidade, efeito ou ato de tapear. O Dicionário lingüístico de termos

regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra “tapear” como “enganar”, “iludir”,

“burlar”, “lograr”, “embaçar”.

Os designativos “minha filha”, “beleza”, “bonitinha”, “jovem loura”, “meu consolo”,

entre outros, na voz do personagem, recordando o tratamento que reservava à esposa, impõem

uma maior significação no campo da indignação masculina diante do adultério.

As expressões “santinha”, “virgem Santa”, “santa Leonora”, tratamentos usados pelo

marido remetendo à esposa, assinala um contraste em relação às designações também a ela

dirigidas tais como “olhar de Madalena”/ “pedaço de traidora”, “meu cravo”/ “minha

verbena”, “minha vida”/ “pedaço de ambição”.


141

Para finalizar, o texto tenta mostrar que a destruição de uma relação amorosa, que

culmina com o adultério da mulher, é conseqüência de sua insensatez e de seu caráter

inconstante, frívolo e supérfluo.

Para uma melhor compreensão do texto, convém expor o gráfico em campos léxico-

semântico, enfatizando a relação entre “amor e traição”:

NATUREZA SEDUTORA

AMOR TRAIÇÃO GOLPE

SEDUÇÃO
FINGIMENTO

OLHAR LÍNGUA FALSIDADE


ATRAENTE GRANDE

SORRISO
SEDUTOR

CARINHO

PEDAÇO
DE
VAIDADE

FIGURA 18 – Campo léxico-semântico em Os amores de José e a traição de Maria.

6.2.19 Sofrimento das solteiras para arranjar marido

Na mentalidade do povo nordestino, durante muito tempo, foi praticamente

inconcebível uma mulher ficar solteira por opção. Dada a limitação do espaço social

feminino, no transcorrer da sociedade nordestina e mesmo da sociedade brasileira como um


142

todo, pela concepção do casamento como destino único das moças púberes, e, enfim, de todo

o contexto da sociedade patriarcal, a solteirice só pode ser percebida como um “sofrimento”.

No campo do sofrimento, cabem algumas expressões que sugerem a falta de interesse

do homem em assumir o compromisso do casamento: “enrabichar”, “fazer furdunço”, “dizer

tchau e se mandar”, “dispensar”, “ir embora”, “dar no pé e arribar”. Todas elas usadas no

sentido de expressar o engodo aplicado na mulher:

Os homens de hoje em dia


Só querem se enrabichar
Fazer furdunço em motel
Dizer tchau e se mandar

O livro A língua e o folclore da Bacia do São Francisco (1977) apresenta o termo

“furdunço” como “desordem”, enquanto o Dicionário lingüístico-literário de termos

regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra, além da acepção citada, a significação

de “bagunça”, “baderna” etc. Essas acepções deixam entender que a vontade do homem é

somente usufruir de liberdades sexuais para com a mulher.

São parcos, mas bastante expressivos, os verbos que exprimem a culpa feminina pelo

desinteresse do homem, qual seja a falta de cuidado em manter a sua honra, ou melhor, a

virgindade. Esse campo é formado pelos verbos: “se abestalhou”, “se entregou”, “se

descuidou”, “lascou-se”.

Gracinha de Tonho Dito


Se abestalhou com um vaqueiro

E disse vê se desgruda
Gracinha ficou buchuda

Na linguagem do povo sertanejo, “ficar buchuda” significa “estar grávida”, acepção

apresentada no Dicionário de palavrões e termos afins.

Outro obstáculo, que faz com que a mulher perca a oportunidade de casar, tal como é

apontado no folheto, é o homossexualismo masculino. O restrito campo lexical é absorvido


143

pelos termos “gay” e “desmunheca”, “o felá da mãe é gay”. A escolha do termo assinala o

desdém e o desagrado frente ao comportamento afeminado de um homossexual.

Desse modo, todo o engodo masculino e vulnerabilidade da mulher encontram-se no

plano sexual. Fica entendido, portanto, o contexto desfavorável da mulher em relação ao

homem. A mulher perde a chance de casar, fica marginalizada diante da sociedade, enquanto

o homem enaltece o seu ego, dando intensas provas de virilidade -, a gravidez na mulher e o

acúmulo de conquistas masculinas, por exemplo. O esquema a seguir ilustra a análise aqui

vista.
144

SOLTEIRICE
FEMININA

HOMEM
DIFICULDADE DE SOFRIMENTO DAS
ARRANJAR MULHERES
MARIDO
EM FALTA

SE QUISER
MESMO CASAR É
MELHOR
BAIXAR O NÍVEL POLIGAMIA HOMOSSEXUALIDADE
MASCULINA

DESCOMPROMISSO
E LIBERDADE
O FELA DA DESMUNHECA
MÃE É GAY

CONQUISTA TEM MULHER DEMAIS


MULHERES E
ENGANA
VIVE PELO MEI
DO MUNDO
DESAPAIXONA-SE

VAI EMBORA

DEIXA A MULHER BUCHUDA

FIGURA 19 – Campo léxico-semântico em Sofrimento das solteiras para arranjar marido.

6.2.20 Uma mulher traiçoeira

Na Literatura de Cordel, a mulher adúltera é sempre considerada “maldita”. O

simbolismo da serpente, que permeia as narrativas, de modo geral, envolve a mística do

instinto feminino, segundo o princípio da capacidade feminina em seduzir e depois causar

destruição.
145

Em Uma mulher traiçoeira, um dos textos de que dispomos para a realização de nosso

estudo, há em torno da narrativa um movimento dicotômico que, por um lado, exalta a

mulher, definindo-a enquanto ser nobre e divino e, por outro, apresenta-lhe como perigosa.

As vicissitudes da personagem aparecem nas expressões “na mais tenra idade”, “doze

ou quatrorze anos”, nomeando a mulher como um ser frágil, delicado, no período em que

vivencia a menoridade. No campo da inocência, discorrem-se “a ingenuidade”, “a santidade”

ou “divindade”, que convergem para o campo da idade.

Nesse tempo ela contava


Com 12 anos de idade
Um anjo da divindade
Nem mesmo ela sabia
De sua infelicidade

Existe, entretanto, uma linha tênue que separa as duas faces de Helena, as quais o

tempo se encarrega de definir. É ele que faz a deposição da figura casta que se faz na

substituição pelo lado da mulher ameaçadora ou perigosa, afeita aos prazeres passageiros,

carnais e materiais.

Os versos “confiada na beleza”, “julgando que a beleza”/ “de seu corpo não saia”

remetem ao orgulho narcisístico da personagem Helena:

E assim continuava
O seu viver de orgia
Confiada na beleza
Nada em casa fazia
Julgando que a beleza
De seu corpo não saia

O sentimento da parte da sociedade é sempre reprovação. A estrofe a seguir aponta

claramente a indignação coletiva frente ao adultério da mulher:

Todos diziam igual


A infeliz desgraçada
Fazer uma coisa desta
Sendo tão bem casada
146

A expressão “bem casada” é empregada para enfatizar a posição financeira e estável


12
da mulher, em função do matrimônio. A ênfase da reprovação do adultério feminino está

relacionada ao ponto de vista material, que, em última instância, recai sobre os princípios

morais.

Na sociedade patriarcal nordestina, muito se tem legitimado por meio de discurso a

imagem de que o homem, para ser macho, deve ser forte, enérgico, grosseiro. A imagem de

homem sentimental é banida quase por completo do perfil do nordestino. Toda vez que o

homem foge ao perfil assinalado, tratando de modo amável a sua companheira, recebe

sanções negativas da parte da sociedade, que o vê como alguém fraco e sem autoridade.

No imaginário social, o homem que é fiel à esposa, quando “ele não lhe põe as

rédeas”, fica na condição de vítima de uma mulher “aproveitadora e sádica”. Desse modo, a

relação ideal entre um casal apenas ocorre quando é o homem quem exerce a autoridade,

sendo quem tem poderes únicos e exclusivos em virtude de seu sexo.

Nesse contexto, a traição de Helena ao marido é a prova certa de que “ela virou o

juízo”, ou seja, que ela enlouqueceu. E vale dizer que o desequilíbrio mental de Helena

representa o fracasso do marido:

Com mais de 6 memes


Ela virou o juízo
Arrumou outro amante
Sem pensar em prejuízo
Sem o marido saber
Desse grande escandalizo

12
A moralidade nordestina acerca do adultério baseia-se na questão de que a honra do marido, dependente da
fidelidade conjugal da esposa, uma vez que dela depende a manutenção do vínculo matrimonial, segundo os
princípios cristãos ou jurisdições. Essa moral baseia-se na concepção primitiva da mulher como propriedade do
homem, e o adultério feminino, portanto, uma violação dos direitos masculinos.
147

O termo “corno”, no aumentativo “cornão”13, ressalta a característica desfavorável do

marido traído. A intenção do cordelista é demonstrar, em tom satírico e pitoresco, o descaso

que possui a mulher ao trair e furtar o próprio marido e também a desmoralização do esposo

diante da situação:

Ela mais o tal Vadinho


Na maior devassidão
Dizendo a ele eu deixei
Dormindo só o cornão

O verso “dormindo só o cornão” confere o tom de passividade do homem frente ao

adultério da esposa. É a forma verbal “dormindo” quem projeta a idéia de inércia do homem.

A estrofe a seguir expressa essa idéia claramente.

O velho pai dela deulhe


Uma surra de tabica
E disse desapareça
Você comigo não fica
Deram uma surra em Vadinho
Que quase o malandro estica

O verbo “esticar” está na acepção de falecer, perder a vida. O Dicionário lingüístico-

literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra a acepção de “esticar

a canela”, entre outras correlatas, usadas no sentido de “falecer”.

O vocábulo “tabica” é apresentado no mesmo dicionário como brasileirismo “chibata

feita com a haste do vegetal de hastes delgadas e flexíveis”, ou “vara de cipó de que se servem

os almocraves para tanger as bestas”. É importante ressaltar que a surra representa, no

contexto da sociedade patriarcal, a máxima expressão de poder e o absoluto controle dos pais

sobre os filhos, muitas vezes do marido para com a própria esposa.

13
O substantivo é usado para designar o bode, ou animal chifrudo. No uso popular, o termo é empregado, num
tom burlesco, designa o marido que é enganado pela mulher. É também àquele que finge não saber do
procedimento da mulher, nesse sentido, refere-se ao marido conformado, cabrão. (Cf. Calepino Potiguar: gíria
rio-grandense, 1980, p. 129)
148

É pertinente lembrar, também, que no contexto da sociedade patriarcal nordestina, a

educação dos filhos, filhas, dos escravos, enfim, de grupo subordinado ao membro da classe

maior de poder, o patriarca, foi eminentemente exercida à base de castigos.

O esquema, que apresenta as idéias aqui expostas, é assim mostrado:

MULHER
TRAIÇOEIRA
PUNIÇÃO DO
PAI
CAIXA DE
DEVACIDÃO
DEBOCHE DO
MARIDO SURRA DE
TABICA
TRAIÇÃO

VIVER DE
ORGIA

CONFIADA NA
BELEZA

FIGURA 20 – Campo léxico-semântico em Uma mulher traiçoeira.

Toda essa análise léxico-semântica dos vocábulos, realizada, partiu da verificação dos

itens lexicais mais relevantes na tessitura dos Cordéis estudados. Desse modo, os campos

foram estruturados, em função da observância de uma relativa freqüência de palavras em cada

folheto de Cordel, tomados separadamente, ou em função de uma correspondência de sentido

entre os mesmos. Em seguida, destacaram-se as palavras-chave, a partir das semelhanças

entre os classemas e os semas específicos que puderam ser destacados nos folhetos, tomados

em conjunto, nesse momento.

Os macrocampos formaram-se a partir de classes de sentido mais gerais, enquanto que

os subcampos constituíram subdivisões das categorias semânticas ou temáticas presentes nos

folhetos que descreviam a mulher nordestina.


149

Assim, por exemplo, o “macrocampo” idade corresponde a uma categoria de sentido

mais geral, porque nele se incluem lexias que se deixam interpretar como um campo mais

restrito, o qual chamamos “subcampos”.

Para tanto, a disposição das unidades lexicais revelou a existência de cinco

macrocampos: idade, constituído a partir dos subcampos “velhice” e “juventude”; imagem,

abrangendo os subcampos “aparência física” e “vestimenta”; comportamento, no qual

detectaram-se os subcampos “virtudes”, “recato”, “austeridade”; “depravação” ou

“prostituição”; “valentia e coragem”; “sedução e sexualidade”; raça, tendo como subcampos,

a “raça branca” e a “negra” e, finalmente, cultura, considerando-se como subcampos

“religiosidade”, “mitos ou superstições”, “tradições e costumes”.

Apresentar-se-á, na página seguinte, um esquema relacionando os macrocampos e os

subcampos encontrados na análise.


150

VELHICE

IDADE
JUVENTUDE

SEDUÇÃO,
FÍSICA
BELEZA
IMAGEM PADRÃO
VESTIMENTA ROUPA COMO CONSERVADOR
CONSTRUÇÃO
SOCIAL MARGINAL

VIRTUDE, RECATO, AUSTERIDADE

DEPRAVAÇÃO, PROSTITUIÇÃO
VALENTIA E CORAGEM
INTRIGA

BRANCA
RAÇA
NEGRA

RELIGIOSIDADE

CULTURA
MITOS

TRADIÇÕES E COSTUMES

FIGURA 21 – Esquema básico dos principais campos léxico-semânticos dos Cordéis


analisados.

De acordo com a figura 21, o campo da idade compreende uma grande variedade de

vocabulários depreciativos em relação aos estágios de maturidade e velhice femininas. Dado

o contexto da sociedade nordestina, uma mulher de idade mais avançada será fadada à eterna

solidão e solteirice, acalentada nos únicos momentos de devoção a todos os santos, quando ela

assume a função de beata. “Santo Antônio”, “São José”, “Virgem Maria” são exemplos dos

nomes de santos mais invocados.


151

O campo imagem comprova a relevância na questão da aparência, beleza estereotipada

pelos padrões ideo-socioculturais. Nesse ponto, ressaltam-se valores em função da moda, que

atendem às perspectivas de ordem moral e econômica, que integram o conjunto de

vestimentas e adereços: “califon de meio corpo”, “calçola até o joelho”, “saia comprida e

cabeção”, “jóias”, “enfeites”, que fazem parte dos ideais dessa moda.

O campo comportamentos apresenta uma grande variedade de vocábulos que

caracterizam os perfis femininos, segundo os moldes da “mulher bendita ou santa”, ou,

inversamente, da “mulher prostituta e maldita”. Ainda nesse campo, insere-se o modelo de

mulher valente, guerreira e corajosa, ícone reservado à figura das cangaceiras, símbolo de

bravura e destemor, por excelência, da mulher nordestina.

No campo raça, a mulher negra aparece associada a uma série de estereótipos,

relacionados aos preconceitos de cor, de classe e de posição sócio-econômica. Nesse ponto,

ressalta-se o valor social atribuído ao trabalho da mulher doméstica, enquanto mulher pobre,

negra e sem instrução. Os nomes “peniqueira”, “choufer de fogão”, “nêga nojenta” constituem

algumas formas de expressão que caracterizam o contexto de exploração e estigma da mulher

doméstica. A mulher branca e burguesa, em seu perfil de “mãe” reprodutora, ou de filha

“donzela”, figura como protagonista que opera num sistema de poder, dominação e

exploração da outra raça.

O campo cultura revela as crenças de natureza mitológica associadas ao protótipo de

“Eva” e da “Virgem Maria”, desenvolvidos na herança e tradição religiosa católica do povo

nordestino. Esse campo reflete-se praticamente em todos os Cordéis que foram objeto de

estudo para o presente trabalho.

De um modo geral, os macrocampos e os campos específicos se perpassam, em

virtude da reunião de sememas, sendo muito difícil precisar o ponto onde eles se delimitam.
152

Apesar da dificuldade de delimitação temática, até devido à confluência das temáticas

esboçadas nos Cordéis, alguns campos foram detectados com mais freqüência que outros.

Finalmente, a estruturação do léxico na designação da mulher revelou um número

representativo de termos e expressões pejorativas, que refletem um quadro de preconceito em

relação ao sexo feminino.

Durante a análise, pudemos comprovar que o repertório vocabular presente no Cordel

corresponde à fala popular, confirmando a idéia de que a Literatura Popular retrata ou

caracteriza a vivência e visão de mundo do povo nordestino.


153

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho investigou de que maneira a Literatura de Cordel deixa entrever,

por meio do léxico, os aspectos relativos à mulher, inserida na realidade nordestina. De

acordo com os pressupostos teóricos, os quais sedimentaram as análises e que serviram de

base à constatação das hipóteses dessa pesquisa, pôde-se comprovar, a partir do corpus

selecionado para a análise, que Literatura de Cordel, retrata, por meio das expressões e

marcas próprias da oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina. Por meio de

uma análise léxico-semântica dos folhetos, foi possível identificar aspectos da realidade

nordestina, em face ao contexto sociocultural e, por fim, o vocabulário, interagindo com a

cultura, revela, mais do que os aspectos formais da língua, o modo como a mulher é percebida

e tratada na sociedade.

Tais hipóteses foram contempladas durante a análise e ao longo da pesquisa, quando

se procedeu a uma análise léxico-semântica de um número representativo de vocábulos,

visando apresentar um universo de significações com relação à mulher e identificando o

inventário lexical que explicitava a sua condição na sociedade nordestina.

No desenvolvimento da análise, buscou-se perfilar os aspectos da linguagem

regional/popular, na Literatura de Cordel, que reflete a visão do povo nordestino. Em geral,

observaram-se questões relativas a crenças, tradições, religiosidade, sentimentos e costumes

desse povo, que tomadas em conjunto, serviram de apoio à análise léxico-semântica dos

vocábulos utilizados na descrição da mulher nordestina, dentro do universo sociolingüístico.

A investigação esteve centrada no conjunto vocabular que designa a mulher, então

organizado em campos léxico-semânticos, o que permitiu observar uma intensa

transversalidade dos temas presentes nos folhetos de Cordel, no sentido em que eles se

perpassam nos campos específicos.


154

De acordo com os objetivos propostos, o vocabulário temático dos folhetos foi

organizado em campos léxicos, os quais foram distribuídos em cinco macrocampos: idade,

constituída a partir dos subcampos “velhice” e “juventude”; imagem, abrangendo os

subcampos “aparência física” e “vestimenta”; comportamento, no qual detectaram-se os

subcampos “virtudes”, “recato”, “austeridade”, “depravação” ou “prostituição”, “valentia e

coragem”, “sedução e sexualidade”; raça, tendo como subcampos, a “raça branca” e a

“negra”; e, finalmente, cultura, considerando-se como subcampos “religiosidade”, “mitos ou

superstições”, “tradições e costumes”.

É importante dizer que a Teoria dos Campos Lexicais funcionou como método

realmente válido para a depreensão das estruturas significativas globais presentes nos

Cordéis, objeto da realização do presente estudo. Com base em abordagens de lingüistas,

chegou-se a verificação de que a apreensão do significado, nos campos léxico-semânticos, é

inseparável do contexto.

A linguagem espontânea, atravessada por construções pitorescas, característica que

condiz com a própria maneira risonha do povo nordestino de encarar situações cotidianas,

constituiu uma questão relevante no estudo do Cordel dentro da perspectiva sociocultural a

que esteve assentada a análise.

Para tanto, foi possível perceber as características próprias do universo lingüístico da

gente nordestina e, particularmente, o modo como o poeta sertanejo serve-se do vocabulário

regional, muitas vezes aproveitando construções eruditas e clássicas, incorporadas à fala

cotidiana dessa gente.

A propósito da escolha das unidades léxicas, pôde-se comprovar que os cordelistas

expressam, por meio do léxico popular, as novas direções que são incorporadas pela

sociedade, não obstante encare, muitas vezes, com um certo grau de negativismo,

desconfiança e até mesmo intranqüilidade, as inovações projetadas no plano sociocultural. A


155

descrição depreciativa, quando faz menção à ascensão profissional e social da mulher, é um

dado relevante nessa questão.

Pode-se afirmar que há a presença de traços de subjetividade do autor, os quais

expressam sentimentos contraditórios em relação à visão sobre o sexo feminino. Um dos

pontos mais evidentes quanto a isso é que a descrição dos Cordéis apresenta, de um lado, uma

visão encantada e idealizadora de mulher, de outro, uma visão desencantada, ultrajada e

pessimista.

A observância dos fatos relevantes transcorridos em diferentes épocas e a sua

capacidade de retratar os acontecimentos mais recentes é o faz com que o Cordel estabeleça a

ligação com o mundo atual. Essa é, no nosso entendimento, uma das razões pela qual, ele

continua sendo uma fonte inesgotável de comunicação e interpretação da realidade e como

veículo de manifestação cultural popular da região nordestina.

Percebe-se a participação restrita que têm as cordelistas na Literatura de Cordel e que

as mulheres são, em decorrência disso, olhadas, quase tão somente sob a perspectiva

masculina. Esse é um dado relevante que poderia levar a uma nova investigação, a partir da

qual se conduziria uma abordagem lingüística sobre a representação feminina nos Cordéis

produzidos por mulheres.

Resta dizer que este estudo consiste em uma pequena contribuição aos estudos da

linguagem popular e pode ser ampliado, pelo sentido profícuo da problemática, numa possível

tese de doutorado. Enseja-se, pois, que essa pesquisa possa abrir novas possibilidades a

outras, com o interesse na área da linguagem, particularmente sob o nível do léxico, para que,

juntamente com outras que surjam, fornecer subsídios à compreensão da realidade lingüística

do país.
156

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ANEXOS – Folhetos de Cordéis

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