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JOÃO PESSOA, PB
MAIO DE 2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
JOÃO PESSOA, PB
MAIO DE 2006
CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA
JOÃO PESSOA
2006
CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA
BANCA EXAMINADORA
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pesquisa.
À minha família, em especial aos meus irmãos Carlos e Arlindo, sem o apoio e auxílio
Ao amigo Fábio, que fez brotar em mim o estímulo para a realização do mestrado.
Ao precioso amigo Romair, que me acolheu em sua casa, pelo carinho, apoio e
À amiga Clécia, pelo eterno companheirismo e ajuda nos momentos mais difíceis.
Aos amigos Linduarte, André, Rachel, Fernanda pelos momentos memoráveis, nas
pequenas reuniões, festas e almoços durante o curso. Vocês estarão na minha memória para
sempre.
À querida Adriene, pela amizade sincera de todas as horas, que sempre esteve presente
e a quem pude recorrer nas horas mais angustiantes. Você, com sua bondade e suas
desespero e solidão.
À minha querida sogra, a quem devo expressar a mais sincera gratidão, pelo apoio em
todas as circunstâncias.
À companheira de longa data Ana Lígia, por não me ter faltado nos momentos de mais
sufoco.
À Gerlane, Maria Luíza, Linélia, Lurdinha, Lúcia e Janka, a vocês devo a eterna
Nininha, pelo constante apoio e por terem acreditado que meu esforço valeria à pena.
“a significação de um signo verbal não é
autônoma, isto é, não pode nem se formar nem
aparecer fora dessa unidade, que é linguagem – e
– pensar, palavra – idéia.”
Schaff
RESUMO
selecionados em campos, num corpus constituído por vinte folhetos de Cordel versando sobre
a mulher, que permitiu, desse modo, a chegar-se à interpretação das estruturas léxicas, neles
existentes. A partir daí, foi possível organizar-se cinco “macrocampos”, em que a mulher
aparece retratada nos mais diversos níveis, tais quais emocionais; sociais; culturais etc.
represention of the female role in Cordel Literature. The theoritical referencial to this analysis
is mainly based on Lexicology, very specially the Theory of the Lexical Fields, of the
Literature. The employment of this theories allowed an organization of the in field selected
data in a corpus compounded of twenty Cordel booklets, what allowed, this way, to reach the
interpretation of the lexical structures which exist in them. From this point on, it was possible
to organize five main fields where the woman is portrayted in several levels, such as
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 12
2 LEXICOLOGIA .................................................................................................................... 15
4 A LITERATURA DE CORDEL........................................................................................... 39
1 INTRODUÇÃO
nordestina e é uma das mais autênticas formas de manifestação da Cultura Popular da região.
Nos últimos anos, testemunha-se o crescente interesse que a Literatura Popular tem
um povo, de sua identidade cultural, a partir dos dados fornecidos pelo inventário lexical, que
Sobre a Cultura Popular, vejamos o que assinalam Cariry e Barroso (1982, p.19):
A opção pelo estudo da mulher, no nível lexical, dá-se em virtude de ser a figura
feminina uma constante nesse tipo de literatura, objeto de descrição nas mais diferentes
patriarcal.
figura masculina, desaparecendo dos locais públicos, à medida que alimentavam a idéia da
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superioridade do homem. Cresciam, dessa forma, acreditando que o sexo masculino era
lingüística da região nordestina e com vistas à consecução dos objetivos específicos, pretende-
poderão servir à elucidação das questões tomadas como hipóteses deste trabalho, assim
delineadas: a Literatura de Cordel revela, por meio das expressões e marcas próprias da
oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina; por meio de uma análise
concatenada de idéias em relação aos postulados teóricos ancorados para análise do corpus.
Os quatro primeiros capítulos serão pautados no enfoque das questões em torno da língua,
dessa pesquisa não seja sociológica, tomar-se-á esse estudo com vistas a aprofundar a
semânticos.
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2 LEXICOLOGIA
João de Melo
tempo, esteve à mercê da velha tradição gramatical. Ainda na primeira metade do século vinte
não se tinha definido um método mais efetivo no tratamento dado ao assunto. Foi preciso
então esperar a segunda metade do século para que surgisse um estudo mais criterioso,
línguas.
estruturação do léxico foram e ainda o são, de fato, matéria complexa para os pesquisadores
transparente ou homogêneo.
A parte da Lingüística que vai dar conta do estudo do léxico, interessando-se pela
Mantendo o intercâmbio com outras áreas do saber lingüístico, tais como a Semântica,
abordagem sobre o léxico e a sua eminente relação com a unidade sociocultural. A propósito
desse assunto, enfatizar-se-á a relação que existe entre língua, cultura e sociedade. Atenção
especial será concedida à Hipótese Sapir-Whorf, numa tentativa em explicitar as bases mais
sólidas em que se encontram as posições desses teóricos a respeito da relação língua e cultura.
relações sociais, “exatamente porque os homens sempre se comunicam uns com os outros por
seus membros.
Embora apresente em suas faces uma parte intangível, uma estrutura (formal) que
conjunto social, do contexto de uma época, de uma dada história e cultura. A língua varia
cultural em que estes vivem. O mundo do falante é assim um mundo lingüístico – à medida
que a língua serve de interpretante desse mundo biossocial. Nas palavras de Câmara (1979, p.
16):
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homem com a sociedade, esse estudo não pode deixar de envolver o elemento cultural que
permeia tal relação. O domínio em torno do léxico poderia sustentar reflexões mais apuradas
da interação do indivíduo com sua cultura, e revelar mais sensivelmente a relação entre práxis
social e linguagem.
representação coletiva. São eles que fazem existir o que se enuncia. Nesse sentido, o universo
apreciação da realidade.
Acresce-se, ainda, segundo a visão da professora, que embora todas as línguas estejam
embasadas num processo de sistematização, cada língua será moldada de acordo com a
conceituação de mundo dos membros de uma sociedade particular. Por isso, não é difícil
perceber que a norma lingüística condiz normalmente com a freqüência de uso dos signos
Com efeito, o léxico, cujas formas contemplam as experiências sociais, reflete todo
consideram relevante, ou seja, às suas crenças, aos seus interesses e às suas atividades.
No estudo das línguas, o que permanece em toda a discussão referente ao léxico diz
vinculados à realidade social e cultural, motivado pelas mudanças contínuas. Desse modo, a
palavra só pode ser vista enquanto imersa num dado contexto. O significado é extremamente
elástico, o que elimina da língua a chance de qualquer lance de arbitrário ou acidental, nas
Fato é que, com a evolução dos tempos, o repertório de signos lexicais variou
expansão da língua foi o próprio homem quem empreendeu - realizando novos projetos,
assinalando novos rumos, juntamente com outros membros de sua comunidade, motivando,
A causa primeira da expansão do léxico parece ter sido o contato mais freqüente entre
os povos; a expansão das relações entre as nações nos mais variados contextos socioculturais;
No âmbito da fala, as alterações do léxico também podem ser evidenciadas com mais
nitidez. Os indivíduos, em situações espontâneas e em condições reais de uso, seja pela busca
incorporando novas palavras no universo das línguas. Muitas dessas criações léxicas
vida passageira, servindo única e tão simplesmente para a obtenção de uma força expressiva
Um outro dado relevante sobre as formas neológicas, dá-se, o mais das vezes, pelo fato
as criações lexicais normalmente surgem com fins de superar essa deficiência. A rigor, é no
nível da fala, onde o léxico parece adquirir maior fluidez, que normalmente se instala toda
antropólogos Boas e Sapir, tornou-se notável na Lingüística Americana dos anos 50. Foi a
partir das idéias célebres de Franz Boas, impressas no Handbook of American Indian
Languages, que Sapir formulou sua problemática. (BOAS apud MARCELLESI e GARDIN,
1975, p. 29).
fenômenos observados pelos falantes das línguas tomadas como objeto de análise.
Como se vê, apesar da doutrina dos etnólogos americanos ser comumente associada à
pois, sublinhar as posições em que divergem uma e outra doutrina. Nessa perspectiva,
a) Os argumentos dos filósofos da linguagem são especulativos, enquanto que, toda a teoria,
línguas;
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b) Outro aspecto que vale salientar a respeito dessas teorias é que, enquanto os filósofos
americanos baseiam-se em dados coletados por modelos definidos por eles próprios, face
ao sistema de idiomas recém descobertos. Por meio da realização desse trabalho empírico,
desconhecidos àqueles notados em línguas européias. Isto permitiu que eles chegassem à
as dos europeus.
É importante considerar ainda que, embora tenham sido Boas e Sapir quem
desenvolveu a investigação; mais que isso, foi ele quem formulou o conjunto mais radical da
socialização. O isomorfismo entre a língua e cultura não pode ser concebido numa visão
simplista, não existe correspondência simples entre a forma de uma língua e a forma geral de
uma cultura daqueles que a falam. Entende esse estudioso que o efeito organizador da
experiência de mundo possui relação restrita com o léxico de uma língua. Este, por sua vez,
“constitui um indicador extremamente sensível da cultura de um povo”, mas não existe, além
do vocabulário, nenhum dado lingüístico que exerça um efeito modelador sob a percepção de
mundo.
Sapir sugere, desse modo, que há limite para a incorporação dos dados lingüísticos à
cultura de um povo. Não se pode afirmar, segundo ele, que à mesma proporção que a cultura
de um povo evolui, evolui também a língua. Desse modo, enquanto a cultura insere-se nos
conjunto de reflexos e anseios de vida em sociedade, a língua evolui de modo mais lento.
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que exerce a função de moldar as idéias, que as imagens mentais são definidas, estruturadas
manuais didáticos para o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. É lícito então afirmar,
segundo as premissas dessa teoria, que as línguas delimitam a experiência vivida pelos
da Psicolingüística nas décadas de 50 e 60, parecem ter sido motivados pelo problema exposto
se baseia tal doutrina, muitos trabalhos foram realizados na época com o intuito de combater
envolvem o conceito de cultura, envolvendo a sua relação com a língua, é válido assinalar que
grupo social. Tais códigos são fabricados, estabelecidos na própria estrutura social. Nesse
sentido, os indivíduos devem interpretá-los e segui-los para que assim sejam aceitos em
sociedade.
linguagem constitui a expressão da realidade cultural e social de um grupo. Toda a vida dos
signos está imbuída numa semiose que envolve o estatuto de estrutura gramatical e semântico
de uma língua.
simbolização presente entre uma e outra sociedade, conseguimos chegar mais perto da
compreensão do modo de vida de um povo, de seus hábitos de vida, seu conjunto de crenças,
uma ou outra grandeza age primeiro - se é a língua que influencia o modo de pensar dos
indivíduos ou se é a cultura que atua diretamente na língua. Ou, mais precisamente, qual o
limite da intervenção das categorias lingüísticas no pensamento das pessoas, dos falantes de
Importa observar que, uma e outra, língua e cultura são realidades que se
complementam. Diante dessas posições, é possível admitir que a colisão entre essas duas
grandezas ocorre quando o indivíduo falante exterioriza um conceito, antes formado nas
A posição proposta é a de que língua e cultura constituem realidades distintas, mas que
se a versão mais fraca da hipótese, que considera o léxico como o elemento lingüístico, o qual
das línguas.
A versão forte da Hipótese do Relavismo Lingüístico foi desenvolvida por Whorf, que
codificação lingüística, verbal ou não, que fazem parte dos jogos comunicativos. A língua
tece a organização do conteúdo informacional contido nas mentes do indivíduo e traz, em seus
outras palavras, o modo como o indivíduo se percebe está relacionado diretamente ao modo
como ele estabelece e mantém relação com outros indivíduos e com o mundo.
A Teoria dos Campos Lexicais tem uma longa tradição na Lingüística Românica. Na
Thesauru of English Words and Phrases, publicado em 1852 por P. M. Roget, constitui o
própria Lexicologia.
A Teoria dos Campos adquiriu grande êxito com as pesquisas na área de Lexicologia a
lingüistas reafirmaram a tese da “língua, espelho do povo que a fala”. Para eles, tanto a
pensamento, são motivadas pela linguagem. Pensavam, pois, que os “campos semânticos”
seriam organizados de modo particular, segundo cada língua. Daí, essa teoria passou a ser
Campos teve para o desenvolvimento da Semântica Moderna, o qual se chegaria a partir das
realizações de Trier. A Teoria dos Campos teve importância, no entender de Ullmann, pelas
pensamento.
Embora tenha sido Trier o grande cultor da Teoria dos Campos, as referências
bibliográficas do período anterior aos de seus trabalhos, traziam formulações que já atentavam
semânticos” que, segundo ele, são como “la agrupación de um número limitado de
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expresiones desde um punto de vista individual”. O autor distingue ainda três tipos de
1976, p. 100).
A definição elaborada por Ipsen, em 1924, foi de fato a que mais claramente tratava da
questão dos campos, anteriormente a Trier. Na fórmula de Ipsen, as palavras de uma língua
estariam todas reunidas em “campos semânticos”, “como en un mosaico, una palabra se une
aqui a la outra, cada una limitada de diferente manera, pero de modo que los contornos
queden acoplados y todas juntas queden englobadas en una unidad semántica de orden
superior, sin caer en una oscura abstracción”. (IPSEN apud GECKELER, 1976, p. 103).
próprio Trier quem confessa a influência dos estudos anteriores em sua teoria:
lingüísticos delimitam-se uns aos outros, ou seja, é na confluência dos elementos que se
obtém a significação. Todos os signos apresentam-se concatenados por uma rede de relações
significativas que os ligam sempre a outros termos do sistema. Consiste, na verdade, numa
Trier, as palavras formam, a partir de um campo conceitual, uma mútua dependência. Além
disso, por trás de toda a estrutura, do conjunto lexical, há sempre uma significação. A essência
1976, p. 119).
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A teoria dos campos impressionou vivamente alguns dos discípulos de Trier e fez
florescer diferentes definições rivais dos campos semânticos, diante dos conceitos
Uma das críticas mais recorrentes, com relação à doutrina trieriana, é com relação às
Trier utiliza os termos “campo léxico”, “esfera conceitual” e “campo lingüístico”, sem
estabelecer distinções dos limites de uso de cada um dos termos em específico, causando,
Nos anos 50, a teoria de campo, nas linhas de Trier, seria reavivada pela experiência
teórica e prática de L. Weisgerber. Não foi sem razão, pois, que a doutrina passou a ser
conceito de “esfera conceitual”. Definindo com mais precisão o método de análise lingüística,
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campo léxico.
526), também conduz uma abordagem sobre os campos, pondo em enfoque a questão da inter-
relação entre língua e sociedade. Em 1953, Matoré publica La métode em lexicologie um ano
após ter publicado a tese de doutorado Le vocabulaire et la société sous Louis Philippe.
Dando uma roupagem sociológica ao método, Matoré previa uma Lexicologia concebida sob
características específicas de uma comunidade. Embora tenha ido longe demais no problema
dimensão social da língua, fato é que o léxico consiste no patrimônio social de uma sociedade.
estrutura vocabular de uma sociedade depreende o universo conceitual, a visão de mundo que
contribuição aos estudos lexicais, uma vez que se inserem numa abordagem sócio-
etnolingüística.
mais recentes. “O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo” – observa Laplatine
(1988). A verificação de que as sociedades divergem entre si quanto ao modo de vida eclodiu
Pode-se dizer, então, que a elaboração do pensamento do homem sobre ele mesmo é
descrição e comparação dos povos, passou a constituir um saber científico, tomando como
objeto de conhecimento o “próprio homem”. É no final do séc. XVIII que se tem, pela
primeira vez, um estudo sobre as “culturas humanas”, com métodos até então utilizados
interessados em construir uma nova idéia do que seja cultura. Fato é que, tendo passado mais
polêmicas sobre a questão da cultura têm se tornado cada vez maiores entre os historiadores,
antropólogos e sociólogos e demais cientistas das ciências humanas. Isso atesta que o
assunto, tais como artes plásticas, arquitetura, literatura, manifestações lúdicas e religião, mas
orientação teórica assumida pelo pesquisador. De fato, todo discurso científico deve
demonstrar uma determinada posição a respeito do tema problematizado – “não porque haja
somente uma direção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: é necessário escolher”.
Em geral, a primeira preocupação dos cientistas em definir o que é cultura, diz respeito
à questão de sua origem. Essa remete a outras duas que estão sempre presentes nas
formulações dos analistas, quais sejam: “o que faz do homem um ser cultural?” e “o que é
Embora muitos autores atribuam peso distinto ao conceito de cultura, parece haver
consenso pelo menos no tocante a duas noções: primeiro, que “não existe sociedade sem
cultura” e segundo, um dos aspectos mais importantes e que está na base desse conceito, é a
“significação”.
Um dos mais célebres antropólogos franceses, Claude Levi Strauss (1976, p. 45),
assinalou que a cultura teria seu surgimento a partir do momento em que o homem
grau de proibição das relações sexuais entre o homem e as categorias de mulheres da mesma
uma determinada sociedade. Essas seriam mantidas de forma muitas vezes “inconsciente” na
nervoso”. Somente o homem atingiu tal nível de complexidade e adaptabilidade que permitiu
o desenvolvimento de uma elaboração cultural que se não é a principal, é uma das fontes mais
homem o fator que o difere de outros animais. É, pois, com essa capacidade que o indivíduo
pode controlar coisas tão simples como a hora, a caça e mesmo produzir determinados
artefatos materiais e simbólicos. Aquilo que é considerado arte: pintura, escultura, etc, enfim,
Pelo exposto, dá para ter uma idéia da dimensão do problema que é definir cultura. A
Essa pesquisa não busca trazer respostas definitivas, nem muito menos julgar ou
desacertos. Contudo, acredita-se que as diferentes posições a respeito do tema podem servir
sociedade.
p. 15), que caracteriza a cultura como “sistema simbólico”. O autor defende um conceito de
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pelas pessoas que convivem num determinado sistema cultural. Esses devem ser vistos, na
concepção de Geertz, não através de uma descrição densa, mas “semanticamente densa”.
práxis social o sentido, até que se possa compreender o valor que está por trás de um
qualquer sociedade. E concebendo a cultura numa estrutura que se opera através de “signos
Deve-se atentar, pois, para o fato de que os símbolos se constituem num universo
comportamento, por mais simples que aparente ser, deverá ser visto ou interpretado em
função do que a cultura estabeleceu para si, em termos de implicação e sentido. Assim, cada
estabelecidas e que “os atos são marcos determinados”. Um exemplo disso é que, ao
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encontrar-se em terras alheias, o indivíduo logo se depara com tradições diferentes da qual
não está acostumado e sente-se, de certa forma, “perdido” no novo ambiente. Em outras
palavras, sem entender a sociedade e a cultura com suas próprias relações sociais e valores, é
impossível interpretar e entender uma realidade divergente e também muito difícil conviver
A participação dos indivíduos na cultura de uma sociedade não pode ser encarada
como um evento fortuito e fora de contexto. Como considera Hoebel (1952, p. 212), os
Qualquer evento criativo e manifesto não pode, em hipótese alguma, ser classificado como
categoricamente Hoebel (op. cit., p. 212), embasando-se nas idéias de William Graham
Sumner:
Contudo, é preciso salientar que as normas não se aplicam uniformemente por toda
uma sociedade. Existem determinados modelos de conduta que valem sem distinção para
todos os membros de uma sociedade, são as chamadas normas universais. Essas, como a
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própria denominação indica, dizem respeito às convenções que se aplicam de maneira global
Observe-se ainda que nenhuma sociedade é homogênea. Existem padrões culturais que
variam de acordo com cada sociedade em específico. Determinadas distinções sociais são
Assim, as distinções presentes nas relações baseadas nessas duas categorias podem ser
consideradas como norma universal. Contudo, é a dinâmica social interna que define os traços
grupos de idades e mesmo de gerações diferentes. “Isto significa que existem subgrupos
comportamento, as quais se aplicam apenas aos seus membros. Essas normas são conhecidas
Assim, embora algumas delas possam ser partilhadas por todos os adultos é bem
possível que as mesmas não sejam compartilhadas por crianças, do mesmo modo que muitas
idéias e atividades adultas são partilhadas apenas pelos membros de certos agrupamentos em
socialmente não obedecem a uma estrutura permanente e estática, alheia a inovações no eixo
do tempo. Muito pelo contrário, as culturas estão sujeitas a mudanças e elas se alteraram com
inventos, angariar novas conquistas, está sempre redefinindo e reformulando seus conceitos,
profundamente diferente da que temos hoje em dia, seja no seu aspecto econômico e político e
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geográfico, seja quanto ao desenvolvimento nas relações de classe. Enfim, toda a conjuntura
Como ressalta Tomasello (2003, p. 5), “as tradições e os artefatos culturais dos seres
humanos acumulam modificações ao longo do tempo”. Para ele, muito das mudanças
culturais significativas nas sociedades, tais como as que são operadas no sistema religioso,
político e econômico num grupo social, são resultantes de cooperação, “tanto simultânea
como sucessiva ao longo de gerações e de muitas pessoas e de uma maneira que nenhuma
questão das mudanças culturais de que trata Tomasello. O fato é que as mudanças são
sociedade sofre transformações e com elas também os indivíduos incorporam mudanças, mas
é correto afirmar que as transformações não ocorrem abruptamente. Com efeito, as mudanças
não são fortuitas; haverá sempre uma ligação entre um evento cultural novo e um mais
recente; ademais, elas são organizadas paulatinamente a partir de um processo coletivo, como
retrocesso desse processo. Segundo Tomasello (Ibid., p. 6), a evolução e acumulação das
experiências culturais só foi possível graças ao chamado “efeito catraca” - através do qual um
produto ou prática recém-inventada preserva-se e aperfeiçoa-se até que surja uma outra forma,
seja, promover a transposição da aprendizagem cognitiva de uma geração à outra. É o que diz
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Tomasello (2003, p. 9): “O mais importante é que a evolução cultural cumulativa garante que
a ontogênese cognitiva humana ocorra num meio de artefatos e práticas sociais sempre novos
que, em qualquer tempo, representam algo que reúne toda a sabedoria coletiva de todo o
grupo social ao longo de toda a sua história cultural”. Simplificando, a evolução cultural
Todos os seres humanos estão destinados a viver num certo tipo de ambiente social
para se desenvolver cognitiva e socialmente. Tal ambiente social, a cultura, é, como ressalta
Tomasello (Ibid, p. 109), nada mais do que o “nicho ontogenético típico e exclusivo da
Idéia bastante semelhante a essa é a que é apresentada por Kroeber apud Laraia (1975,
p. 70), ainda que numa perspectiva diferente. Este define a cultura como sendo “um meio de
determinado pela cultura e o homem é um ser modulado pela cultura, ou seja, age de acordo
com o modelo de cultura que lhe foi transmitido. Ele necessita, pois, de construir seu
“habitat” social. E a cultura permite ao homem não somente adaptar-se em seu meio, mas
também este meio adaptar-se ao próprio homem, as suas necessidades e projetos, passando
qualidades inerentes e distintas das de outras espécies primatas porque é 1) filogética (tem
O ponto central que norteia toda essa teoria é que a cognição é um processo que se dá
que se forma historicamente. É por meio de uma cultura que o indivíduo constrói sua
identidade, enquanto se reconhece através do outro. Estar inserido numa coletividade é o que
transmissão cultural e cumulativa que pode ser entendida, nesse caso, como “uma forma
2003, p. 56).
catraca” que, como já foi dito, consiste na herança e reformulação de uma prática ou de
artefato simbólico e lingüístico. A segunda diz respeito à colaboração mútua existente entre os
O processo de sociogênese humana ocorre toda vez que é criada alguma coisa, através
para compreender os outros como seres intencionais iguais a si mesmo [...]”. (Ibid., p. 54).
é resultado das relações possibilitadas pelo uso da linguagem, da mesma forma que o
das experiências comunicativas. A língua, em função dos princípios que acabamos de afirmar,
38
objetivo.
os quais procuraram estabelecer a relação entre língua, cultura e sociedade, far-se-á uma
4 A LITERATURA DE CORDEL
inicial pela divulgação de histórias tradicionais, as ditas novelas de cavalaria. Ao lado dessas
sociais que iam adquirindo cada vez mais a fisionomia do povo e “caindo em seu gosto”. O
Cordel traduzia-se assim como fonte de informação, bem antes do jornal existir.
A origem do nome Cordel está relacionada à forma como eram vistos os folhetos -
dependurados num cordel (corda) ou barbante quando expostos nas casas ou feiras livres onde
folhetos eram encarreirados e presos a uma corda para serem vendidos, como hoje ainda o
são.
É comum encontrar nesses locais o próprio vendedor, poeta ou cantador, que canta ou
recita versos e seduz o seu público que se aproxima do artista querendo ouvir as suas
histórias. Para tornar a narrativa ainda mais atraente, o cantador muitas vezes a interrompe,
causando expectativa por parte do ouvinte que, para conhecer o final da história, deverá
“comprar o folheto”.
Nordeste, tem raízes lusitanas, expande-se e mantém-se entre nós, assim, como declara
Cascudo (1978, p. 170): “Esses livros vêm do século XV, do XVI, XVII e continuam sendo
Marcada pelo conjunto de características que traduzem o seu aspecto volante, além da
temática que desenvolve, é por meio da linguagem que a Literatura de Cordel mais evidencia
Segundo Batista (1977, p. 4), fatores de formação social contribuíram para que a
estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, de maneira esparsa. Em Belém
linguagem tipicamente do povo e mantendo distância de toda literatura que siga os moldes de
simonia vulgares”.
o que torna a Literatura de Cordel viva ainda nos dias de hoje, apesar de todas as dificuldades
porque, na verdade, resgata os aspectos vivos do mundo. Não obstante, por meio de uma
linguagem bastante simples, comunica-se com o povo, numa maneira particular dos
semântico é bastante peculiar, reflete o repertório vocabular presente nas feiras livres do
nordeste.
gráficas especializadas e de autores e/ou ilustradores, bem como todos os processos ligados à
circulação da poesia popular, ficariam prejudicados. Entre as causas possíveis dessa crise,
urge apontar a disseminação dos meios de comunicação de massa, tais como o rádio e a
por uma reviravolta, em inícios da década de 70, garantindo novamente sucesso junto ao
público. Nesse período, a crescente indústria da comunicação passa a se valer desse tipo de
manifestação literária e grupos artísticos tentam recriá-la; fazem-se inclusive filmes, novelas,
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gradativamente.
nordestina e raízes do povo e em linguagem do povo, podendo ser vista como um modelo de
identificação dessas massas, ela não constitui objeto apenas de interesse ao público popular.
por volta das décadas de 60 e 70, inclusive de teóricos de outras nacionalidades que não a
brasileira, como Mark J. Curran, Candance Slater, Raymond Cantel ou Joseph M. Luyten
jornalismo popular, nos qual se versava os assuntos do cotidiano das massas. Desde então os
estudiosos tratariam a Literatura de Cordel como crônica poética e histórica do século XX.
Um dos pontos que mais chamou a atenção desses cientistas é o estilo particular do
cordelista, que consegue reunir na composição poética uma mistura de fato e ficção. O poeta
popular, ao mesmo tempo em que relata fatos transcorridos no dia-a-dia, vale-se do poder de
criação e de certa liberdade para expressar os dados históricos. Na crônica de Cordel o poeta
não emite a notícia de maneira imparcial, como ocorre no jornalismo típico. A transmissão de
qualquer acontecimento é sempre projetada sob o olhar crítico do poeta, que compartilha com
os processos históricos que movem o discurso no Cordel. Esse cientista da Cultura Popular
[...]o poeta cordeliano nem pode nem poderá tratar o grande acontecido
como um fenômeno jornalístico isolado. Ele vê o evento sob a perspectiva
de sua própria cosmovisão, e igualmente importante, da sua tradição literária
popular, isso é, da tradição cordeliana total. Por isso, escreverá utilizando
uma linguagem popular, às vezes emprestada do romance, aquela narração
cordeliana de amor, sofrimento e aventura de discurso heróico e de ficção.
[...].
Entre eles estão os “imortais” Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista,
Manoel Tomas de Assiz, Zé Vicente, João Martins de Ataíde, Cuíca de Santo Amaro,
Rodolfo Coelho Cavalcante, José Soares Franklim Maxado, Manoel d’Almeida, Severino
Sebastião Nunes Batista, Orígenes Lessa, Veríssimo Melo e Mário Souto Maior, os maiores
atravessam a História do Brasil e passa a servir como documento vivo de cem anos de
realidade do país.
Atualmente, ainda que com uma produção literária mais esparsa, os poetas cordelistas
têm conseguido superar as dificuldades e a falta de apoio por parte das instituições sociais. O
fato de que a Literatura de Cordel consegue, ainda nos dias de hoje, atrair um público leitor
da realidade.
informações fundamentais a todos àqueles que se ocupam em pesquisar a poesia popular, nos
quais se incluem os dados sobre origem, função e evolução do Cordel nordestino; a variedade
mulher destaca-se com relevância nos assuntos mais versados na Literatura de Cordel,
inapelavelmente nos remeterá ao tema família. Esse parece ser o eixo central, através do qual
perfil patriarcal que, na visão de um Gilberto Freire, configurou-se nas relações sociais, nos
início da colonização, mas também com relação às mudanças e incorporação dos novos
padrões de vida, assimilados com o intenso movimento migratório das populações rurais para
brasileira dos séc. XVIII e XIX viviam, desde cedo, à espera de um marido. Chegava à
puberdade e já era tempo das meninas deixarem os lares, de infância tão pouco vivida, para
Alicerçado pelo ideal romântico de uma união feliz, marcada pela paixão e pela moral
cristã religiosa, o casamento era para as jovens da alta e média classe de nossa sociedade, do
qualidade, de um lado, que tornou a mulher burguesa, durante a fase de colônia e de império
no Brasil, e, de outro, a falta de expectativa da sociedade para com o sexo feminino, o que a
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tornou vulnerável à figura do homem – pai ou marido. Nas palavras da autora: “Tudo indica
que a mulher branca da casa-grande, abafada pela rigidez da educação que recebia, pela falta
Não raras vezes, essas moças eram obrigadas a casar contra a vontade, mesmo não se
conformando com a escolha do esposo, feita pelo pai. Em geral, o casamento, mesmo na
segunda metade do séc. XIX, dava-se com o objetivo último de usufruir vantagens
O outro destino que se podia cumprir na vida das moças, com exceção do matrimônio,
era a vida celibatária. Restava, pois, tomar para si ou a vida de solteira, junto aos pais, ou a
Ter uma “vida de solteira” era para a mulher da época, nessas instâncias, bastante
desvantajoso, uma vez que teria de continuar a mercê de seu pai e dependente financeiramente
deste, impossibilitada de ter vida pública, a não ser em companhia da mãe, além disso, não
usufruiria seu papel sagrado de mulher (esposa e mãe), tendo apenas o consolo de poder
Igreja, mas apenas para a mulher casada. A mãe solteira (note-se que não há uma
nessas condições.
dominante, a solução ideal para que essas se conservassem ainda donzelas. “Não eram raros
má conduta e, embora menos freqüentes, maridos havia que para aquelas instituições
Vê-se, por conseguinte, que o único destino satisfatório para a mulher perante a
íntimos aos parentes, como prova de que tinham sido desfloradas pelo esposo nas núpcias. Se
não exibisse os panos, aparecia logo o prognóstico, - “Aquela que não mostra os panos”, -
como que pondo em dúvida a condição casta da nubente. A exibição da prova de virgindade
ocorreu do Rio Grande do Norte a Alagoas, e muito provavelmente, para o norte e para o sul
Nessa região, onde as diferenças entre os papéis feminino e masculino foram ainda
mais cristalizadas pelo tipo de organização patriarcal que se estabeleceu na região, cuja
idealidade repousava na vontade masculina, não era de se estranhar a aceitação resignada por
parte da mulher, “o par que lhe era mais do que sugerido – praticamente imposto - pela
noivos. Conta-nos Faria (1996, p. 59) que a escolha dos noivos foi, muitas vezes, motivo de
surpresas para os jovens, postos diante do outro, pela primeira vez, no dia da cerimônia.
de família, as cerimônias das filhas dos ricos fazendeiros da região nunca eram realizadas na
mandavam-se matar uma novilha gorda, carneiros, porcos, perus e galinhas. Na sala, exibiam-
se um altar enfeitado cuidadosamente pelas mãos das mulheres mais prendadas. (FARIA,
1996, p. 60).
48
Não foram raras as ocasiões em que a moça, descontente com a escolha do pretendente
e enamorada de outro rapaz, deixava-se raptar. A moça raptada era deixada em casa de algum
amigo da família importante, que mandava, no amanhecer do dia seguinte, comunicar o fato
aos pais. 1
Caso a moça raptada não se casasse, ficaria mal vista por toda sociedade. Nessas
condições, seria preciso “lavar a honra” do pai com a morte ou castração do malfeitor. “A
vingança era mandada fazer pelo pai ou irmão para limpar a honra da família, numa sociedade
em que a vindita era muito usual e os matadores profissionais nunca faltavam”. (FALCI,
1997, p. 247).
O casamento das moças fugidias contava com cerimônias bem mais modestas. Com
número de pessoas restrito, as mais próximas da família e os padrinhos dos noivos. Após a
moça, à residência dessa, implorando a benção e perdão ao pai da moça. (FARIA, 1996, p.
61).
desenvolver a sua especialização nas prendas domésticas. Enquanto que os homens de elite
tinham o privilégio de estudar fora, as mulheres quando muito aprendiam a ler e a escrever,
com auxílio de professores contratados pelos pais, em aulas ministradas na própria casa.
Mantinham-se cada vez mais longe das ruas as moças, à medida que se mantinha a “boa
educação feminina”.
Nesse Sertão de hierarquias rígidas, tal como advertiu Falci (1996, p.60), distinguiam-
se, pelas divisões de classe sociais e econômicas, os homens das mulheres, os ricos dos
1
Na casa-grande nordestina, foi comum que os quartos das filhas-moças ficassem sempre no centro do edifício
justamente para evitar os perigos de rapto (FONSECA, 1997, p. 531).
49
esta vivendo totalmente a mercê de seus senhores, exercendo os mais variados serviços, na
doceira, funções que foram incorporadas ao espaço das senhoras de elite, ou mais
como as mulheres de elite, desde cedo, tiveram que encarar os mesmos afazeres domésticos e
Concebendo a família como a “célula mãe da sociedade” e uma vez afirmando nela
haver os princípios mais sagrados, a igreja católica exerceu durante o período colonial
1984, p. 38).
assegurada pela benção do amor divino, assim proclamava o texto de Leão XIII, no Arcanum
Divinas Sapientiae (sobre a constituição da família), com data de fevereiro de 1880 (Ibid., p.
39):
50
admissível era aquela erigida pelos dogmas cristãos. À igreja coube o papel de influenciar na
vida mais íntima dos casais. Impôs, primeiro, que a atividade sexual ocorresse somente após o
casamento. Segundo, restringiu o ato sexual com fim único de propagação da espécie humana.
Qualquer comportamento sexual que excedesse tal limite seria, certamente, para a igreja e,
estabeleciam as regras para as relações matrimoniais: a mulher deveria manter-se pura e fiel
ao marido e voltada à criação dos filhos; o marido, por outro lado, retribuiria a dedicação da
esposa através do respeito mais absoluto, ou seja, contendo-se durante o coito, de modo que a
entrega completa à relação sexual nunca deveria ameaçar a qualidade de vida cristã do casal.
mundo.
seguridade da sua imagem modelar, sempre na retidão de seu comportamento sexual. É o que
Como ser perigoso e frágil que era, a mulher tinha de manter-se fechada: em
casa do marido, em casa dos filhos, se viúva, ou no convento quando freira
ou como recolhida se lhe faltasse a guarda masculina de um marido que se
ausentou ou morreu. Sempre um espaço restrito e controlado. E aquela que
se aventurava a maiores espaços perdia irremediavelmente a estima social.
Foi com esse clima de interdições nas relações familiares que se erigiu a sociedade
indica, funcionou apenas para o sexo feminino. Ancorando-se num hipotético destino
anatômico que limitava o papel sexual da mulher, a sociedade manteve um duplo padrão de
moralidade para com os dois sexos. De um lado, privou a liberdade dos maridos para com as
esposas legítimas, de outro não impediu que esses cedessem “às tentações da carne” e
Saffiotti (1979, p. 167): “Dada a socialização da mulher branca para o desempenho dos papéis
uma classe de mulheres, com as quais os jovens brancos pudessem praticar as artes do amor
anteriormente ao casamento”.
Para poupar a castidade das moças até o casamento, ao mesmo tempo em que era
moça pura, a Igreja e mesmo toda a sociedade não só foi condescendente, como de certa
forma incitou as experiências sexuais extraconjugais por parte do homem, fazendo “vistas
2
“Elevada à categoria de pecado venial, e devendo pois ser confessada, a fornicação simples permanecia na
mentalidade dos primeiros colonos como algo que fazia bem, e que não era pecado dormir com mulheres
52
Nesse sentido, a prostituição, por mais que fosse uma atividade transgressora aos olhos
Somente com o cultivo da terra, do qual obteve apoio da coroa portuguesa, a família
laço entre marido, esposa e prole legítima (família branca formal), e outro grupo marginal,
resultante dos laços entre o senhor de terra com seus escravos e agregados, índios, negros,
Como se sabe, no início da colonização do Brasil, não havia aqui no Brasil o exercício
suas esposas legítimas em Portugal, muito embora mantivessem relações extraconjugais com
as mulheres que estavam em condição submissa, índias e negras na maioria das vezes.
modelo ideal de família, o burguês, e o contexto familiar, presente pela maioria das mulheres
das classes mais subalternas de nossa sociedade, atravessavam os séculos de nossa história e
públicas”. A primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia, em fins do século XVI, revela a espontaneidade de
afirmações consideradas heréticas, mas que deviam ser de prática corrente na colônia. Diogo Nunes, por
exemplo, dizia que bem podia ele dormir carnalmente ali com qualquer negra d’aldeia e que não pecava nisso
com lhe dar sua camisa ou qualquer coisa [... ] “. (PRIORE, 2003, p. 40).
53
Sobre as contradições havidas entre a norma oficial dominante, que ditava um modelo
único exemplar de mulher, com a realidade vivida pela maioria das mulheres das classes
ora reproduzindo o modelo de casamento burguês, unindo mulheres e homens solteiros, ora
caracterizado pelo par formado por mulheres viúvas ou solteiras e homens casados.
Não se pode dizer, pois, que a moral burguesa ficou alheia às camadas mais populares.
Os fatos mostram que, desde o período colonial, as uniões ilegais se davam, sobretudo, devido
dotes, como nos matrimônios das classes mais abastadas, decerto a fórmula de casamento
seria respeitada.
De fato, a moral sexual teve características muito peculiares no âmbito das classes
casamento”, do qual toda a família pudesse tirar proveito. A preservação da virgindade, nas
classes mais pobres, tem mais a ver com a esperança depositada no livramento da miséria, do
da sociedade por não serem mais virgens, não contando com o apoio e aceitação da família,
tiveram que se pegar com a prostituição. Note-se que não existia outra alternativa de
recairia sobre as mulheres. Listas infindas de processos por parte de maridos que, pleiteando a
guarda de filhos acusavam suas ex-mulheres de falta de moral e de boa conduta. Estava,
cuidar dos filhos, era mais ou menos proporcional à capacidade em zelar pelo próprio corpo.
esteve muitas vezes indispensável à sobrevivência e manutenção da família. Por isso mesmo,
poderia significar muito menos um desvio da retidão moral e muito mais a única alternativa
Para melhor definir a imagem das antepassadas mulheres pobres, mães e solteiras,
Como se pode ver, foi a moral social, sustentada pelo discurso misógino do Estado e
pela Igreja, a responsável por definir o confinamento da mulher na esfera privada. Mas a
moral social, que cristalizou por meio de discursos a crença nas mulheres como seres
de nosso país, passava a sofrer declínios e a preocupar os diversos setores sociais de nosso
país.
pobres, acusadas de abandonarem suas crianças. Eram, pois os maridos descontentes com a
situação, que reclamavam sobre a desordem nos lares, alegando a culpa feminina.
No Brasil, o Positivismo foi, desde então, a doutrina filosófica que mais radicalmente
propagou por todos os lados a sua mensagem misógina – sobre a qual ao homem cabia a
Foram com essas teses que os jornalistas, teólogos, juristas e médicos argumentavam a
norma oficial, como salienta Fonseca (1997, p. 517): “ditava que a mulher devia ser
jurídica e politicamente subordinadas aos homens de melhor posição, que tinham acesso aos
feminina era mais barata do que a do homem e a opressão era bem maior para aquelas que
tinham filhos e precisavam sustentá-los. Nessa época, os salários eram extremamente baixos,
56
incompatíveis com as altas jornadas de trabalho. Além de tudo, as funcionárias não gozavam
de direitos trabalhistas, como os que prevêem as leis trabalhistas hoje em dia, quais sejam:
obra feminina era vista como secundária e a mulher continuaria sem poder competir de igual
torno da imagem feminina, essas ocupações de baixo prestígio trariam toda ordem de
Os estudos mostraram que a opressão sobre o sexo feminino deu-se com o sustento de
pública.
análise dos Cordéis, cerne dessa pesquisa. Antes disso, a fim de situar os postulados teóricos
O corpus deste trabalho é composto de 20 Cordéis, versando sobre a mulher nos mais
1. A deuza do cabaré: A meritriz orgulhosa. João Severo da Silva. João Pessoa, 1985.
1997.
8. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. José da Costa Leite. Recife. s.d.
10. Maria Bonita. Mulher macho, sim, senhor. Rodolfo Coelho Cavalcante. Salvador,
1983.
11. Nascimento, vida e morte de uma coroa. Abraão Batista. 2. ed. s.d.
14. O mundo pegando fogo por causa da corrução. José Costa Leite. Condado-PE. s.d.
58
15. O mundo vai estourar do jeito em que se vive. Franklim Maxado. Bahia. s.d.
16. O poder oculto da mulher bonita. João Martin de athayde. Juazeiro do Norte-CE.
s.d.
17. O que uma coroa deve fazer para se casar. Abraão Batista. 2. ed. s.d.
19. Sofrimento das solteiras para arranjar marido. José Acaci. Rio G. Do Norte. s.d.
20. Uma mulher traiçoeira. José Pedro Pontual. Editor Edson P. da Silva. Recife. s.d.
A análise dos folhetos aqui citados será de cunho lingüístico. Nesse sentido, voltar-se-
O primeiro momento do trabalho foi reservado à leitura dos folhetos, escolhidos como
corpus da pesquisa, para se detectar e selecionar os itens lexicais que remetem à figura
feminina. A princípio, o trabalho contou com uma amostra de cinqüenta folhetos de Cordel,
cujo critério definido foi a seleção dos folhetos por títulos, os quais esboçavam a temática
Em seguida, fez-se a leitura dos folhetos. Nesse momento, a finalidade foi observar
3
A transcrição dos fragmentados, retirados dos Cordéis em análise, estará compatível com a grafia apresentada
nos textos originais.
59
Tendo-se em vista a freqüência com que as temáticas eram tratadas nas narrativas,
seguiu-se a uma seleção mais criteriosa para o corpus. A partir de então, foi possível deduzir
trinta dos cinqüenta folhetos, ficando o corpus com um total de vinte. Para tanto, localizaram-
se, dentre os cinqüenta Cordéis aqueles que mais visivelmente refletiam os níveis de
depreciação feminina, segundo os ícones “da beleza”, “da moda”, “da submissão”, “da
Para a realização desse estudo, desenvolveu-se uma revisão literária sobre o assunto,
correspondentes aos propósitos do trabalho, entre as quais, a Teoria dos Campos Semânticos e
a que ficou conhecida como Hipótese Sapir-Whorf, cujos conceitos açambarcam a relação
presente desde o início, com vistas a possibilitar a constante reavaliação do material teórico
adotado, bem como da adequação das técnicas de coleta de dados, tornando-se uma
cunho moral sexual das sociedades, nem desapareceu com as mudanças no perfil das relações
amorosas e sexuais dos últimos tempos – é oportuno observar o papel sexual da prostituta em
épocas passadas, quanto à iniciação dos homens inexperientes no sexo e nos extravasamentos
promiscuidade sexual, condenada pela Igreja, fez surgir uma série de mitos e medos sobre a
Não é à toa que a imagem da prostituta bela, que seduz o homem com a beleza de seu
corpo e com a volúpia desenfreada, é esboçada freqüentemente por meio das trovas. Nos
Cordéis, as mulheres belas freqüentemente recebem o qualitativo “deusa”, usado para referir-
se às mais bonitas e sedutoras. Esse qualitativo envolve uma variedade de matizes de sentido,
capacidade de sedução da prostituta. A ênfase nos atributos físicos da personagem, que se faz
presente desde o próprio codinome “Deusa”, fica impressa nos versos “porque a sua beleza”
“morena da pele fina”, “elegante menina”, “boniteza", “por ser linda e atraente”, “muito
cobiçada”, “mimosa fada” e “mulher formosa” formam o campo lexical da sedução feminina,
Rosalina em Salvador
Entregou-se a vaidade
Deu expansão ao seu genio
Saciou sua vontade
Fazendo vida noturna
Nas Boites da cidade
termo entrou no português duas vezes, com acepções distintas e diferentes adaptações
prosódicas. A acepção clássica do português é “bueta” (séc. XV), “boceta”, “caixa” e, mais
modernamente (séc. XX) “estabelecimento comercial, que funciona à noite, e em geral, consta
fronteira da Língua Portuguesa (1994) e o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua
a piniqueira...).
procura de um cliente, para depois voltar novamente ao espaço fechado do prostíbulo. Nesse
morais.
62
Mas Deusa, diferentemente das personagens infantis, não se sente feliz nos braços do
A personagem, por expor o próprio corpo, oferecendo-o como mercadoria e por querer
heresia espiritual, juntamente com a noção do sobrenatural maléfico que brota da impureza
feminina.
nas expressões de súplica pelo perdão a Deus. O campo do apaziguamento espiritual assinala-
posta no plano da piedade divina, aparece como possibilidade única de salvação e libertação
do espírito maligno:
o estado de desengano da prostituta Deusa, em relação à doença que lhe aflige. O campo
amargura”, “noites tempestuosas”, “xagas tão grengrenosas”, como se pode ver a seguir:
Outrora eu me jugava
Uma rosa entre as rosas
Hoje estou vendo meu corpo
Em xagas tão grengrenosas
Que já não suporto mais
As dores tão espinhosas
A carga emotiva do desespero da prostituta Deusa eleva-se nas colocações “um ente
tão infeliz”, “a minha desgraça”, “não suporto mais pelas sargetas dormir”, “exposta ao
relento”, “sem ter o que me cobrir” e “prostrada nesse chão duro”. O campo do desespero e do
A morte é anunciada através das expressões substantivas e verbais: “meus últimos dias
de vida”, “encerram os dias seus”, “meu fim vai ser muito triste”. Também há um número de
“ruída dos tapurus”, “no bico dos urubus”, “encerraram os dias seus”, “últimos fios de vida”.
A morte pode ser interpretada como o destino das mulheres pecadoras e infiéis, ou melhor,
Vale salientar que, no imaginário popular, a “mulher da vida” é aquela a que o mundo
reserva às doenças contagiosas. Em situação análoga a de uma prostituta doente, a mulher que
corresponde aos preceitos da sociedade, a mulher virtuosa, é aquela que, em seu estado de
doente, é apenas uma enferma, digna de cuidados, exatamente o inverso daquela para quem a
Por fim, a morte poderia ser entendida, como um alívio, não exatamente para a
prostituta, mas para a sociedade e para o homem, que não se sente bem diante de uma mulher
doente, decaída. Quanto ao desprezo da prostituta, por parte do homem, significa, mais
4
Os termos correspondentes às obras originais consultadas, que serviram à ilustração dos campo-léxicos são, nos
esquemas, apresentados em negrito.
65
MERETRÍCIO
VIDA DE ORGIA
CONDENAÇÃO
DIVINA
SOFRIMENTO
FACES BANHADAS EM
TRAIÇÃO
PRANTO
VOLÚPIA
LUXÚRIA ORGULHO LÁGRIMAS DE
AMARGURA
NOITES
TEMPESTUOSAS
XAGAS
GRENGRENOSAS
MORTE
cultura popular. O texto A língua da mulher faladeira apresenta uma riqueza de termos que
sociedade.
Dentre os mais expressivos termos que remetem à figura da mulher, nessa perspectiva,
“fuxiqueira” e “légua de beiço”. (Cf. análise do folheto História da mulher da língua Grande,
“mulher difamatória”, remetendo à idéia de que a “mulher faladeira” nunca está contente com
a vida que tem e por isso só faz reclamar, blasfema contra Deus e espalha discórdia. O poeta,
assim, declara:
No imaginário social, a palavra que é proferida pela boca de uma mulher é carregada
de sentido. Uma praga proferida por uma mulher é diferente de outra, proferida por um
homem. A história sempre recusou dar ao feminino o direito ao discurso, porque a figura
feminina esteve durante muito tempo inserida numa tradição maligna e assim associada à
figura do Diabo. Note-se que as mulheres eram as grandes feiticeiras do passado, tinham elas
uma maior aproximação com a personificação do mal, com as pragas, regionalmente falando.
sagrada da palavra que, segundo a Bíblia, foi ocasionado pela “boca” de uma mulher. Assim,
expressa o poeta:
mau presságio, evidencia-se na expressão “azar de sexta-feira” que, no texto, está remetendo à
presença nociva de uma mulher potencialmente ameaçadora, ou seja, àquela que fala demais:
Dicionário da Língua Portuguesa elaborado por Antenor Nascentes (1959) registra o termo
como “ruído de pano que roça o chão”; “ruído da seda atritada”; “confusão”, “atropelo’,
“desordem”. Portanto, depreende-se o teor negativo desses termos, nas comparações feitas no
tocante à mulher.
gagueira traz o sema da “anomalia” e aqui aparece como simples pretexto para expressar a
Ou um gago a explicar
Um caso expetacular
Queira o ouvinte ou não queira
Em resumo, toda abundância de termos utilizados pelo poeta com relação à mulher
tem, como fim, admoestar contra o mal que pode ser causado se a ela for reservado o direito à
palavra.
MULHER FALADEIRA
RUIM
PRAGUENTA
COMPRADORA DE
TORMENTO PARA
DISCUSSÃO
O MARIDO
LINGUARUDA
BUZINA
DISPARADA
LINGUA
COMPRIDA
comportamento da mulher de hoje em dia, mais ativa e, por isso, ameaçadora da ordem e da
moral, tem como fim exibir uma perspectiva de valoração, do ponto de vista patriarcal e
conservador.
exatamente, nas três primeiras décadas do séc. XX, tais como novas formas de vestir, de
69
arrumar os cabelos, de usar a maquiagem, as alterações inclusive nas novas formas de lazer e
ocupação, todas elas causaram grande choque de valores e concepções na mentalidade de toda
a sociedade brasileira.
nova realidade feminina, no contexto das mudanças de postura e de valores, foram, aos olhos
dos conservadores, ingredientes que atentavam contra o pudor e a decência feminina, além de
que faziam cair por terra o tradicional modelo de conduta a que as mulheres já estavam
nova moda eram, na ótica masculina, um sinal de mau gosto e artificialismo que atingia a
Como o perfil traçado para a mulher virtuosa era o de esposa e mãe recatada, a mulher
moderna e antecipada, “cheia de liberdades”, “de roupas apertadas”, “de braços e beijos com
os homens”, seria o exemplo mais visível da decadência dos padrões antigos e da decência
tal como se pode apreender nos versos “vivia para o marido” , “e para fazer menino”, o poeta
assim se expressa:
70
Fora do espaço social determinado a elas, ou seja, o lar, as mulheres seriam descritas
sucedeu com a criação feminina, no livro de Gênesis da Bíblia, é um dos episódios mais
Segundo a narração bíblica, Deus criou o homem para viver livre do pecado e dos
dissabores que esse causaria para a espécie humana. Mas a mulher traiu a confiança de Deus,
fraca, deu provas que não é prudente que se lhe dê credibilidade. A mulher é, por essência,
malícia feminina. Assinala-se o gosto que a figura feminina tem em atentar contra o “pudor” e
malícia e encanto, obtendo dele a satisfação de entregar-se aos “prazeres carnais”. A citação a
Você imaginou
Eva dengosa e faceira
Tendo só por vestimenta
Uma folha de parreira?
Não precisava nem Cão
Para Adão fazer besteira.
partir dela, instalaram-se todos os problemas e misérias do mundo. A referência aos tempos
antigos, isentos ainda do pecado, em contraste com o “abuso” do sexo feminino, que trouxe os
maus tempos, pode ser aqui interpretado como um dos mais pesados fardos os quais a culpa
Na estrofe seguinte, o poeta utiliza jogos polissêmicos para fornecer uma imagem
erótica da mensagem:
então “dar o bote”, quer dizer, conseguir o que quer do homem. No ideário místico e religioso
do povo nordestino, a serpente reflete uma imagem negativa porque sempre remete à “culpa”;
ela representa o “caos e a maldade”, prescinde também da associação com o próprio Satã.
quais estabeleceram as diferenças de papéis entre homem e mulher e que se refletem por meio
da língua.
dependente do marido e do modo como a segregação dos sexos estava definida, a conquista
do trabalho feminino apenas poderia ser sentida como uma ameaça à ordem e aos costumes da
designativo de quem é esposa e trabalhadora doméstica, que manda e que cuida do lar.
Enquanto que a mulher era, até décadas atrás, socializada para cumprir o destino de
dona-de-casa, o homem o era para trabalhar fora. Era o trabalho o que afinal conferia ao
homem o direito de expressar com pleno poder as primeiras e as últimas ordens no âmbito da
família. A frase “homem com H” é um dos termos que serve de elogio aos homens de conduta
Antigamente a mulher
Pelo seu instinto nato,
73
integridade moral do homem. Em primeiro lugar, feria o ícone de macheza ao qual sempre
De fato, nos anos vinte, a larga inserção da mulher no espaço de trabalho foi devido à
característica social difusa e marginal que possuem, são as únicas profissões, além das tarefas
da típica dona-de-casa, que não ameaçam a ordem e por isso são apreciadas pelo poeta:
Em algumas profissões
A mulher dava primeira,
Ninguém ganhava pra elas
Nas artes de rezadeira
Fazer panela de barro
Tecer balaio e esteira.
médico, ora com o padre, para afastar os males físicos e espirituais que se manifestam através
de fluidos sobrenaturais.
que resguarda poderes de cura por meio de “benzimento”. Suas rezas constituem cura para
“quebranto”, “mau-olhado”, “vento caído”, enquanto desenha cruzes sobre a testa ou cabeça
do doente com pequenos ramos de folhas verdes, que murcham quando detêm o espírito
Como se sabe, a moral sexual imposta pelo sistema patriarcal obrigava que as moças
existente entre os sexos, o marido tinha o direito de fazer a “inspeção”, ou seja, submeter a
esposa à prova da virgindade. Caso outro homem tivesse “passado a mão na moça”, ou seja,
desvirginado-lhe, o marido tinha o direito de devolvê-la aos pais. A mulher era reduzida à
condição de um objeto, como uma mercadoria que poderia ser devolvida, caso não causasse
satisfação por parte do dono (o marido). A ilustração a seguir pode constatar a afirmação:
Se o marido descobrisse
Na hora da “inspeção”
Que antes dele outro homem
Havia passado a “mão”
Tinha o direito de
Fazer a devolução.
intencionalmente utilizados pelo poeta com referências aos órgãos sexuais reprodutores
masculino e feminino.
Finalmente, o poeta retrata a mulher decente como aquela que “leva uma vida
honesta”. Para isso, permanece o maior tempo possível reclusa em casa. Uma mulher
recatada, não sai pela vizinhança com o intuito de fazer intrigas. É o que observa o poeta por
meio dos versos “não vive de porta em porta” e “e nem gosta de cachorrada”.
mulher celibatária, voltada para os papéis tradicionais femininos e que preserva a hierarquia
existente entre os sexos. A mulher maldita e devassa é toda aquela que defrauda o antigo
sistema, ou seja, aquela que assume um patamar de igualdade com o homem na vida
econômica e social.
MULHER
OBRA DA
NATUREZA ANTIGAMENTE HOJE DESTRUIÇÃO DA MORAL
E DO PUDOR
DEMONÍACA
(EVA)
BENDITA
(VIRGEM MARIA)
TRAIÇOEIRA
CIUMENTA
SUBMISSA
DEVASSA, OUSADA
(CASADA)
VALENTE, LIBERTA
DESTEMIDA
MÃE PRENDADA INDEFESA
TRABALHA FORA
REZADEIRA RECATADA
USA TOUCA,
MANDONA, ESPARTILHO,
FOLGADA, AMPOLETA,
COZINHEIRA ESCOLHE A ROUGE,
VIROU O JUIZO
PROFISSÃO BATOM
ALHEIA ÀS CONVENÇÕES
FIEL ÀS CONVENÇÕES
Maria Bonita no cangaço, a presença de mulheres nos acampamentos visava tão somente à
78
satisfação das necessidades viris dos homens, normalmente prostitutas, com quem deviam ter
A mulher só ingressou
A partir de Lampião
Muita coisa mudou
Com a sua opinião
Pois Maria interfiria
Da maneira que podia
Em cada situação.
amorosas num plano mais estável, como se deu a partir de Lampião, consistiu na primeira
de lutas, mantidas entre os coronéis, adversários políticos que formavam suas próprias tropas
defesa dos coronéis, chefes políticos, ricos fazendeiros e senhores de engenho. A esses,
ligava-se por questões hierárquicas garantidas pelo sistema patriarcal. Esse tipo formava o
grupo de cangaceiros que mais assolaram o Sertão nordestino. As verdadeiras gestas que
relatam o ciclo do cangaço, nas cidades nordestinas, aludem aos feitos de bravura e destemor
derivado de “canga” e é usado no Nordeste desde 1834. A primeira acepção da palavra remete
ao modo como o bandido ou bandoleiro era obrigado a carregar consigo os bens conseguidos
79
nos arroubos contra os ricos fazendeiros; reporta-se, mais especificamente, à tarefa árdua de
conduzir o peso das armas, das munições, incorporando verdadeiros feitos relativos aos
conquistado grande fama e a ele ser atribuído o maior movimento de lutas, os registros
0 Cangaço começou
Com o mestre Cabeleira
Foi dele que iniciou
Toda aquela pasmaceira,
Pela falta de justiça
E também pela cobiça
Começou a bagaceira
essas acepções. Quanto à acepção do vocábulo “bagaceira”, este destaca, em sentido figurado,
A quebra do paradigma do cangaço tem a ver com o modo pelo qual a mulher
Determinados ideais, que eram defendidos pelos cangaceiros, foram tomados com a mesma
intensidade ou mais pelas mulheres. Os atos de violência contra o estupro, por exemplo, eram
Cabe observar que a entrada da mulher nos bandos só foi possível porque ela deixou a
cangaço, sobretudo através dos termos convergentes “amenização” e “mudando essa visão”,
que giram em torno da questão da violência. A importância da mulher, nesse quadro, fica
O fato de que alguns crimes foram poupados pelas mulheres, contrariamente ao clima
hostil existente na figura do cangaceiro, mostra que a mulher, apesar de seu ingresso no
da cangaceira. Entre as oposições mais expressivas podem-se destacar: “mais bonita”/ “bola
prateada”; “batom e fita”/ “andava bem armada”; “enfeite”/ “bala de aço”. Cada conjunto de
uma vez estabelecidas a partir da violência sexual coletiva. Tal fato encerra uma contradição
- ao mesmo tempo em que o cangaceiro defendia a todo custo a honra das moças donzelas de
81
condição mais humilde, ou das daquelas que consistiam seu objeto de veneração, não evitava
Nesse ponto, cabe ressaltar a preocupação com a virilidade, que é, segundo Bordieu
(2003, p. 64):
em deixar transparecer que falhou, o que significa não ter sabido lidar com a companheira.
companheiros, que o cangaceiro traído se sente preso a uma armadilha: para livrar-se da
A seqüência dos sintagmas “Baiano amava lídia”, “que amava Bem-te-vi” deixa
Fica evidente também a paixão não correspondida de Baiano pela cangaceira. Verifique-se
Morrer a “golpes de Faca”, “pau ou de bala crivada”, “duma rajada”, “lei de paulada”
são expressões utilizadas no texto para denominar o nível cruel e brutal em que eram
conduzidas as penas para o adultério feminino. A morte de Lídia, colocada num plano
simbólico, representa, nessas circunstâncias, a defesa da honra. Assim, para ter honra lavada,
como diz o sertanejo, é que5ele prossegue com a “prova da macheza”, como consta no verso,
cangaceira, denota uma inversão das práticas e valores do cangaço. Os vocábulos que se
Na briga e na montaria,
Vou citar aqui Otília,
Com destaque para Sila
que merece honraria.
ser exercidos pelos cangaceiros, também reflete uma quebra do perfil machista dos homens do
papéis.
No cangaço a comida
Pelo cabra era feita,
A mulher era servida
5
Além das cangaceiras Maria Bonita, Dadá e Lídia, podemos citar como uma das personalidades mais
importantes, no que se refere à redefinição dos papéis do cangaço, a cangaceira Sila, companheira de Zé Sereno.
Dentre as cangaceiras de menor repercussão, mas que não puderam passar despercebidas na História e na
Literatura, encontram-se Enedina, Inacina, Maria de Pancada, Neném, Otília, elas são citadas no folheto desta
análise.
83
guerreiro e a de sexo frágil para a mulher. Melhor dizendo, tornava inegável o fato de que a
mulher podia se portar como guerreira e de enfrentar as mesmas batalhas ao lado dos homens.
compreensão de que, para ser macho, era preciso manter contato sexual com várias mulheres,
sem apego ou compromisso com nenhuma das parceiras, sempre com contatos efêmeros.
cangaço, rompendo com determinados estigmas sociais. Todavia, não consegue avançar no
que diz respeito à desigualdade relativa ao código de honra, que prevê a monogamia apenas
então existente sobre sua fragilidade e dependência. Contudo, em sendo assim, o momento é
MULHER NO CANGAÇO
CRISTALIZAÇÃO DA
ROMPIMENTO COM A INTERFERÊNCIA NO TRADIÇÃO
TRADIÇÃO COMPORTAMENTO
MASCULINO
PUNIÇÃO E
ADULTÉRIO
AMBIENTES, MONOGAMIA
MODAS E AMENIZAÇÃO DA FEMININA
COMPORTAMENTOS VIOLÊNCIA CONTRA
A MULHER
MORTE
VIDA DE SERVILISMO
CANGACEIRO E SUBMISSÃO
FACA, PAU,
GUERREIRA BALA
CRIVADA
SEMELHANTE
AO HOMEM
VALENTE
sociedade nordestina, essa operou com mais nitidez os valores culturais do patriarcado,
A mulher nordestina durante muito tempo foi identificada com o mundo social privado
costureira, doceira, entre outras atribuições, foram incorporadas ao espaço das senhoras de
elite ou, mais especificamente, à esfera doméstica, conforme foi falado anteriormente. A
mulher pobre e livre, não gozando de status ou do privilégio de casar-se com marido rico,
desde cedo, teve que encarar os serviços domésticos, sendo obrigada, pois, a exercer os
mesmos afazeres domésticos que eram realizados pelas mãos das negras. Os trabalhos
O trabalho da mulher
Para que não fale o povo
É amarrar uma cabra
Dar leite a um gato novo
Tratar duma bacorinha
Botar milho pra galinha
E reparar se tem ovo
completo caos da sociedade. O primeiro agravo era “a mulher tomar o lugar do homem”,
leite a um gato novo”, “tratar duma bacorinha”, “reparar se tem ovo”, “varrer casa e fiar”,
“deitar galinha e piruá”, “lavar prato”, “catar pulga no vestido”, “catar pulga no gato”, “botar
As expressões pitorescas “e tratar dos seus filhinhos” e “também catar bichinhos nas
A noção antiga de que o trabalho era compatível somente com a figura masculina, está
por trás das expressões a “mulher passou na frente”, “tomando o lugar do homem” e “tomou
as calças da gente”.
A idéia de que o homem está perdendo espaço e o emprego e a mulher ocupando o seu
atrair fregueses do sexo masculino. Fica subtendido que a mulher só é útil em funções nas
quais ela permaneça com suas qualidades femininas, docilidade, meiguice, paciência. Daí,
crianças), entre outras que para a sociedade são profissões quase sempre consideradas
Portuguesa (1999), é definido como “adulto”, “marmanjo”, “homem”. Esse termo, na fala
“agora”, impõe uma maior ênfase na idéia de que nos tempos atuais o homem não tem mais
serventia nos cargos empregatícios, uma vez que esses passam a ser ocupados pelas
mulheres.
87
Escanchar-se em bicicleta
Isto pertence a rapaz
Como também futebol
Que coizas tristes falaes
Esses lugares não tomem
Porque so pertence a homem
Mulher que pensa não faz
virgindade. Assim, a posição de sentar na bicicleta não é adequada “às moças de família”, que
homem. Daí, concluímos com a apresentação do esquema a seguir, para melhor compreensão.
88
MUDANÇA DE PAPÉIS
FEMININOS
BICICLETA FRUSTRAÇÃO
ENCANCHAR-
SE EM
BICICLETA
JOGA
FUTEBOL VESTE CULOTE E
PERNEIRA
No dizer popular, uma coroa é uma pessoa que está passando da maturidade à velhice;
Costuma-se dizer que quando uma pessoa chega aos trinta anos de idade, passa a ser
idade, embora esse designativo seja normalmente empregado com relação à mulher, num
sentido pejorativo. Já com relação ao homem, o fato de ser “coroa” significa, na maior parte
das vezes, tornar-se mais maduro e mais autoconfiante, mais envolvente ou mais viril.
6
O autor deste folheto de Cordel aborda o mesmo tema em Vida e morte de uma coroa, descrevendo em
pormenores “o que é ser uma coroa”. Em outro folheto ainda, intitulado O que uma coroa deve fazer para se
casar”, o poeta apresenta uma receita de oito páginas para o alcance desse objetivo. Esses folhetos estão inclusos
no corpus da análise.
89
Quase via de regra, a idade de trinta anos no homem representa o momento propício
profissional e na vida pessoal, quando acumula o maior número de conquistas femininas. Para
a mulher, de modo adverso, essa idade significa a ruptura com a felicidade. Esse período pode
ser mais desvantajoso se, nessa idade, a mulher não tiver conseguido arranjar um homem, um
tempos gloriosos, onde a mulher tira proveito da vida, é lembrada nas expressões de lamento,
característica feminina que mais contava era a beleza. Mas ao lado dela, a mulher precisava
apresentar outros: ser “sabida”, “fácil” e “ligeira”, vocábulos que condizem com o perfil
“coroa”, expressa a inveja da habilidade da princesa egípcia, que pôde usar dos seus artifícios
para a mulher, quando se tem uma idade mais avançada. A velhice significa, pois, a perda do
da vida, mas como uma desgraça, insucesso na vida de uma mulher, em função da perda da
aparência anterior – “a pele está frangida”, “já passei dos 33”, “como perdi a sacudida”, que
Existe uma variedade de termos na fala do povo para designar a mulher idosa ou que
já tenha passado da idade de se casar: “bofe”, “sucata”, “courão”, “bucho”, “fúfia”, “surrão”,
“tia”, “bagulho”, “fulustreca”, “traste”, “maroca”, “caritó”. Todos eles estão carregados
uma “mulher velha” e “cheia de pelancas”, que como diz o dito popular, “já deu o que tinha
seguir:
falta de interesse dos homens com relação a ela, é posta em ênfase na construção da estrofe
apresentada:
apelo da personagem pelas rezas, quando o objetivo único é arranjar casamento. As trezenas
de Santo Antônio são rezas tomadas pelo católico em devoção ao santo, nos treze dias
milagrosa e protetora, cujo poder por excelência é conceder a realização de casamentos, não
frustrando as esperanças das moças casadoiras. Daí por que, vulgarmente, é chamado santo
casamenteiro, Santo Antônio é o santo da lenda e das tradições populares, aquele cujo poder
alcança a ressurreição dos mortos, a cura de doenças, o alívio no bolso dos ricos em defesa
dos pobres, o livramento das misérias e das causas mais difíceis. Fica na mente do povo o seu
mais alto exemplo de honestidade, humildade e prodigalidade para com os mais necessitados.
feitiçaria em que se evoca a figura do Diabo. Nesse contexto, o pacto com o diabo constitui a
beleza, que está relacionada, normalmente, ao olhar masculino, pois a beleza só lhe é
prazerosa quando, através dela, a mulher consegue seduzir um homem. Os contos infantis
relacionam juízos referentes à imagem feminina em função da idade. Fica entendido, pois,
do que a mulher tem que enfrentar quando não casa cedo, conforme se vê na página seguinte.
93
LAMENTAÇÕES
MALES
VELHICE
reservam as maiores lembranças. Esses recordam, como lembra Cascudo (1973, p. 152),
“como se tivessem vivido há cem anos, cenas de simplicidade longínqua, o respeito dos
É nesse sentido que o poeta, revoltoso com a falta de decência feminina, como que
A decência atualmente,
Pra muitos não vale nada!...
Uma mulher de respeito
Seja solteira ou casada
Se ela não andar nua
Se requebrando na rua..,
Dizem que ela ê uma errada!
na rua”. Esses, numa relação disfórica, estão relacionados moralmente, com o aviltamento do
corpo feminino.
Os versos “com doze anos começa” e “com o cabelo feito moça” referem-se à
simbólico do ponto de vista das crendices e superstições nordestinas acerca desse fenômeno.
apresenta a acepção de “moça” como “jovem”, “rapariga”, “mulher púbere”, “mulher madura
que não é velha”. Percebe-se, assim, que o sentido do termo tem relação específica com a
questão da honra feminina. Por isso, toda a preocupação dos pais, com o fato de que é nesse
momento que a moça pode perder a virgindade, adquirir uma gravidez indesejada, e tudo isso
resguardada pelas mulheres), na concepção de que se a mulher se iguala ao homem passa a ter
A expressão “ele é mole”, que converge para outras acepções populares como “negar
fogo e não dar conta do recado”, deixa entrever que, mesmo incorporando novos modelos de
conduta, a mulher moderna ainda conserva preceitos antigos, como o de considerar que o
homem só é viril quando toma a iniciativa, que esse tem por natureza um instinto sexual
incontrolável. Deduz-se que o rapaz é “moleirão” quando não a deflora, ou não aproveita o
mulher como a mais responsável pela decadência dos costumes remotos, tidos como ideais,
numa visão machista para os dias atuais, e que essas mudanças se apresentam como modas
escandalosas, o que leva a uma visão da “moça ajuizada” e da “moça sem juízo”. É o que
MODAS
INVASÃO DOS
SEMELHANTE ESPAÇOS
MANUTENÇÃO DO ESTILO AO HOMEM COMPORTAMENTO PÚBLICOS
CONSERVADOR
FUMA
VESTE CALÇA
DE HOMEM
foram listados os termos que caracterizam o modelo de mulher ideal, segundo a visão
beleza, a doçura, o calor e a ternura; esses constituem os principais pré-requisitos para que
saciedade do homem. Daí, uma forte conotação entre os prazeres do corpo e o prazer dos
alimentos. No item beleza, o perfil feminino, que objetiva o agrado do homem, corresponde a
três ingredientes fundamentais: não basta ser bela, a mulher tem que ser “carinhosa”, “fogosa”
deixam entrever a idéia de semelhança do corpo feminino com o alimento propriamente dito,
capaz de saciar a fome de carinho, prazer, desejo, etc. Esse conjunto de sensações insere-se no
machista, colocando a mulher como alimento capaz de saciar esse instinto, conforme foi dito.
afeição ou cumprimento travado entre pessoas da mesma família ou com parentesco próximo.
A ação de beijar é amplamente inserida num contexto simbólico, significando, num contexto
inserido num contexto da traição e prenúncio de morte – logo após ter traído a seu Mestre, o
apóstolo se suicida. Com efeito, a relação beijo/ traição parece provir daí.
No Nordeste, ainda é muito comum entre o povo dizer-se “cheiro”, no lugar de beijo,
como observa Cascudo, em sua obra Superstição no Brasil (2002). Essa palavra é revestida de
afetividade, principalmente na fala das mães nordestinas, na troca de carícias dirigidas aos
angelical, ou pode apresentar um fundo de malícia e refletir uma essência voluptuosa. Nesse
caso, é importante escrever que dificilmente a frase “dar um cheiro no cangote”, poderia ser
Verifica-se uma dupla idéia na expressão “mulher boa”, presente no texto, dado que
essa expressão tanto serve para designar, literalmente, uma mulher bondosa ou virtuosa,
provocante”, acepções de acordo com o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua
paladar, tem como efeito, reiterar a idéia do tesão, do prazer masculino. Assim, a seqüência de
mulher traduzem sensações desagradáveis, tais como “dor”, “incômodo”, “medo” e “choro”,
Os versos apresentados refletem uma analogia entre mulher feia e alguns animais. Os
designativo “macaco”, quando usado para referir-se ao sexo feminino, é quase sempre com o
registrado como “mulher que está sempre a reclamar de tudo”. O sentido do verbete traduz
pejorativamente, com a finalidade de atingir o negro. A alusão aos termos em relação ao beijo
da “mulher feia” aparece como simples pretexto para depreciar a negra, tecendo um paralelo
entre ela e o macaco, tanto do ponto de vista da aparência física, quanto do odor. Essa
produção de sentido fica mais evidente pela organização do campo da raça, cujos semas mais
enquanto dotada de atributos físicos, quando sua única função é utilizar o corpo para agradá-
7
Essas mesmas idéias aparecem novamente no folheto “O malandro e a peniqueira...”.
100
lo. Por isso, a constante vaidade da mulher com o corpo, com o cheiro e com todos os
artifícios necessários para instrumentá-lo a essa função, são, nesse contexto, vistos como
positivos.
ESSÊNCIA FEMININA
DESAGRADO AO
SENSUALIDADE PRAZER AO HOMEM NÃO -
PATROA
SENSUALIDADE HOMEM
NOJO E
REPUGNAÇÃO PROVOCA
ESTIMULANTE DOS SENTIDOS BEIJO
SINGELO E
FRACO RAIVA FADIGA
BEIJO ENJÔO
CHEIRO AMOR,
CARINHO,
DOCE COMO AMARGO
MANGABA QUENTURA
DE COISA
BOA BAFO TEM CATINGA DE
MACACO
TEM CATINGA
DE MONTURO
Na Cultura Popular, a imagem que se espraiou sobre a mulher foi a de que ela é
Mulher Faladeira.
remete à mulher “fofoqueira”, ou seja, a que vive reparando e comentando sobre a vida dos
outros, conforme registra a obra Calepino potiguar: gíria norte rio-grandense (1980). Há
relação ao sexo feminino. Essas idéias são impressas novamente na estrofe a seguir:
Mete o pau
Ela se dana a falar
Fazendo a maior zuada
Pois a língua dela ataca
definir a mulher desse perfil: “linguaruda”, “mulher da língua grande” e “fuxiqueira” são
correlata do designativo “linguaruda”, podendo significar “alguém que não consegue guardar
segredo”; ela é cognata da expressão “bate com a língua no dente”, como revelam os versos a
seguir:
A mulher que desagrada, ou seja, a “mulher da língua grande”, é aquela que toma
partido da vida dos outros. Essa, na visão do poeta, é, pois, passível de receber punição física,
é quem merece “cair na peia”, isto é, “castigo com açoite”, “surra”, acepções registradas no
A mulher faladeira é também aquela que não cansa no seu discurso repetitivo:
Muitos são os termos usados para referir-se à mulher, seja em relação a atitudes que
desagradam: “faladeira”, “assanhada”, “atrevida”, ou, mesmo, por seu aspecto físico; se não é
bonita, nem jovem, crescem os adjetivos que lhes são dirigidos, sempre de forma depreciativa.
Conclui-se que a mulher tem valor na sociedade enquanto goza de boa aparência física
e quanto menor for sua idade. As designações, que competem para a depreciação da mulher,
relacionam juízos referentes à imagem feminina relativa a seu tempo de vida. Não há espaço
seguir.
104
PECADO DE EVA
DESRESPEITA AS
AUTORIDADES E AOS
LÍNGUA REPRESENTANTES
GRANDE BATE COM DA IGREJA
A LÍNGUA
NO DENTE
PADRE E
FREIRA
ELA SÓ VIVE
A FALAR
SUA LÍNGUA
SE DANA A DELEGADO,
COÇAR JUIZ,
PROMOTOR,
ESCRIVÃO,
SOLDADO E
PREFEITO
destemido.
estética, quanto da moralidade. Era chamada de princesa, pelo seu companheiro Lampião, por
Maria Bonita significou, aos olhos das sertanejas, um exemplo de coragem e heroísmo ao
105
conseguir penetrar no bando e por ter conseguido o respeito e a admiração dos cangaceiros,
A entrada do cangaço só pode ser vista como positiva, no momento em que a mulher
deixa o papel estipulado socialmente para uma mulher nordestina, o de mulher pobre e
Desse modo, Maria Bonita não só vai ser respeitada, como também admirada, porque
Mas, principalmente, porque não precisara utilizar-se do carma da beleza como arma de
sedução para entrar no cangaço. Ou seja, apesar de ser bela, não obteve em nenhuma instância
Além do mais, Maria Bonita impôs-se, não por ser a mulher de um líder, mas através
de seu caráter, conseguindo ser respeitada e temida até mesmo pelos próprios homens do
cangaço.
No que diz respeito às outras mulheres que entraram no bando vale salientar que,
nenhuma outra conseguiu atingir o mesmo nível de ascensão que Maria Bonita, ainda que
106
“monogamia” e “apego à religião”, apesar do ambiente hostil no qual se encontra, até pelas
condições climáticas e a convivência com homens rudes. Nesse sentido, a visão que
estabelece com relação ao seu perfil de mulher é eufórica, pois é essa incorporação de
atributos tanto femininos, quanto masculinos que a torna um ser superior, “uma heroína”, do
como a fidelidade ao marido e a tradição religiosa, mais uma vez pode ser demonstrado
através da estrofe seguinte, notadamente nas expressões “mulher valoroza”, “nunca traiu seu
Engajada na rebelião social política, a cangaceira Maria Bonita vai assumir o posto
masculino, sem deixar perder as suas qualidades femininas. À medida que a cangaceira
como “amante”, “amásio”, “tipo forte”, “viril”, “valentão”, sobre a definição do Calepino
potiguar: gíria norte-riograndense (1980, p. 288) e deu origem a toada original nordestina
era a única alternativa de livramento da miséria e da fome, para as moças e da própria família,
Maria Bonita casa-se para atender às exigências por parte da tradição rígida de obediência ao
que responde quase sempre pelo estigma da mulher pobre, cuja única esperança é depositada
num casamento. Também se desvela o estigma de classe sobre o qual convive esse tipo de
semanticamente essa idéia. “Lambe-sola”, quer dizer sapateiro, tal como registra a obra
8
Dái as insígnias em relação à sertaneja, como mulher valente, brava, rude, guerreira, muitas vezes contribuindo
para uma imagem depreciativa ou debochada sobre a mulher nordestina.
108
seja, tornar-se “meretriz” ou “prostituta”, como registra o Novo Aurélio século XXI: o
Maria Bonita
Não suportava a moleza
Do seu infeliz marido
E a pobreza dos pais
Naquele Sertão sofrido,
Vivendo por comida
Dizia que a melhor vida
Era a do homem bandido
Bonita, objetiva mostrar o contraste existente entre o perfil desse homem, - covarde, passivo e
acomodado, em relação ao perfil masculino existente na figura de sua esposa. Tem-se, pois,
uma inversão no modelo estabelecido de homem e de mulher sertaneja: tanto Neném carrega
Em poucas linhas, o Cordel expressa a idéia de que a mulher pode até tomar um outro
rumo para a sua vida, incorporar ideais masculinos, mas não pode sair do seu universo
feminino. Por isso, a cangaceira não aceita desvencilhar-se de determinados preceitos antigos,
coletados no folheto:
MARIA BONITA
ANTES DEPOIS DO
CANGAÇO QUEBRA DA TRADIÇÃO
MODELO CONSERVADOR
SEPARA-SE E
ABANDONA
SUBMISSÃO CASOU-SE COM AO MARIDO
LAMBE-SOLA LIBERDADE
QUASE POR
OBRIGAÇÃO
ENTRADA FEMININA NO
AO PAI E MARIDO CANGAÇO
VIDA DE CANGACEIRA
FIDELIDADE/
CRENÇA
Segundo o Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), o termo
Nas culturas primitivas, o homem velho, ou “ancião” era uma pessoa respeitável e
venerada, alguém admirado pelas gerações mais jovens por ter o poder de acumular as
gerações. Já as mulheres de idade não aparecem ligadas à tradição, pelo que produziram ou
parece que elas ficaram relegadas apenas à feitiçaria, que passou a ser encarada como
Acredita-se, pois, que de algum modo essas concepções foram assimiladas nas
culturas ocidentais e mais particularmente na nordestina, uma vez que a mulher foi posta,
Existe um juízo de valor relativo ao tempo para cada um dos sexos em especifico – a
mulher é chamada de “coroa” logo quando chega aos trinta. O homem recebe esse designativo
normalmente por volta dos quarenta anos, quando se detecta alguma marca de idade, através
dos cabelos ou barba grisalha. Assim, a velhice do homem é detectada do ponto de vista
material, físico, enquanto que a feminina é apenas determinada por um critério virtual, de base
cultural.
Estudando a Natureza
Pude eu classificar
O comportamento delas
E assim vou relatar
Vários tipos de coroas
A maior parte das vezes, uma mulher é chamada de “coroa” quando não chega a casar.
O sentido pejorativo, do qual normalmente é dotado o termo, tem a ver com o pânico das
A implicação maior, relativa à questão da idade, tem relação imediata com a questão
do casamento. Assim, se aos trinta anos a mulher ainda não está casada, significa que o seu
analisado:
111
IDADES
DOS 33 AOS 40
OPORTUNIDA
DOS 13 DE DE
AOS 17 ENCONTRAR
ANOS O PALETÓ DEPOIS DOS 37
AOS 50
AOS 60
libidinosos que podem atrapalhar a relação de um casal, a nossa cultura estabeleceu um amor,
sentido, em função do valor que normalmente se atribui a cada sexo. De maneira geral, são
consideradas qualidades típicas do homem as que trazem o sema da virilidade, tais como: a
“recato”.
dotado biologicamente para constituir um lar e estar ao lado do esposo, pode ser sentida nos
A A mulher é carinhosa
Por obra da Natureza
Pode ser feia ou bonita
Ela tem toda grandeza
E ela tendo vergonha
Pra mim é uma beleza
onde as transformações sociais são incorporadas mais lentamente do que nas grandes cidades,
ainda hoje se percebe que o modelo de mulher ideal é aquele que atende aos pré-requisitos de
esposa, mãe e dona-de-casa, papéis que exigem dedicação ao esposo e abnegação quase que
totalmente da vontade própria. Os “caros” valores femininos condizem, pois, com a tríade: lar,
casamento e família.
A imagem positiva das mulheres solteiras faz parte do campo semântico do “respeito”,
As mulheres que não seguem os preceitos morais impostos pela sociedade são
mulheres que não merecem crédito na sociedade. A elas normalmente são atribuídos
113
outros.
Dado que a idéia do “amor” sublime, conjugal, deveria projetar-se na mulher por meio
“paciência e bondade”, para superar as fraquezas do sexo masculino, não convinha que a boa
mulher excedesse aos ímpetos da paixão, tendo acessos de “roedeira”, ou seja ciúme, tal como
apresenta o Dicionário de palavrão e termos afins (1998), a obra Calepino potiguar: gíria
(1999).
A mulher ciumenta, na ótica masculina, sempre traz estragos para a vida do casal,
ao homem, passa a “ser bruta”, ou seja, indelicada e a “falar asneiras”. Enfim, é o ciúme que
mulher “faladeira”, “tagarela” e que “adora fazer mexerico”. Em geral, é essa visão que é
representada através de uma “sogra” ou de uma “madrasta”, todas “megeras”. Também é uma
deveres conjugais. Essas mulheres não cansam de sair de vizinha em vizinha, igualmente
mulheres de más línguas, que estão sempre ocupadas em reparar a vida dos outros.
O poeta popular encontra, cada vez mais, inspiração para destratar a mulher, visando a
agradar o público masculino, que se diverte com isso. Assim, ataca a moral, os bons costumes
estigma de que mulher sendo bonita, não pode ser inteligente. Ou que se é bonita, não precisa
trabalhar.
dito popular “mulher feia não dá palpite”, ou “mulher feia é como sucata”, “não tem lugar no
estudo, valores que se perpetuam ainda hoje, com relação ao culto à beleza feminina.
Como se viu, no campo das relações amorosas conjugais, inserem-se variados valores
“mentira”, “falsidade”.
115
agrado ao homem, a arte de agradar compõe o rol dos caprichos femininos. A mulher
“perfeita” é aquela que tem o cuidado de preservar suas “graças naturais” e despertar o
Incorporando virtudes contraditórias, a mulher deveria ora exibir-se para o marido, ora
sociais impostas ao modelo de perfeição: eficiente no lar, - mãe cuidadosa e esposa fiel e
submissa.
Entre duas figuras antitéticas, eis que se insinuam duas imagens distintas da mulher:
uma que possui um corpo, uma aparência e uma sexualidade, e uma outra, uma mulher
Como que prevenindo os homens do poder de sedução das mulheres, o poeta diz:
É nesse elenco de imagens, que se mistura ao conflito das diferenças entre os sexos,
“maquinações”.
116
negativas aludidas ao sexo feminino. A indecência feminina é aqui frisada a partir da projeção
Esse Cordel, como os demais, vem reforçar a discriminação da mulher quando ela se
mostra capaz para funções ditas masculinas e, principalmente, tornando-a mal vista, alvo de
pilhérias e deboche por parte de tantos quantos compartilham desse preconceito exagerado.
O esquema, apresentado na página seguinte, apresenta uma visão geral do Abc das
mulheres.
117
AMOR
(CASAL)
AFIRMAÇÃO NEGAÇÃO
FAMÍLIA/ CASAMENTO
DO LAR GERAL ESPECÍFICA
POSIÇÃO
SOCIAL MALÍCIA
FEMININA BRUTA
SERVIÇOS
PRAGUENTA
ESPOSA CHIFREIRA
ATENÇÃO
AO MARIDO FILHOS FALSA
CIUMENTA
DEDICAÇÃO ALCOVITEIRA ROEDEIRA
BONDADE- GASTADEIRA
(
VERGONHA
PERDIÇÃO
DO HOMEM-
RUÍNA DA
SUBORDINAÇÃO DOMINAÇÃO/PROTEÇÃO FAMÍLIA
outras funções empregatícias, muitas moças pobres vêem, como única alternativa para livrar-
últimos anos e sendo o trabalho doméstico destinado culturalmente ao sexo feminino, esse
importante observar, ainda, que é a mulher de cor quem mais predomina nessa categoria
empregatícia.9
dominante - primeiro, opõe-se à quebra do paradigma do espaço doméstico uma vez que
portanto, sexista; segundo, mantém e estimula, cada vez mais, a exploração das mulheres
portanto, classista; terceiro, porque elege como funções superiores àquelas antes reservadas
conservador.
empregada doméstica quase nunca é chamada pelo nome. Essa expressão coisifica a mulher, a
penico, “vaso apropriado para nele se urinar e defecar”, conforme registra o Dicionário
Embora o termo “peniqueira” tenha caído em desuso, o termo ainda vive e anda
impresso em livros, ou mesmo “nas bocas” das pessoas das classes menos favorecidas, que
não recorrem à outra palavra com significação análoga, ao que faz parecer, porque qualquer
9
“Estruturalmente essa relação social de dominação-subordinação torna ao mesmo tempo muito próximos
patrões e empregadas de condição muito desigual, caracterizando-se por isso, politicamente, como uma relação
injusta e intrinsecamente violenta. A violência implícita nessa relação ordinariamente é mantida sob controle,
por mecanismos de dominação e cooptação, características da ordem autoritária (paternalista inclusive) que
permeia as relações familiares, assim como as relações patronais”. (FARIAS, 1983, p.11).
119
A alcunha da empregada doméstica deve ter relação imediata com o papel da negra
nos tempos de escravidão. Sabe-se que nesses tempos não existiam banheiros e que era tão
somente a escrava quem ficava responsável pelo “serviço sujo”, ou seja, limpar os dejetos dos
penicos dos seus senhores. Essa é uma associação relevante do ponto de vista do racismo, a
associação dos serviços inferiores, porquanto exercidos pela camada negra, marginal e
dominada.
relacionamento com pessoas de condição social semelhante ou mesmo inferior a dela. Daí
vem à relação com o malandro, personagem do texto, que é um sujeito pobre, sem caráter.
“O malandro”, representado numa visão caricaturada, exótica, é uma figura que vive
de esperteza, não no sentido da inteligência, mas no de saber fazer falcatruas, praticar roubos
aquele que manipula “a peniqueira” para tirar proveitos econômicos, e é a falta de instrução o
elemento que mais colabora para que ela seja explorada facilmente por ele, sexual e
com aquela. Essa é a visão que corresponde, no imaginário coletivo, à figura do “malandro”.
Outra visão que brota do imaginário coletivo é da empregada doméstica como objeto
ausência do resguardo dos pais, a torna suscetível às investidas de exploração sexual por parte
do patrão. A relação entre a entrada no emprego e a condição de virgem fica subentendida nos
um temor tanto da parte das donas-de-casa que temem as investidas extraconjugais de seus
contextos de espacialização. Essa é percebida nas expressões “na praça”, “na esquina”, “na
casa”, “na cadeia” e “no cabaré”. O vocábulo “cabaré” designa, conforme o Novo Aurélio
século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), a “casa de diversões onde se bebe e
como intenção remeter ao modo de vida dissoluta da doméstica, de acordo com os ambientes
feminina.
socialmente como indignos para uma mulher de respeito freqüentar. A praça conota um certo
programa” (para citar um termo mais moderno), expõem-se e oferecerem seus serviços
limpar, cuidar das crianças, entre outras. É, pois, um tipo de ocupação em que essas mulheres
nos serviços que lhes são culturalmente atribuídos. Representa, pois, o modelo da ordem, do
O lado de fora, ou seja, a “rua”, é o espaço de realização das manobras perigosas que
normalmente insiste em ocupar. Por esse prisma, ela representa a desordem e a vergonha.
Delinea-se, nesse sentido, uma visão preconceituosa com relação à empregada doméstica. No
olhar do poeta, as empregadas domésticas, “as peniqueiras” são dadas à prostituição. É o que
A temporalização está marcada pelas palavras “noite”, “até mais tarde”, “agora, de 10
horas por diante”. Esses termos, na narrativa, referem-se ao momento em que geralmente
ocorre a prostituição feminina, é nesse horário que podem acontecer as investidas e aventuras
tema da prostituição se desvela nas figuras da sedução, como por exemplo: “sobrancelha
E em Nazaré da Mata
Tem piniqueira também
Pensa que é alguma coisa
Coitada não é ninguém
122
E motorista de cangica
Do fogão e da chinica
E comprar no armazém
pichauim”; este último adjetivo remete à “carapinha”, isto é o “cabelo crespo”, “lanoso”,
Um diadema encarnado
Pra prender o pichauim...
malandro”:
A piniqueira a noite
Bota aceia do patrão
Lava os pratos enxuga a pia
Tira as cinzas do fogão
Depois ageita tudo
Vai esperar o sambudo
As 10 horas no portão
Num sentido lato, o texto reflete a visão estereotipada da raça negra enquanto inferior
e malfazeja, ideal apenas para o trabalho e para “levar peia”, ou seja, receber castigos. Num
de objeto sexual, ora do patrão, ora do malandro. Note-se que o instinto sexual latente, a
feitiçaria e a disposição para a transgressão foram insígnias que mais pesaram sob essa mulher.
EMPREGO DOMÉSTICO
CONTROLE DA
RELAÇÕES PATRONAIS DOMESTICIDADE
DOMINAÇÃO
PATROA SUBORDINAÇÃO
PRECONCEITO E
MARGINALIZAÇÃO
NOJO E COM A DOMÉSTICA EMPREGADA DOMÉSTICA
REPUGNAÇÃO ELITE
(PATROA)
EXPLORAÇÃO
FULEIRAS E VADIAS SERVIÇO
SERVIÇO EM CASA
CHAUFFER DE FOGÃO EM TEMPO ALHEIA
INTEGRAL
LADRA/ SUSTENTO
ROUBA O PATRÃO FAMILIAR
humanidade. Numa acepção religiosa, é muito usada como designativo de profano, impuro,
Daí provém a idéia de “maldade”, “vaidade” e “perdição”, que subjaz a idéia da culpa
feminina e que se perfaz no ideário cristão, como se pode constatar nos versos seguintes:
Verifica-se que o repertório é vasto para a expressão da profecia dos maus tempos. A
miséria que oprime seu povo são conseqüentes do castigo mandado por Deus, contra a
maldade humana. O campo lexical da perdição, nesse sentido, é dominado pela palavra “fim”:
Só se ver é carestia
Em toda face da terra
Nosso tempo está chegando
E a profecia não erra
Do brejo até o sertão
Só se vê lamentação
Peste, fome, sêca e guerra
do mundo.
mulher e do mundo. A formulação de base verbal é que é mais rica, contendo: “casada deixa
125
outro”, “abraça outro e venera”, “tomando banho sem saia”, “mostrando as côxas de fora”,
...Mocinha de hoje
Está levando de eito
Mocinha com 13 anos
Namora qualquer sujeito
E beija êle na praça
Só falta vê-se a fumaça
Dêste mundo sem respeito
A expressão adverbial de tempo “daqui pro fim de 80”, remetendo ao caos, instalado
em função da indecência e inversão dos papéis sexuais femininos e masculinos, retrata todo o
inconformismo do poeta, que prevê a inclinação dos tempos mais recentes para o caos, ou
mesmo o fim, e para essa previsão coloca a figura feminina como culpada.
Por todas as partes da narrativa, fica posto o modo como o nordestino, mais
CORRUÇÃO DO MUNDO
CRISE
ORGIA E PECADO PROFECIA CONSEQUÊNCIAS FOME
DESGRAÇAS CARESTIA
ESTAMOS NO FIM NO MUNDO PESTE
DO MUNDO
SECA
O FIM DA ERA
FALADA
NADA DE BOM
SE ESPERA
moderno, essas são contempladas no plano da “imprudência”, aludindo-se, mais uma vez, a
“folia”. Esses vocábulos carregam o sema do êxtase e do prazer que, na ótica conservadora,
A violação dos valores morais sexuais é manifesta a partir da mulher, quando ela
a mulher passa a exercer o seu direito à sexualidade, com o uso do anti-concepcional, tanto do
ponto de vista da relação sexual propriamente dita, como quanto pela negação à procriação.
porquanto através do prazer sexual do marido, da aprovação da sogra, das amigas, aprovação
outrem.
Por fim, o conjunto de expressões: “não se toma mais pé”, “ninguém distingue quem
é”, “ninguém bota mais a mão no fogo”, imprime todo o tom de desconfiança e descrédito
com relação às pessoas de hoje em dia e isso em função da incorporação da parte delas às
ERA DA HIPOCRISIA
DEGENERAÇÃO
DA MORAL
VALORES LIBERAÇÃO
SEXUAL FEMININA
NÃO SE TEM
DIGNIDADE
PODER DE
DECISÃO
CONTROLE
O CASAMENTO
NÃO SE TEM JÁ DE FILHOS
ERA
MAIS
VIRGINDADE
PÍLULA
MULHER SE VESTE ANTI-
DE HOMEM CONCEPCIONAL
sua natureza astuciosa, maliciosa, feiticeira ou diabólica. É essa imagem que vagueia no
campo da Literatura.
Na base dessas contradições, a beleza é situada como a arma mais diabólica e eficaz
feminina para exercer total domínio sobre a figura do homem. É a partir dessas noções que o
A beleza, nesse contexto, funciona como uma espécie de feitiço, um carma feminino: é
capaz de fazer desequilibrar vários perfis e condutas esperadas de um homem: “faz até o
homem corajoso, bruto como uma fera, tornar-se mais manso”, como diz o texto. A mansidão
Num sentido ambíguo, a mesma mulher que vence o homem com seus ardis, é também
aquela que favorece na reconquista das potencialidades masculinas, quando essas encontram-
se esmorecidas, por algum motivo. A mulher bonita, nessa situação, é o “elixir da juventude”,
Configura-se o perfil da mulher objeto, que num contexto erotizado e submisso, segue
depende do grau de astúcia feminina, - a mulher perfeita para o homem sabe ousar na
intimidade com ele, ao mesmo tempo transparecendo para a sociedade uma imagem de
mulher discreta e passiva. Isso remete ao que nos diz Bevoir (1980, p. 233):
(...) De dia, ela desempenha perfidamente seu papel de escrava dócil, mas, à
noite, transforma-se em gata, em corça; introduz-se novamente em pele de
sereia ou, cavalgando uma vassoura, participa de rondas satânicas. Por vezes
é sobre o marido que exerce sua magia noturna; porém, é mais prudente
dissimular essa metamorfose a seu senhor; são estranhos que ela escolhe
como presas; eles não têm direitos sobre ela e ela continua planta, fonte,
estrela, feiticeira para eles...
130
Assim, os predicados femininos devem ser fundidos em dois modelos: o que envolve
recato, passividade e dependência masculina; por outro lado, não pode faltar à mulher a
ousadia, - ela deve ser fogosa, quando o assunto é a satisfação sexual do homem.
atitude feminina, forma o campo lexical a partir das expressões “velho se torna vaidoso”;
“fica um homem corajoso”; “briga atê com seu amigo”; “cria o nome de reimoso”.
homem, a vaidade está relacionada ao ego, à noção de virilidade. Um homem se sente vaidoso
estrofe é demonstrar que a mulher bonita tem o poder de restituir ou revitalizar as qualidades
viris masculinas. Por isso, os vocábulos “corajoso”, “briga”, “reimoso”, este no sentido de
ressaltar o “gênio turbulento”; alguém “que vive com zanga atrevessada na garganta”, como
A mulher é um corpo e deve ser o mais cobiçado por todos os homens, um troféu que
tem um único dono, ou seja, o marido. Ao mesmo tempo ela é o alimento, o ânimo masculino,
(1980).
do homem. A essência de Eva10 é mais uma vez evocada, como essência sedutora e
irresistível:
mulher de hoje com as figuras míticas que tiveram repercussão na História, tais como
Dalila, conforme a narrativa bíblica (Jz 16, 4-20), é amante de Sansão, a quem trai, em
troca da recompensa de mil e cem moedas de prata. Compactuando com os filisteus, a mulher
persuade Sansão a revelar o segredo de sua grande força, a fim de destruí-lo. Após algumas
Sansão, razão da força, enquanto ele dorme e entrega-o aos filisteus. (Cf. Dicionário bíblico,
1984, p. 209).
10
Mitos e estereótipos são de tempos em tempos evocados e cristalizados através da tv e dos meios de
comunicação de massa em geral, fornecendo uma imagem da mulher brasileira como símbolo sexual. Em
algumas das mais representativas quais sejam as campanhas publicitárias de cerveja no país, evocam a
sensualidade da brasileira através de antigos emblemas de identificação masculina: futebol e mulher, estes,
metaforizados que o são na expressão paixão nacional.
132
A menção à “Judite” no texto tem como sentido ressaltar a importância que essa
mulher teve, no sentido em que se tornou uma heroína para o seu povo. Jovem e viúva, ela
confiança do general do rei, Holofernes, fazendo-o pensar que sua vitória estava garantida.
Judite, quando convidada à tenda de Holofernes para uma ceia, mata-o cortando-lhe a cabeça,
encontrando-se, a essas alturas, o general embriagado. Num ato típico de herói, essa mulher
Na cidade de Betúlia
No reino da Palestina
Judith matou Holofernes
Mas não fez como Agripina
Judith alcançou vitória
Está nas paginas da história
Com o nome de heroína
de seu pai, divorcia-se dele, casando em seguida com Demétrio II Nicator. Cleópatra teve dois
filhos de Demétrio. Matou o primeiro e conspirou para que o segundo subisse ao trono.
Depois, tentou envenená-lo, quando foi descoberta e forçada a beber do próprio veneno que
mataria o filho.
Lucrécia Bórgia foi dita a mais bela e cobiçada mulher de toda a Roma no Séc. XV.
Os muitos relatos, que ficaram famosos na história sobre a sua personalidade, ressaltam o
esperteza. No campo da sedução amorosa, o ponto em comum é o fato de que todas elas só se
virtude da beleza. Note-se que em nenhuma instância essas mulheres despertaram a admiração
femininas que tiveram repercussão na História, tem como objetivo atentar para a semelhança
das mulheres em diferentes épocas, aclamando, mais uma vez, a idéia de que a melhor “arma”
PODER OCULTO
DALILA
A VIRTUDE
TEM PARTE FORÇA FEMININA JUDITH
COM A BELEZA MULHER BONITA
CLEÓPATRA
LUCRÉCIA
FEITIÇO BORGIA
SEDUÇÃO EFEITO DE
TRANSFORMAÇÕES
NO HOMEM HIPNOSE
EMBRIAGUEZ
que sabe a ele”, “e faça o que lhe dispunha”, “nem dê corda demais a ele”, “não demonstre
Há, na verdade, uma espécie de manipulação real ou simbólica que faz com que a
relação da mulher com seu próprio corpo seja mediatizada por sentimentos de culpa e medo
cheia de contrapontos no ser próprio da mulher: submissa, carente, amorosa, servil, mas livre
para pensar, mudar, agir, indo de encontro às informações que crivam o discurso sobre as
mulheres e estigmatizam as posturas, que, por sua vez, estão sempre carregadas de
significação moral.
A expressão “para o cabra ficar mais louco” entra no campo da malícia sexual, a qual
erotismo.
Todo um conjunto de regras, que se definem para que a mulher consiga o projeto de
arranjar um bom partido, está, segundo o poeta, amarrado ao seguimento de certas orientações
não sabê-lo. Deve, nesse sentido, trabalhar sorrateiramente para conseguir que ele fique
apenas com ela. Para isso, não deve exceder em seu temperamento, pelo contrário, “a moça
deve ter paciência”, “ser prevenida”, “nunca ficar aborrecida”. É o que dizem os versos:
feminina. Essa expressão é popularmente usada para se referir a uma forma especial, ou
“jeitinho” remete à coquete, ou seja, à astúcia feminina para conseguir despertar a atenção do
homem.
da idade mas que, frustrada na esperança de um casamento, não pode esquecer que:
O campo lexical da prudência feminina organiza-se pelas expressões “não abra a boca
(Sobre a trezena, conferir análise de As duras lamentações...). “Rezar pra ser casada”, “botar
cartas”, “ser otimista” são expressões que compõem o campo lexical das crendices e
tradições.
A expressão “botar carta” está remetendo à prática de advinhação através das cartas de
jogar. Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), a advinhação pelas cartas é muito
popular desde o séc. XVI. De acordo com a combinação das cartas, a pessoa poderá saber o
que lhe espera no futuro. “As copas e os paus são geralmente felizes. Copas e ouros anunciam
pessoas louras. Paus e espadas, morenas. Espadas e ouro dizem dos perversos, infelizes, mal-
aventurados”. Fica entendido, pois, que a mulher pode misturar todas as fórmulas populares,
Fica entendido, portanto, que a mulher tem que casar a qualquer custo e que, para
NAMORA MAIS DE UM
NÃO DIZ NÃO MAS
NÃO SE ENTREGA
QUANDO BROTO FOI
NEGAÇÃO
NÃO DEVE SER
MUITO FÁCIL OU
ATOA SÓ ANDAVA NA
CONTRAMÃO
FIGURA 17 – Campo léxico-semântico em O que uma coroa dever fazer para casar.
138
porque fere, principalmente, os direitos sagrados do marido. Homem casado, que praticasse
adultério, que copulasse com prostituta, com mulher divorciada ou mulher não judia, a rigor,
não estava cometendo adultério, mas “fornicação”. A fornicação também era reprovada, não
porque significasse a violação do direito feminino, mas porque atentava à virtude social,
diretamente ligada à virtude sexual, que convinha aos interesses masculinos em conseguir
Do contrário, parece uma maneira de o homem mostrar que era tanto mais capaz que os
prole. Por essas razões, o adultério foi encarado como um pecado e proibida enquanto prática
feminina. 11
A questão do adultério, quase sempre presente nos folhetos de Cordel, coloca-se como
Nesse folheto, é o homem quem corresponde aos ideais femininos, é ele quem ama e
olhar do cordelista.
muito cedo à mulher foi transmitida a idéia de que o homem deve ter um comportamento mais
liberto, que basta a ela fazer vistas grossas às “escapulidas” extraconjugais, se ela deseja
11
A esposa adúltera e o cúmplice tinham, tal como registra o Velho Testamento, como punição, a morte. Os
acusados de adultério eram perseguidos pelas testemunhas que lhes atiravam as primeiras pedras. Se as primeiras
pedras não conseguissem eliminar os acusados, então todos os presentes podiam colaborar com as pedradas que
quisessem.
139
preservar seu casamento. Isso está há muito tempo presente na tradição da sociedade, que vê a
traição masculina, de certo modo, como uma condição inerente à natureza do homem.
vergonha” ou “safado” - dificilmente vai ser chamado de traiçoeiro ou enganador, uma vez
A expressão “se axistir catimbó”, nesse contexto, remete aos poderes mágicos
presididos pelos rituais que podem destituir uma relação amorosa, de acordo com o
imaginário coletivo.
Se axistir catimbó
Fizeram para ele e ela
Que ele era o cravo
E ela era o capela
Ela era o carinho dele
E ele era o carinho dela
folclore brasileiro (2000), apresenta-se na acepção de “feitiços para afastar forças inimigas”,
que, quem recorre a essas vias, a esses meios ilícitos a fim de conseguir êxito nas relações
versadas no texto.
E terminou em tristeza
Em prato e desunião
Em ódio, inveja e intriga
Soberba, orgulho e questão
Enrasque, rosse e charada
Malvadeza e ingratidão
E o poeta referenda uma personalidade dupla da mulher traiçoeira, que se traduz pela
inconstância de suas atitudes para com o homem. As expressões “tanto tu me faz carinho”/
entre outros, na voz do personagem, recordando o tratamento que reservava à esposa, impõem
dirigidas tais como “olhar de Madalena”/ “pedaço de traidora”, “meu cravo”/ “minha
Para finalizar, o texto tenta mostrar que a destruição de uma relação amorosa, que
Para uma melhor compreensão do texto, convém expor o gráfico em campos léxico-
NATUREZA SEDUTORA
SEDUÇÃO
FINGIMENTO
SORRISO
SEDUTOR
CARINHO
PEDAÇO
DE
VAIDADE
inconcebível uma mulher ficar solteira por opção. Dada a limitação do espaço social
todo, pela concepção do casamento como destino único das moças púberes, e, enfim, de todo
tchau e se mandar”, “dispensar”, “ir embora”, “dar no pé e arribar”. Todas elas usadas no
de “bagunça”, “baderna” etc. Essas acepções deixam entender que a vontade do homem é
São parcos, mas bastante expressivos, os verbos que exprimem a culpa feminina pelo
desinteresse do homem, qual seja a falta de cuidado em manter a sua honra, ou melhor, a
virgindade. Esse campo é formado pelos verbos: “se abestalhou”, “se entregou”, “se
descuidou”, “lascou-se”.
E disse vê se desgruda
Gracinha ficou buchuda
Outro obstáculo, que faz com que a mulher perca a oportunidade de casar, tal como é
pelos termos “gay” e “desmunheca”, “o felá da mãe é gay”. A escolha do termo assinala o
homem. A mulher perde a chance de casar, fica marginalizada diante da sociedade, enquanto
o homem enaltece o seu ego, dando intensas provas de virilidade -, a gravidez na mulher e o
acúmulo de conquistas masculinas, por exemplo. O esquema a seguir ilustra a análise aqui
vista.
144
SOLTEIRICE
FEMININA
HOMEM
DIFICULDADE DE SOFRIMENTO DAS
ARRANJAR MULHERES
MARIDO
EM FALTA
SE QUISER
MESMO CASAR É
MELHOR
BAIXAR O NÍVEL POLIGAMIA HOMOSSEXUALIDADE
MASCULINA
DESCOMPROMISSO
E LIBERDADE
O FELA DA DESMUNHECA
MÃE É GAY
VAI EMBORA
destruição.
145
Em Uma mulher traiçoeira, um dos textos de que dispomos para a realização de nosso
mulher, definindo-a enquanto ser nobre e divino e, por outro, apresenta-lhe como perigosa.
As vicissitudes da personagem aparecem nas expressões “na mais tenra idade”, “doze
ou quatrorze anos”, nomeando a mulher como um ser frágil, delicado, no período em que
Existe, entretanto, uma linha tênue que separa as duas faces de Helena, as quais o
tempo se encarrega de definir. É ele que faz a deposição da figura casta que se faz na
substituição pelo lado da mulher ameaçadora ou perigosa, afeita aos prazeres passageiros,
carnais e materiais.
Os versos “confiada na beleza”, “julgando que a beleza”/ “de seu corpo não saia”
E assim continuava
O seu viver de orgia
Confiada na beleza
Nada em casa fazia
Julgando que a beleza
De seu corpo não saia
relacionada ao ponto de vista material, que, em última instância, recai sobre os princípios
morais.
imagem de que o homem, para ser macho, deve ser forte, enérgico, grosseiro. A imagem de
homem sentimental é banida quase por completo do perfil do nordestino. Toda vez que o
homem foge ao perfil assinalado, tratando de modo amável a sua companheira, recebe
sanções negativas da parte da sociedade, que o vê como alguém fraco e sem autoridade.
No imaginário social, o homem que é fiel à esposa, quando “ele não lhe põe as
rédeas”, fica na condição de vítima de uma mulher “aproveitadora e sádica”. Desse modo, a
relação ideal entre um casal apenas ocorre quando é o homem quem exerce a autoridade,
Nesse contexto, a traição de Helena ao marido é a prova certa de que “ela virou o
juízo”, ou seja, que ela enlouqueceu. E vale dizer que o desequilíbrio mental de Helena
12
A moralidade nordestina acerca do adultério baseia-se na questão de que a honra do marido, dependente da
fidelidade conjugal da esposa, uma vez que dela depende a manutenção do vínculo matrimonial, segundo os
princípios cristãos ou jurisdições. Essa moral baseia-se na concepção primitiva da mulher como propriedade do
homem, e o adultério feminino, portanto, uma violação dos direitos masculinos.
147
que possui a mulher ao trair e furtar o próprio marido e também a desmoralização do esposo
diante da situação:
adultério da esposa. É a forma verbal “dormindo” quem projeta a idéia de inércia do homem.
feita com a haste do vegetal de hastes delgadas e flexíveis”, ou “vara de cipó de que se servem
contexto da sociedade patriarcal, a máxima expressão de poder e o absoluto controle dos pais
13
O substantivo é usado para designar o bode, ou animal chifrudo. No uso popular, o termo é empregado, num
tom burlesco, designa o marido que é enganado pela mulher. É também àquele que finge não saber do
procedimento da mulher, nesse sentido, refere-se ao marido conformado, cabrão. (Cf. Calepino Potiguar: gíria
rio-grandense, 1980, p. 129)
148
educação dos filhos, filhas, dos escravos, enfim, de grupo subordinado ao membro da classe
MULHER
TRAIÇOEIRA
PUNIÇÃO DO
PAI
CAIXA DE
DEVACIDÃO
DEBOCHE DO
MARIDO SURRA DE
TABICA
TRAIÇÃO
VIVER DE
ORGIA
CONFIADA NA
BELEZA
Toda essa análise léxico-semântica dos vocábulos, realizada, partiu da verificação dos
itens lexicais mais relevantes na tessitura dos Cordéis estudados. Desse modo, os campos
entre os classemas e os semas específicos que puderam ser destacados nos folhetos, tomados
mais geral, porque nele se incluem lexias que se deixam interpretar como um campo mais
VELHICE
IDADE
JUVENTUDE
SEDUÇÃO,
FÍSICA
BELEZA
IMAGEM PADRÃO
VESTIMENTA ROUPA COMO CONSERVADOR
CONSTRUÇÃO
SOCIAL MARGINAL
DEPRAVAÇÃO, PROSTITUIÇÃO
VALENTIA E CORAGEM
INTRIGA
BRANCA
RAÇA
NEGRA
RELIGIOSIDADE
CULTURA
MITOS
TRADIÇÕES E COSTUMES
De acordo com a figura 21, o campo da idade compreende uma grande variedade de
o contexto da sociedade nordestina, uma mulher de idade mais avançada será fadada à eterna
solidão e solteirice, acalentada nos únicos momentos de devoção a todos os santos, quando ela
assume a função de beata. “Santo Antônio”, “São José”, “Virgem Maria” são exemplos dos
pelos padrões ideo-socioculturais. Nesse ponto, ressaltam-se valores em função da moda, que
vestimentas e adereços: “califon de meio corpo”, “calçola até o joelho”, “saia comprida e
cabeção”, “jóias”, “enfeites”, que fazem parte dos ideais dessa moda.
mulher valente, guerreira e corajosa, ícone reservado à figura das cangaceiras, símbolo de
ressalta-se o valor social atribuído ao trabalho da mulher doméstica, enquanto mulher pobre,
negra e sem instrução. Os nomes “peniqueira”, “choufer de fogão”, “nêga nojenta” constituem
“donzela”, figura como protagonista que opera num sistema de poder, dominação e
nordestino. Esse campo reflete-se praticamente em todos os Cordéis que foram objeto de
virtude da reunião de sememas, sendo muito difícil precisar o ponto onde eles se delimitam.
152
esboçadas nos Cordéis, alguns campos foram detectados com mais freqüência que outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
base à constatação das hipóteses dessa pesquisa, pôde-se comprovar, a partir do corpus
selecionado para a análise, que Literatura de Cordel, retrata, por meio das expressões e
marcas próprias da oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina. Por meio de
uma análise léxico-semântica dos folhetos, foi possível identificar aspectos da realidade
cultura, revela, mais do que os aspectos formais da língua, o modo como a mulher é percebida
e tratada na sociedade.
desse povo, que tomadas em conjunto, serviram de apoio à análise léxico-semântica dos
transversalidade dos temas presentes nos folhetos de Cordel, no sentido em que eles se
É importante dizer que a Teoria dos Campos Lexicais funcionou como método
realmente válido para a depreensão das estruturas significativas globais presentes nos
inseparável do contexto.
condiz com a própria maneira risonha do povo nordestino de encarar situações cotidianas,
expressam, por meio do léxico popular, as novas direções que são incorporadas pela
sociedade, não obstante encare, muitas vezes, com um certo grau de negativismo,
pontos mais evidentes quanto a isso é que a descrição dos Cordéis apresenta, de um lado, uma
pessimista.
capacidade de retratar os acontecimentos mais recentes é o faz com que o Cordel estabeleça a
ligação com o mundo atual. Essa é, no nosso entendimento, uma das razões pela qual, ele
as mulheres são, em decorrência disso, olhadas, quase tão somente sob a perspectiva
masculina. Esse é um dado relevante que poderia levar a uma nova investigação, a partir da
qual se conduziria uma abordagem lingüística sobre a representação feminina nos Cordéis
Resta dizer que este estudo consiste em uma pequena contribuição aos estudos da
linguagem popular e pode ser ampliado, pelo sentido profícuo da problemática, numa possível
tese de doutorado. Enseja-se, pois, que essa pesquisa possa abrir novas possibilidades a
outras, com o interesse na área da linguagem, particularmente sob o nível do léxico, para que,
juntamente com outras que surjam, fornecer subsídios à compreensão da realidade lingüística
do país.
156
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