Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
INTRODUÇÃO
A Leitura Popular da Bíblia é uma prática de leitura da Bíblia, realizada geralmente nas
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) inseridas, em meios populares na América
Latina, que procura resgatar o sentido histórico e espiritual original da Bíblia, a partir
da experiência da presença e revelação de Deus no mundo dos pobres e em função
do discernimento e comunicação da Palavra de Deus. Quanto à Hermenêutica da
Libertação, é simplesmente a teoria desta prática de leitura popular da Bíblia.
No presente artigo procuramos em primeiro lugar analisar todos os momentos
constitutivos da prática de leitura popular da Bíblia e, em segundo lugar, elaborar uma
teoria hermenêutica libertadora a partir dessa prática de leitura popular da Bíblia.
Este artigo terá três partes distintas: na primeira se aborda a raiz do processo
hermenêutico; na segunda se fala do objetivo do processo hermenêutico; na terceira,
enfim, trata-se da ruptura hermenêutica.
O mesmo acontece com todos aqueles fiéis que têm coração de pobre. Essa
experiência espiritual significa uma ruptura com a idolatria, isto é, com toda a
perversão do sentido de Deus ou com qualquer substituição de Deus por outros deu-
ses. Para ser deveras fiel é preciso destruir toda idolatria. Tudo isto é tão claro que
não precisamos demonstrá-lo. O que aqui nos interessa é frisar como esta nova
experiência espiritual se acha na raiz do processo hermenêutico latino-americano. A
leitura popular da Bíblia na América Latina encontra sua raiz, força e originalidade
nesta presença e revelação de Deus no mundo dos pobres.
O sentido espiritual, enfim, é o sentido que o texto adquire quando usado para
discernir a Palavra de Deus em nossa história atual e para comunicar essa Palavra a
outros. De certa forma pode-se afirmar que o sentido textual nos dá o presente do
texto; o sentido histórico nos dá o passado do texto, e o sentido espiritual o futuro do
texto. A ciência chamada Semiótica estuda sobretudo o sentido textual; o método
histórico-crítico estuda sobre tudo o sentido histórico do texto; também trabalha
fundamentalmente nesse sentido histórico o método denominado leitura materialista
da Bíblia e a análise sociológica do texto. A Hermenêutica tomada em sentido estrito,
trabalha essencialmente o sentido espiritual do texto. No Brasil é comum a distinção
entre texto, contexto e pretexto, que aproximadamente corresponde aos sentidos
textual, histórico e espiritual. Outros falam do sentido-em-si (textual) e do sentido-para-
nós (espiritual).
A Bíblia não só nos revela a Palavra de Deus, mas também nos revela onde e
como Deus se revela hoje em nossa história. O sentido textual ou literal da Bíblia dá
testemunho da revelação da Palavra de Deus referida a um tempo e espaço determi-
nados, mas o sentido espiritual da Bíblia permite-nos descobrir essa revelação da
Palavra de Deus em situações históricas posteriores ao tempo bíblico da revelação.
Deste modo aquilo que denominamos "cânon" corresponde ao que chamamos de
"sentido espiritual da Bíblia".
Espírito de Jesus que nos conduz a toda a verdade (cf. Jo 16,13). Jesus veio
para abrir a tória a maior proximidade e comunicação com Deus; Jesus não veio para
fechar a revelação e sim para torná-la mais transparente, mais próxima, ffiais
abundante. A Bíblia não é um "depósito" fechado, de onde só podemos "tirar" a
Palavra de Deus. O fundamentalismo reduz a Bíblia a uma letra sem Espírito e faz da
Bíblia um objeto morto meramente arqueológico. Tampouco podemos cair no extremo
oposto de negar à Bíblia sem caráter "canônico", isto é, normativo para discernir a
Palavra de Deus. Temos que fazê-lo com critérios bem determinados, e é a Bíblia
enquanto "cânon" que nos oferece esses critérios e, sobretudo, o critério por exce-
lência - Jesus. Mais adiante voltaremos a este ponto.
O sentido literal (littera) nos conta os fatos (gesta), mas estes fatos não têm
sentido para nós se não lhes descobrimos o sentido espiritual. Uma primeira dimensão
do sentido espiritual é o sentido alegórico (allegoria), que nos indica o que devemos
crer, isto é, constitui uma nova interpretação, funda uma nova teologia, uma nova
maneira de entender. Uma segunda dimensão do sentido espiritual é o sentido moral
(moralis) ou sentido tropológico ou antropológico, que nos ensina o que devernos
fazer, isto é, este sentido cria uma nova prática, uma nova maneira de ser ou agir na
história. Enfim, temos a dimensão dada pelo sentido anagógico (anagogia) ou
escatológico, que nos indica para onde devemos caminhar ou tender, isto é, cria uma
nova esperança, novo projeto histórico, nova utopia.
O sentido espiritual da Bíblia geralmente não se acha nas obras dos grandes
exegetas ou especialistas. Por isso as suas obras muitas vezes não dizem nada
àqueles que procuram em sua vida descobrir a Palavra de Deus. São obras cheias de
erudição, mas mortas, sem espírito. Como disse alguém: "Quanto mais leio os
comentários bíblicos, menos entendo a Bíblia, e quanto mais leio a Bíblia menos
entendo os comentários bíblicos". O que acontece é que os especialistas só procuram
entender o sentido textual e histórico da Bíblia e descuidam o sentido espiritual. Muitos
exegetas são apenas arqueólogos do texto bíblico, homens do passado, sem Espírito.
Os eruditos devem aprender muito mais do trabalho exegético espiritual do povo
simples que, com a ajuda do Espírito Santo e do próprio texto bíblico, têm às vezes
maior capacidade de escutar a Palavra de Deus e finalmente maior capacidade para
entender a própria Bíblia.
Como já se viu, o povo de Deus usa a Bíblia como instrumento para discernir a
Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres e para comunicá-la a outros. Mas o
problema que normalmente encontramos é que a Bíblia como instrumento, para
realizar tal discernimento e comunicação, não está nas mãos do povo, está cativa de
outro mundo que não é o mundo do pobre e é alheio à sua própria consciência. A
Bíblia, tal qual existe, não é um livro neutro, mas um livro ora lido, ora interpretado, ora
transformado segundo um sentido que contradiz o povo como sujeito, contradiz-lhe a
consciência histórica e, sobretudo, contradiz sua espiritualidade, isto é, sua própria
experiência de Deus. Sente-se uma contradição entre espiritualidade popular e Bíblia.
4. Outro caminho para se expropriar a Bíblia do povo de Deus tem sido historicismo
que reduz o sentido do texto ao seu mero significado histórico. Se o fundamentalismo
tirava do texto a dimensão histórica, o historicismo priva o texto de seu sentido
espiritual, de sua força espiritual. O texto cai prisioneiro de seu passado, e seu sentido
fica também preso a esse mesmo passado histórico. O texto bíblico fica então
reduzido a mera peça arqueológica, sem futuro algum. Quando se absolutiza o texto
bíblico como "depósito" da Palavra de Deus, do qual só se pode "sacar" um sentido,
então caímos também no historicismo. Negamos à Bíblia sua capacidade de ler a
Palavra de Deus em nossa atual história e portanto a possibilidade de "colocar" no
texto bíblico um novo sentido
Uma leitura fundamentalista da Bíblia, que faça da Bíblia um texto sem história,
e uma leitura historicista da Bíblia, que faça da Bíblia um texto sem espírito, têm
necessariamente o mesmo efeito: a Bíblia se torna uma coisa abstrata. Temos uma
Bíblia abstrata, sem história e sem força espiritual. Essa Bíblia chega a ser totalmente
alheia à história e à força espiritual dos pobres. Perde essa Bíblia suas raízes
históricas no mundo dos pobres, situando-se por cima da história dos pobres e à
margem da consciência dos oprimidos. A Bíblia sem história e sem força espiritual
deixa de ser a memória histórica dos pobres e empobrecidos.
A Bíblia, como texto abstrato, sem memória histórica e sem espírito criador de
sentido dentro do mundo dos pobres, pode ser agora alienada e expropriada
radicalmente do povo de Deus. A Bíblia abstrata, sem raízes históricas e desfibrada de
sua força espiritual, pode ser agora facilmente manipulada pelas forças dominantes e
opressoras. A Bíblia, sem suas raízes históricas e espirituais no mundo dos pobres,
começa a ser lida a partir do sujeito histórico dominante e sua consciência religiosa.
Fica a Bíblia agora cativa do mundo histórico dominante e de sua força religiosa de
dominação. O fundamentalismo e o historicismo não são assim inocentes, pois
expropriaram a Bíblia do povo e a entregaram ao sistema dominante. Uma Bíblia
assim expropriada, cativa e alienada, perde o sentido histórico e espiritual e portanto
toda a capacidade de dar testemunho histórico da Palavra de Deus ou sua capacidade
de discernir essa Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres.
1. Distorção na tradução.
2. Distorção semântica.
Esta distorção começa normalmente na própria tradução, mas é um fenômeno mais
amplo e duradouro. Ocorre essa distorção quando certos conceitos bíblicos
fundamentais são interpretados nas categorias da ideologia dominante. Através dessa
distorção de conceitos-chave, toda a Bíblia fica distorcida. Não é preciso tomar todos
os conceitos bíblicos, mas aqueles que estruturam em profundidade o pensamento
bíblico. Vamos dar um exemplo: os conceitos sarx e pneuma que, literalmente, se
traduzem por "carne" e "espírito expressão de duas tendências fundamentais do ser
humano: a carne exprime a tendência para a morte, e o espírito a tendência para a
vida. O pecado reforça a tendência para a morte. O Espírito Santo faz triunfar a
tendência para a vida. Sarx-pneuma, portanto, devem ser traduzidos no código da
oposição morte-vida Mas o que acontece normalmente é uma distorção semântica:
sarx-pneuma é interpretado no código semântico marcado pela oposição corpo-alma.
Ninguém ignora que o dualismo "corpo-alma", de Aristóteles até hoje, é a estrutura
fundamental da ideologia dominante: a alma deve dominar o corpo, como o homem
livre ao escravo, o homem à mulher, o ser humano ao animal etc.
3. Distorção estrutural.
Pode ser múltipla e variada. Trata-se, por ex., da classificação e estruturação dos
livros bíblicos, privilegiando este e relegando aquele a um lugar secundário. Hoje, por
ex., redescobrimos o Livro de Rute, a carta de Paulo a Filêmon ou a carta de Tiago,
que durante muito tempo foram livros esquecidos ou menosprezados. Até no texto de
um livro se podem por vezes criar estruturas que privilegiam certos passos e
subestimam outros; privilegiam estas personagens e esquecem outras.
Por ex., no livro do Gênesis se despreza a figura de Agar ou, no Evangelho de
Marcos, subestima-se a cena em Betânia onde Jesus é ungido por uma mulher (cap.
14).