O jipe era confortável e, parecia mesmo o Mercedes da
minha mãe. Ainda que estivesse apavorado com o momento sinistro, nada temia demais porque Sally estava ali comigo, a olhar sem distracções para a escuridão que nos antecedia. Não havia maneira de fugir. Estávamos ali os dois, num carro, no meio do nada e calados. Nenhum de nós cedia. O que estaria Sally a esconder para não se abrir comigo? - Vais falar ou vamos continuar assim, calados e "amuados"? - Queixei-me com indignação. As suas mãos mexiam-se de maneira a que o volante deixava, mas ao mesmo tempo que eu falava, elas tomavam uma forma mais marcada, ainda que de maneira esforçada. Não me esquecera de que ela era muito mais frágil do que eu pensava. Na verdade só estava com uma força superior à minha quando era para me proteger. - Lembras-te do que a Jennifer te disse acerca do Kelvin, e de tudo o que tinha a ver com a família que encontrou a criança? Eu ainda sei que tu não percebes-te isso muito bem. - Tens razão. Fiquei confuso em relação a isso. - Com medo... Talvez? Não a olhei porque aquilo era uma verdade incontornável, e, se ela me compreendesse, saberia que estaria a minha amizade em causa com ela. A estrada parecia irregular. Um escuro e um cinzento claro estavam a cintilar enquanto corriam e o jipe os deixava para trás, como se eles pedissem ajuda e nos, não quiséssemos ligar. Seria essa a minha maneira de ver a nossa verdadeira situação, ou a situação de Jennifer e Kelvin? O que poderia eu fazer para conseguir integrar-me de modo amistoso num filme que me envolvia de medo? Tinha a certeza de que ela me protegeria e não podia cair na escuridão. - Quem são o Thomas e a Miriam? - Questionei-a de repente. O seu olhar era terno e muito caloroso. Era bom demais poder desfrutar de uma relação tão próxima e compreendida. - São meus irmãos. Vieram para cá quando nos conhecemos. - Mas tu disses-te que só tinhas o Kevin... Porque não disses-te alguma coisa sobre eles também? - Perguntei a levantar uma das sobrancelhas com desconfiança. - Lembras-te quando nos conhecemos? Quando falamos pela segunda vez? - Perfeitamente, e agradeço por esse momento... Sally tossiu e afastou-se no banco, fechando ainda mais os punhos no volante. O ponteiro estava a bater nos cem quilómetros por hora, nada a que não tivesse habituado, mas, ela preparava-se para mudar a velocidade para bastante mais. - Por causa deles, os Nirvan podem vir a castigar-nos por falta de conduta para com a nossa espécie. Os Nirvan são três elementos que têm poder sobre todas as famílias de gargulas. Se temos estas habilidades, muito se devem a eles. Quando me transformei... – Estava triste e com medo – Eles ajudaram-me. Um dos malditos Ridell apanhou um outro irmão meu, o Ivan. - Ele estava a invadir-lhes a aldeia – Supus com a ideia a vaguear entre a sua família e a história de Jennifer. Pelos vistos, o mito era bem real, e Jennifer não me contara tudo. Teria Sally ido a GreenTree para lhe dar uma repreensão por causa da verdade que procurava omitir? Deixei-a continuar sem mexer um segundo os meus lábios. - Ele apenas estava à procura de um caminho, quando foram atrás dele. O Ivan não gostava de alguém que o pudesse enfrentar, ou até que o pudesse enervar, e, na verdade, até o ajudaram, pois estava à procura de alimento – Entrevi com medo. A minha voz tremeu e falei muito baixo, não a encarando. - Matam humanos - Engoli em seco com o receio de estar ali. - Nada disso, e não tenhas medo. Nada faria para te assustar, ou fazer mal. Desculpa-me. E não, não nos alimentamos sequer de carne, apenas de muitas das gargulas que vês, foram humanos como eu, que adormeceram na escuridão da noite e outros em plena luz do dia. Apenas comemos uma vez por ano, o vosso ano, e apenas comemos frutos vermelhos como amoras e frutos silvestres. Mas, o Ivan não teve alternativa, e além disso já não se alimentava de carne desde a data em que foi transformado, que seria mais ou menos há quinhentos anos. Virei-me na direcção de casa fazendo sinal com a cabeça, ao tentar fugir para fora do carro. Ouvi Sally a murmurar demasiado alto atrás de mim, ainda no interior do jipe. - Não percebo o que dizes, Sally – Disse com um som de ameaça. - Lá em casa, és mais vulnerável a todos, de seres prisioneira, para te poderes movimentar - Afirmou mordendo o lábio inferior como sinal de apreensão, dirigindo-se devagar e delicadamente a minha casa, enquanto eu abria o portão. - Claro, sem margem de dúvidas – Retorqui com um sorriso malvado. - Tenho que ter alguma liberdade. Desconheci o som radiante de Sally, apesar do que lhe dissera a tentar impor-me. O som fez com que me sentisse mais estúpido do que quando a conhecera. Entretanto, abri a porta ferrugenta, e meti o meu casaco para ainda do cabide que estava junto à mesma, do lado de dentro, olhando Sally a trancar as portas do jipe com uma chave a distância. Dei-lhe espaço para que passa-se e desimpedi o caminho, ao que ela se precipitou com um movimento de pura satisfação. - Ora, ora! - Observei com alegria e surpresa. - Tenho tempo! - Retorquiu ela - Espero não estar a incomodar. O seu olhar escuro e penetrante pousou em cada canto, e em mim, com uma concentração indecifrável. - Não, não há problema. Só não quero que fiques desapontada, e pouco tempo. Sally esboçou um rasto de sorriso. - Em relação a estar desiludida, ainda nada posso apontar, quero dizer, por fora a casa é bela. Mas em relação ao segundo ponto... Olhou-me com descontentamento. Era claro que não iria ficar por muito que desejasse. Sally poderia estar a fazer "bluff" e o meu desagrado permanecia inalterável. - E sabes que prometi estar cedo em casa – Acrescentou com o olhar na porta. Depois abanou a cabeça e saiu porta fora, voltando segundos depois com um livro muito antigo. Talvez estivesse mesmo disposta a ficar, ou não traria aquilo para dentro. A não ser que, me fosse dar uma alergia com o pó que aquilo fazia voar. - É velho – Verifiquei estupidamente, pegando com cuidado o objecto que ela tinha. Mostrava estar ansioso, como se ela fosse contar-me um conto antes de eu adormecer. - Podes confirmar – Respondeu Sally. - E o tem aí? - Interroguei olhando-a com medo ascendente, pois permanecia de pé. - Segredos e histórias – Disse, com a voz a oscilar entre o baixo e o normal. Porém ouvi-a com bastante clareza e percebi-a. As folhas do livro enrugado na capa e mas beiras, parecia tão frágil quanto eu as imaginava. - Então e o que conta a história? - Muita coisa! - Sorriu. Era fácil para ela estar sempre alegre – Da minha família. Da minha espécie. - Boa – Entusiasmei-me - Ainda por cima conta coisas sobre a vossa espécie. Conta por favor! Apontou com o indicador para a primeira folha. - Este é o meu tetravô. É um homem... Era um homem sem igual, que tratou de todos os que aí existiram. Aí começou a nossa "existência". - Era o principal – Tentei com precaução – É muito importante para vós não é? - Quis completar com ainda mais perguntas. - Sim. - Ah. Fico admirado por ainda teres isto. Fitou-me devagar, atraindo o meu ser até ela para ficar a adorá-la. - Isto foi mais um empréstimo dado. - Um belo "roubo" – A minha voz exprimia uma calorosa brincadeira – E ninguém deu conta do desaparecimento dessa preciosidade... Realmente és uma pessoa e tanto! Acenou com a cabeça, de uma maneira a brincar com a situação, remexendo no meio do livro como se procurasse alguma coisa. - Daniel, aceitarias que este álbum fosse também um álbum teu? É que tenho ainda um espaço para uma fotografia, e gostaria de a preencher. Subi de novo o olhar, extasiado. - Eu e tu então. A seguir saí dali e fui até uma gaveta junto ao telefone, que se abriu com mais força do que eu esperava, espalhando papéis por todo o lado. A minha foto apareceu e eu recuperei-a, sem ter tempo para arrumar o resto. - Acho que isto ficaria melhor contigo - Disse-lhe. Reflecti como eu gostava de olhar para a fotografia com a imagem dela lá espelhada. - Teimoso – Murmurou Sally por entre dentes. - Mas vais contar-me a história ou não? Não podia esperar mais, com os nervos de decifrar aquele mistério. Sally olhou-me por uns segundos e não pude parar para pensar sequer em como a noite se prolongava. - Um pouco – Acabou por concordar – Penso que o meu irmão Thomas, não me olhará da mesma maneira quando souber do sucedido. Desde então, falará comigo de uma maneira estranha e distante, já o conheço! Acho que ele não voltará a deixar o livro por mãos alheias. O resto dos presentes neste livro foram alguns tios, o meu avô e mesmo no fim, apareço eu e depois os meus irmãos – Percorreu o livro a correr e chegou à penúltima página, onde ela era pequena. - Eras mesmo linda – Congratulei-a com ela a corar. Ela ajeitou-se um pouco e recostou-se no sofá onde estávamos. Momentaneamente fechou o livro e pousou-o, cerrando o maxilar pronta a falar. - Posso contar a história ou não? Então o que aconteceu foi que, há muito tempo... - Que idade tens agora? - Interrompi depois de ouvir o "há muito tempo". - Os mesmos que tu... - Continua então. Era só mera curiosidade – Resmunguei. - Como estava a dizer, há muito tempo eu estava a sair da escola e já era de noite. A lua mal se via, porque estava quase a chover e havia muitas nuvens. Depois de algum tempo sozinha, meti-me num beco, e, pensei que me tinha dirigido ao certo, pois a minha casa ficaria após esse beco, mas não era o beco que esperava, e este não tinha saída – Demonstrou um rosto bastante triste. - Se não quiseres continuar não faz mal – Assegurei notando a sua dificuldade em voltar ao passado. - Nem pensar! Já não posso voltar atrás. Agora conto tudo. - Estou a ouvir-te – Brinquei, ainda que bastante tenso pelo que viria aí. Ela tomou nova coragem e inspirou, agarrando os joelhos com firmeza e grande força. - Eu era jovem e um pouco tímida, apesar de ter bastantes rapazes interessados em mim. Era bastante atraente, até para mim, quando olhava o espelho. Devia pensar ser a rainha da escola, pois nenhuma das outras raparigas tinha o meu estilo e, algumas até tinham inveja... Olhei-a com grande confiança e orgulho. Se antes era linda, agora deveria ser bem mais. Haveria agora alguém com inveja, ainda? Miriam era simpática, mas deveria ter tanta inveja como as amigas que ela tivera no passado... Ou estaria enganado? Pensava que não. - O beco era escuro e decidi sair dali, mas, alguém se moveu e, atrás, dos lados e à frente apareceram homens e rapazes loucos para me terem – Estava envergonhada, mas mesmo assim quis continuar - E eu assustei-me imenso. Logo desatei a fugir para trás e consegui-me esconder atrás de um caixote ali ao pé, mas eles encontraram-me. Usavam capuchos negros e alguns deles tinham tatuagens estranhas, que pareciam morcegos curvados sobre si. Depois pegaram em mim e puxaram-me para dentro de uma das portas de ferro que estavam junto à parede, quase omitidas de olhos humanos. Na verdade, os tijolos da porta eram os mesmos da parede circundante, e assim ninguém dava de conta. Lá dentro, era tudo medieval, com espadas e escudos, e, após um dos homens, de cabelo curto e claro, olhos de serpente e uns braços fortes, me ter empurrado abruptamente para o meio do pátio aclarado apenas por tochas, vi um trono. - Um trono? Um trono de rei? Quem eram eles afinal? - Perguntei com o sangue a fervilhar-me nas veias. Nesse momento Sally agitou-se como se estivesse acabado de sentir um calafrio. O clima tinha ficado gelado desde que ela começara a contar a verídica história, e por isso, fui ver se estava alguma coisa aberta, mas não era esse o caso. O frio teria sido provocado pelo nosso medo e angústia. Ao menos ela ainda ali estava, e ao meu lado. - Lembro-me como se fosse hoje, o que ele falou... – Reflectiu com o olhar pregado ao chão, olhando em frente com os olhos bem abertos e vermelhos de sangue. - Chamava-se Raüs e era o mais poderoso. Ao lado apareceram os outros dois, Lexis e um, que penso ter sido o irmão dele, e o mais razoável a níveis de violência. Os três riam-se – Aí contraiu-se e afastou-se de mim, e eu não entendia o porquê de tal acto – E fizeram-me no que sou hoje, mas não de uma maneira muito... Amigável, até porque dei bastante luta, mas em vão. Fiquei fragilizado com a sua tristeza em ter de contar tudo aquilo. Não era coisa que eu devesse ter feito, mas a curiosidade falou mais alto. - Se soubesses o quanto me arrependo em te ter obrigado a isto... A contar o que não queria... - Fui eu! - Interrompeu pondo-me os dedos suavemente nos lábios para que não falasse mais – A tua companhia faz-me bem. Sinto-me verdadeiramente humana, a cem por cento – E sorriu. Agora eu sabia que chegara a hora. Com ou sem habilidades, eu seria muito mais que um namorado para Sally. Teria de a proteger com a minha própria vida, e isso não mudaria nada, porque sabia que se fosse possível alguma coisa, apenas seria que o nosso futuro fosse eterno, para ambos.