Sei sulla pagina 1di 7

Educação Unisinos

13(2):162-168, maio/agosto 2009


© 2009 by Unisinos - doi: 10.4013/edu.2009.132.08

Contribuições do ensino de ciências


para o desenvolvimento moral

Science education’s contribution


to moral development

Márcio Andrei Guimarães


marcioandrei@ufs.br
Washington Luiz Pacheco de Carvalho
washcar@dfq.feis.unesp.br

Resumo: Neste trabalho, destacamos algumas contribuições do ensino de ciências para o


desenvolvimento moral dos estudantes. Adotamos a perspectiva cognitivista de Piaget (1994) e
Kohlberg (1984), com ênfase na resolução de dilemas sociocientíficos.

Palavras-chave: ensino de ciências, desenvolvimento moral, questões sociocientíficas.

Abstract: This paper presents the contributions of science education to student’s moral
development. The cognitive approach of Piaget (1994) and Kohlberg (1984) is adopted with
emphasis to the resolution of socioscientific dilemmas.

Key words: science teaching, moral development, socioscientific issues.

Quando se fala em moral ou de- tipo de questionamento. Este tipo excessiva e dogmatismo. Como diz
senvolviemtno moral, é inevitável a de EMC levava, inevitavelmente, à La Taille (2006, p. 28), o Governo
aproximação com o antigo curso de heteronomia, ou seja, os estudantes Militar ajudou a empurrar “a palavra
Educação Moral e Cívica (EMC), faziam seus julgamentos morais com moral para os calabouços semânticos
existente nas escolas brasileiras base em regras impostas de forma da Educação”. Em vista disso, hoje,
há alguns anos. Esta disciplina foi coercitiva, fato que ainda hoje, infe- há a preferência pelo uso da palavra
implantada nas escolas brasileiras lizmente, impera em algumas escolas ética, conforme podemos ver nos
pela Lei nº 5692 de 1971 (Brasil, (Araújo, 1996). É óbvio que esse Temas Transversais dos Parâmetros
1971), seguindo as recomendações tipo de educação moral está longe de Curriculares Nacionais (PCN) (Bra-
do Decreto-Lei nº 869 de 1969 (Bra- atingir objetivos ligados à formação sil, 1997a, 1998a). Apesar de terem
sil, 1969). Este Decreto-Lei também de pessoas racionais, críticas, livres sentidos diferentes, moral e ética,
criou a Comissão Nacional de Moral e autônomas. como mostraremos adiante, a ética
e Civismo, cujo objetivo era o de Mesmo após a eliminação dessa tratada nos PCNs é, evidentemente,
implementar e fiscalizar os ideais de disciplina do currículo, a palavra a moral de que falamos.
educação moral do Governo Militar moral causa, ainda, muitas vezes, Mesmo com todas ações que
nas escolas. Destacamos que o tipo um mal-estar entre as pessoas, já que denotam preocupação e busca de
de moral abordada na disciplina de remete ao passado de obediência da soluções para resolver problemas
EMC baseava-se na obediência às EMC. Além disso, a palavra moral relativos ao tema, os objetivos da
regras estabelecidas, sem qualquer lembra moralismo, normatização educação moral estão longe dessa
Contribuições do ensino de ciências para o desenvolvimento moral

visão simplista, a qual foi assumida dimensão dos deveres. Uma atitude sinônimo de sentimento de culpa e
pelas pessoas e pelos governos que moral responde às perguntas: o que autopunição.
instituíram a educação moral com o devo fazer e como devo agir? Tanto Durkheim (2008) como
objetivo único de manter a ordem e A ética, por sua vez, é “uma re- Freud (1974) não elegem um conte-
a heteronomia. A educação moral é flexão filosófica ou científica sobre údo para a moral. Os deveres morais
importante, de fato, pois permite o a moral” (La Taille, 2006, p. 26). variam de acordo com a sociedade
exercício da justiça, da igualdade e Assim, o dever de não mentir perten- e a eles se deve obedecer. Isso é o
da equidade. Ela remete à educação ce à dimensão moral, mas a reflexão que Kant (2005) descreve como a
para valores, a qual permite fazer sobre o fato de, algumas vezes, uma moral heterônoma, a qual depende da
frente à sociedade marcada pela mentira poder ser melhor ou menos autoridade e da coerção, e é guiada
“tecnificação e racionalização das danosa que a verdade pertence à di- por motivos extrínsecos à pessoa. O
relações sociais” (Dias, 1999, s.p.). mensão ética. Entretanto, essas não indivíduo que vive em heteronomia
A educação está pautada pela coope- são as únicas definições possíveis não enxerga o valor das regras em si,
ração e solidariedade em detrimento para moral e ética. Outra definição mas o valor que a sociedade atribui
do individualismo, da competição muito comum é aquela que demarca às regras.
e da fragmentação. Apesar desta as esferas públicas e privadas: a Na heteronomia, o papel da ra-
contribuição, não acreditamos que moral é o conjunto de normas e de- zão é legitimar a moral, conhecer
haja a necessidade de uma disci- veres a serem observados na esfera e compreender as regras impostas
plina específica para isso. Cada privada, enquanto a ética se relaciona pela sociedade para poder aplicá-las.
disciplina escolar pode, dentro dos às normas e aos deveres a serem Em suma, ser moral é obedecer aos
seus conteúdos, abordar aspectos respeitados nos espaços públicos (La mandamentos sociais. Os indivíduos
morais e éticos. Taille, 2006). Para diversos filósofos, aprendem a moral por meio de mo-
É exatamente isso o que sugerem contudo, não há muito sentido na delos prontos, aos quais se adaptam
os PCNs, ao considerarem a ética distinção entre moral e ética (Canto- (La Taille, 2006).
e a moral como temas transversais Sperber e Ogien, 2004). Outro aspecto importante nesta
(Brasil, 1997a, 1998a). Todas as dis- Conforme Freud (1974) e discussão é que esse tipo de moral
ciplinas escolares, de alguma forma, Durkheim (2008), a moral é algo tem suas bases somente na afeti-
podem tratar da ética e da educação externo ao indivíduo. As regras são vidade. Nesse sentido, as pessoas
moral em suas diferentes dimensões. ditadas pela sociedade e o indivíduo reconhecem uma força superior
Apesar de as indicações dos PCNs deve, invariavelmente, obedecer- que determina as leis que devem
e da importância e relevância dos lhes. O não cumprimento das regras ser seguidas. O grande problema de
estudos em educação moral, não há e leis sociais pode levar o indivíduo uma abordagem da moral, fundada
pesquisas que identifiquem procedi- à punição ou ao banimento social. exclusivamente na afetividade, é
mentos educativos que contemplem Essa moral visa manter a ordem o de cairmos no relativismo moral
a dimensão ética e moral dos conte- social e é determinada pela socie- para o qual não existem preceitos
údos (Dias, 1999). Por essa razão, dade. Durkheim (2008) tenta fundar morais universais. A moral, dessa
neste trabalho, buscamos mostrar uma moral laica, com base na razão, forma, passa a ser de cada indivíduo
possíveis contribuições do ensino eliminando todo elemento religioso ou sociedade. Afirmar isto é o mes-
de ciência para o desenvolvimento da educação moral. Para substituir mo que dizer que a moral não existe
moral dos estudantes. a religião, o autor elege a sociedade ou que cada um age conforme a sua
como o novo ser sagrado, ao qual moral pessoal ou cultural. Um relati-
Moral e desenvolvimento as pessoas devem aderir. Para ele, vista moral pode observar barbáries
moral ser moral é agir na orientação de cometidas em algumas sociedades
fins impessoais e não dos próprios e culturas, sem emitir qualquer
O termo moral é, não raras ve- interesses, ou seja, ser moral é buscar juízo de condenação moral. Ser
zes, confundido com ética, e seus o bem da sociedade e seguir as suas tolerante em relação às diferentes
usos já estão desgastados, já que regras. Segundo Freud (1974), a culturas não significa endossar
vêm sendo empregados de forma moral se origina da renúncia incons- atos reprováveis do ponto de vista
acrítica (Romano, 2001). Por isso, ciente das pulsões, dos desejos e da moral. Como exemplos negativos
julgamos importante destacar o que agressividade. O superego é o guia da moral ligada à afetividade, que 163
queremos dizer quando falamos de moral e dita ao ego o que é certo ou envolve o respeito à autoridade e
moral: consideramos moral ligada à errado. Por isso, agir moralmente é não às regras e leis em si, tomamos

volume 13, número 2, maio • agosto 2009


Márcio Andrei Guimarães, Washington Luiz Pacheco de Carvalho

os experimentos de Milgram (1963). Nos trabalhos de Piaget (1994), regular a vida social. A convivência
Estes experimentos mostraram que foram usados dilemas morais ava- social e a maior maturidade cognitiva
as pessoas eram capazes de atos liados por crianças de diferentes da criança fazem com que ela perce-
contra a vida, simplesmente porque idades. Em um desses dilemas, o ba as normas como produto de um
foram assim mandadas por alguém autor pede para que as crianças acordo mútuo e não como um código
que detinha o poder. Nesse âmbito, digam quem cometeu a falta mais estabelecido por uma autoridade. No
estão algumas das críticas feitas pe- grave e, por isso, merece ser punido: jogo de pique-esconde, Piaget (1994)
los PCNs (Brasil, 1997a, 1998a) ao um menino que, acidentalmente, que- observou que havia um paralelo com
componente exclusivamente afetivo brou doze xícaras, ou outro que, por o jogo de bolas de gude. Porém,
da educação moral. desobediência, quebrou uma única. notou que as meninas davam mais
Em contraposição à moral he- Invariavelmente, crianças em torno importância à habilidade no jogo do
terônoma, Kant (2005) vê a moral dos seis anos atribuem a falta mais que a sua estrutura jurídica.
autônoma como o ideal a ser alcan- grave ao menino que quebrou doze Frente a esses resultados, Piaget
çado. Nela, as decisões e ações vêm xícaras, ou seja, as consequências da (1994) concluiu que há um paralelo
do interior e da razão dos sujeitos ação são quantificadas. Por volta dos entre o desenvolvimento moral e o
e não da coerção social. De acordo 11 anos, a intenção torna-se o fator desenvolvimento cognitivo e que
com essa visão de moral, aplicam- preponderante no julgamento moral as crianças partem de um estágio
se os imperativos kantianos: “Age e as crianças dessa idade atribuem a de anomia rumo ao estágio de au-
segundo uma máxima tal que possas falta mais grave ao garoto que de- tonomia, passando pelo estágio de
ao mesmo tempo querer que ela se sobedeceu a uma ordem. Da mesma heteronomia. Para Piaget (1994)
torne lei universal” (Kant, 2005, p. forma, em outro dilema, as crianças esses três estágios seriam universais
59); e “Age de tal maneira que uses até sete anos julgam a consequência e sempre estariam presentes, nessa
a humanidade, tanto na tua pessoa material de um ato, ao afirmarem ordem, durante o desenvolvimento
como na pessoa de qualquer outro, que um menino que roubou um pão da criança.
sempre e simultaneamente como fim para dar a um amigo faminto agiu Na anomia, não há qualquer
e nunca simplesmente como meio” pior do que uma menina que, por consciência de obrigação para com
(Kant, 2005, p. 69). vaidade, roubou uma fita, pois o pão os outros, fato que só ocorre quan-
É evidente a ênfase dada à razão é mais caro que a fita. Após os sete do a criança começa a diferenciar o
e ao respeito às pessoas, nos impera- anos, as respostas se inverteram, e o eu do outro. Na heteronomia, ocor-
tivos kantianos. Aliás, segundo Kant motivo do roubo tornou-se o foco da re o respeito unilateral, baseado
(2005), só pode haver moral fundada avaliação das crianças. nas relações de coação social pela
na razão. Quaisquer outras constata- Para estudar o respeito às regras, autoridade. Nessa fase, os deveres
ções são heteronomia. Contudo, isso Piaget (1994) analisou as atitudes dos são exteriores ao indivíduo, e as
não significa que todas as pessoas são meninos no jogo de bola de gude e as regras são obedecidas por medo
capazes de aplicar os imperativos atitudes das meninas em no jogo de ou por amor. E, nesse sentido, mais
kantianos, mesmo os conhecendo. pique-esconde. Em relação ao jogo uma vez é destacado o componente
Muitas vezes, a coerção social ou de bola de gude, as crianças passam afetivo da moral heterônoma. Na
as inclinações são mais fortes que a por uma fase em que não há regras, autonomia, ocorrem as formas
autonomia (Kant, 2005). Da mesma mas existe a simples manipulação de respeito mútuo e as crianças
forma, os PCNs admitem que o con- dos objetos. Em uma fase seguinte, entendem as regras como um tipo
texto social possa coibir a autonomia a criança toma consciência das regras de contrato social que pode ser
(Brasil, 1997a). que, apesar de consideradas sagradas julgado e modificado. O sujeito
Seguindo as categorias kantianas e invioláveis, não são aplicadas. A descobre a capacidade de intuir
de autonomia e heteronomia, Piaget prática do jogo é uma imitação do normas. Segundo Freitas (2002), o
(1994) desenvolveu uma pesquisa que fazem as crianças mais velhas e respeito unilateral é essencial para
para investigar se há um paralelo visa somente à satisfação individual, o desenvolvimento de outros tipos
entre o desenvolvimento intelectual e ou seja, é um jogo egocêntrico. Entre de respeito. No entanto, também
o desenvolvimento moral. Para isso, os sete e dez anos, a criança passa são necessárias situações em que
analisou o comportamento verbal a ter prazer em competir com os a criança viva a moral autônoma,
164 das crianças em relação às regras do outros, obedecendo a uma série de re- a qual se baseia no respeito e na
jogo, à distração, à mentira e ao rou- gras pré-estabelecidas. As regras são igualdade nas relações sociais. É
bo, e explorou a noção de justiça. reconhecidas como essenciais para importante salientar que nas socie-

Educação Unisinos
Contribuições do ensino de ciências para o desenvolvimento moral

dades, a heteronomia é um fator Nos dilemas kohlberguianos,


unificante, e as pessoas podem ser Na Europa, uma mulher estava à beira não interessa o julgamento que as
autônomas no cumprimento de da morte devido a uma doença muito pessoas dão aos atos de Heinz. O
grave, um tipo de câncer. Havia apenas
algumas regras, mas heterônomas, importante são as formas como esses
um remédio que os médicos achavam
no cumprimento de outras (Duskas atos eram justificados. Por exemplo,
que poderia salvá-la. Era uma forma
e Whelan, 1994). de radium pela qual um farmacêutico alguém poderia dizer que o o marido
Seguindo o programa de pes- estava cobrando dez vezes mais do agiu certo em roubar um remédio
quisa piagetiano, Kohlberg (1984) que o preço de fabricação da droga. para salvar sua esposa, desde que
se debruçou mais profundamente O marido da mulher doente, Heinz, não tenha sido pego em flagrante, ou
sobre as questões relacionadas ao foi a todo mundo que ele conhecia que o marido deve roubar para sal-
desenvolvimento moral e deu ênfase para pedir dinheiro emprestado, mas var a vida de sua mulher porque ele
só conseguiu juntar mais ou menos a
à noção de justiça que, segundo ele, precisa dela para cozinhar, ou, ainda,
metade do que o farmacêutico estava
era a virtude moral por excelência cobrando. Ele disse ao farmacêutico “se ele não roubasse, seus amigos
(Biaggio, 2006). Kohlberg (1984) que sua mulher estava à morte, e diriam que ele é um cara mau, deixou
verificou, em seus trabalhos, assim pediu que lho vendesse mais barato a mulher morrer” (Biaggio, 2006,
como Piaget (1932), a existência ou que o deixasse pagar depois. Mas p. 25). Em todos os casos, o roubo
de uma sequência de estágios de o farmacêutico disse: ‘Não, eu desco- foi considerado correto, mas as jus-
desenvolvimento moral que consi- bri a droga e vou fazer dinheiro com tificativas foram diferentes. Cada
isso’. Então, Heinz ficou desesperado
derou como universais, pois foram uma dessas justificativas remete
e assaltou a loja para roubar o remédio
identificados em diferentes cultu- para sua mulher. O marido deveria ter
aos estágios 1, 2 e 3 dos estudos de
ras. Kohlberg (1984) dividiu seus feito isso? Por quê? (Biaggio, 2006, Kohlberg (1984), respectivamente,
estágios em três níveis, com dois p. 29). conforme Tabela 1.
estágios cada: Pré-Convencional, Os Parâmetros Curriculares
Convencional e Pós-Convencional, As respostas dadas a essas e a ou- Nacionais (Brasil, 1997a, 1998a)
mostrados na Tabela 1: tras perguntas eram utilizadas para também destacam a utilização de
Para chegar a esses resultados identificar o nível de desenvolvi- dilemas morais para uma educação
Kohlberg (1984) utilizou, assim como mento moral de cada indivíduo. Vale moral condizente com a autono-
Piaget (1994), dilemas morais que lembrar que, apesar de postular seis mia. O debate de dilemas morais é
mostram situações em que o indivíduo níveis de desenvolvimento moral, indicado como uma das formas de
deve escolher e justificar ações dos Kohlberg (1984) considerava que realização da educação moral, pois,
personagens envolvidos. O dilema poucas pessoas chegavam ao estágio por meio dele, os estudantes podem
kohlberguiano mais famoso é o dilema 6, motivo por que era tão raro nos experimentar o diálogo e aprender
de Heinz, transcrito a seguir: resultados de suas pesquisas. a ouvir opiniões e justificativas

Tabela 1. Níveis de desenvolvimento moral, segundo Kohlberg (1984) (adaptado de Biaggio, 2006, p. 24-27).
Table 1. Levels of moral development according to Kohlberg (1984) (adapted from Biaggio, 2006, p. 24-27).

Nível Estágio Descrição


Pré-convencional 1 Orientação para a punição e obediência: nesse estágio a moralidade é definida em termos
de suas conseqüências físicas para o agente. Se a ação é punida, é moralmente errada;
se não é punida, é moralmente certa.
2 Hedonismo instrumental: a ação moralmente correta é definida em termos de prazer ou
da satisfação das necessidades pessoais.
Convencional 3 Moralidade do bom garoto, de aprovação social e relações interpessoais: o comportamento
certo é o que leva à aprovação dos outros.
4 Orientação para a lei e a ordem: nessa fase há grande respeito pela autoridade, por regras
fixas e pela manutenção da ordem social. Deve-se cumprir o dever.
Pós-Convencional 5 A orientação para o contrato social: as leis não são mais consideradas válidas pelo mero
fato de serem leis: as leis injustas devem ser mudadas. 165
6 Princípios universais de consciência: o indivíduo reconhece princípios morais universais
da consciência individual e age com eles.

volume 13, número 2, maio • agosto 2009


Márcio Andrei Guimarães, Washington Luiz Pacheco de Carvalho

diferentes, de forma a fazer avalia- moral, que considera as ramificações Nesse contexto, várias comissões
ções e o equacionamento moral das morais das decisões tomadas em internacionais debateram a utiliza-
situações propostas. questões sociocientíficas. ção das células-tronco em pesquisa
Nesse sentido, o ensino de ciên- Em pesquisa recente, descrita em biomédica, mas não chegaram a con-
cias pode contribuir com a discussão Guimarães (2005), verificamos que senso. Isso mostra que, em questões
de questões sociocientíficas em sala os estudantes eram contra a utili- de cunho moral que envolvem as
de aula. zação de engenharia genética para crenças das pessoas, não existe uma
fins estéticos, por imaginarem que única solução (Neri, 2001). Mesmo
Questões sociocientíficas isso poderia levar à criação de uma no interior das diferentes religiões,
e desenvolvimento moral nova casta de pessoas que teriam houve desacordos quanto à utiliza-
como obter vantagens futuras. Nessa ção das células-tronco e o estatuto
Questões sociocientíficas são mesma pesquisa, alguns estudantes do embrião (NBAC, 2000).
aquelas que envolvem a interação usavam argumentos religiosos para A nosso ver, os estudantes devem
entre a ciência e a sociedade e negar, inclusive, as manipulações ser estimulados a debater esses as-
valem-se de aspectos éticos e mo- genéticas com fins terapêuticos. suntos, usando todas as informações
rais. Segundo Zeidler et al. (2002), A utilização de células-tronco a que puderem ter acesso, sejam elas
vários pesquisadores têm mostrado é outro tema sociocientífico em informações científicas inerentes a
a importância da utilização de ques- destaque nos últimos anos. Apesar cada controvérsia moral ou conhe-
tões sociocientíficas em sala de aula, das benesses prometidas, há ainda cimentos de outra natureza.
tanto para o aprendizado de concei- muitas controvérsias científicas, É importante ressaltar que o objeti-
tos científicos como para o desen- morais e jurídicas a respeito de vo das discussões em questões socio-
volvimento moral, a argumentação seu uso (Lacadena, 2003). Um dos científicas não é encontrar a verdade
e a avaliação da informação. problemas na pesquisa com células- moral ou científica. Como já dito, a
O uso de células-tronco, terapia tronco é o estatuto do embrião: em resolução dessas questões não é fácil
genética, clonagem, problemas am- que momento o embrião adquire e envolve múltiplos aspectos da vida
bientais e utilização de energia, entre status de ser humano e se torna dos estudantes. Por isso, cabe res-
outros, são exemplos de questões indisponível para a pesquisa? É saltar que o objetivo das discussões
sociocientíficas. Esses temas, além correto utilizar um embrião humano é permitir que cada aluno avalie as
de seu conteúdo científico, possuem para salvar uma outra vida humana? informações, saiba alegar e ouvir os
aspectos morais importantes que de- Existem algumas tentativas de res- argumentos dos colegas com respeito.
vem ser destacados em sala de aula, ponder a essas perguntas, mas nem A tomada de decisão, se é que ela vai
além de serem temas também apon- todas são livres de problemas éticos ocorrer, pode levar em conta aspectos
tados pelos PCNs (Brasil, 1997b, (Salem, 1997). científicos, morais, religiosos, eco-
1998b) para o ensino de ciências, As controvérsias científicas dizem nômicos ou políticos do problema
como possuidores de aspectos éticos respeito à potencialidade terapêutica analisado. Como muitas questões
relevantes para o ensino. das células-tronco embrionárias e sociocientíficas atuais envolvem
Segundo Sadler (2003), as ques- somáticas. A limitada capacidade aspectos morais, sua discussão se
tões sociocientíficas devem ser de diferenciação das células so- configura como um importante fator
consideradas do ponto de vista máticas faz com que se defenda o para o desenvolvimento moral dos
de múltiplas perspectivas, pois, uso de células-tronco embrionárias. estudantes (Blatt e Kohlberg, 1975;
frequentemente, não possuem re- As questões éticas relativas à vida Kohlberg e Hersch, 1977).
soluções simples e contam com do embrião, à incompatibilidade Sadler e Zeidler (2005) verifica-
processos de raciocínio informal, imunológica das células-tronco ram, em suas pesquisas, que pessoas
que difere do raciocínio formal, tão embrionárias e sua capacidade de que haviam passado por situações
comum nas ciências e nas aulas de gerar tumores levam a uma opção semelhantes às apresentadas para
ciências. Isso não significa, contu- pelas células-tronco somáticas. As discussão sentiam empatia pelo per-
do, que o raciocínio informal seja pesquisas nesse campo são, ainda, sonagem do exemplo e tomavam de-
irracional: ele é racional, na medida tema de muitas controvérsias e cisões em seu favor. Um dos dilemas
em que possui objetivos, é siste- debates que parecem longe de uma sociocientíficos usados por Sadler e
166 mático e altamente justificado em resolução (Sánchez, 2003), apesar Zeidler (2005, p. 91) e que causou
termos pragmáticos. Um exemplo dos relativos avanços conquistados empatia com alguns entrevistados
de raciocínio informal é o raciocínio nesse campo. foi o seguinte:

Educação Unisinos
Contribuições do ensino de ciências para o desenvolvimento moral

gum tipo de mudança favorável em Considerações finais


Um casal e seu filho recém nascido relação às questões ambientais. Esses
(seu único filho) foram envolvidos eram, justamente, os estudantes que É claro que temos consciência
em um acidente de automóvel ter- tiveram a maior participação nos de que nem todos os conteúdos das
rível. O pai morreu instantaneamente
debates sobre dilemas ecológicos disciplinas científicas podem utilizar
e o bebê ficou gravemente ferido. A
mãe teve somente escoriações leves. propostos. Segundo os autores, mui- debates de questões sociocientíficas.
No hospital, os médicos informaram tos estudantes que participaram da Da mesma forma, essa metodologia
à mãe que seu filho iria morrer em pesquisa estavam mais interessados não pode, de forma alguma, ser usada
questão de dias. em temas próprios da adolescência, em todas as aulas, já que a escolha
A mulher quer criar a criança que é o como sexualidade, gravidez e uso dos temas, o preparo dos dilemas e
produto dela e de seu marido morto. de drogas, entre outros. Estes temas das questões exigem muito tempo do
Ela gostaria de pegar amostras de
foram trabalhados com os temas professor. Ressaltamos, ainda, que
células do seu filho morto de forma
ambientais, de forma a satisfazer os é essencial que essa alternativa não
que ela possa gestar e dar à luz a
um clone de seu filho. Esta mulher estudantes. Os problemas próprios seja descartada.
poderia produzir um clone de seu da adolescência podem ter dificul- Apesar de seu valor intrínseco,
filho morto? tado a qualidade da participação o debate de questões sociocientífi-
nos debates, já que a motivação dos cas, por si só, não fará com que os
Esse tipo de questão pode ser estudantes não estava ligada ao tema estudantes tenham um desenvolvi-
debatida, considerando-se várias da pesquisa. mento moral que os leve à autono-
perspectivas. Como foi dito, algumas Também foi destacado por Biaggio mia. Para isso, também concorrem
pessoas se identificaram com a mãe et al. (1999) que o fato de psicólogos as relações que se experimentam
que perdeu o filho e acharam que ela terem encaminhado as discussões difi- no interior da escola, ou seja, é
tinha o direito de clonar a criança cultou o andamento da pesquisa. Isso necessário que os valores morais
morta. Esse seria um tipo de racio- foi percebido porque os estudantes extrapolem as salas de aula de for-
cínio emotivo, segundo os autores se manifestaram, afirmando que os ma que, na escola, se exercite e se
da pesquisa. Nessa mesma pesquisa, psicólogos deveriam tratar de temas instaure o respeito mútuo.
foi verificado que o conhecimento do outros que não o ambiental. Assim,
conteúdo científico em cada dilema os autores (Biaggio et al., 1999) Referências
sociocientífico afetava a tomada de recomendam que esse tipo de debate
decisões (Sadler e Zeidler, 2005). seja encaminhado por professores de ARAÚJO, U.F. 1996. O ambiente escolar e o
Outro aspecto que pode ser de- ciências naturais, de modo integrado desenvolvimento do juízo moral infantil.
In: L. MACEDO (org.), Cinco estudos
senvolvido durante as discussões ao currículo escolar. Os pesquisadores
de educação moral. São Paulo, Casa do
em questões sociocientíficas é a finalizam suas investigações e sua Psicólogo, p. 105-135.
capacidade de argumentação. Algu- avaliação de resultados destacando BIAGGIO, A.M.B. 2006. Lawrence Kohlberg:
mas pesquisas têm mostrado que a o papel da motivação dos estudantes ética e educação moral. São Paulo, Editora
qualidade da argumentação é gran- para implementação de programas Moderna, 127 p.
demente melhorada durante e após desse tipo. BIAGGIO, A.M.B.; VARGAS, G.A.O.;
o debate de temas sociocientíficos Os fatos relatados podem ser MONTEIRO, J.K.; SOUZA, L.K.; TE-
importantes indicadores de que deve SCHE, S.L. 1999. Promoção de atitudes
(Sadler, 2004). Durante a discussão
ambientais favoráveis através de debates
de dilemas sociocientíficos, são cria- haver algum tipo de motivação pré-
de dilemas ecológicos. Estudos de Psico-
das situações de desequilíbrio, nas via antes dos debates propriamente logia, 4(2):221-238.
quais os estudantes podem perceber ditos e de que os temas utilizados BLATT, M.M.; KOHLBERG, L. 1975. The
as inadequações de seus argumentos devam ser aqueles mais próximos effects of classroom moral discussion upon
e, dessa maneira, perceberem estímu- dos interesses dos estudantes. Toda- children’s level of moral judgment. Jour-
los para elaborar argumentos mais via, nem sempre isso é possível. Uma nal of Moral Education, 4(2):129-161.
adequados. tentativa de driblar esse problema BRASIL. 1969. Decreto-Lei nº 869 de 12
de setembro de 1969. Dispõe sobre a
Biaggio et al. (1999) utilizaram pode ser a utilização de temas mais
inclusão da Educação Moral e Cívica
dilemas ambientais, com o objetivo relacionados aos debates nacionais,
como disciplina obrigatória, nas escolas
de mudar as atitudes dos estudantes dentro de cada conteúdo específico,
em relação ao meio ambiente. Nesse como é o caso da temática relacio-
de todos os graus e modalidades, dos
sistemas de ensino no País, e dá outras
167
trabalho, os autores verificaram que nada às células-tronco, alimentos providências. Disponível em: http://
a metade dos estudantes obteve al- transgênicos e clonagem. www6.senado.gov.br/legislacao/Lista-

volume 13, número 2, maio • agosto 2009


Márcio Andrei Guimarães, Washington Luiz Pacheco de Carvalho

Publicacoes.action?id=195811, acesso FREUD, S. 1974. O mal-estar na civilização. PIAGET, J. 1994. O juízo moral na criança.
em: 08/08/2009. Rio de Janeiro, Imago, 112 p. São Paulo, Summus Editorial, 302 p.
BRASIL. 1971. Lei de nº 5692 de 11 de GUIMARÃES, M.A. 2005. Cladogramas e ROMANO, R. 2001. Contra o abuso da
agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases evolução no ensino de biologia. Bauru, ética e da moral. Educação & Sociedade,
para o ensino de 1° e 2º graus, e dá outras SP. Dissertação de Mestrado. Universidade 22(76):94-104.
providências. Disponível em: http://www. Estadual Paulista, 233 p. SÁNCHEZ, P.C. 2003. Utilização das célu-
planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5692. K A N T, I . 2 0 0 5 . F u n d a m e n t a ç ã o d a las-tronco na terapia celular da medicina
htm; acesso em: 08/08/2009. metafísica dos costumes. Lisboa, regenerativa: realidades e fantasias. In:
BRASIL. 1997a. Parâmetros Curriculares Edições 70, 120 p. J.L. MARTÍNEZ (ed.), Células-tronco
Nacionais: apresentação dos temas trans- KOHLBERG, L. 1984. Essays on moral humanas: aspectos científicos, éticos e
versais e ética. Secretária de Educação development. V. II: The psychology of jurídicos. São Paulo, Edições Loyola,
Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 146 p. moral development. New York, Harper p. 61-64.
BRASIL. 1997b. Parâmetros Curriculares & Row, 768 p. SADLER, T.D. 2003. The morality of socio-
Nacionais: ciências naturais. Secretária KOHLBERG, L.; HERSH, R.H. 1977. Moral scientific issues: Construal a resolution
de Educação Fundamental. Brasília, MEC/ development: a review of the theory. The- of genetic engineering dilemmas. Science
SEF, 136 p. ory into Practice, 16(2):53-59. Education, 88:4-27.
BRASIL. 1998a. Parâmetros Curriculares LA TAILLE, Y. de. 2006. Moral e ética: SADLER, T.D. 2004. Informal reasoning
Nacionais (5ª a 8ª séries): temas transver- dimensões intelectuais e afetivas. Porto regarding socioscientific issues: A critical
sais. Secretária de Educação Fundamental. Alegre, Artmed, 192 p. review of research. Journal os Research in
Brasília, MEC/SEF, 436 p. LACADENA, J. R. 2003. Experimentação Science Teaching, 41(5):513-536.
BRASIL. 1998b. Parâmetros Curriculares com embriões: o dilema ético dos em- SADLER, T.D.; ZEIDLER, D.L. 2005. The
Nacionais (5ª a 8ª séries): ciências briões excedentes, os embriões somáticos significance of content knowledge for
naturais. Secretária de Educação Funda- e os embriões partenogenéticos. In: J.L. informal reasoning regarding socioscien-
mental. Brasília, MEC/SEF, 138 p. MARTÍNEZ, Células-tronco humanas: tific issues: applying genetics knowledge
CANTO-SPERBER, M; OGIEN, R. 2004. aspectos científicos, éticos e jurídicos. São to genetic engineering issues. Science
Que devo fazer? A filosofia moral. São Paulo, Edições Loyola, p. 65-99. Education, 89:71-93.
Leopoldo, Editora Unisinos, 128 p. MILGRAM, S. 1963. Behavioral study of SALEM, T. 1997. As novas tecnologias re-
DIAS, A.A. 1999. Educação moral para a obedience. Journal of Abnormal and so- produtivas: o estatuto do embrião e a noção
autonomia. Psicologia Reflexão & Crítica, cial Psychology, 67(4):371-378. de pessoa. Maná, 3(1):75-94.
12(2):459-478. NATIONAL BIOETHICS ADVISORY COM- ZEIDLER, D.L.; WALKER, K.A.; ACK-
DURKHEIM, E. 2008. A educação moral. MISSION (NBAC). 2000. Ethical issues ETT, W.A.; SIMMONS, M.L. 2002.
Petrópolis, Vozes, 270 p. in human stem cell research: religious Tangled up in views: beliefs in the
DUSKAS, R.; WHELAN, M. 1994. O desen- perspective. Rockville, vol. III. Disponível nature of science and response to socio-
volvimento moral da idade evolutiva. São em: http://www.bioethics.gov; acesso em: scientific dilemmas. Science Education,
Paulo, Edições Loyola, 124 p. 17/09/2006. 86:343-367.
FREITAS, L.B.L. 2002. Piaget e a consciência NERI, D. 2001. A bioética em laboratório:
moral: um kantismo evolutivo? Psicologia células-tronco, clonagem e saúde humana. Submetido em: 20/02/2008
Reflexão e Crítica, 12(2):303-308. São Paulo, Edições Loyola, 192 p. Aceito em: 06/03/2009

Márcio Andrei Guimarães


Departamento de Biologia
da Universidade Federal de Sergipe
Campus Professor Alberto Carvalho.
UFS/DBI, Av. Vereador Olímpio
Grande, s/n
49500-000, Itabaiana, SE, Brasil.

Washington Luiz Pacheco


de Carvalho
168 Departamento de Física e Química –
FEIS/Unesp de Ilha Solteira.
DFQ/FEIS/UNESP

Educação Unisinos

Potrebbero piacerti anche