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Poetagem

2.1
Mote: Afrociberdelia

O Mateus é um personagem de maracatu. E o Mateus só chega para brincar, zoar, aperrear,


falar sobre tudo num universo de idéias de zombeteiro. E o “Mateus Enter” 34 é uma coisa
de um Mateus mais tecnológico. O enter é a entrada do Mateus. (Cantando) Eu vim com a
Nação Zumbi / Ao seu ouvido falar / Quero ver a poeira subir/ e muita fumaça no ar /
Cheguei com o meu universo/aterrisso no seu pensamento /Trago as luzes dos postes nos
olhos/ Rios e pontes no coração. Aí fala aquela coisa de Pernambuco: Pernambuco embaixo
dos pés e minha mente na imensidão. Que é justamente o tratamento desse personagem
cultural do Mateus, mas uma coisa que fala também da proporção que pode tomar a cultura
popular. (Science, www.uol.com.br/uptodate/up3/txt12.htm)

Nesta “loa de abertura” Chico Science se apresenta como um “Mateus tecnológico”


e diz a que veio: propor uma leitura cosmopolita das expressões locais e desestabilizar as
compreensões cristalizadas acerca das tradições populares. Os maracatus do Recife, que
aparecem como uma das manifestações populares de maior influência sobre a criação do
músico, adotaram, segundo Guerra-Peixe, o termo “nação” – antes usado para designar as
cortes dos reis negros no Brasil – para nomear suas agremiações. Esta expressão, para além
de uma delimitação étnica, se afirmou como referencial comunitário de associações que
abrigavam “gente de várias procedências” (Guerra-Peixe, 1980, p. 16). Chico evoca então a
“Nação Zumbi” e esta se manifesta em sua pluralidade por meio do som acelerado e
ininterrupto do rock proferido pela guitarra elétrica de Lúcio Maia, que se sobrepõe ao
ritmo determinado pelo toque dobrado dos tambores de maracatu.
O uso dos tambores, o emprego da guitarra elétrica e a articulação dos sons que
produzem apontam para a diversidade de linguagens atuantes nas criações da banda, além
de denunciar a recorrente operacionalização, por parte de seus componentes, da simbologia
associada a tais instrumentos e da significação atribuída a determinadas células rítmicas e
seqüências melódicas por eles produzidas em suas manifestações “de origem”. Ainda de
acordo com Guerra-Peixe, os “zabumbas” do maracatu são executados com intensidade e

34
“Mateus Enter (intro)”. Letra: Chico Science/Música: Chico Science e Nação Zumbi. In: Afrociberdelia.
Sony Music, 1996.
violência e evocam a ligação de seus executantes com as “raízes africanas”. Science assume
tal referencial identitário e diz: “o nosso som é cru também, com esse lado da raiz, de tocar
tambor, tocar bumbo, largando a porrada em cima. Isso como o resto das coisas que a gente
faz” (Science, www.uol.com.br/uptodate/up3/txt2.htm).
Em um estudo metodológico acerca da análise de canções populares, o musicólogo
Phillip Tagg (Tagg, 2000) alertou para a recorrência de unidades mínimas de expressão em
determinados gêneros e estilos – os “musemas” – que funcionam como signos que podem
ser associados a significados extramusicais e dialogam com a sensibilidade sonora de
sujeitos inseridos num mesmo universo cultural. Se considerarmos, na música de Chico
Science, a citação de segmentos rítmicos empregados nos maracatus de “baque solto” e de
“baque virado” 35, a apropriação de temas melódicos identificados com o funk, a adoção da
velocidade que distingue o punk rock e da imposição verbal que caracteriza o rap,
identificaremos aí alusões que induzem seus ouvintes a interpretar estas referências como
afirmação de uma identidade híbrida que flexibiliza símbolos fixos e toma como populares
as mais variadas expressões das periferias do planeta.
Ou seja, ao emitirem tal alquimia sonora, Science e sua “Nação” desfazem a relação
já naturalizada entre o popular e o pré-moderno, revisando categorias que o aprisionaram ao
subalterno e ao local e condenaram a intervenção modernizadora como canal da
descaracterização de suas expressões. Um Mateus urbano incorpora os signos da capital
pernambucana e assume posição interventora sobre os mecanismos de modernização da
sociedade. Neste processo de reordenação simbólica, a assimilação passiva ou a simples
reprodução dos modelos hegemônicos ou estrangeiros deixam de ser entendidos como
único modo de atuação dos povos submetidos à massificação cultural. Science
recontextualiza o popular, apontando para as formas de adesão dos setores subalternos à
modernidade, e para a apropriação de seus signos pelas tradições.
Assim, em “Mateus Enter”, a consonância entre o ritmo marcado das alfaias que
acompanha a métrica dos versos, a repetição reiterativa da frase musical e a entoação
afirmativa dada por Chico à letra recitada à maneira de um rap produz um discurso
direcionado (para o “seu pensamento”) que busca convencer que as relações local/global
35
Mracatu de ”baque virado” ou “nação” são os ligados aos cultos afro-brasileiros de linha nagô e sua
orquestra é tradicionalmente formada por gougê, caixa-de-guerra e zabumba, que tiram toadas em uma
cadência bastante marcada. Já o Maracatu de “baque solto” ou “rural” tem uma formação híbrida. Se expressa
pela mistura de elementos de vários folguedos populares, e à sua orquestra são acrescentados instrumentos de
sopro, ganzá e tarol, que produzem um ritmo acelerado (Lima, http://www.fundaje.gov.br/docs/text).

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(“Pernambuco/imensidão”) devem se dar pela via da inclusão do periférico na cultura
moderna. Recife (“postes, rios e pontes”) aparece aqui como cenário de uma construção
estética que assume a urbanidade como característica, sem deixar, no entanto, de guardar as
representações tradicionais como componente ativo do universo híbrido que estaria
formando o “novo Mateus”.
Quando narra a incorporação do “espírito popular” por sua música, Science o faz
tanto pela definição da forma de criação que gerou suas composições, quanto pela descrição
das intervenções feitas por ele nas canções alheias que gravou. Exibe assim uma leitura
particular das influências estéticas que recebeu. Leitura esta, marcada pelo lugar cultural
que ocupa e direcionada para a impressão de um caráter plural às expressões musicais que
apresenta. Sobre o espaço das tradições populares em seu trabalho, o músico afirma:

Tem de um lado o Zé Limeira 36 , um lado absurdo do absurdo, o jeito também de cantar.


Quando se fala (cantando “Maracatu Atômico”): atrás do arranha-céu tem o céu/ tem o céu/
e depois tem outro céu sem estrelas 37 . É do jeito de um aboio (vocal nordestino), de um
embolador, de um cantador de viola, de uma loa de maracatu. Eu me interessei por “Criança
de Domingo” (dos ex-Fellini, Ricardo e Cadão) porque parece com as loas de maracatu,
parece que vai repetir: Eu sábado vou rodar. Aí todo mundo repete: Eu sábado vou rodar/
Criança de domingo/ Criança de domingo/ Sem sabe guiar/ Sem saber guiar/ Criança de
domingo. Aí todo mundo: Criança de Domingo. Quando eu escutei a música parecia que ia
entrar um coral depois. Porque ele termina a loa: Criança de domingo. O pessoal replica e aí
entra a batucada. Aí para a batucada e continua a loa: Amanhã tem mais/ Amanhã tem mais/
Faça chuva ou Sol / Amo o meu domingo. Você já ouviu o Zé Limeira do Mestre
Ambrósio? 38 É um clipe que passa na MTV. Quando ele canta: Se Zé Limeira sambasse
maracatu, e aí todo mundo responde. Foi isso que eu vi em “Criança de Domingo”. Só que
não rolou um maracatu. Mas é a coisa da loa, do jeito de cantar. (Science In:
http://www.uol.com.br/uptodate/up3/txt13.htm)

Science se identifica com este tipo de procedimento criativo, reconhecido em muitas


de suas músicas, e exibe uma atitude etnográfica ao expressar preocupação em explicitar e
localizar culturalmente suas apropriações, e em promover o encontro entre tradições
diversas.

36
Zé Limeira foi um cordelista paraibano intitulado “poeta do absurdo” por suas construções poéticas
verborrágicas, pelos contra-sensos e disparates de suas histórias e pelos neologismos que cunhou na
formulação de narrativas “surrealistas”.
37
“Maracatu Atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. In: Afrociberdelia. Sony Music, 1996.
38
“Mestre Ambrósio”: banda pernambucana que compõe a partir de pesquisas sonoras feitas nas expressões
populares do estado. “Se Zé Limeira sambasse maracatu”. Letra: Siba/ Música: melodia tradicional do
maracatu rural de Pernambuco. In: Fuá na casa de Cabral. Sony Music, 1998.

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Podemos aproximar tal postura do que James Clifford identificou como
“surrealismo etnográfico”, definido como “fragmentação a justaposição de valores
culturais” que trabalham para o desvendamento do caráter artificial e construído das
estruturas simbólicas (Clifford, 2002). O autor toma o termo “surrealismo” numa acepção
ampla. Trata-se da promoção de associações inesperadas e desestabilizadoras, que podem
se dar pela via do encontro entre vivências culturais diversas, ou pela desordenação
provocativa das significações e categorias estabelecidas em uma dada sociedade. Sendo
assim, a experiência urbana, com a avalanche de informações que oferece e a
transculturalidade que promove, produz uma infinidade de sentidos e contribui para que
essa “atitude etnográfica” incorporada por Science desarticule narrativas, crie
estranhamentos em relação à própria cultura, e evidencie a artificialidade dos discursos,
apontando as inúmeras possibilidades de rearranjos estéticos que daí emergem.
“Maracatu Atômico”, música gravada por Chico Science e Nação Zumbi no álbum
Afrociberdelia, foi composta pelo músico tropicalista Jorge Mautner num contexto em que
as mutações sociais aqui abordadas começam a ser percebidas e tornam-se alvos de leituras
criativas. Colagens irônicas, combinações inventivas, citações sobrepostas, todos estes
mecanismos já se encontram, nas inovações estético-políticas apresentadas pelo
Tropicalismo brasileiro na década de 60, a serviço da revaloração de manifestações
culturais populares e da decomposição de hierarquias entre as expressões artísticas
(Favaretto, 1979).
No entanto, a “justaposição etnográfica” realizada por Mautner passa a contar, na
releitura de Science, com o instrumental tecnológico dos pedais e sintetizadores, e recebe
um tratamento eletrônico que atualiza a relação entre tradição e modernidade expostas no
título da canção. Sob o ritmo acelerado do “baque solto”, a loa é anunciada pelo “mestre
Chico Science” e a “versão atômica” da “Nação Zumbi” apresenta os termos da criação do
mangue. Por associação, o clipe desta música, dirigido pelo cenógrafo Gringo Cardia,
alterna, numa justaposição descontínua e acelerada, imagens da banda dançando trajada de
lanceiros do maracatu rural, ou com os corpos cobertos de lama e arroubas desenhadas nos
peitos (Chico Science Manguestar, 2000).
Já “Criança de Domingo”, da banda paulistana de rock “Fellini”, foi selecionada por
Science por demonstrar um potencial para dialogar com as melodias das loas tão
valorizadas pelo músico. Neste caso, a fusão terminou não acontecendo, porém, no mesmo

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disco, a música “O Cidadão do Mundo” 39, composta por Chico e a “Nação”, executa a
comentada “reconstrução etnográfica” por meio da manipulação dos símbolos visuais e
sonoros do maracatu.
Para evocar tal tradição nos shows, Science costumava, assim como no clipe de
“Maracatu Atômico”, “incorporar” um “caboclo-de-lança”, personagem enigmática
protetora dos maracatus rurais (MTV Ao Vivo, 1995). Um guerreiro que traja manto bordado
com vidrilhos e lantejoulas, usa óculos escuros, carrega uma lança enfeitada com tiras nas
mãos, chocalhos presos nas costas, um cravo branco entre os dentes, e exibe uma imensa
cabeleira de fitas coloridas. Movimentando-se por saltos e rodopios, o mangueboy entrava
na dança dessa entidade, e fazia de seu próprio corpo lugar de manifestação da
ancestralidade cultural e instrumento primordial de expressão artística. Encontramos em “O
Cidadão do Mundo”, com seus tambores marcados e refrões “respondidos”, outras tantas
analogias:

a estrovenga girou/ passou perto do meu pescoço/ corcoviei, corcoviei/ não sou nenhuma
besta seu moço/ a cena parecia fria/ antes da luta começar/ mas logo a estrovenga surgia/
girando veloz pelo ar/ eu pulei, eu pulei/ e corri no coice macio/ só queria matar a fome/ no
canavial da beira do rio/ jurei, jurei/ vou pegar aquele capitão/ vou juntar a minha nação/ na
terra do maracatu/ Dona Ginga, Zumbi, Veludinho/ segura o baque do mestre Salu/ eu vi, eu
vi/ a minha boneca vodu/ subir e descer no espaço/ na hora da coroação/ me desculpe,
senhor me desculpe/ mas esta aqui é a minha nação/ Daruê Malungo, Nação Zumbi/ é o
zum zum zum da capital/ só vi caranguejo esperto/ saindo deste manguezal/ eu pulei, eu
pulei/ e corria no coice macio/ encontrei o cidadão do mundo/ no manguezal da beira do
rio/ Josué!/ eu corri saí no tombo/ se não ia me lascá/ segui a beira do rio/ vim parar na
capitá/ quando vi numa parede um pinico anunciá/ é liquidação total/ o falante anunciou/ ih,
tô liquidado/ o pivete pensou/ conheceu uns amiguinhos/ e com eles se mandou/ aí meu
velho/ abotoa o paletó/ não deixe o queijo cair/ e segura o rojão/ vinha cinco maloqueiro
em cima do caminhão/ pararam lá na igreja/ conheceram uns irmãos/ pediram pão pra
comer/ com um copo de café/ um ficou roubando a missa/ e quatro deram no pé/ chila, relê,
domilindró...

Estrovenga é uma espécie de foice usada nos canaviais da Zona da Mata


Pernambucana, região onde se manifesta o “maracatu rural”, e que foi um dos palcos da
escravidão africana, com suas histórias de exploração e resistência. Chico parte deste
cenário para narrar a luta pela sobrevivência dos povos subordinados e enaltecer as formas
de rebeldia por eles adotadas. Há referência à dominação – figurada pelo capitão-do-mato –
contra a qual se luta com a força da “nação”, aqui representada por Zumbi, Dona Ginga,
39
“O Cidadão do Mundo”. Letra: Chico Science/Música: “Chico Science e Nação Zumbi”. In: Afrociberdelia.
Sony Music, 1996.

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Mestre Salu e Veludinho, símbolos da resistência política e cultural organizada nos
quilombos e nos maracatus. 40
Quando transplantada para as cidades, a opressão se traduz na miséria e na fome
diagnosticadas por Josué de Castro nos mangues da capital Pernambucana. Se esquivar,
lutar, correr são estratégias de sobrevivência que se somam à ação social do Daruê Malungo
e à afirmação cultural dos “maracatus de nação” do Recife, com suas coroações de rainhas
negras e exaltação de bonecas consagradas.
Por fim, o que esta narrativa denuncia, também por meio da mistura de músicas
negras de diversas procedências (funk, rap, maracatu), é o contraste entre a riqueza cultural
dos povos dominados e sua situação de pobreza material, muitas vezes ignorada pelos
discursos de valorização das expressões populares. E a alternativa apresentada por Science
para que os subalternos da sociedade superem tal condição de degradação é a organização.
Em “Da Lama ao Caos” 41, música na qual cita mais uma vez o médico Josué de Castro,
Chico adota a imposição política do rap, o radicalismo e a rebeldia do rock para mostrar o
caminho da insurreição:

posso sair daqui para me organizar/ posso sair daqui para desorganizar/ da lama ao caos/ do
caos à lama/ um homem roubado nunca se engana/ o sol queimou, queimou a lama do rio/
eu vi um chié andando devagar/ vi um aratú pra lá e pra cá/ vi um caranguejo andando pro
sul/ saiu do mangue, virou gabiru/ oh Josué eu nunca vi tamanha desgraça/ quanto mais
miséria tem mais urubu ameaça. (...)

O músico detecta na cidade do Recife os problemas causados pela migração e pelo


crescimento desordenado. Apresenta o povo na imagem dos “homens-caranguejos”
construída por Castro, que identificou nos manguezais da cidade um ponto de atração para
degradados do Sertão e da região açucareira. De acordo com este autor,

(...) no cenário de fome do Nordeste, os mangues eram uma verdadeira terra da promissão,
que atraía homens vindos de outras áreas e mais fome ainda – das áreas da seca e da
monocultura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira esmagava, com a mesma
indiferença, a cana e o homem, reduzindo tudo a bagaço. (Castro, 2001, p. 18)

Tendo tal realidade como inspiração, Science não se limita a descrevê-la com o
olhar distanciado de quem toma a experiência popular como simples objeto de pesquisa
40
“Dona Ginga” foi uma quilombola africana que lutou contra a ocupação portuguesa em Angola e é
comumente comparada a Zumbi dos Palmares. “Mestre Salustiano” é líder do “Maracatu Piaba de Ouro”
(rural) em Olinda e “Veludinho”, falecido mestre do tradicional “Maracatu Leão Coroado” (nação) do Recife.
41
“Da lama ao caos”. Letra e Música: Chico Science. In: Da Lama ao Caos. Sony Music, 1994.

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estética ou estudo sociológico, ao contrário, seu engajamento o coloca na posição de quem
vive as mazelas da fome e precisa se conscientizar da sua capacidade subversiva. A
denúncia presente em “Da Lama ao Caos” é explicitada pelo compositor:

É como se um homem-caranguejo saísse de um manguezal e fosse até algum centro urbano


procurar outro modo de vida. De um lado ou de outro ele é sempre roubado, ele sempre é
castrado (...) caçados seus direitos ele sempre passa necessidade. “Da Lama ao Caos” é
justamente isso, é a cara do Recife. É as necessidades que o Brasil passa, as diferenças
sociais, e eu cito Josué de Castro justamente nesta parte: “ô Josué eu nunca vi tamanha
desgraça quanto mais miséria tem mais urubu ameaça”. (Science In: “Chico Science
Manguestar”, Op. Cit.)

Em associação com a posição assumida nas letras, Chico Science e a Nação Zumbi
promoveram, por opção estética e política, o encontro da black music norte-americana,
representada pelo funk, pelo soul e pelo rap, com as expressões afro-brasileiras do
maracatu, do samba, do coco e da ciranda. Seguindo o mesmo movimento de inclusão do
periférico, os músicos apropriam-se de seus signos e manipulam as aberturas apresentadas
por tais manifestações às incorporações transculturais.
Ao desenvolver uma análise da presença dos elementos africanos na formação da
música popular brasileira, José Jorge de Carvalho distingue duas tradições influentes em
nossa produção musical. A primeira seria a yoruba, presente nos cultos do candomblé – que
é caracterizada pelo autor como dotada de ordenação rígida e pouca abertura para os
sincretismos. A segunda é associada aos cultos religiosos de origem banto, particularmente
os angolanos:

(...) que foi organizada mantendo sempre uma janela aberta para influenciar e ser
influenciada por outros gêneros musicais (...) Como se pode esperar, estudos da tradição
angolana têm maior probabilidade de enfatizar a dinâmica e tratar de questões relativas à
mudança, ambigüidade, polissemia, hibridização e assim por diante. (Carvalho, 2000, p. 5)

Teria sido esta, então, uma das principais tradições formadoras da música popular
no Brasil, que, além de um espaço privilegiado de combinações estéticas, pode ser
investigada como lugar de memória das relações interculturais do país e desbancar o
purismo dos “cultivadores de raízes”. É em tal constatação que baseamos nossos
argumentos, distanciando-nos da tradição de estudos das culturas populares que se centram
nas discussões acerca da autenticidade e da originalidade das suas expressões artísticas.
Nossas análises apontam para construções posteriores à formação dos fenômenos

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recuperados pelos discursos tradicionalistas, por isso, não nos empenhamos na busca de
origens, mas na investigação dos processos de mutação do popular.
As misturas realizadas por Science, nos levam, assim, para a investigação das
possibilidades fecundas apresentadas pela especificidade cultural das expressões populares
tradicionais aos experimentalismos propostos pelo rap, gênero definido por seu caráter
alquímico e identificado com a forma de construção estética predominante na pós-
modernidade. Segundo Richard Shusterman, o rap apresenta:

(...) a tendência mais para uma apropriação reciclada do que para uma criação original
única, a mistura eclética de estilos, a adesão entusiástica a nova tecnologia e à cultura de
massa, o desafio das noções modernistas de autonomia estética e pureza artística, e a ênfase
colocada sobre a localização espacial ou temporal mais do que sobre o universal ou eterno.
Quer essas características sejam qualificadas ou não de pós-modernas, o rap as exemplifica
de maneira marcante, colocando-as em evidência ao tomá-las conscientemente como
temática. E ainda que rejeitemos totalmente a categoria do pós-modernismo, essas
características continuam sendo essenciais para a compreensão do rap. (Shusterman, 1998,
p. 145)

Chico Science não retoma elementos das canções tradicionais para simplesmente
reproduzir um gênero, um padrão rítmico ou uma seqüência melódica característica, mas,
se valendo de alguns dos mecanismos de composição do rap, cita expressões e
performances pré-existentes com a intenção não de reverenciar, resgatar ou preservar, mas
de se inserir na dinâmica de apropriação e atualização da tradição musical popular.
E quando esta apropriação é constituída por meio do instrumental tecnológico do
mixer e do sampler 42, as montagens podem se dar pela combinação ou mescla de trechos os
43
mais distintos, e, no caso dos sintetizadores , pelas alterações ou criação de timbres,
efeitos e distorções. Neste processo, as intervenções e citações descontextualizam
fragmentos, quebram a unidade dos discursos e desconstróem supostas hierarquias entre os
elementos amalgamados. Por isso nos parece produtivo empreender um exercício de
“comparação intersubjetiva” (Tagg, 2000) entre a música de Science e os procedimentos
que compõem o rap.44 Ambas as manifestações compartilham de uma disposição cultural

42
Mixer: aparelho que possibilita misturas sonoras articulando os toca-discos de maneira que as músicas se
sucedam ou se sobreponham. Sampler: equipamento eletrônico que permite a gravação dos mais variados
sons. Samplear: copiar sons no sampler e utiliza-los na composição musical.
43
Sintetizadores: instrumentos eletrônicos que produzem timbres e ruídos peculiares.
44
Chico Science chegou a atuar, antes de montar sua primeira banda – “Orla Orbe”, cujo som tinha uma forte
influência da black music norte-americana –, como b-boy (dançarino de break) e MC (mestre de cerimônia)
no grupo “Legião Hip-Hop”.

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pós-moderna e cumprem papéis similares, podendo ser alvo de uma aproximação analítica
esclarecedora.
Como afirma Maria Cecília Pires, esta música feita de colagens e mixagens se
mostra como “uma forma de discurso capaz de presentificar de modo legítimo algo de
nossa experiência contemporânea” (Pires, 2001, p. 102), ou seja, a reordenação que termina
por originar algo novo, externalizando a multiplicidade cultural e pondo em questão os
conceitos modernos de originalidade e autenticidade. O que diferencia tal processo das
formas usuais de composição é a ausência de um ideal de autoria que busque encobrir as
rasuras da combinação de fragmentos de memória sonora por meio de uma unidade
narrativa artificialmente construída. E Science se insere neste movimento de exaltação da
colagem à medida que opera por múltiplos empréstimos selecionados por uma memória
musical formada sob a vigência da polifonia urbana. Ao buscar elementos estéticos nos
variados universos culturais nos quais circula, o músico repensa as classificações
polarizadas que compartimentam as manifestações da criação humana, desautorizando o
conceito de pureza fundado sob as categorias herméticas de “erudito”, “folclórico” e
“massivo”.
Com esta compreensão, apreendemos as expressões musicais como espaço onde
grupos sociais diversos costumam exercer sua crítica e auto-reconhecimento, e nos
debruçamos sobre sua função mediadora para buscar descortinar as transformações sofridas
pelos sistemas de troca cultural nas sociedades contemporâneas. Ou seja, nos orientamos
pela compreensão da arte como manifestação cultural, privilegiando os termos de sua
inserção na “dinâmica geral da experiência humana” (Geertz, 1997, p. 152). Entendemos
tais manifestações como forma de criação que expressam e fundam símbolos numa relação
não mecânica, mas subjetiva, com seu universo cultural – já que se dão no âmbito dos
imaginários e das concepções, e articulam sinais e imagens deslocadas de um campo de
significados amplo.
Segundo Clifford Geertz, “um artista trabalha com sinais que fazem parte de
sistemas semióticos que transcendem em muito a arte que ele pratica”. Isto aponta para a
ampla correlação entre a construção estética e seu contexto cultural, fazendo-nos
compreender que as obras se afinam com as “sensibilidades que elas mesmas ajudam a
criar” e atuam constantemente como veículo de transmissão de significados (Idem, pp. 165
e 152).

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Tal raciocínio pode ser complexificado se tomarmos os questionamentos de José
Jorge de Carvalho e Rita Segato acerca da associação não problematizada – geralmente
construída pela etnomusicologia – entre estilos musicais pré-definidos e grupos culturais
dotados de identidades fixas. Os adeptos desta perspectiva de análise procuram formular
uma “ontologia territorial das culturas” para aí identificarem um “referencial originário”
que teria fundado os gêneros e se tornado o centro da compreensão de construções musicais
específicas (Carvalho e Segato, 1994 p. 3).
Sob outro ponto de vista, Carvalho e Segato reconhecem a hibridez como caráter de
qualquer composição musical – mesmo da que se deu livre da influência dos meios
modernos de construção estética –, sendo que a intensificação dos fluxos culturais na
contemporaneidade teria posto em evidência a constante atuação das trocas simbólicas,
processos até então obscurecidos pelos discursos totalizadores sobre música que buscaram
identificar a estrutura interna das obras, rejeitando como distorções as polifonias
provocadas pela atuação dos sincretismos.
A eleição de um estilo ou gênero musical a emblema identitário de um grupo
também costuma agir pela afirmação da unidade e da particularidade de culturas
territorialmente delimitadas e de suas expressões artísticas, além de negar o pertencimento
45
plural (tão claramente expresso nas músicas de Chico Science). “Etnia” , canção de
Science e Lúcio Maia, exibe mais uma vez os termos de tal multiplicidade ao por em
questão o suposto isolamento do universo simbólico das tradições populares, reivindicando
liberdade criativa sobre suas manifestações e desmitificando ícones consolidados:

somos todos juntos uma miscigenação/ e não podemos fugir da nossa etnia/índios, brancos,
negros e mestiços/ nada de errado em seus princípios/ o seu e o meu são iguais/ corre nas
veias sem parar/ costumes, é folclore, é tradição/ capoeira que rasga o chão/ samba que sai
da favela acabada/ é hip hop na minha embolada/ é o povo na arte/ é arte no povo/ e não o
povo na arte de quem faz arte com o povo/ maracatu psicodélico/ capoeira da pesada/
bumba meu rádio/ berimbau elétrico/ frevo, samba e cores/ cores unidas e alegria/ nada de
errado em nossa etnia.

Os compositores atualizam o conceito de mestiçagem – concebendo-o sob o signo


da polifonia, e não pela via da homogeneização – para então apreendê-lo como fator
constitutivo das sociedades urbanas, que se definem por essa natureza de convivência. Aqui

45
“Etnia”. Letra: Chico Science /Música: Chico Science e Lúcio Maia. Afrociberdelia. Sony Music, 1996.

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também, o popular é posto em evidência por meio da experimentação narrada na letra e
efetuada na composição sonora, que enfatizam a interação entre elementos tradicionais e
modernos e entendem a diversidade e a dinâmica como características das identidades
contemporâneas.
Science se situa por meio do que Manoel Castells identificou como “identidade de
projeto”, que implica apropriação dos mais diversos materiais culturais disponíveis por
parte de sujeitos que se propõem a construir um novo referencial político, e, a partir, daí
sugerir uma transformação substancial na sociedade na qual atua (Castells, 1999). Consiste,
ainda, na afloração de identidades oprimidas que, ao invés de afirmarem-se pela simples
inversão dos discursos hegemônicos, projetam-se por meio da “resistência comunal”, ou
seja, pela ação social organizada em torno de múltiplos posicionamentos ideológicos e
diferentes fluxos culturais.
Entretanto, nas atuais condições de dependência entre a recriação das culturas
regionais e as movimentações globais, outras narrativas identitárias também assumem a
apropriação local dos modelos de criação musical transnacionais, e determinam, por meio
da justaposição dos discursos da crítica, da política e da indústria cultural, o lugar social das
expressões assim geradas. Neste caso, o som do maracatu, por exemplo, pode ser ouvido
como elemento que atribui identidade aos recursos musicais estrangeiros e ser absorvido
como um produto capaz de transmitir sentido de pertencimento a uma sociedade que se
autodefine como multicultural. A própria gravação de oito versões do hino do Estado de
Pernambuco em um CD comercializado pela Secretaria de Cultura – entre elas uma “versão
frevo” por Alceu Valença, uma “versão forró” por Dominguinhos e a já mencionada
“versão mangue”, montada como colagem dos gêneros mais diversos por músicos de onze
bandas locais – mostra-se como indício deste tipo de política.
Além da demarcação de identidades locais pela diversidade e pelo hibridismo, o
interesse internacional pela produção cultural dos “povos exóticos” também forja a
emergência de um consumo compartilhado, fundado na suposta representatividade dos
artigos culturais postos em circulação pelo movimento de mercadorização da diferença. O
desenvolvimento da world music nos anos 90 se dá, então, em interação com o
multiculturalismo pós-moderno e com a já comentada regionalização do mercado cultural.
José Jorge de Carvalho (Carvalho, 2003) nos fala de um movimento contemporâneo
de “fetichização” das tradições musicais afro-americanas que, associadas à sensualidade, à

73
alegria e à irracionalidade, são comercializadas e consumidas nos países do Primeiro
Mundo sob a mesma perspectiva etnocêntrica que cristalizou a produção cultural dos povos
colonizados em estereótipos, e que, atualmente, passa a determinar, por meio de imposições
mercadológicas, as condições de sua exibição.
Regulamento de tempo e timbre, interferências de equalizações e mixagens
impostas pelo processo de gravação digital e de radiodifusão terminam por enquadrar toda
e qualquer expressão no esquema padronizado de circulação comercial, e descaracterizar
estéticas fundadas em disposições culturais as mais diversas, agora adaptadas às
necessidades de consumo das classes médias urbanas.
A música de Chico Science chegou aos mercados europeu e norte-americano pelos
caminhos traçados pela world music, no entanto, mais uma vez, a proposta de apropriação
dos meios hegemônicos de circulação cultural aparece em seu trabalho como forma de
apresentar uma leitura autoral e autônoma das expressões locais. Diz Science:

A world music foi o mercado que nos abraçou. Eu acho que através disso a gente conseguiu
chegar em outros canais da música pop mundial. Trabalhando isso você consegue. Tem
mais é que pegar essas coisas aí e usar porque, com certeza, rola uma coisa legal. (Science
In: http://www.uol.com.br/uptodate/up3/txt13.htm)

Sendo assim, as negociações interculturais mediadas pelo compositor se


distanciaram da pasteurização promovida pelas gravações de canções folclóricas, e do
“processo de canibalização” de expressões tradicionais protagonizado por artistas da
música pop interessados na “comercialização do exótico” (Carvalho, Op. Cit.). Envolvido
com uma movimentação cultural preocupada com a criação de circuitos independentes de
produção e difusão musical, Science preza pela própria autonomia criativa e reivindica
espaços concretos de intervenção na configuração do “circuito pop mundial”.
As categorias global/local aparecem, então, como paradoxo constante na definição
da música de Chico Science pela imprensa e pela crítica especializada, da mesma forma
como as expressões do Manguebit foram alvo de rejeição e exaltação por parte de diversos
projetos político-culturais em Pernambuco. Em quase todas estas leituras atuam critérios
clássicos de definição de identidade, como origem, tradição e língua.
Na análise musical, a definição territorial das culturas só pode ser questionada à
medida que o pensamento crítico passa a se localizar nas fronteiras entre os estilos e
gêneros, permitindo a apreensão de características e dimensões ocultadas pelas abordagens

74
sistêmicas e por concepções fechadas de identidade. Sendo assim, a ambivalência das
criações de Science não pode ser apreendida por categorias rígidas, pois exige e propicia
novas formas de pensamento e percepção.
Em “Etnia”, o músico foge ao enquadramento ortodoxo ao operar pela mescla de
tradições e linguagens diversas, pela desconstrução do mito da mestiçagem como fator de
unidade e pela desautorização do modelo ocidental de progresso como direção cultural
única que eliminaria outras formas de vivência e de expressão. Esta música reforça a defesa
da fusão como meio de atuação interventora por parte dos universos populares. Durante sua
execução, o autor insere na letra as frases “não há mistérios em descobrir o que você é e o
que você gosta/ não há mistérios em descobrir o que você quer e o que você faz”, e justifica
a intervenção desta forma:

É justamente essa coisa da sonoridade, do que é que você tem na sua terra pra trabalhar, o
que é que você gosta de som mundial, o que é que você pode misturar de tudo isso, o que é
que você pode fazer com tudo isso, então vem essa coisa de atitude do mangue (“Tributo a
Chico Science”, 1998).

Juntam-se à guitarra e às alfaias de maracatu, sons sampleados e metais que


compõem uma espécie de “funk interterétnico”. A intertextualidade novamente se apresenta
como resposta às exclusões da modernidade e meio de projeção do popular. Na imagem
construída por Science, a proposta é: “dar um sampler para um repentista” (Science In:
Reis, 1994). Representação que se sobrepõe à figura do “tupi tangendo um alaúde”, e
reverte a “antropofagia” em “afrociberdelia”, assim definida no encarte do álbum
homônimo:

(Extraído da ENCICLOPÉDIA GALÁCTICA, volume LXVII, edição de 2102)


AFROCIBERDELIA (de África + Cibernética + Psicodelismo) – s.f. – A arte de cartografar
a Memória Prima genética (o que no século XX era chamado de “o inconsciente coletivo”)
através de estímulos eletroquímicos, automatismos verbais e intensa movimentação
corporal ao som de música binária. Praticada informalmente por tribos de jovens urbanos
durante a segunda metade do século XX, somente a partir de 2003 foi oficialmente aceita
como disciplina científica, juntamente com a telepatia, a patafísica e a psicanálise. Para a
teoria afrociberdélica, a humanidade é um vírus benigno no software da natureza, e pode ser
comparada a uma árvore cujas raízes são os códigos do DNA humano (que tiveram origem
na África), cujos galhos são as ramificações digitais-informáticas-eletrônicas (a
Cibernética) e cujos frutos provocam estados alterados de consciência (o Psicodelismo). No
jargão das gangues e na gíria das ruas, o termo “afrociberdelia” é usado de modo mais
informal: Mistura criativa de elementos tribais e high-tech: “Pode-se dizer do romance The

75
Embedding, de Ian Watson, é um precursor da ficção científica afrociberdélica”. Zona,
bagunça em alto-astral, bundalelê festivo: “A festa estava marcada para começar às dez,
mas só rolou afrociberdelia lá por volta das duas horas da manhã”.

Neste “verbete”, composto pelo poeta Bráulio Tavares, a memória se apresenta


como conceito-chave que orienta a compreensão das interações articuladas no som
“afrociberdélico” da banda. “Software”, “DNA”, “memória-prima”, são termos usados para
definir os arquivos nos quais seriam selecionados os materiais para “misturas criativas entre
elementos tribais e high-tech”. Arquivos estes somente ativados pela ação de dispositivos
alteradores da consciência, ou seja, pela via da libertação das categorias estabelecidas. O
presente que os mangueboys estariam vivendo torna-se passado neste texto, e é descrito
como momento em que se deu o primeiro esforço de evocação de uma memória plural.
Andreas Huyssen (Huyssen, 2000) identifica nas sociedades ocidentais
contemporâneas uma reordenação da representação temporal que deslocou as preocupações
culturais dos modernistas com a projeção do futuro para uma evocação pós-moderna do
passado. Esta nova “cultura da memória” se manifesta não por meio de narrativas
legitimadoras das antigas estruturas, mas pela evocação e transfiguração atualizadora das
manifestações suplantadas pelo discurso moderno. Nas palavras de Science, “os mais
velhos são os mais velhos, os mais novos são os mais novos, e a gente junta tudo e vira uma
afrociberdelia” (http;//www.uol.com.br/uptodate/up3/txt15.htm).
Mesmo reconhecida a preocupação do modernismo brasileiro com as tradições
populares – recuperadas em seus esforços de revisão do discurso de progresso instituído
pelo colonizador, e afirmadas como elementos fundamentais na composição da
modernidade nacional –, muitos de seus fundadores, segundo Santuza Naves, recorreram à
citação de peças folclóricas com o intuito de consagrar identidades e atribuir um caráter
nacional e “interessado” à arte erudita. Chico Science, descompromissado com projetos de
unificação identitária, incorpora a dinâmica e a pluralidade urbana e atua pela intervenção,
deformação e recriação daquelas expressões.
Naves afirma que o projeto musical modernista manteve, ainda, a distinção
hierárquica entre “erudito” e “popular” em seus processos de mediação estética, mesmo que
tenha visto a interação entre as duas instâncias como forma de autonomização da arte
nacional. Libertas, pela ação da “alta cultura”, da funcionalidade ritual que as
caracterizaria, as canções tradicionais poderiam atuar como elemento atribuidor de

76
originalidade às expressões do modernismo brasileiro, desde que mantidas distantes do
processo de massificação cultural iniciado naquele período. De acordo com a autora,

“(...) se os músicos populares se mantêm espontâneos, não corrompidos pelo processo de


modernização e condizentes com um estágio cultural primitivo, são canibalizados pelos
compositores modernistas. Mas se perdem a ingenuidade original, deixando-se contaminar
pelos meios de comunicação de massas, tornam-se alvo de críticas por parte dos mesmos”
(Naves, 1998, p. 50).

Chico Science, no entanto, não reconhece o popular no “patrimônio”, ou seja, nas


obras ou objetos acabados e descolados das vivências de seus autores, mas o toma como
representações dinâmicas e ainda atuantes nas sociedades contemporâneas, isto o permite
aproximá-lo da arte pop fundada sob a égide da cultura de massas, da indústria cultural e da
estética pós-moderna. O popular assim entendido – como vivência e comunicação – não
pode mais ser definido como monopólio de um grupo fixo, mas como produto híbrido
formado por referências de diferentes origens e naturezas.
Além disso, a mencionada distinção entre alta e baixa cultura que fundamentou, em
várias análises, os critérios de identificação do que deveria ser considerado
“verdadeiramente artístico”, exclui as manifestações populares por sua “funcionalidade
ritual”, “rusticidade” e “ausência de originalidade”. O massivo também é rejeitado pela
“funcionalidade comercial”, “superficialidade” e “ausência de autenticidade” a ele
atribuídas.
Estas exclusões atingem as principais expressões articuladas por Chico Science em
sua música, e somam-se às discriminações direcionadas à procedência sociocultural dos
grupos que as produzem. A associação da música de origem africana com o “primitivismo
estético”, a “irracionalidade” e a “barbárie” se dá em contraposição à tradição musical
erudita ocidental, identificada com a “complexidade”, o “apuro formal” e a “civilização”.
Apesar do crescimento do rap como gênero musical, este também sofre a negação de sua
legitimidade artística pela linguagem popular que adota e pela suposta falta de originalidade
devida ao emprego de fragmentos sonoros recortados. Daí a importância da ação inclusiva
desencadeada por “Chico Science e Nação Zumbi” ao valorizarem as formas subordinadas
de criação, postura que nos faz atentar para a atuação dos mecanismos de poder sobre os
processos culturais, entre os quais se incluem a produção e a recepção musical.

77
No entanto, a música feita pela banda não se afirma pela construção de uma imagem
ideal de povo ou de um discurso panfletário que evoque a ação popular por meio de
instituições organizativas tradicionais, mas propõe uma subversão cotidiana das condições
de subordinação social e cultural:

é só uma cabeça equilibrada em cima do corpo/ escutando o som das vitrolas que vem dos
mocambos/ entulhados à beira do Capibaribe/ na quarta pior cidade do mundo/ Recife
cidade do mangue/ incrustada na lama dos manguezais/ onde estão os homens caranguejos/
minha corda costuma sair de andada/ no meio da rua/ em cima das pontes/ é só uma cabeça
equilibrada em cima do corpo/ procurando antenar boas vibrações/ procurando antenar boa
diversão/ sou, sou, sou, sou, sou mangueboy!/ Recifecidade do mangue/ onde a lama é
insurreição/ onde estão os homens caranguejos/ minha corda costuma sair de andada/ no
meio da rua/ em cima das pontes/ é só equilibrar sua cabeça em cima do corpo/ procure
antenar boas vibrações/ procure antenar boa diversão/ sou, sou, sou, sou, sou mangueboy! 46

Esta canção apresenta o cotidiano de jovens urbanos à procura de alternativas


culturais que respondam às suas necessidades de auto-expressão. Uma narrativa que define
o mangueboy como sobrevivente da “quarta pior cidade do mundo”, e enxerga na rotina do
Recife uma motivação para que aquele se proponha a construir novas formas de diversão.
“Antene-se” se distancia assim das descrições românticas da cidade cantadas em versos
idílicos por seus artistas mais famosos (Teles, 1999), e evoca “o som da vitrola que vem dos
mocambos” para denunciar o fracasso do projeto urbano e extrair dos mangues um
potencial de “insurreição”, que deve se dar pela via da inovação cultural, do prazer, e da
festa.
O rap predomina como o tom da canção e os tambores aparecem apenas como
instrumentos a serviço da composição rítmica do gênero musical identificado com a
juventude das periferias. E estes são os atores que exibem, em atividades comuns e
espontâneas, formas de relativizar regras, negociar espaços e controlar a ação do sistema
sobre suas vidas. Práticas cotidianas e populares aparecem neste caso como canal
comunicativo e subversivo e, por se darem “fora ou nos interstícios dos campos
institucionais”, se apresentam como espaço de resistência às instâncias dominantes da
sociedade (Featherstone, 1997, p. 83).

46
“Antene-se”. Letra e Música: Chico Science. Da Lama ao Caos. Sony Music, 1994.

78
A mesma reflexão é apresentada pela “Nação Zumbi” na música “Manguetown” 47.
O tom festivo alcançado pela sobreposição sonora dos instrumentos, ecos e vozes, contrasta
de maneira irônica com a descrição da dura rotina de jovens suburbanos que, apesar das
adversidades sociais, buscam diversão na companhia de seus iguais:

estou enfiado na lama/ é um bairro sujo/ onde os urubus têm casas/ e eu não tenho asas/ mas
estou aqui em minha casa/ onde os urubus têm asas/ vou pintando, segurando as paredes do
mangue do meu quintal/ manguetown/ andando por entre os becos/ andando em coletivos/
ninguém foge ao cheiro sujo/ da lama da manguetown/ andando por entre os becos/
andando em coletivos/ ninguém foge à vida suja dos dias da manguetown/ esta noite eu
sairei/ vou beber com meus amigos/ e com as asas que os urubus me deram ao dia/ voarei
por toda periferia/ vou sonhando com a mulher/ que talvez eu possa encontrar/ ela também
vai andar/ na lama do meu quintal/manguetown.

Assim, todas as articulações políticas e estéticas identificadas na obra de Chico


Science por esta pesquisa, se deram em interação com um contexto cultural urbano
periférico e pós-moderno, que além de apresentar os termos da reformulação paradigmática
de percepção e concepção dos sujeitos nele inseridos, desenhou um cenário que se fez fonte
primordial da criação do músico e aguçou sua audição para as polifonias atuantes no
momento.
Recife apareceu como fundo e fundamento da cena cultural construída pelos
mangueboys e a interpretação da música de Science que empreendemos teve que levar em
consideração a forma como o músico manipulou os signos urbanos aí selecionados. A
experiência urbana ofereceu a Science a possibilidade de citar performances pré-gravadas,
reproduzir trechos musicais ou sonoridades características de variadas expressões e
ambiências, adotar entoações e utilizar falas, gírias, sinais ou ruídos captados no cotidiano
da Manguetown, elementos estes que configuraram a “paisagem sonora” (Schafer, 2001) na
qual os músicos do Manguebit estavam inseridos.
Já que, segundo Richard Shafer, o desenho que tal paisagem assume é fruto de
construções coletivas, a consideração de seu corpus nos serviu na compreensão das
dinâmicas culturais em voga, e a investigação de suas formas de interação com a
composição musical de Chico Science nos conduziu à apreensão da arte como meio de
expressão de percepções sociais.

47
“Manguetown”. Letra: Chico Science/Música: Chico Science, Lúcio Maia e Dengue. In: Afrociberdelia.
Sony Music, 1996.

79
No entanto, é na relação entre ruído e poder identificada por Shafer nas
transformações sonoras operadas pelo capitalismo industrial nas sociedades ocidentais que
Ariano Suassuna localiza a música pop comercial. O som amplificado das guitarras
elétricas tão condenadas pelo escritor, e as construções artificiais da música eletrônica são
vistos, da sua perspectiva, como meio de impor pelo volume a sonoridade e a cultura
imperialista. A música armorial opera, portanto, pela reconstrução romântica da paisagem
sertaneja, que evoca uma ambiência rural supostamente mais favorável à perpetuação do
popular. Violas e rabecas aparecem a Suassuna como “sinal de autenticidade da ‘civilização
do couro’ e do povo”. O escritor lamenta estar assistindo,

(...) a civilização destruindo impiedosamente aquela cultura despojada e cheia de grandeza,


aquela cultura do povo sertanejo que eu tanto amo e que é uma das raízes mais autênticas
da cultura brasileira (...) o som antipático das guitarras elétricas substitui a viola sertaneja,
ao mesmo tempo em que as alpercatas e os chapéus de couro são substituídos pelas
sandálias de matéria plástica (Suassuna, 1972a, p. 48).

Pelo que pudemos compreender até aqui, as modificações provocadas pela


industrialização na configuração sonora das cidades criaram novos ruídos, mas não
conseguiram abafar por completo as múltiplas vozes dissonantes. Dentro deste contexto, os
movimentos de migração e globalização reuniram na paisagem urbana sonoridades rurais
ou multinacionais, que se encontram mediadas pela música de Science. O compositor criou
novos temas fundados nesta realidade polifônica e usou a tecnologia para amplificar as
48
falas contidas pelo mesmo processo de modernização. Em “A cidade” , Chico tece sua
crítica às opressões contemporâneas e atenta, mais uma vez, para o poder transformador da
arte:

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas/ que cresceram com a força de pedreiros suicidas/
cavaleiros circulam vigiando as pessoas/ não importa se são ruins, nem importa se são boas/
e a cidade se apresenta centro das ambições/ para mendigos ou ricos e outras armações/
coletivos, automóveis, motos e metrôs/ trabalhadores, patrões, policiais, camelôs/ a cidade
não para, a cidade só cresce/ o de cima sobe e o de baixo desce/ a cidade se encontra
prostituída/ por aqueles que a usaram em busca de saída/ ilusora de pessoas de outros
lugares/ a cidade e sua fama vai além dos mares/ no meio da esperteza internacional/ a
cidade até que não está tão mal/ e a situação sempre mais ou menos/ sempre uns com mais e
outros com menos/ a cidade não para, a cidade só cresce/ o de cima sobe e o de baixo desce/
eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu/ tudo bem envenenado, bom pra mim

48
“A cidade”. Música e letra: Chico Science [“Boa Noite do Velho Faceta (Amor de Criança)”: música
incidental]. In: Da Lama ao Caos. Sony Music, 1994.

80
e bom pra tu/ pra gente sair da lama e enfrentar os urubu/ num dia de sol Recife acordou/
Com a mesma fedentina do dia anterior.

Nesta música, os ruídos e sonoridades urbanas estão representados no som


“poluído” das guitarras, na artificialidade dos efeitos e distorções, no arranhado dos discos
de vinil operados por um DJ, nas vozes sampleadas e também na citação de um trecho da
gravação de “Boa Noite do Velho Faceta”, do artista popular Jonas Francisco Vieira, que
ganhou fama como mestre de Pastoril Profano na Região Metropolitana do Recife. Tal
justaposição, aliada à definição da música de Science como “embolada, samba e maracatu
envenenado”, aparecem aqui tanto para ilustrar a polifonia urbana, quanto para denunciar as
opressões e desigualdades sociais as quais estão submetidas as classes populares que
construíram a cidade, mas que não usufruem de seus benefícios.
Por fim, a proposta de fazer da arte do povo um instrumento de resistência –
posteriormente adotada pelo Projeto Acorda Povo em seu empenho de tirar as periferias “da
lama” – é também construída em alusão à força revolucionária dos heróis populares das
mais diversas origens, e entendida como forma de presentificar seus ideais. No tom de uma
convocação de guerra, ao som de tambores, Chico clama:

modernizar o passado é uma evolução musical/ cadê as notas que estavam aqui?/ não
preciso delas/ basta deixar tudo soando aos ouvidos/ o medo dá origem ao mal/ o homem
coletivo sente a necessidade de lutar/ o orgulho, a arrogância, a glória/ enche a imaginação
de domínio/ são demônios os que destroem o poder bravio da humanidade/ viva Zapata!/
viva Sandino!/ viva Zumbi!/ Antônio Conselheiro/ Todos os Panteras Negras/ Lampião sua
imagem e semelhança/ eu tenho certeza eles também cantaram um dia. 49

2.2

49
“Monólogo ao pé do ouvido”. Letra e Música: Chico Science. In: Da Lama ao Caos. Sony Music, 1994.

81
Mote: Armorialidade

Embora atuando de maneira substancialmente diferenciada das colagens que


configuram a música de Chico Science, a intertextualidade também se apresenta como o
principal modelo de criação literária adotado por Ariano Suassuna. Neste caso, a presença
explícita ou implícita da poesia e dos espetáculos populares se manifesta na forma de
transcrições fiéis ou reformuladas, que consagram tradições e atribuem legitimidade aos
escritos de um “autor nacional”. Os procedimentos inventivos da citação e da reescritura
são adotados por Suassuna como meio de presentificar as tradições populares em suas
composições estéticas, e, ao mesmo tempo, conferir identidade a uma arte erudita que se
pretende representativa.
Desta forma, a comunhão entre as diversas linguagens articuladas na literatura de
cordel – espaço de confluência de texto, imagem e som – trabalha, na obra de Suassuna, em
favor da flexibilização das fronteiras entre as artes. Afirma a unidade da sensibilidade
estética e colabora para a construção de uma paisagem nacionalizada que procura levar em
consideração o imaginário e as representações do povo.
A definição de “tradição” de Paul Zumthor (Zumthor, 1997) coloca estas
representações como modelos e normas de pensamento e conduta fundados nas
experiências do passado e veiculados pela memória coletiva. Tratam-se de padrões
socialmente estabelecidos, que agem de acordo com uma dinâmica de reapropriação do
presente e dialogam com as questões colocadas pela atualidade. Esquemas explicativos que
operam por meio do enquadramento ordenador do cotidiano fragmentado. A “escritura
armorial” de Ariano Suassuna atua, portanto, pela acomodação das inovações em
arquétipos, buscando, num universo sertanejo tido como severo e tradicional, o fundamento
da resistência às transformações indesejadas, e, ao mesmo tempo, a justificativa para as
apropriações textuais que efetua.
Podemos entender que na construção literária de Suassuna a memória coletiva
interpreta o cotidiano vertendo-o em tradição, ou seja, atribui coerência e confere
continuidade às experiências partilhadas, estando, no entanto, referenciada no presente, e
não presa a um passado imóvel. A memória é fator de sociabilidade, base da própria
definição de cultura do escritor. Associada à tradição, empreende um processo seletivo, no
qual lembrança e esquecimento se traduzem num duplo e indissociável movimento de

82
adoção e rejeição das experiências e de seus diversos aspectos. Assim, a cultura se
manifesta pela atitude de escolha que se empenha em destacar os valores comunitários a
serem fixados em meio ao circunstancial e ao efêmero.
No Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (Suassuna,
1972), obra fundamental na literatura de Suassuna, na qual o escritor exibe uma espécie de
“síntese da cultura nacional”, tal seleção se ordena por meio da articulação de inúmeros
textos – populares ou eruditos, escritos ou orais; em verso, em prosa ou em imagens –, e a
centralidade das expressões populares se mostra pelas variadas formas de citação que
evocam seus autores reais, ficcionais ou anônimos, sem que as fronteiras entre as
linguagens e entre as formas de composição sejam objetivamente explicitadas. De acordo
com Idelette Santos,

A escritura armorial poderia ser definida como um jogo elaborado de citações, que coloca o
texto no centro de uma rede transtextual muito complexa. A citação está na base da criação
da obra, que deve ser a um só tempo resumo, antologia e recriação de toda a memória
cultural. Esta súmula cultural torna-se o pedestal do novo texto. (Santos, 1999, p. 146)

Sendo assim, o livro recebe um título duplo e é dividido em “folhetos” cujos nomes
também tomam a forma das designações do cordel. A descrição introdutória exibida na
primeira página do romance e as ilustrações inspiradas nas xilogravuras têm como
referência o mesmo gênero literário. Mais do que como ornamentos, as imagens funcionam
como recursos narrativos, representações visuais dos temas tratados, formas
metalingüísticas que se destinam a reforçar a defesa da literatura popular como signo da
cultura brasileira e matéria para a criação erudita.
Dom Pedro Diniz Ferreira-Quaderna, “O Decifrador”, “Rei do Quinto Império e do
Quinto Naipe, Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do
Brasil” (Suassuna, 1974, p. 5), é narrador e personagem principal deste “Romance
enigmático de crime e sangue, (...) Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas
Caatingas! Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte!” (Idem, p. 1).
Quaderna formou-se na escola de cantoria da fazenda sertaneja “Onça Malhada”, onde
aprendeu que “havia dois tipos de romance: o ‘versado e rimado’, ou em poesia; e o
‘desversado e desrimado’, ou em prosa” [grifos do autor (p. 56)]. Vale-se de tal aprendizado
para reconstituir sua trajetória de vida até o momento em que se encontra preso na cadeia

83
da “Vila de Taperoá” e está sendo submetido a um “estranho processo, a um tempo político
e literário”. Apresenta sua defesa através da composição de um “romance dentro do
romance”. Como afirma Sônia Bronzeado:

Para a elaboração e explicitação do romance, Quaderna se utiliza do mesmo substrato


cultural que informa a dramaturgia de Suassuna: a literatura de cordel, as manifestações do
folclore nordestino e a tradição do romanceiro medieval, aos quais se juntam agora as
formas épicas das novelas de cavalaria (Bronzeado, 1998, p. 305).

E Suassuna se vale tanto das temáticas quanto dos procedimentos criativos dos
romances cantados e dos folhetos impressos para compor sua epopéia sertaneja. Oralidade,
descontinuidade, interrupções, regressões, digressões e superposições, características
marcantes dos textos populares, compõem uma obra que coloca a própria produção literária
em questão. A incorporação de tais recursos se traduz numa espécie de comprometimento
político e se reflete no projeto literário de Quaderna de construir um memorial, um
compêndio das tradições e insígnias do povo, uma síntese do espírito nacional.
Neste exercício, as intervenções do narrador-personagem funcionam como
equalizador das diversas vozes que se cruzam no texto. Quaderna age como mediador de
relatos de diferentes procedências. Ordena e analisa, descreve e comenta, controla a
narrativa e direciona a leitura. O que se apresenta é uma abordagem comprometida, uma
estratégia de convencimento, um discurso que articula forma e conteúdo na afirmação de
um projeto político.
Na abordagem das citações, os textos populares devem ser apreendidos não em suas
funções originais, mas em sua atuação nos escritos de Suassuna, já que se desprendem das
variadas procedências para assumir, nos romances, peças ou poemas, uma configuração
inédita. Compõem um conjunto inextrincável, articulado por meio de reescrituras
sucessivas, que imprimem a marca do novo autor à obra que daí resulta (Santos, 1999).
A própria identificação de distinções entre o universo cultural erudito e o popular
termina por fundamentar a iniciativa de transfiguração tomada por Suassuna. O escritor age
pela ampliação, redução ou interpretação dos folhetos, seguindo o movimento de
transformações sucessivas que funda uma literatura sempre aberta a novas intervenções. Tal
mediação deve se dar, no entanto, dentro de certos limites formais que localizem as
recriações no interior de uma tradição narrativa. Ou seja, Suassuna reelabora o “material
bruto” apresentado pela literatura de cordel e pelos romances tradicionais com a

84
preocupação de manter o caráter mnemônico que acredita definir a essência destas
linguagens.
Personagens, signos, formas narrativas; recursos plásticos, musicais, cênicos e
textuais dos mais variados espetáculos populares, como o mamulengo e o bumba-meu-boi,
por exemplo; também são apropriados pelo autor na construção de seus romances, poesias
ou peças de teatro. A investigação das diversas danças dramáticas representadas no
Nordeste corrobora, assim, a definição da arte como conjunto indissociável de linguagens e
a afirmação da festa como forma de manifestação do espírito nacional. Por isso a origem
das citações é quase sempre evidenciada por Suassuna, com o intuito de confirmar a
autenticidade de suas narrativas.
Desta forma, o escritor afirma o valor estético e o caráter artístico da poética
popular, negados pela perspectiva evolutiva que enxerga na “oralidade” e na “brincadeira”
uma “simplicidade primitiva” associada a estágios sociais ultrapassados. Esta oralidade, no
entanto, se mostra como fator que promove a abertura dos textos populares à intervenção de
artistas letrados, já que a própria estrutura formal dos folhetos, cantigas e romances abriga
diversos processos de recriação e atualização.
A linguagem popular, no caso de Suassuna, aparece como expressão da poesia
contida na visão de mundo do sertanejo, que conforma a realidade cotidiana deixando suas
marcas nos diálogos, observações e criações. Esta compreensão se destaca como influência
fundamental na construção da poética do autor, que se forma por aproximação tão intensa
que chega a dificultar a distinção entre o que é observado e apreendido das expressões
populares, e o que é criado na relação constante e ambígua entre realidade e transfiguração.
Há também, na obra de Suassuna, um diálogo permanente com a tradição cultural
erudita, e suas referências clássicas são evocadas principalmente quando se movem em
direção às expressões populares – o que acontece, por exemplo, no teatro de Gil Vicente e
nas análises de Euclydes da Cunha, autores que oferecem modelos estéticos e éticos para a
criação do escritor. Isso se dá em associação com a concepção explicitada no Projeto
Cultural Pernambuco-Brasil de que o popular é uma apropriação da cultura erudita por
povos subordinados. Daí a preocupação de Suassuna em construir uma coerência formal
que localize sua obra no interior de uma tradição criativa que, considerando tal interação,
realiza o movimento contrário de transfiguração das manifestações populares em arte
erudita e busca atingir a expressão estética da identidade nacional:

85
“(...) em mim a imaginação criadora sente verdadeira necessidade de trabalhar com as
raízes fincadas nessa inesgotável e rica fonte brasileira que é o romanceiro Popular
Nordestino. É que também acredito, tanto com a cabeça quanto com o sangue – que só
assim é que tenho a garantia da aprovação coletiva, que o Povo brasileiro dá aos folhetos, e
a segurança de estar ligado a uma corrente literária que me identifica, ao mesmo tempo,
com o Povo e com a tradição mediterrânea e ibérica que forma o núcleo da Cultura
brasileira”. (Suassuna, 1986, p. 164)

Na análise deste processo, não podemos deixar de considerar as especificidades dos


mecanismos de transmissão e recepção fundados pela cultura letrada. Seus autores muitas
vezes empreendem as reelaborações como meio de adaptação da linguagem popular ao
consumo das classes médias urbanas, e a investigação da relação de Ariano Suassuna com
os folhetos e romances pode nos ajudar a compreender melhor esta forma de mediação
cultural. Neste caso, o apelo ao popular aparece como resposta aos questionamentos acerca
da identidade cultural brasileira. Não se trata, porém, de uma abordagem sociológica, que
atrela a construção artística a discursos teóricos, mas de uma recriação poética da realidade,
construída segundo o que se supõe ser a ótica dos grupos que compõem o “Povo”.
É desta forma que se entende que os folhetos de cordel podem apresentar os termos
de uma arte nacional total, e é por isso que seus elementos orientam a pesquisa e a criação
de Ariano Suassuna. Em suma, apresentam uma forma de composição poética que assimila
intervenções, permitem atualizações e sincretismos, exibem os emblemas de um povo por
meio da representação gráfica presente nas gravuras, e evocam um “sentimento de
brasilidade” através do acompanhamento musical associado à ambiência sertaneja.
Suassuna atribui ao poeta popular a função social de presentificar a memória
coletiva e cantar o imaginário do povo. Desta forma, a cantoria também é valorizada como
arte de criar versos por improviso de acordo com um conjunto de regras apreendidas pela
oralidade, ou seja, segundo esquemas de métrica e rima que oferecem ao escritor a
possibilidade de associar memória, tradição e originalidade.
No entanto, algumas questões precisam ser levantadas a esse respeito. A primeira
põe em pauta a relação entre as noções de oralidade e autoria, entendida de forma
específica na cantoria e no repente apontados como referência por Ariano Suassuna.
Segundo Elizabeth Travassos, as toadas utilizadas na entoação dos versos por cantadores e
repentistas estão em constante mutação, e inexistem versões “originais” ou “autorizadas”
ligadas por exclusividade a autores específicos.

86
A ausência de versões referenciais ou de exigência de fidelidade caracterizam tais
toadas como “um estoque de idéias melódicas disponíveis para o uso em performances”.
No entanto algumas variações são associadas a determinados indivíduos por autoria ou
recorrência do uso. Já no caso dos versos recitados, o improviso demarca seu caráter inédito
e uma sanção moral procura garantir sua integridade. Como afirma Travassos, “por
definição, toda produção poética de uma performance repentista é nova e original”, e as
reproduções põem em questão a autoridade poética dos que as realizam (Travassos, 1999,
pp. 9-10).
Neste caso, o processo de reescritura empreendido por Suassuna é movido por
critérios diversos ao da cultura oral evocada. O registro escrito e a publicação implicam, de
certa forma, atestado de propriedade. Do mesmo modo, a noção de domínio público do
folclore é alheia ao universo cultural destes artistas populares, que circunscrevem os limites
da autoria coletiva a um grupo profissionalmente definido: o dos repentistas ou cantadores.
Outra questão diz respeito à caracterização da literatura de cordel, tão valorizada
pelo escritor como baluarte da poética popular. Apesar do discurso formulado pelo escritor
se remeter quase exclusivamente às condições rurais de produção cultural, o cordel já foi
definido por vários estudiosos como dotado de uma configuração urbana e de uma
composição “contaminada”, tanto em termos estéticos – pelas apropriações, deformações e
mistura de gêneros e categorias que executa – quanto no que diz respeito aos circuitos de
distribuição aos quais aderem. Como afirma Martin-Barbero, a literatura de cordel não só é
meio,

(...) é mediação. Por sua linguagem, que não é alta nem baixa, mas a mistura das duas.
Mistura de linguagens e religiosidades. É nisso que reside a blasfêmia. Estamos diante de
outra literatura que se move entre a vulgarização do que vem de cima e sua função de
válvula de escape de uma repressão que se explode em sensacionalismo e escárnio. Que em
lugar de inovar esteriotipa, mas na qual esta mesma estereotipia da linguagem ou dos
argumentos não vem só das imposições carregadas pela comercialização e adaptação do
gosto a alguns formatos, mas também do dispositivo da repetição e dos modos de narrar o
popular. [grifos do autor] (Martin-Barbero, 2001, p. 158)

No caso da literatura de Suassuna, a mediação funciona de outra maneira, mais


próxima da forma de interposição reconhecida por Silviano Santiago (Santiago, 1982) no
que identifica como “discurso ficcional memorialista”. Ao constatar o alcance reduzido da
circulação de livros de ficção no Brasil, Santiago reconhece as limitações enfrentadas pelo

87
escritor desse gênero, que depende da aprovação e legitimação de um público pertencente
às classes médias, atreladas a esferas de poder político-econômico de valores e interesses
conservadores. O discurso ficcional aparece para o autor como espaço ambíguo, ao mesmo
tempo de contestação e reafirmação ideológica de princípios socialmente hegemônicos.
Espaço onde grupos sociais que ocupam espaços de poder e prestígio podem exercer sua
crítica e auto-reconhecimento.
Na abordagem do “discurso ficcional memorialista”, Santiago apresenta o gênero
como principal exemplo da postura auto-reflexiva dos autores nacionais, já que aí lhes é
permitido descortinar as transformações sofridas pelas classes dominantes no Brasil –
classes às quais tradicionalmente pertencem –, além de tecer suas críticas sociais. Partindo
de tal raciocínio, o “romance memorialista” é entendido como um discurso de classe, na
medida em que está orientado para uma revisão do passado de um grupo social específico e
articula as idéias de origem, pertencimento e herança socioculturais na descrição das
relações entre pares de diversas gerações.
A obra de Ariano Suassuna pode também ser entendida como narrativa dotada de
aspectos memorialistas. A idealização do cenário de sua infância é percebida, por exemplo,
em vários trechos do Romance D’A Pedra do Reino, onde o sertão é colocado como um
“espaço de saudade”, local do qual o escritor ainda se vê como integrante. O culto à família
e à ordem social que compartilhavam também é um recurso freqüente em seus textos. A
esse respeito, Suassuna diz ter implementado em seu romance “uma tentativa de
recuperação” dos valores familiares, representados no título do livro pelo termo “pedra”: “É
como se eu encaixasse uma pedra angular para erguer um monumento ao meu pai”
(Suassuna, 2000, p. 29).
Um depoimento relativo às disputas de poder entre elites políticas nas quais sua
família esteve envolvida (e que se reverteu em um dos temas do Romance) pode nos ajudar
a compreender sua concepção de cultura popular e a polarização que norteia a narrativa por
ele tecida acerca da identidade nacional. Suassuna declara que é na história política de seu
pai 50 que se encontra a origem de sua percepção da realidade sociocultural brasileira. Diz o
escritor:

50
João Suassuna, líder ruralista e presidente da Província da Paraíba entre 1924 e 1928, morto em uma
emboscada armada por inimigos políticos, aliados de seu substituto João Pessoa, em 1930.

88
Não sei se vocês sabem, mas eu passei por um problema muito duro na infância. Meu pai
era um político, governava a Paraíba. Em 1930 a Paraíba se dilacerou muito com o
problema político, talvez mais que ao outros estados. E meu pai era o líder das forças rurais.
O Dr. João Pessoa era líder das forças urbanas. As forças urbanas venceram a luta de 1930.
Então a história passou a ser contada pelos simpatizantes do Dr. João Pessoa e meu pai
passou a ser apresentado como representante do mal. Meu pai e as forças rurais
representavam o mal, e o Dr. João Pessoa e as forças urbanas representavam o bem. Aí eu,
muito naturalmente, comecei a reagir, tomando a posição contrária: Então, para mim agora,
o rural vai ser o bem, e o urbano vai ser o mal (Programa “Roda Viva”, TV Cultura, 2002).

O que se apresenta aí é uma oposição entre dois mundos: um fundado no passado,


na existência comunitária e na religiosidade, e outro voltado para o futuro, marcado pelo
progresso, racionalização e individualização – modelo vitorioso e socialmente aceito como
irreversível. Tal dicotomia irreconciliável dá margem a um tipo de abordagem
preservacionista em torno de uma tradição rural vislumbrada nas manifestações da cultura
popular sertaneja. Foi o que direcionou o esforço de reconhecimento, delimitação e
definição por parte de Suassuna de seu objeto de pesquisa – as manifestações populares
tradicionais expressas no território nacional – localizado por meio da identificação dos
ambientes e dos grupos sociais detentores das características necessárias à sua produção.
Sendo assim, o Nordeste surge como tema privilegiado em sua defesa de uma
nacionalidade autêntica, pela recuperação do modelo de sociabilidade que acredita ter sido
preservado no interior da Região, valorizada por seu suposto arcaísmo. Ao analisar a obra
do escritor, Albuquerque Jr. conclui que:

Recuperando o esquema tradicional de explicação do fim da Idade Média na Europa, ele o


aplica para explicar a derrocada de nossa "sociedade fidalga do Sertão". Os burgueses
citadinos, representados pelos comerciantes, que apoiavam a política modernizante, de
intervenção crescente do Estado, para extirpar as zonas de ilegalidade e o poder privado
sertanejo, o que tentara João Pessoa, serão antepostos por Ariano à aliança entre a
aristocracia rural e o "povo", vistos como classe com hábitos, costumes e valores muito
próximos e entre os quais reinavam as tradicionais relações baseadas na honra, na valentia,
nas relações face a face, de respeito e assistência mútua. Toda a sua obra está marcada por
essa visão populista, em que o povo ao mesmo tempo em que expõe as misérias e injustiças
que sofre, o faz denunciando a modernização do sertão, a sociedade capitalista, o fim das
relações paternalistas como as responsáveis por isso. Povo que vê no hierarquicamente
superior um benfeitor ou malfeitor, que segue chefes, e não líderes (Albuquerque Jr., 1999,
pp. 165-166).

No poema “Soneto de Babilônia e Sertão – Com tema de Tupã Sete” 51, Suassuna
(Suassuna 2000a) se coloca frente à oposição sertão/litoral, rural/urbano, confrontando a

51
A iluminogravura deste poema encontra-se anexada a esta dissertação.

89
imagem idealizada da “terra de fogo” da qual teve que se exilar depois da morte do pai,
com a estranheza, o medo, a suspeição e o desbarato nele provocados pela paisagem da
Recife tingida pelo verde úmido dos mangues:

Aqui, o Corvo azul da Suspeição


apodrece nas frutas violetas,
e a febre escusa, a Rosa da infecção
canta aos Tigres de verde e malhas pretas.

Lá, no pêlo de cobre do Alazão,


o Bilro de ouro fia a Lã vermelha.
Um Pio de metal é o Gavião
e são mansas as Cabras e as Ovelhas.

Aqui, o Lodo mancha o Gato Pardo:


a Lua esverdeada sai do Mangue
e apodrece no medo, o Desbarato.

Lá é fogo e limalha a Estrela esparsa:


o Sol da morte luz no sol do Sangue,
mas cresce a solidão e sonha a Garça.

Este poema, recitado em tom de saudade pelo autor no CD A Poesia Viva de Ariano
Suassuna (Ancestral, 1998), evoca, sob o som barroco da música armorial52, a memória
afetiva e familiar do escritor, e transforma sentimentos e elementos da paisagem sertaneja
em símbolos ou insígnias, também presentes nas descrições que compõem o cenário do
reino de Quaderna, no Romance D’A Pedra do Reino:

Daqui de cima, porém, o que vejo agora é a tripla face de Paraíso, Purgatório e Inferno, do
Sertão. Para os lados do poente, longe, azulada pela distância, a Serra do Pico, com a
enorme e altíssima pedra que lhe dá nome. Perto, no leito sêco do Rio Taperoá, cuja areia é
cheia de cristais despedaçados que faíscam ao Sol, grandes Cajueiros, com seus frutos
vermelhos e côr de ouro. Para o outro lado, o do nascente, o da estrada de Campina Grande
e Estaca-Zero, vejo pedaços esparsos e agrestes de tabuleiro, cobertos de Marmeleiros secos
e Xiquexiques. Finalmente, para os lados do norte, vejo pedras, lajedos e serrotes, cercando
a nossa Vila, e cercados eles mesmos por Favelas espinhentas e Urtigas, parecendo enormes
Lagartos cinzentos, malhados de negro e ferrugem, Lagartos venenosos, adormecidos,
estirados ao Sol e abrigando Cobras, Gaviões e outros bichos ligados à crueldade da Onça
do Mundo (Suassuna, 1972, p. 3).

Definição de cores, animais, vegetação, clima, relevo, tudo colabora para criação de
uma ambiência reproduzida graficamente nas gravuras com as quais Suassuna costuma
52
“Aralume”, de Antônio Madureira, originalmente gravada pelo Quinteto Armorial no álbum de mesmo
nome (Discos Marcus Pereira, 1976).

90
ilustrar sua literatura. Seus poemas ornamentados com pintura foram por ele denominados
de “iluminogravuras”, e consistem numa fusão das iluminuras medievais com as
xilogravuras dos folhetos de cordel. Alegorias inspiradas nas capas de folhetos, em pinturas
rupestres e nas figuras dos ferros de marcar boi, estabelecem, neste caso, um diálogo entre
poesia e imagem. Ou seja, em termos de representação, este trabalho plástico se encontra
associado ao universo popular e “segue os princípios da pintura e da gravura armoriais”
(Newton Jr., 1999, p. 133).
E se, como já foi dito, a criação armorial se move em direção à construção de um
memorial popular e da composição de um brasão de signos que resuma o imaginário
53
subjacente à cultura nacional, “O Mundo do Sertão – Com tema do nosso Armorial” se
reverte em fonte simbólica que deve oferecer alguns dos principais elementos de nosso
“escudo de armas”. Suassuna verseja:

Diante de mim, as malhas amarelas


do Mundo, onça castanha e desmedida.
No campo rubro, a Asna azul da vida:
à cruz de azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas


perturba a Cruz e as Rosas mal partidas.
E a marca negra, esquerda, inesquecida,
corta a Prata das folhas e fivelas

E enquanto o Fogo clama, à Pedra rija,


que até o fim serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,


tenta alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.

Com o mesmo referencial, o poeta defende a adoção do sistema musical identificado


no sertão nordestino como base das composições armoriais, por aquele apresentar as
características entendidas como essenciais ao desenvolvimento do espírito nacional:
“popular” e “pré-clássico”. Desempenha o papel de pesquisador e orientador dos músicos
envolvidos na formação do “Quinteto Armorial”, definindo o caráter de sua produção antes

53
A iluminogravura deste poema encontra-se anexada a esta dissertação. Sua recitação, também gravada no
CD A Poesia Viva de Ariano Suassuna (Ancestral, 1998), é acompanhada pela viola Antônio Madureira, que
ponteia a música “Ecos”, de sua autoria.

91
mesmo dela chegar a ser executada. Segundo o escritor, “a imitação é, no caso, o campo do
compositor popular; a recriação, o do erudito; e a transposição o de uma espécie
intermediária, importantíssima para a criação de uma música nacional” (Suassuna, 1991, p.
44).
O sincretismo aparece então como caráter da composição armorial, que se expressa
por uma estrutura simples e pela alternância ou repetição de trechos melódicos,
demonstrando proximidade de tema e forma com as canções populares, e se definindo,
segundo Suassuna, como “uma música áspera, forte e despojada como o próprio sertão”
(Suassuna, 1972a, p. 48). Sua execução se vale de instrumentos característicos, como a
viola-sertaneja, a rabeca, o pífano, o marimbau e a zabumba, com o intuito de reproduzir a
“sonoridade popular” e “nacionalizar” o timbre da música erudita (Suassuna, 1974).
Uma leitura tradicionalista das artes populares revela as possibilidades estéticas e a
orientação política a serem tomadas pelos atores interessados na construção de uma
“expressão nacional autêntica”. Na composição de sua obra teatral, Suassuna se inspira no
teatro popular de bonecos (mamulengos), tomando de tal encenação algumas personagens e
recursos cênicos e um modelo estrutural propício à improvisação. Dos autos do bumba-
meu-boi absorve a capacidade de aglutinar narrativas, a forma de representação e a
caracterização das figuras dramáticas.
A peça “A Pena e a Lei”, por exemplo, foi composta por uma compilação de textos,
entre eles, “Surpresas de um Coração”, escrito por Suassuna (1994a) para ser encenado em
teatro de bonecos. Além de ter lhe fornecido personagens e situações típicas, o mamulengo
deveria, segundo o autor, inspirar os gestos e o cenário na montagem da peça adaptada.
Segundo Idelette Santos (Santos, Op. Cit.), “Cheiroso”, um manipulador de mamulengo
que atuou junto com Suassuna no Teatro do Estudante de Pernambuco, emprestou seu
cognome ao “boneco” que narra a história da peça, além das personagens “Cabo 70” e
“Capitão”, por ele criadas.
“Benedito”, de “O Casamento Suspeitoso”, e João Grilo, do “Auto da
Compadecida”, além de fazerem alusão às personagens de mesmo nome que protagonizam
vários folhetos de cordel, incorporam, segundo Suassuna (Suassuna, 1986), características
de “Bastião” e “Mateus” do bumba-meu boi, que também teria sua personagem “Capitão”
representada na peça pelo “Major Antônio Moraes”. Explicitadas as fontes da concepção

92
armorial de teatro, Suassuna define o espírito que deve mover as montagens dos
espetáculos:

“Não creio que a meus textos de teatro se adapte um espetáculo convencionalmente realista,
europeu e ocidental... Creio que o ‘Auto da Compadecida’ – como todo o meu teatro –
exigiria uma montagem criadora e livre, que, como o texto, se baseasse na invenção
dionisíaca e espetacular do Bumba- meu- boi, do Mamulengo, da Nau Catarineta, do
Pastoril... Gostaria, por isso, de ver encenadores e atores de minhas peças entregues a um
trabalho de criação e de amor ao espetáculo popular nordestino. Baseados em meus textos,
deveriam partir deles para um espetáculo mágico, festivo, com músicas, danças, máscaras,
bichos e demônios. A Música deveria ser sertaneja: os tambores, os pífanos, as violas, as
rabecas; a dança das facas, o xaxá, a orquestrinha do Bumba- meu- boi. A beleza dos trajes
do espetáculo nordestino: o gibão dos vaqueiros, cheios de bordaduras, verdadeiras
armaduras de couro vermelho; as moedas e os arreios de prata dos arreios e chapéus de
couro, as esporas, as roupas de almirante da Nau Catarineta; os Reis do bumba-meu-boi,
todos vestidos de espelhos, com as cabeças ornamentadas com chapéus que parecem
templos do Sião ou Mitras episcopais, os trajes litúrgicos da Igreja e dos militares; a roupa
solene e cômica do Doutor, os bichos fabulosos – a Onça, a Jumenta, o Jaraguá... O
espetáculo com que sonho, o teatro com que na verdade sempre sonhei, é este” (Suassuna,
1974, p. 27).

Para garantir esta configuração o autor especifica, nos textos introdutórios das suas
peças publicadas, a caracterização que devem assumir o cenário, o figurino, a música, o
gestual, e a entoação verbal adotada pelos atores. Tal atitude evidencia a centralidade do
teatro no que diz respeito à sua concepção de arte total, já que as encenações possibilitariam
a já mencionada comunhão de linguagens, além de colaborar na valorização da oralidade e
das falas populares.
E a literatura de cordel também se destaca como fonte primeira do teatro de
Suassuna. “O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna”, de Francisco Sales Arêda, “A Peleja
da Alma”, de Silvino Pirauá e “A História de João da Cruz”, de Leandro Gomes de Barros,
são exemplos de folhetos que inspiraram atos de peças do autor: “Farsa da Boa Preguiça”,
“A Pena e a Lei” e “Auto de João da Cruz”, respectivamente.
No caso do “Auto da Compadecida”, o processo de transfiguração pode ser
recuperado por meio das indicações oferecidas pelo teatrólogo em um artigo intitulado “A
Compadecida e o Romanceiro Nordestino” (Suassuna, 1986), este texto apresenta o
histórico da aproximação estética de Ariano Suassuna com a literatura popular e se centra
na explicitação da influência desta poética sobre a peça em questão. Reconhecendo na
reescritura o caráter fundamental do seu trabalho, Suassuna discute questões de autoria, os
limites das intervenções sobre as “fontes primárias”, e as restrições impostas aos escritores

93
eruditos pelas exigências acadêmicas de inovação que, segundo o escritor, contrastam com
a verdadeira originalidade das recriações realizadas pelos poetas populares.
Suassuna afirma que o principal valor da literatura popular nordestina está no fato
desta se manter “rica, variada, viva e atuante” (Suassuna, 1962a). Daí seu esforço de
incorporar a capacidade popular de recriação na concepção do “Atuo da Compadecida”,
que foi composta pela reescritura dos folhetos “O Castigo da Soberba”, de Anselmo Vieira
de Souza, “O Enterro do Cachorro” e “História do Cavalo que Defecava Dinheiro”, ambos
publicados por Leonardo Mota, sem indicação de autoria, em Violeiros do Norte (Mota,
1925). Tanto estes folhetos, quanto as brincadeiras populares e algumas pessoas reais que o
autor conheceu em momentos diversos de sua vida são apresentados como referências
determinantes na composição das personagens da peça. No entanto, segundo Suassuna,

Todos eles, como sempre acontece, são afinal, retrabalhados pela imaginação criadora, sem
o que ficam frios, mortos, como se feitos de pedaços de retalhos reunidos pela observação.
Mas, de fato, todos eles têm uma parte de real e uma parte da Literatura popular (Suassuna,
1986, p.161).

Além dos já mencionados “João Grilo” e “Major Antônio Moraes”, o “Padre”, o


“Padeiro” e a “Mulher” também têm referência no bumba-meu-boi, estando os dois últimos
associados ao “Doutor” e à “Catirina”, personagens do folguedo. “Chicó”, o mentiroso que
acompanha João Grilo em suas armações, é baseado em uma personagem real conhecida de
Suassuna. O cangaceiro “Severino de Aracaju” foi inspirado nos bandoleiros históricos do
sertão nordestino. As divindades e demônios foram retirados dos folhetos e dos autos
cristãos, e o palhaço que narra a fábula, dos “circos sertanejos” que o autor freqüentou na
infância. Quando pertencentes aos folhetos pesquisados, estas personagens foram
transfiguradas pelas intervenções e adaptações de Suassuna.
Linguagem, figuras dramáticas, situações e valores que compõem a retórica
característica dos folhetos são os mesmos que sustentam o significado do texto de
Suassuna, que muitas vezes também segue o encadeamento lógico e temporal das estórias
populares. No caso do Auto, ambas as versões se encontram em termos de estrutura. No que
diz respeito ao enredo, a base narrativa dos folhetos foi mantida, tendo o teatrólogo
estendido ou ampliado alguns episódios, ou enxertado situações inéditas com o intuito de
atribuir coerência e unidade à relação transtextual. Um primeiro ato onde um padre recebe
uma quantia em dinheiro, a título de herança, para batizar o cachorro do Padeiro

94
(originalmente de um Duque), um segundo ato no qual um gato (originalmente um cavalo)
que defeca dinheiro é vendido à Mulher do Padeiro para consolá-la pela perda do cachorro,
e um terceiro ato onde acontece o julgamento divino das almas das personagens
(originalmente, apenas de um rico Barão).
Este exercício de rastreamento nos permite referenciar citações e apropriações no
universo heterogêneo de elementos recuperados, sistematicamente ou não, pelo autor. Uma
desconstrução do complexo processo de composição literária de Suassuna evidencia a
diversidade de suas fontes de criação, as formas de manipulação do material pesquisado e
de reelaboração narrativa, os limites não muito precisos entre a invenção e a citação, a
utilização de referências eruditas e de fontes populares. Enfim, o que pretendemos realizar
neste momento foi um esforço de contextualização da posição intelectual de Ariano
Suassuna, mais especificamente no que diz respeito a sua forma de aproximação com o que
denomina "cultura popular", e, por associação, compreender as mediações culturais que
realiza através de sua atividade criativa.
Em “Farsa da Boa Preguiça”, Suassuna avalia, por meio dos conflitos entre o
repentista “Simão” e “falsa intelectual Dona Clarabela” a atitude das elites letradas diante
da produção cultural do povo. Clarabela “fala difícil”, “coleciona santos e móveis antigos”,
discute “arte formal” ou “arte conteudística”, e se veste “a caráter” para o “lugar ‘rústico’
em que se encontra” (Suassuna, 1994b, pp. 23-24). A personagem demonstra completo
desconhecimento das culturas populares, e suas investidas sobre a poesia de “Simão” se
traduzem no paradoxo constante entre um elitismo letrado e uma defesa militante da
“autenticidade” ou do engajamento popular. Uma crítica que parece se dirigir às posições
adotadas pelas diferentes correntes políticas do pensamento brasileiro da década de 1960,
momento em que a peça foi escrita. Vanguardas vangloriadas e pouco diferenciadas por
“Clarabela”, que as associa tanto a um “alemão neomarxista”, quanto a um “americano
neoliberal” ou um “sociólogo tropicalista” (Idem, p. 84).
Procurando distanciar-se de tais referências, Suassuna continua, por outro lado,
limitando a atuação do popular à circunscrição das relações senhoriais e patriarcalistas,
sendo que tal sociabilidade passa a ser destacada como forma de superar as barreiras de
inteligibilidade entre os grupos, já que, como já foi dito, o pacto de assistência mútua
travado entre a aristocracia rural e o povo os aproximaria em termos de valores e interesses.

95
O segundo ato da Farsa é composto por uma nova reescritura do folheto “O Homem da
Vaca e o Poder da Fortuna” – que também virou tema de uma música de Antônio Madureira
gravado no álbum Aralume, do Quinteto Armorial 54. E a esperteza do “Joaquim Simão” de
Francisco Sales, e do “Simão Poeta” de Ariano Suassuna é exposta pelo teatrólogo como
meio de sobrevivência nas condições hierárquicas da sociedade sertaneja, onde o lugar dos
indivíduos subordinados é determinado pelas relações que estabelecem com sujeitos de
categorias superiores. Aqui também, valorização do trabalho só se dá sob as alianças
afetivas de proteção entre patrão e empregado, rejeitando-se a impessoalidade dos contratos
baseados nas relações burguesas. As interações entre as esferas sociais representadas na
peça não se dão em termos de conflitos ou lutas de classes, mas como composições
hierárquicas, e, de certa, forma harmonizadas.
Mas o discurso de Suassuna também atribui aos valores e pensamentos "popular-
sertanejos" uma dimensão filosófica transcendente e universal, identificando na vivência
deste povo a expressão mais radical da condição humana. Neste sentido sua obra também
se traduz na busca de raízes direcionada tanto para a definição do espírito subjacente à
cultura nacional quanto para a afirmação de uma condição humana universal. Sendo assim,
o que Ariano Suassuna valoriza na cultura popular parece estar associado justamente ao
estado arcaico de sua existência e à dimensão mítica de sua essência. Segundo Maria
Aparecida Nogueira:

Talvez Ariano Suassuna queira entender a cultura brasileira por meio de uma leitura
dialógica entre os itinerários racional-lógico-empírico e mítico-mágico-simbólico,
desejando ir além das superfícies para verificar o chão e os subterrâneos de nossa cultura.
(Nogueira, 2000, p. 34)

É no caráter alegórico assumido por sua obra que tal transcendência marca presença.
Ao narrar episódios culturais verossímeis, acrescenta juízos morais e ideológicos e constrói
“parábolas” de pretensões pedagógicas. Experiências comuns se desprendem de seus
significados locais para encenar uma razão nacional e uma ética humanista.
Emblemático no conteúdo e na forma, o texto armorial, em alguma medida,
extrapola as diferenças ao formular associações metafóricas, realizar deslocamentos de
imagens e condenar os nativismos estreitos. Uma retórica nacionalizante trabalha com

54
Quinteto Armorial. Aralume. ABW, s/d.

96
alusões e representações e superpõe níveis de significação para tornar generalizáveis as
especificidades regionais.
Paul Zumthor (Zumthor, Op. Cit.) enxerga na substância tradicional atuante na
poética popular uma forma de co-legitimação de normas éticas e estéticas. Neste caso, a
imprecisão da distinção entre ficção e realidade centra a autoridade do discurso na
veracidade transcendente das lições. A tradição se impõe por meio de “modelos analógicos”
orientadores das próprias consciências individual e coletiva acerca das identidades e da
realidade vivenciada, consciência esta formulada e formalizada pela linguagem
compartilhada.
Tal possibilidade de reconhecimento entre os discursos poético e tradicional se dá
por meio de uma “tripla operação”: a generalização, que eleva a fala à dimensão mítica do
valor original, oferecendo-lhe condição de atemporalidade; a tipificação, baseada em
elementos recorrentes nos diversos textos, ou seja, em unidades móveis e traços freqüentes
de conteúdo; e a abstração, que se traduz num desprendimento das dimensões individual e
circunstancial da experiência, e na universalização de seus valores de referência.
Suassuna recorre a todos estes recursos em suas reescrituras e, ao explicitar as
ligações entre o universo da poesia popular e sua obra literária, salienta a importância da
recepção coletiva de sua criação e coloca o popular/tradicional/nacional como fator que
determina a generalidade da linguagem artística, fazendo com que esta atinja os mais
variados públicos, não apenas pela forma, mas pelo espírito das obras. No entanto, os ideais
que fundamentam as generalizações de Suassuna dialogam com o saudosismo de grupos
sociais que perderam espaço, tiveram seu poder enfraquecido e a ordem social na qual
ocupavam posição privilegiada, esfacelada. Nascem do regionalismo que se arma contra as
estratégias de capitalização postas em prática pela iniciativa desenvolvimentista.
Regionalismo que também evoca, a seu modo, o tempo da tradição.
Georges Balandier (Balandier, 1999) entende as temporalidades socialmente
construídas como referências primordiais na constituição das memórias coletivas.
Parâmetros determinantes a partir dos quais se pode compreender a lógica das mentalidades
circunscritas a contextos culturais específicos. Atenta, no entanto, para a coexistência de
uma multiplicidade de tempos sociais compondo a complexidade cultural da
sobremodernidade, identificando nas exigências da economia de mercado, nas narrativas
desveladoras das ciências, no desenvolvimento tecnológico acelerado e na influência

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cotidiana da cultura de massas fatores que transformaram a experiência de temporalidade e
suas representações nas sociedades ocidentais.
A diversidade dos tempos sociais estaria associada à variabilidade das
circunstâncias, à ausência de continuidades reconhecíveis e ao império do instante como
duração. Torna-se evidente o esfacelamento e a dispersão do tempo da tradição e da
regularidade dos ciclos naturais. As temporalidades passam a apresentar grande mobilidade,
se abrindo às intervenções artificiais, adequadas ao seu caráter de urgência e
imprevisibilidade.
No entanto, a pluralidade desta realidade globalizada e pós-moderna é rejeitada por
Suassuna, que evoca uma memória alheia às transformações contemporâneas – embora
convocada a agir sobre elas – e distante da consciência de que lembranças são
representações transitórias e socialmente construídas, e que recordações coletivas
consensuais não mais são possíveis num contexto adverso à manutenção de grupos culturais
estáveis. O espaço urbano é visto pelo escritor como lugar de circulação e passagem,
caracterizado unicamente pela padronização e impessoalidade nele dominante. Um
ambiente que exige a automatização dos comportamentos e atitudes, criando hábitos
mecânicos e se definindo pela fluidez e pelos deslocamentos. A memória em Suassuna age
de maneira conservadora, considerando o período de turbulência social no qual a
necessidade de reordenação simbólica se faz presente. Aquela deve, segundo o escritor,
participar da recomposição da solidariedade tradicional pela reativação de antigos valores
rechaçados.

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