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Freud e a cultura.
Sem dúvida, uma das mais importantes conexões da psicanálise nesses seus
primeiros cem anos se deu com o campo da cultura, o campo social. Da socioanálise à
"psicanálise e o marxismo", passando por teorias que supuseram a psicanálise
desvinculada da "importância do social" - sintagma que retorna com facilidade -, por
privilegiar o indivíduo, vimos de tudo.
Também aqui, entendo, a leitura que Lacan fez da obra freudiana nos ajuda a
recuperar o que há de mais genuíno no pensamento freudiano e que tantas vezes acabou
por ser achatado.
O que vem a ser esse "social" ao qual se deveria dar importância? Como
articulá-lo na teoria senão pela noção freudiana de que o eu é sempre outra coisa, o eu é
o outro, o eu é dividido, ou, como o introduz Lacan, que o sujeito mantém, em relação
ao Outro uma posição de alienação e de separação e onde o social faz tanto parte da
realidade psíquica do sujeito quanto qualquer outra representação mais ou menos
investida.
Assim, poderíamos dizer, o outro social é particular de sujeito a sujeito,
conforme sua determinação (sempre significante, sempre inconsciente) o que nos
levaria a concluir a não possibilidade de um social para além das relações de projeção,
identificação e incorporação. E no entanto, observa-se que há algo que se
instrumentalisa através do discurso e que permite um movimento no campo social, entre
sujeitos, de maneira que um influi no outro, de maneira que, por exemplo, uma histérica
no final do século XIX podia se dirigir para um médico formado e lhe ordenar que se
calasse e que esse pedido pudesse vir a ser por ele entendido e provocar nele a
descoberta de uma fala curativa, associativa e interpretativa - a psicanálise. Essa
histérica, no lugar de agente do discurso, desencadeia um processo tal que, o Dr. Freud,
diante dela, começa a trabalhar, até isso provocar a realização de um produto: a
psicanálise. E Emmy von N. é razão de criação da técnica que tem como base a posição
que ela outorgou a Freud e que fez com que ele, aceitando, assumindo essa posição sem
a ela se identificar, produzisse a psicanálise.
O que fez Frau Emmy von N. querer colocar Freud a trabalho e o que fez Freud
aí trabalhar? Amor de transferência, desejo de saber - de qualquer maneira, desejo, Eros
- fusão das pulsões, intrincação pulsional (Triebmischung). A psicanálise é uma forma
de levar em conta as pulsões apesar da exigência da renúncia pulsional, feita pela
cultura. Ou seja, como Freud sugere no capítulo VIII de "Mal estar na cultura", a
criação de uma grande comunidade humana teria melhor eficácia se exigisse a renúncia
à felicidade do cada um que a constitui (Freud, 1930, p. 266). Mas a psicanálise, ao
conceitualizar a castração e ao propor o Wo es war soll ich werden (Freud, 1933a:516),
promulga para além disso, a ação de cada um na cultura. À medida em que o eu possa
adquirir, cada vez mais, partes de um isso que não deve ser tão diferenciado dele (Freud,
1933b:527), o sujeito passa a sujeito da ação.
Nem só de Eros viveu o século que viu a psicanálise nascer, ao contrário, esse
século suportou no mínimo o mesmo quantum de pulsão de morte. A psicanálise é o
exercício possível da dúvida e da questão do sujeito frente ao gozo do Outro ou seja,
barrando esse gozo, com a psicanálise surge a possibilidade do sujeito enquanto
desejante.
O sujeito sempre esteve submetido ao Outro na história da cultura humana, mas
não como sujeito. O sujeito passou a ser sujeito a partir da ascensão da burguesia
quando alguém, não nascido em berço esplêndido teve acesso à cultura, à dúvida
subjetiva, deixando de ocupar, por exemplo, o lugar do escravo, garantia do senhor (do
mestre).
Lacan e Marx.
Lacan formula, em seu 17º Seminário, O avesso da psicanálise, quatro discursos
que fazem laço social, mas alude a um quinto discurso que não faz laço social: trata-se
do discurso do capitalista[4].
Em todo seu ensino encontramos referências de Lacan a Karl Marx, referências
que nos permitem situar-nos diante do tributo de Lacan a essa sua herança, que se
distingue, em larga medida, de outras leituras na história da intersecção da psicanálise
com o marxismo.
São três os eixos em torno dos quais essa herança se articula:
1) Lacan frente ao conceito de mais-valia;
2) Marx como inventor do sintoma, antes de Freud, e
3) O semblante no discurso do capitalista.
É o conceito de mais-valia, tal como formulado por Marx, que sustenta aquele
do mais-de-gozar de Lacan. Gozo a mais, não passível de entrar na significação do gozo
fálico, tal como na mais-valia em Marx trata-se aqui de um resto, impossível de
simbolizar. Ele é perdido para o trabalhador cujo trabalho só é pago em salário de forma
a não perceber a margem que ultrapassa o lucro[5]; a mais-valia não é concedida, ela
ultrapassa a conceção. E o capitalista tampouco pode cerni-lo porque a mais-valia é
justamente o que ultrapassa o lucro simbolicamente computado de forma que para ele
sempre “fica a sensação” de que pode estar sendo roubado desse resto sem valor
mensurável e, por isso mesmo, tão valorizado.
Há um campo aqui, para a exploração do psicanalista, longe de ter sido
esgotado, ao contrário, parece-me totalmente incipiente, Lacan disso deixou algumas
pistas a serem ainda percorridas. “O que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do
gozo” (Lacan, 1969-70, p. 92), mostrando já em 1844 que a sociedade de consumo “faz
equivaler o que qualificamos entre aspas de humano a qualquer objeto mais-de-gozar
que é produto de nossa indústria” (idem). Ou seja, Lacan denuncia, com Marx, a
degradação a qualquer objeto mais-de-gozar daquilo que poderia trazer a marca do
desejo, sempre singular.
Mas sobretudo, Lacan observou que Marx já sabia o quanto no discurso
algo sempre fica velado. Ele observou também que Marx já sabia que, quanto ao
discurso do capitalista, o laço social fracassa o que, a longo termo, levará ao fracasso do
próprio capitalismo porque o homem é um ser que faz, por definição, laço social
(proponho aqui que o termo Gattungswesen, conforme Marx, traduzido por “ser
genérico” – cf. Marx, 1844 –, possa equivaler ao conceito de laço social empregado por
Lacan em vários de seus seminários).
Sendo o Seminário 17 o marco para o estabelecimento dos quatro discursos, ele
é tanto produto do que Lacan vinha ensinando quanto base de sustentação para seu
ensino nos anos seguintes.
Encontramos referências explícitas ao discurso do capitalista, nos textos de
Lacan, entre os anos 70 e 74, a última sendo em Televisão, onde aparece no seguinte
parágrafo: “Quanto mais somos santos mais rimos, é meu princípio, ou seja, é a saída do
discurso capitalista –, o que não constituirá um progresso se for somente para alguns”
(p. 34). O santo aqui, é o lugar do psicanalista no discurso do psicanalista, rebotalho que
não faz caridade. Lacan propõe o discurso do psicanalista como única saída para a
ausência de saída do discurso do capitalista. (Voltaremos ainda à questão). Daí ele dizer
que isso não traria nenhum progresso caso seja somente para alguns, caso a psicanálise
não possa estar ao alcance de vários.
O discurso do capitalista.
Nos seminários que se seguem ao 17, Lacan modifica um pouco o nome dos
lugares, mantendo somente um: o lugar da verdade. Os outros mudam: o agente passa a
ser o semblante, o outro, o gozo, e o lugar da produção é o lugar do mais-de-gozar. Isso
é importante para avançarmos um pouco na articulação do que propõe para o discurso
do capitalista.
Corruptela do discurso do mestre, no discurso do capitalista o mestre é ainda o
significante mestre, as marcas dos gadgets que, no entanto, não estão no lugar do
semblante mas no lugar da verdade. E o sujeito, que se crê agente, é no fundo um
engano que não deve se levar em conta pois o que conta, a verdade, é o brilho daqueles
significantes. Isso, de uma certa forma, subverte a própria noção de semblante razão de
uma colega ter proposto, em seu texto sobre o assunto, que o discurso do capitalista
seria o tal discurso que não seria do semblante (Carneiro Ribeiro, 1999:167). Para
estudá-lo, é fundamental levar em conta as setas, que fazem com que não dê prá sair
dele, pois as coisas, nele, entram num círculo vicioso (agradeço o acompanhamento no
anexo):
Em primeiro lugar, não há qualquer relação entre o agente e o outro - não há laço
social no discurso do capitalista - isso se visualisa na ausência da seta, entre os dois
numeradores do matema do discurso do capitalista.
O S1 se dirige a S2, pondo o gozo a seu serviço. O outro não é mais, como no
discurso do mestre, o que tem um saber, por mais que este seja da ordem da doxa, mas o
outro é reduzido a seu lugar de gozo que, no interior do discurso do capitalista (seguir as
flechas), volta ao S1, aumentando o seu capital. O endereçamento do S1 ao S2 produz
os gadgets supostos satisfazerem o saber reduzido ao gozo, gadgets identificados com o
mais-de-gozar. Mas em vez de ser impossível ao sujeito – como no discurso do mestre –
aceder a esse gozo, isso passa a ser possível, de forma que a castração fica foracluída e
o sujeito fixado nesse lugar que o S1 determina. É como se pudéssemos dizer: o
discurso do capitalista não exige a renúncia pulsional, ao contrário, ele instiga a pulsão,
impondo ao sujeito determinadas relações com a demanda, sem se dar conta de que, ao
fazê-lo, sustenta sobretudo e em primeira mão, a pulsão de morte.
“Isso funciona tão bem, tão rápido, que isso se consuma” diz Lacan, em Milão,
corroborando Marx quando este prevê seu fim, não sem que com isso se consuma boa
parte da população – como vimos, por exemplo, no episódio recente entre grevistas e
forças policiais em Brasília[9]. Toda recente obra de Bauman (1998), em particular o
capítulo "Os estranhos da era do consumo: do estado de bem-estar à prisão", dá
inúmeros exemplos disso. Se em 1969-70 Lacan diz que é impossível que haja um
mestre que faça funcionar seu mundo – porque fazer os outros trabalharem é ainda
muito mais cansativo do que trabalhar –, no discurso do capitalista, é o próprio capital
que faz esse trabalho de fazer os outros trabalharem, a seu serviço, e isso não pára, tal
máquina de gozo – que, como disse outra feita (Alberti, 1999), está longe de ser
desejante.
Referências Bibliográficas:
ALBERTI, S. (1999a) Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro, Marca d`Água Livraria
e Editora. 2a edição.
(1999b) “Apresentação” de ALBERTI, S. (org.) Autismo e esquizofrenia na
clínica da esquize. Rio de Janeiro, Marca d`Água Livraria e Editora. Pp. 7-13.
BAUMAN, Z. (1997[1998]) O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor.
CARNEIRO RIBEIRO, M.A. (1999) “Capitalismo e esquizofrenia” in Autismo e
esquizofrenia na clínica da esquize. Idem. Pp. 163-176.
ELIA, L.F. “A psicanálise e o social”. Tese para o concurso de Professor Titular em
Psicanálise, no Instituto de Psicologia da UERJ, novembro de 1999.
FREUD, Sigmund (1911) "Totem und Tabu" in Studienausgabe. Frankfurt a.M.,
S.Fischer, 1974. Vol. IX.
(1921) "Massenpsychologie und Ich-Analyse" in Studgb., idem.
(1923) "Das Ich und das Es" in Studgb., op. cit., vol. III.
(1926) "Hemmung, Symptom und Angst" in Studgb., op.cit., vol. VI.
(1930) "Das Unbehagen in der Kultur" in Studgb., op. cit., vol. IX.
(1933a) "Die Zerlegung der psychischen Persöhnlichkeit"- Conferência 31, in
Studgb., op. cit., vol. I.
(1933b) "Angst und Triebleben"- Conferência 32, in Studgb., idem.
(1937) "Die endliche und die unentliche Analyse" in Studgb., op. cit.,
Ergänzungsbd.
LACAN, J. (1946) “Propos sur la causalité psychique” in Ecrits. Paris, Seuil, 1966.
Traduzido por Jorge Zahar Editor em 1998.
(1963) “Kant avec Sade” in Ecrits. Idem.
(1966) “Du sujet enfin en question” in Ecrits. Idem.
(1969-70) Le Séminaire, livre 17, L`envers de la psychanalyse. Paris, Seuil,
1991.
(1970-1) “Le Séminaire, livre 18, D`un discours qui ne serait pas du semblant”.
Inédito.
(1971-2a) “Le savoir du psychanalyste”. Conferências no Hospital Sainte-Anne.
Inédito.
(1971-2b) “Le Séminaire, livre 19, “... ou pire”. Inédito.
(1972) “Milan, 12 de mai 1972” in Lacan en Italia. Milão, La Salamandra.
(1974) Télévision. Paris, Seuil.
MARX, K. (1844) Manuscrits de 1844. Paris, GF-Flammarion, 1996.
PLATÃO [1950] Menon in Oeuvres complètes. Paris, Gallimard. Bibl. De la Pléiade.
Vol.1.
[1]As passagens que retomam o texto de Freud são sempre minha tradução livre, mesmo quando se trata
de uma citação demarcada por aspas. Procuro assim, respeitar ao máximo o texto freudiano do qual me
sirvo (a versão da Studienausgabe).
[2]No texto "Psicologia das massas e análise do eu", por exemplo, Freud (1921) compara o conceito
platônico de Eros com a "libido da psicanálise" enquanto força que promove a amarração. Cf. Também
glossário em Alberti (1999a).
[3]O termo "ego" aqui é empregado no sentido do "moi" em francês, diferente do "eu" que no texto
freudiano se refere tantas vezes ao sujeito. Cf., por exemplo, a embaraço do próprio Freud em se decidir
sobre o emprego do termo "Ich" ou "Es" para designar a pessoa toda (Freud, 1933b:538) por que no
fundo, não há essa totalidade, o que o termo "sujeito" deixa claro definitivamente por se escrever sempre
barrado - dividido.
[4] Cf. também o texto de Maria Anita Carneiro Ribeiro (1999) no livro Autismo e
esquizofrenia na clínica da esquize, “Capitalismo e esquizofrenia”.
[5]O lucro do capitalista seria o quantum concedido gratuitamente pelo trabalhador ao capitalista, cf.
Elia, 1999.
[6] Para poder acompanhar melhor o que se quer dizer, refiro o leitor ao anexo em que se encontram os
discursos tais como aqui trabalhados.
[7] No Menon, por exemplo, é possível observar o quanto esse saber interessa ao mestre que,
questionando o escravo, o faz dizer o saber que detém sem o saber (cf. Platão [1950]).
[8] Simplificação do esquema para a perversão a guisa de ilustração do que aqui quero ressaltar.
[9] Referência ao assalto policial, ocorrido em 3 de dezembro de 1999, contra funcionários públicos em
ato de protesto pacífico, em Brasília, e que cegou dois manifestantes e causou uma morte.