Sei sulla pagina 1di 44

// Editorial // Destaque

De olhos postos no futuro


Carl Schmitt afirmou um dia: “O estado,
enquanto um todo, com corpo e alma, é uma
máquina. Trata-se de uma obra feita por seres
humanos, na qual a matéria e os artistas, a
máquina e o construtor são idênticos, isto é, os
seres humanos”. Já de olhos postos no novo
ano, o tempo torna-se novamente um enigma.
Como será o futuro e o que podemos saber
dele? Se é lá que vivem as nossas esperanças,
nele depositamos também os nossos receios
e as nossas desilusões. Não o conseguimos
adivinhar, dificilmente prever, mas nessa
imprevisibilidade reconhecemo-lo tão fascinante
quanto esperançoso. A A23 encontrou assim
quatro jovens do Interior do país, entre tantos
outros, que escolheram a música como destino.
As inseguranças, as desilusões, a falta de apoios
nacionais aos artistas foram alguns dos temas
abordados, mas também a dedicação à arte que,
numa sociedade onde a globalização é sinónimo
de uniformização, resiste ao artificialismo.
Existimos pelas relações que temos com os
outros, pelo que somos enquanto pessoas que
(con)vivem com outras pessoas. O crescimento
da população urbana tem aumentado
consideravelmente. Diariamente, algures no
país, alguém abandona a sua povoação rural,
que mais não seja para se instalar nas periferias
urbanas. Cresce a população urbana e cresce
com ela o número de automóveis. Na passagem
do milénio, por exemplo, havia cerca de 700
milhões de automóveis em todo o mundo.
Constroem-se mais estradas e mais parques de
estacionamento, tomando conta das cidades. P.08 GRANDE TEMA P.05 ENSAIO
“A União Europeia e a Turquia”
Poderá a urbe sobreviver ou estará sob a ameaça Quando a vida se escreve nas pautas
de perda de identidade a longo prazo? O dossier P.06 OPINIÃO
deste número 1 da A23 reflecte pois sobre onde Apesar das crescentes dificuldades que o nosso país teima em criar aos jovens “Sobreviver à mediocridade”
e como param os condutores da região da Beira músicos em Portugal, nem isso os demove de seguirem a música como
Interior. Um dossier que é, sobretudo, uma P.16 CRÓNICA
carreira. Esta reportagem reflecte sobre o estado desta arte em Portugal “A Dupla Vontade de Monsieur Ramos”
reflexão cívica, ao serviço da cidadania. e, em especial, na região da Beira Interior. Quatro jovens que abraçaram a
A música, que pauta este primeiro número da música falam das escolas que os acolheram e dos aspectos que consideraram P.18 PORTFOLIO
A23, faz soar em cada página diferentes tons. fundamentais para a sua formação. Apesar das dificuldades, a música continua Rui Dias Monteiro
Desde a música clássica, à música do brasileiro a encher corações. P.26 CULTURA
Chico Buarque, que reflecte aqui em entrevista “Dave McKean - O Ilustrador de sonhos”;
sobre o cruzamento do seu percurso literário “Voar”; “Debaixo de olho”;
com uma aclamada carreira mundial musical, a P.14 DOSSIER CIDADANIA “Parabéns Ballet Gulbenkian!”
música em si enche-nos de alegria, desenvolve-
nos enquanto pessoas. E de novo de olhos Pagar para parar P.30 ARQUITECTURA
“O arquitecto da memória”
postos no futuro perguntamos: Qual será o futuro Luís Marçal Grilo
destes jovens que a ela se dedicam por inteiro? As placas rectangulares com o enorme P que indicam o início das “zonas de
Estaremos à altura de os acolher na sociedade? parqueamento pago” têm surgido nos últimos anos por todo o lado nos pólos P.32 VIAGEM
Como será viver num mundo verdadeiramente urbanos do Interior. A A23 analisou os parqueamentos pagos de quatro cidades “Constância - ao sabor dos rios”
multicultural? E que papel terão nele as regiões? do Interior – Castelo Branco, Covilhã, Fundão e Guarda – tentando responder à
pergunta: “é realmente necessário pagar para parar no Interior?” P.35 GASTRONOMIA
Sabemos sim que o olhar prospectivo comporta “Restaurante Marisqueira Bela Vista”
consigo necessariamente um olhar retrospectivo,
que seja, sobretudo, a consciência do tempo em P.36 VÍCIOS
que vivemos. Quem tem a consciência do tempo P.22 ENTREVISTA “Alforge - A tradição com muito estilo”
em que vive está também aberto ao futuro. Entrevista a Chico Buarque P.38 ESTREIA
Talvez a grande questão que se coloca seja não “Teatro das Beiras no Teatro Nacional”
apenas saber de onde vimos, mas também para Um dos maiores nomes da música ao nível nacional, que esteve recentemente
onde vamos. no nosso país a apresentar o seu novo trabalho «Carioca», fala aqui sobre o P.39 FOTOREPORTAGEM
“Alternativos de todo o mundo, uni-vos”
ofício da escrita. Chico Buarque revela-se um verdadeiro contador de histórias.
Ricardo Paulouro Uma arte reservada aos grandes artesãos da linguagem. P.40 MEMÓRIA

Director/ Ricardo Paulouro Director-adjunto/ Pedro Leal Salvado Chefe de Redacção/ Margarida Gil dos Reis Colaboram neste número/ António Leal Salvado, Jacinto Galião de Tormes, Luiz Antunes, Luís Marçal Grilo , Manuel
da Silva Ramos, Manuel Halpern, Paula Nogueira, Pedro Fiúza, Pedro T. Ramos, Rui Pelejão Marques, Vasco Paulouro Neves Design Gráfico/ contiudo.com | David Duarte, Nuno Lages Foto de Capa/ Manuel Luís Cochofel
Fotografia/ António Supico, Magda Fernandes, Manuel Luís Cochofel, Maria Sofia Xavier, Mário Raposo, Rui Dias Monteiro, contiudo.com | Nuno Lages, David Duarte, Pedro Seixo Rodrigues Ilustração/ Lucas Almeida
Periodicidade/ Trimestral Tiragem/ 10.000 exemplares Impressão/ Mirandela Artes Gráficas Distribuição/ Gratuita Propriedade/ Associação Cultural A.23 | associacao23@gmail.com | www.contiudo.com | contiudo@gmail.com

Número registo na ERC/ 125073 Morada e sede de redacção/ Rua dos Três Lagares - Edifício Laranjeiras, Torre 3, 6º - 6230 Fundão

A.23 // 01
© Ricardo Paulouro
O Sol em dias
A um tu genérico après tout

//
(No primeiro dia do milénio, às 4.30 da noite)

Eu serei o que tu pensares


e não poderás saber
e hás-de pensar sem saber
para saberes
de Inverno
António Ramos Rosa
o que eu próprio nunca soube
eu serei o que nunca fui
só tu é que poderás saber
e saberás por não saber Dedica-se há mais de 50 anos exclusivamente à
e já sem qualquer tensão literatura. António Ramos Rosa é autor de uma
envolverás o que não fui
no que para ti serei das mais marcantes poesias do nosso tempo e
irrevogavelmente a sua actividade crítica abriu, com lucidez, novos
porque terei de ser o que fui
não sendo embora nunca nada
caminhos poéticos. A sua obra impõe-nos uma luz
na agitação de ser quem fui que ora revela a realidade, ora nos revela a nós
perdidamente incapaz de morrer
na morte de cada instante
próprios. Só nos últimos dois meses viu a sua obra
sem disfarçar o meu fulgor premiada com o Grande Prémio de Poesia da APE,
sem estancar a minha sede o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Prémio do
morrendo de ser o que era
e não ser porque não morro PEN Clube. Aos 82 anos, o poeta mostra-nos como
e amando a inatingível fonte é possível o universo caber numa palavra. Palavra
que em mim murmurava incertamente
com o olhar que não era nada
de vida, que foge à névoa e é luz que brilha.
no silêncio de ser sempre o silêncio
de uma sombra que caía como um pássaro morto.

António Ramos Rosa


(Texto inédito)
// Sinais // O cerco de Jericó
“Uma cidade é uma possibilidade,
desde que se cultive a arte do possível”
Texto | Rui Pelejão Marques
Ilustração | Lucas Almeida

+ ACovilhã,
abertura da Faculdade de Medicina, na cidade da
é um dos acontecimentos mais marcantes no
Tom Waits e o meu avô Manuel Vitorino partilham uma filosofia
diurética. Ambos são extraordinários bebedores e apreciam uma
de encarar de frente um problema de sobrepopulação de
mulheres boas, e sobretudo disponíveis…
ano de 2006, não só para a região mas também para pequena particularidade da vida no campo – Mijar ao ar livre. Na mesma obra enciclopédica que serve de base para os meus
o país. Localizada junto ao Centro Hospitalar da Cova No pico de Dezembro o meu avô prefere regar as suas viçosas copos de whisky, conta-se a história de Jericó, oficialmente a
da Beira, que ocupa, num ranking nacional, o honroso couves, enquanto Tom Waits montou o seu estúdio num “mais antiga cidade do mundo”. Mais interessante do que a sua
quarto lugar, esta obra vem reforçar a concentração de galinheiro para gravar “Mule Variations” e nos “intermezzos” fundação, que data do VIII milénio, é a história do seu cerco e
vários serviços de saúde na mesma cidade. Uma mais poder mijar ao luar do Arizona. destruição, como reza o livro de Josué do Antigo Testamento:
valia não só para os covilhanenses mas também para Há quem viva com a eterna melancolia da vida no campo, sem “No sétimo dia, as muralhas de Jericó caíram, o povo entrou na
todos os habitantes da Beira Interior que têm agora saber que a vida no campo se resume a mijar sob o luar calado cidade e passou a fio de espada homens, mulheres, crianças e
ao seu dispor serviços de excelência, a que se juntará, e cúmplice, e escutar a chuva a bater na terra, emanando aquele velhos, até mesmo os bois, as ovelhas e os jumentos. Os muros
brevemente, o tão esperado Pólo de Psiquiatria. cheiro a fecundação da Gardunha. de Jericó não voltaram a erguer-se.”
Nas cidades, mijar na rua é punível com coima, e por isso Esta carnificina recoloca o problema do trânsito em Lisboa num
inventaram o urinol, que pode ser um equipamento sanitário ou um patamar ético completamente diferente, e leva-nos à inevitável
meio de financiar a nova decoração do gabinete do vereador local. catalogação das cidades modernas – entidades devorativas de terra
Felizmente, mijar nas cidades em Portugal é uma borla, ainda que e homens? Santuários do anonimato? Território da solidão pura?

+ Está novamente de parabéns a Academia de Música


e Dança do Fundão. Os jovens músicos Tiago Mileu,
meio secreta. Nas cidades da Mittleurope, só mija quem paga.
Essa pequena diferença reflecte-se na qualidade do serviço.
Eu cá, que a Malthus prefiro o malte, gosto de pensar que uma
cidade é acima de tudo uma possibilidade; um território de
Trata-se da melhor publicidade à liberalização capitalista do escolha, um caminho só nosso que eventualmente se cruza com
no piano, e Francisco Franco, na guitarra, foram
xixizinho público. Enquanto em Portugal um urinol cheira a mijo outros. Uma cidade é uma liberdade vigiada, mas a liberdade
seleccionados pela Antena 2 para representarem
e tem aquele encanto sórdido da poesia ejaculada nas paredes e possível de espetar o nariz na “Ronda da Noite” do Reijk Museum
Portugal no 41º Concurso Radiofónico Internacional
na loiça da fábrica de Valadares, no meio da Europa as “toillets” depois de um charro de “White Widow” num “coffe shop” em
Concertino de Praga, tendo ainda transmitido em directo
cheiram a alfazema e o papel higiénico é mais do que suficiente Amsterdão, ou mergulhar na praia de Copacabana e depois comer
os concertos dos alunos. Mais uma prova da qualidade e
para garatujar um volume de “A memória do mundo – das um bolinho de bacalhau e ver as bundinhas cariocas a passar
excelência do ensino da Academia fundanense.
origens até ao ano 2000”. Este opus magnum da história da ao som do choppe; beber vinho e comer queijo em Paris, andar
humanidade foi a última aquisição da minha mãe nas promoções de táxi em Roma, ir às putas nos arranha-céus de Tóquio e nas
do Círculo de Leitores. Ela ficou com o triturador Moulinex (a catacumbas do Cais do Sodré, ou simplesmente dizer adeus ao
terceira, para o caso de avarias). e eu fiquei com a história do homem que diz adeus nos semáforos do Saldanha.
+ AporCâmara Municipal de Castelo Branco está de parabéns
ter sido uma das primeiras autarquias do país
mundo, desde Lucy, a remotamente sexy avô de todos nós, até
à última entrada que relata o problema da sobrepopulação no
Uma cidade é ir até Cabul no bolso de Vasquez Montalban
e na companhia “groumet” do seu detective Pepe Carvalho,
a aderir ao Programa Território Artes, para aceder a planeta terra: “Com uma taxa de crescimento de 2 por cento ao entre acepipes e iguarias.
espectáculos co-financiados pelo Ministério da Cultura. ano, a população mundial duplica em cada 35 anos. A manter-se É isso que vale a pena nas cidades – a possibilidade de
A Bolsa de Produções do Programa Território Artes assim o mundo terá 56 biliões de habitantes em 2100”. conhecer as pequenas aldeias que somadas e multiplicadas
integra até à data 227 possibilidades de programação, Os catastrofistas, estilo Malthus, diriam que não haveria fazem uma metrópole de sensações e descobertas. E isso é
incluindo espectáculos, ateliês e exposições. Com esta croissants quentes e sushi para todos, mas um inabalável quase tão bom como mijar ao ar livre sob a sombra de uma
iniciativa, Castelo Branco coloca-se novamente num optimista pensaria de imediato nas vastíssimas possibilidades Gardunha de Dezembro. [x]
panorama culturalmente activo, aberto à itinerância e ao
multiculturalismo.

- A indefinição que vivem vários serviços dos hospitais


de Castelo Branco, Fundão e Guarda revela uma
insensibilidade da parte do governo para uma questão
fundamental da vida das pessoas como é a saúde. Ao
longo do último ano ninguém conseguiu explicar qual o
projecto para o Centro Hospitalar da Cova da Beira e qual
o papel dos vários hospitais da região. Bom senso para
esta questão é o que se pede neste início de novo ano.
A União Europeia
//

e a Turquia

Texto | Vasco Paulouro Neves

A recente visita do Papa Bento XVI à Turquia teve o mérito de A aproximação entre a Turquia e a Europa prosseguiu em Ao longo de todo o século XX, com
colocar na agenda mediática a delicada questão da entrada 1963, com um acordo de associação com a CEE, e em 1995
deste país na união europeia. Tema incómodo para largos foi assinado um tratado de união alfandegária. Finalmente, a emergência da Turquia moderna
sectores sociais e políticos da Europa, que se assumem feroz nos conselhos europeus de 1999 e de 2002, a União das cinzas do império Otomano, toda
e militantemente contra a sua entrada, a “questão turca” Europeia reconheceu oficialmente a Turquia como candidata
emerge hoje como uma questão difícil, mas fundamental de à adesão, fixando um conjunto ambicioso de condições (a a sua história é a narrativa de uma
ser encarada, no contexto de uma Europa em crise. calendarização então proposta definia para 2006 a abertura persistente aproximação à Europa.
Dentro da Europa as resistências à entrada da Turquia na das negociações e a sua conclusão em 2015).
União Europeia são mais que muitas. Sectores políticos muito É inegável que a emergência da Turquia moderna de Ataturk
diversos assumem abertamente a sua oposição, avançando não foi feita sem elevados custos no que toca às liberdades democratização da Turquia. O estado turco ainda não
argumentos como a geografia, a quase totalidade do seu individuais e do respeito pelos mais elementares direitos reconheceu oficialmente o genocídio dos arménios de
território encontra-se no continente asiático, ou a sua humanos. A ideia de uma Turquia secular e laica só foi 1915, falta ainda avançar mais nos direitos dos curdos,
incompatibilidade com valores fundamentais da “civilização” possível através da tutela perniciosa dos militares sobre a vida nomeadamente avançar com uma amnistia em relação aos
europeia. Este último argumento, suportado essencialmente politica e social, tutela essa que de certa forma ainda hoje milhares de prisioneiros do PKK, e o poder e influencia dos
pela noção de “choque de civilizações”, teorizada por perdura. Por outro lado, o nacionalismo feroz promovido pelo militares sobre o poder politico turco é ainda uma realidade,
Huntington, ganhou um forte impulso com o 11 de Setembro recém-criado Estado, necessitado de reinventar uma forte mas é precisamente sobre estas complexas realidades que
e a crescente islamofobia das sociedades ocidentais. Como identidade nacional, teve quase sempre na base uma política o efeito da entrada da Turquia na União Europeia mais se
diz Ramonet, ele manifesta a actual “angustia identitária” do de exclusão de “outras” identidades: ao longo da história sentiria: reforçar a sua democratização, a sua laicização e a
Ocidente em relação ao Islão. Muito por causa deste contexto, contemporânea da Turquia, os desejos independentistas, defesa dos direitos humanos neste imenso país.
a história da relação entre a Turquia e a União Europeia tem ou até autonomistas dos Curdos, foram sempre ferozmente Uma Turquia democrática tem ainda o mérito de abalar
sido feita de impasses, de alguns avanços e muitos recuos. reprimidos; o genocídio dos arménios, em 1915, foi o seriamente a tese que preconiza uma incompatibilidade
Em relação à Turquia, a tese da incompatibilidade momento mais trágico desta política chauvinista. insanável entre o Islão e a democracia. Desta forma, uma
civilizacional com a Europa não é mais que uma completa e Contudo, desde que em 1999 a União Europeia aceitou Turquia dentro da Europa constituir-se-ia como um poderoso
bem urdida mistificação. Ao longo de todo o século XX, com oficialmente a Turquia como país candidato à adesão, exemplo para todas as outras sociedades de maioria islâmica,
a emergência da Turquia moderna das cinzas do império tem-se assistido a uma evolução significativa no sentido em particular as sociedades existentes nessa zona do mundo
Otomano, toda a sua história é a narrativa de uma persistente da democratização e do respeito dos direitos humanos. O tão decisiva e instável que é o Médio-Oriente.
aproximação à Europa. horizonte da entrada do país de Ataturk na EU, tão desejado Por fim, e não menos importante, a adesão da Turquia à União
A Turquia moderna, fundada pela revolução de Kemal Ataturk, pela elite turca, deu azo a uma série de reformas que não Europeia teria um efeito muito positivo para a própria Europa.
mostrou desde o início uma grande afinidade com os valores podem deixar de ser vistas como sinais extremamente Poria fim à nefasta concepção da Europa enquanto “clube
europeus e ocidentais: separou a religião do Estado e promoveu positivos: foi abolida a pena de morte; o projecto de cristão”, reforçando uma visão do velho continente enquanto
a laicidade do novo regime, impôs aos seus habitantes costumes criminalização do adultério foi abandonado; e, mais significativo espaço de liberdades, democracia, multicultural e laico.
ocidentais (foi promovido o vestuário ocidental em prejuízo ainda, houve uma melhoria inegável das liberdades no E reforçava a Europa enquanto projecto político, como espaço
da roupa tradicional dos turcos) e até inventaram um alfabeto Curdistão turco, o ensino da língua curda foi autorizado e muitos privilegiado para desenvolver um diálogo entre civilizações
ocidental. Na década de 50, aderiu à NATO e ao Conselho da presos, defensores da causa curda, foram libertados. e uma politica de cooperação e paz em contraponto às
Europa, e data de 1959 o seu pedido de adesão à então CEE. É certo que ainda falta fazer muito em termos de poderosas forças que apenas procuram o conflito e a guerra. [x]

ENSAIO // 05
Sobreviver à
//
mediocridade

06 // OPINIÃO
Texto | António Leal Salvado
Fotografia | Manuel Luís Cochofel

A nossa civilização tem, cada vez mais, o eixo do seu comovente exemplo de David Helfgott, um canadiano que aos começou na Covilhã um rumo que já vai na Royal Academy de
desenvolvimento fulcrado nas competências. Se já enquanto 14 anos suscitava a admiração entusiástica da sua comunidade Londres. Todos sairam de uma escola que os professores Luis
espécie herdámos do nosso antepassado homo habilis ao vencer os concursos de piano em que participava, com Cipriano e Paula Ramos fizeram à medida dos grandes ninhos de
o segredo de evoluirmos através da transformação das uma alma gémea da de Chopin e uma técnica próxima da de talentos. Estranhamente, a mesma escola que prescindiu desses
capacidades em competências, a condição de sapiens sapiens Rachmaninov. David tinha um problema sério: o pai, possuidor dois mentores. Estranhamente, uma escola em que o Poder
deu-nos a consciência de ser possível levar até ao impensável ele próprio de conhecimentos invulgares mas com um ego Público tem o domínio e o mando. Estranhamente, uma escola
o ciclo capacidades / competências / novas capacidades. maltratado pela vida, viu no talento do miúdo a sublimação que sob o domínio do Poder hoje parece não ter forças para
Esta possibilidade de fazer da inteligência uma ferramenta das suas próprias frustrações; enquanto David deleitava os lutar sequer pela sobrevivência. Estranhamente, tudo isto ocorre
para a aquisição de mais inteligência não abriu só indefiníveis auditórios com brilhantes interpretações, o pai exigia o panteão enquanto os pupilos de Luis Cipriano brilham no mundo inteiro,
fronteiras à felicidade individual, acrescentou também da glória. Foi fatal para o jovem: esquecendo o excelente fora da escola dominada pelo Poder – e, mais estranhamente
ilimitados apetrechos ao progresso dos povos. A matriz de professor que generosamente o acompanhava, ignorando o ainda, no seio de uma Associação a quem o Poder tem
desenvolvimento das sociedades mais avançadas à entrada no acolhimento de uma comunidade que o queria levar longe, o “distinguido” com a atenção de… querer fechá-la a todo o
século XXI assenta na capacidade de criação, na corrida a criar pai de David fez questão de ser ele a escolher o que o miúdo custo. É sintomático que no mesmo dia em que o grupo de Luis
mais, a criar melhor, a criar primeiro. E a criação depende da tocava – e desprezou a necessidade do longo caminho que é o Cipriano era agraciado pelo Presidente da República por ter
quantidade e da qualidade de talentos. O talento é o primeiro virtuosismo, lançando o filho no queimar das etapas que só os triunfado nas Olimpíadas Corais que reuniram 160 coros na Coreia
veículo do caminho para a perfeição – e esta é a meta exigida bons professores e as escolas atentas conhecem: David tinha do Sul, a vereação da cultura covilhanense vinha à imprensa
pela concorrência imparável das partes no todo globalizado. Por que ser, não só um bom músico, mas o maior dos músicos. dizer que não atribuía qualquer significado ao que considerava
todo o lado se cata o tecido social à caça de talentos, por todo Convenceu-o a consumir-se no estudo da peça mais difícil da um “passeio turístico”.
o mundo desenvolvido se trata o talento como uma espécie história do piano. David conseguiu tocá-la – mas no mesmo Também no Fundão há quem se distancie do clima geral de
de pedra filosofal que há que descobrir, estimular, mutiplicar e palco e na mesma hora em que foi aclamado como genial queixume pelas culpas alheias. Durante o passado mês de
aproveitar. intérprete da imortal “Rach 3”, caíu derrubado pela insanidade Novembro, o Teatro Nacional D. Maria II e o Palácio Nacional
Nós, portugueses, temos algo que nos faz conviver mal com o mental. Passou 30 anos entregue aos cuidados da psiquiatria da Ajuda deram a ver aos lisboetas e a Antena 2 deu a ouvir
talento. Somos uma pátria com uma estranha força centrífuga e sempre que despertava da letargia da loucura sofria de uma ao país, em 3 concertos, o que de melhor se faz em benefício
à volta dos homens e dos feitos de excepção – de Camões a tristeza imensa pela condição em que se via. Tem hoje 59 anos dos jovens talentos musicais. O motivo dos espectáculos era,
Fernão de Magalhães, de Bartolomeu de Gusmão a Jorge de e o seu nome não é símbolo da glória que merecia – mas de nem mais nem menos, a apresentação dos dois candidatos
Sena, da bravura no Cabo das Tormentas ao “salto” no sud- uma compaixão universal que jamais havia de querer. portugueses ao Concurso Europeu de Jovens Músicos de 2007,
express. Fora do nosso solo, o limite parece ser o céu; aqui, O que falhou com David Helfgott? Talvez o mesmo que nós, organizado pela U.E.R.. Os dois concorrentes que vão representar
parece às vezes que não há nada para ninguém. O talento e as portugueses, teimamos em deixar ao acaso: A distribuição Portugal são, ambos, alunos da Academia de Música do
competências de excelência são votados a sentimentos que vão certa dos papéis da família, da escola e da comunidade, no Fundão: Francisco Franco, na classe de guitarra e Tiago Mileu
do menosprezo ao incómodo, servindo a mesma idiossincrasia acompanhamento que colectivamente é indispensável às no piano. Não foi só Francisco e Tiago deslumbrarem; não foi
que nos deprime na certeza de que a responsabilidade é capacidades de quem é único. O afecto sem técnica, a técnica só o 3º concerto dar a conhecer a qualidade de Joana Simão e
sempre alheia. O futuro é sempre difícil por causa da pesada com rigor, o acompanhamento desinteressado de quem faz do da orquestra da Academia que a acompanhou – não foi só isso
herança do passado, o sucesso próprio é sempre impossível por génio virtual um valor colectivo e humanístico – porque não há tudo o que suscitou orgulho dos fundanenses mas também
causa do fracasso de outros. O presidente da junta de freguesia génios de perfeição em homens de espírito deformado. Afinal, perguntas do país: foi também o facto de estes jovens talentos
sente-se desapoiado pelo presidente da câmara municipal, faltou saber subtrair à força do acaso aquele chico-espertismo vingarem numa escola que em dez anos de funcionamento
que se sente sabotado pelo primeiro-ministro, que se sente que, por cá, tão bem conhecemos. formou já um invulgar lote de excelentes artistas e insiste em
incompreendido pelo presidente da república, que se sente dar continuidade a um currículo de que já constam cerca de uma
manietado pela conjuntura europeia, que se sente condicionada Nós, portugueses, temos algo que centena de prémios em concursos no país e no estrangeiro. Tudo
pela hegemonia americana, que quando não anda a braços com isso provoca admiração, mas o facto de esta escola (em que se
os extra-terrestres se sente compelida a encontrar, arrasar e/ou
nos faz conviver mal com o talento. formaram, desde o zero, as pianistas Ana José Carrolo e Teresa
reinventar o eixo do mal. Somos uma pátria com uma estranha Doutor, que já vão longe, e em que deu os primeiros passos
Nesta conjuntura do conformismo com a própria incapacidade o extraordinário bailarino Luis Antunes) conseguir continuar a
de mais fazer do que procurarmos quem expie as culpas
força centrífuga à volta dos homens e tão elevado nível causa ainda mais admiração. E a atenção que
próprias que nunca admitimos, ainda vai havendo quem queira dos feitos de excepção – de Camões a desperta nas instâncias de Poder da sua própria terra causa
resistir e procurar o futuro olhando para a frente, na convicção justificada perplexidade. Enquanto a Academia é convidada aos
de que a energia se gera de dentro para fora – e pela positiva.
Fernão de Magalhães, de Bartolomeu mais destacados palcos, enquanto produz miúdos como Tiago
São aqueles que sabem ou querem vencer pelo talento. Vemo- de Gusmão a Jorge de Sena (...) Mileu, que aos 12 anos fez questão de se mudar do Alentejo
los, se não em quantidade pelo menos em qualidade, não só para o Fundão por causa da aprendizagem do piano e aos 14
no estrangeiro mas também no país, não só nas metrópoles Quando, há uma década ou mais, o jovem covilhanense Filipe já é convidado por compositores estrangeiros para executar as
do litoral mas também no coração do interior. Haja quem seja Quaresma escolheu como desafio de futuro a arte – esse suas obras – enquanto isso, a Escola anda visivelmente fora das
capaz de encarar o seu brilho sem cuidar de se sentir ofuscado. domínio em que o talento chega ao sublime pela via da prioridades do poder fundanense. O projecto de se estruturar
genialidade – poucos acreditaram em mais do que o sonho como Ensino Artístico Integrado, tão adequado e pioneiro como
Admirar o talento provoca nas boas almas aquele fascínio próprio da sua idade. Bruno Borralhinho, um outro rapaz da necessário, tem merecido pouco mais que a indiferença; e até na
que faz da inteligência o maior dos espectáculos. Mas nunca Covilhã, apostou no mesmo caminho e sacou das mesmas nova e onerosa infraestrutura pública para a cultura da cidade o
a ideia de que o génio é um dom que a Natureza distribui armas do talento. Ambos tomaram as vitaminas de que nem papel destinado à Academia é simplesmente o silêncio. Parece
aleatória ou fortuitamente por aqui e acolá e que, uma vez a genialidade prescinde: uma família que os compreendeu que o cinzentismo cultural destes difíceis dias é atacado menos
recebido, só tem que deixar-se correr. Nada de mais errado! sem nada impor, uma escola que os acolheu atentamente, um com a harmonia da melodia e mais com a berrância da cor.
Quem observa de perto aqueles a quem de modo simplista professor que lhes dedicou a produção técnica e artística que os Assim se cultiva por cá o talento – o mesmo talento que da
chamam “sobredotados” apercebe-se facilmente dos riscos que seus talentos mereciam. Nasceram, naturalmente, dois grandes França à China, da Inglaterra ao Japão, dos Estados Unidos
a capacidade excepcional acarreta – para quem a transporta nomes da arte do violoncelo a nível mundial, nas salas de uma à Rússia, é estimulado como valiosa matéria prima para o
e para quem a acompanha. Riscos que não raramente se escola covilhanense, pelas mãos de um professor beirão. Filipe desenvolvimento. Assim se deixa o futuro entregue à sorte – à
transmutam para perigos fatais, até pela dimensão com e Bruno são hoje dois homens respeitados pelo talento singular mesma sorte que decidiu dar a David Helfgott, não o repouso
que a sua própria natureza reclama que sejam tratados ou adequadamente conduzido. Ao lado deles, no palco, não tardará nos anais da História dos génios, mas a errância entre o banco do
permite que sejam subestimados. É lapidar, nos nossos dias, o a estar Joana Cipriano, outra menina cuja vocação de eleição piano e o quarto do hospício. [x]

OPINIÃO // 07
Quando a vida
//
se escreve nas pautas
Texto | Margarida Gil dos Reis
Fotografia | Manuel Luís Cochofel

Os nossos jovens estão cada vez mais atentos à música e


querem-na abraçar enquanto carreira. Apesar das dificuldades e
obstáculos que o próprio país cria às escolas de música, as notas
de música continuam a alimentar a vida de muitos e os ouvidos
de outros. No Interior do país, a música teima em ficar, para bem
de todos. Porque a música torna-nos melhores pessoas, mais
cultas e mais sensíveis, de coração aberto à poesia da vida.

O ano de 2006 foi o ano de todas as homenagens. No dia 27 de Janeiro de 2007 completam-se os 250 anos sobre o nascimento
de Wolfgang Amadeus Mozart, de tal forma que 2006 foi já apelidado de “Ano Mozart”. Um pouco por todo o mundo, as notas
de Mozart são ouvidas nos mais variados locais, inclusive em Salzburgo, cidade natal do famoso compositor. O ‘génio’ é assim
celebrado em todas as suas facetas. Menino-prodígio musical, o talento fora do comum de Mozart tem sido fonte de fonte
de austeros e longuíssimos tratados musicológicos, filmes, livros policiais e romances. Certo é que as primeiras composições
foram feitas aos cinco anos de idade, aos sete já aprendera sozinho órgão e violino, escrevia sonatas para piano aos oito
e terminava aos doze a sua primeira ópera. Não sabemos se ainda vivemos no encantamento de formar pequenos génios
que encham grandes salas de espectáculos com aplausos. Certo é que, talvez de forma muito mais lenta do que no resto do
mundo, começa-se a reconhecer a importância da música enquanto formação profissional e, sobretudo, pessoal. Considerando
que todas as crianças nascem com a capacidade de aprender um instrumento musical, sendo este um processo semelhante
ao da aprendizagem da língua materna, os pais começam a sentir a motivação e a quase necessidade de desenvolverem as
capacidades auditivas dos benjamins.
Chegou-se assim felizmente à conclusão de que a música, em especial a música clássica, deve fazer parte não só da vida dos
jovens, mas também da vida de uma cidade. Ou não o teria já sentido Camões ao dizer que “Quando soam as cordas / do seu
instrumento / doces e suaves / então dissolvem-se as dores de quem sofre”. Ouvir e saber estar atento aos pequenos sinais do
mundo é uma virtude, um exercício constante de entrega e renúncia mas, por isso mesmo, compensador.
Descíamos, num destes dias quentes, de céu luminoso, surpreendentes para o início do Inverno, a Rua 25 de Abril, no Fundão,
e reparámos como aquela rua era diferente de todas as outras. Não em termos arquitectónicos, pois trata-se de uma rua
perfeitamente banal, onde os carros separam as casas que se distinguem em termos de paleta de cores, umas brancas,
umas rosa, outras azuis, mas diferente pelo que dizia. A rua comunicava uma quantidade imensa de sons, acordes, vários
compositores misturados, diferentes tipos de instrumentos, algo desorganizados mas igualmente cativantes. Ora um piano que
martelava insistentemente exercícios de Czerny, ora uma flauta que desafiava um oboé. Não seria também por acaso que, a
meio da rua, parava uma cara sorridente, carregada de sacos de supermercado mas que abrandava o passo para tentar captar
alguma nova melodia. Felizmente, pensámos nós, a música não está enclausurada entre quatro paredes mas anda por aí, pelas
ruas e pelos ouvidos. Como o deus grego, Apolo, que tocava a sua lira de ouro para liderar as Musas, ou Pã, deus dos caçadores,
dos pastores e dos rebanhos que trazia sempre consigo uma flauta que ele mesmo fizera aproveitando o caniço em que se havia
transformado a ninfa Siringe. A A23 encontrou quatro intérpretes do futuro, cuja escolha profissional incidiu sobre a música.
Ainda jovens, o profissionalismo é já uma palavra-chave, assim como o trabalho e a dedicação. São eles que contribuem para
que o nosso dia seja mais luminoso e a nossa vida tenha mais harmonia. Porque a música é para todos.

08 // GRANDE TEMA
Joana Cipriano:
“dedicação, trabalho diário
e capacidade de luta”

Aos 20 anos, Joana Cipriano não se arrepende de não ter


seguido Direito como carreira profissional. As pautas de
música pesaram mais do que as leis e os códigos e não se
imagina hoje a tocar outro instrumento que não o violino.
Começou aos 6 anos os seus estudos de música e acredita
que foi isso que determinou que “o gosto pela música fosse
crescendo, bem como o objectivo de vir a ser violinista
profissional”. Deu os primeiros passos na classe do professor
António Ramos, alguém que hoje considera marcante para
a sua carreira, e terminou o Curso de Instrumento, em 2004,
na Escola Profissional de Artes da Beira Interior, na classe do
mesmo professor. Actualmente, frequenta o terceiro ano da
Escola Superior de Música de Lisboa, na classe do professor
António Anjos, e a classe de música de câmara da professora
Irene Lima.
Não se lembra da primeira vez que pisou um palco e nem isso
é de todo importante. “Sempre me lembro de tocar violino.
O facto de ter nascido numa família de músicos permitiu-me
desde cedo conhecer variadíssimos instrumentos, talvez daí
o ter optado pelo violino”. Integrada no projecto “Erasmus”,
Joana frequenta, neste momento, a Escola Superior de
Música e Teatro de Vilnius, na Lituânia, na classe do professor
Martynas Svégzda von Bekker. Consciente das dificuldades
que um músico profissional ainda hoje tem, em Portugal, em
termos de carreira, Joana não hesita ao apontar, com alguma
revolta, uma justificação: “esta situação acontece devido ao
poder estar normalmente distribuído por ignorantes! O que
se passa na Covilhã nos últimos tempos é a prova disso!” Já
decidiu que após esta experiência na Lituânia quer prosseguir

GRANDE TEMA // 09
Filipe Quaresma e o violoncelo:
variações sobre um acaso

os seus estudos no estrangeiro, mas continua a colaborar com Não abraçou o violoncelo de pequenino mas quando se cruzou
a “Orquestra Clássica da Beira Interior” e com a “Sinfonieta de com ele foi para toda a vida. Filipe Quaresma, hoje com 26
Lisboa”, entre outras formações. anos, é um premiado violoncelista. Natural da Covilhã, iniciou
Eleita, em 1995, finalista na classe de Violino Iniciação do os seus estudos musicais aos seis anos, no Conservatório da
Concurso Juventude Musical Portuguesa, Joana obteve neste cidade, escolhendo o piano como instrumento. Hoje recorda
ano o segundo prémio do mesmo concurso na categoria com graça a primeira vez que pisou o palco, justamente a
de Música de Câmara. Soma-se ainda a menção honrosa tocar piano: “Foi muito divertido. Foi uma audição de piano no
que recebeu em 2005 no concurso de arcos “Júlio Cardona”. Conservatório. Estava a tocar de memória e perdi-me tantas
“Estudo em média cinco horas por dia. Esta é uma profissão vezes que a minha professora teve de me mandar parar!”.
que exige muita dedicação, trabalho diário e capacidade de Reconhece que foi talvez graças ao pai que hoje se dedica
luta!”. Um percurso que já lhe oferece muitas recordações, integralmente à música. “O meu pai adora música e quis que
sobretudo quando tocou a solo, em 2003, no Luxemburgo, o eu tocasse um instrumento. Aos 12 anos fui para a EPABI
Concerto em Ré Maior de Beethoven para violino e orquestra (Escola Profissional de Artes da Beira Interior) e comecei a
ou o recital final de 12º ano, onde tocou o Concerto para estudar violoncelo”. Nem então o percurso foi linear. Queria
violino de Tchaikovsky. estudar violino mas a falta de vagas lançou-lhe um novo
Tendo frequentado Cursos de Violino e de Música de Câmara obstáculo. Foi então que a professora, directora pedagógica e
com vários professores – Angel Sampedro, Marcelino criadora da instituição, Paula Ramos, lhe propôs o violoncelo.
Rodriguez, Sergey Kravchenko, Gerardo Ribeiro, Elisa Joglar, Iniciou aquele que seria um caminho promissor, pela mão
Tony Millán, Igor Naidin, entre outros – foi concertino da do professor Rogério Peixinho que hoje considera um marco
Orquestra Portuguesa das Escolas de Música, em 2002, e na sua carreira profissional. Frequentou, desde então, Master
membro do 4º Estágio Nacional de Orquestra APROARTE, class com: Eliaz Arizcuren, Márcio Carneiro, Robert Cohen,
sob a direcção do Maestro Ernest Schelle. Um currículo já Anssi Karttunnen, Colin Carr, Jian Wang e Zara Nelsova, entre
longo, onde se somam muitos compositores interpretados. outros. Entre 1998 e 2003, estudou com David Strange e Mats
Na hora de eleger os preferidos não encontra um ou dois Lidstrom na Royal Academy of Music e integrou a Orquestra
nomes: “estilisticamente toda a história da música é rica, de Jovens da União Europeia. Contam-se também vários
cada compositor teve o seu papel na evolução da cultural prémios e bolsas: 1º prémio no concurso Jovens Músicos da
musical, por isso, torna-se difícil estabelecer uma hierarquia”. RDP (solistas nível médio), 2º prémio (solistas nível superior),
À pergunta ‘o que gosta de fazer para além da música?’, Joana 1º prémio no concurso internacional Júlio Cardona (classe
Cipriano brinca com a resposta e responde a meia voz, “mais B), Norah Mary Turner Trust Award, Sir Arthur Bliss Prize,
um ensaio”. Foundation Award, S&M Eyres Scholarship, Guilhermina Suggia
Um caminho que se afigura longo e repleto de sucessos, sem Scholarship e a bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian.
esquecer nunca as exigências de se ser um bom músico: Apesar de considerar todos os concertos marcantes, Filipe
“Capacidades inatas, capacidades de trabalho. A música Quaresma relembra que “ter tocado no 75º aniversário do
contempla a Arte Sacra mas ainda não existem milagres! violoncelista Rostropovich foi realmente especial”. No entanto,
Quem não tiver capacidade de trabalho nunca será músico.” não esquece as dificuldades de se ser actualmente músico em

010 // GRANDE TEMA


Portugal: ”O mercado de concertos é limitado. As orquestras não
têm vagas. Começamos a depararmo-nos com uma situação em
que temos demasiados músicos para o mercado existente”.
No entanto, para além das colaborações com alguns grupos, bem
como dos próximos concertos a solo e recitais já agendados, Filipe
guarda a memória de cada um dos concertos passados. Como
solista tocou com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, Orquestra
Sinfónica Juvenil e Orquestra da semana internacional de música
do Luxemburgo. Em Setembro de 2002, foi convidado para tocar
no open day house do Wigmore Hall, em Londres, bem como
no Remix – Ensemble e Remix Orquestra. Tocou com a London
Sinfonietta, Tokyo Ensemble, Orquestra da cidade de Granada e
Orquestra Sinfónica de Londres. Em 2003 esteve à experiência
com a Orquestra Sinfónica da BBC e chegou a leccionar na própria
escola que o viu crescer enquanto músico (EPABI).
Actualmente, com uma média de ensaio de seis horas por dia,
ou três horas nos dias mais livres, dificilmente Filipe trocaria a
sua profissão por aquela que teria seguido caso não se tivesse
cruzado com o violoncelo: medicina. Portugal terá perdido
um médico, mas ganhou um excelente músico. “Talento,
sensibilidade, paciência”, esta é receita, ou pelo menos o
conselho, para quem queira seguir as suas pegadas.

Filipe Alves:
quando o encanto nasce na banda

Filipe Alves tem 17 anos. Fomos encontrá-lo numa sala pouco


luminosa da EPABI (Escola Profissional de Artes da Beira
Interior), na Covilhã, durante uma das suas aulas de trombone,
acompanhado pelo professor. Ali estava parado, bem no centro
da divisão, este rapaz de estatura média com o imponente
instrumento de sopro que é o trombone. As paredes reflectem
o tempo e contrastam com a jovialidade e boa disposição
que por ali se vive. Sentados pelas escadas, nos corredores,
afinando os instrumentos ou trocando dicas, os jovens alunos
da EPABI fazem desta escola a sua casa.
O mesmo se passa com Filipe Alves que, aluno do Conservatório
de Castelo de Paiva, se mudou de ‘armas e bagagens’ para
a fria cidade da Covilhã para estudar música com o professor
Nuno Scarpa. Apesar das saudades pesarem, a certeza de
querer ser músico não o esmorece. Muito pelo contrário, aqui
encontrou novos amigos que são quase família. Porquê o
trombone como instrumento, perguntamos-lhe. “Atraiu-me
logo o som do trombone, mas também a técnica… É um
instrumento muito bonito e…. como é grande impressiona
bastante as pessoas! [risos]”. Antes ainda de estudar no
Conservatório, Filipe já se cruzava com a música todos os
dias e em casa. O irmão e o primo tocavam numa banda e
arrastaram-no para estas lides. Mas Filipe quis ir mais além
e o encanto da música fez com que planeasse a sua vida no
sentido de fazer dela a sua carreira. “Muito empenho e muito
estudo. Acho que estas são as palavras-chave para qualquer
aluno que queira ser músico profissional. Nesta profissão, como
em muitas outras, é preciso um grande esforço e sacrifício mas
depois vale a pena!”. Há três anos fez um solo na Fundação
Serralves, no Porto, um evento que o marcou e que só reforçou
os seus objectivos. Não é de todo esquisito no repertório,
“mesmo porque temos de estar preparados para tocar de tudo
um pouco, mas gosto especialmente de Mahler e de Stravinsky”.
Actualmente, estuda cerca de quatro horas por dia. E sabe que
tem sempre de estudar mais e mais. “Mas o estudo é um prazer.
Quando decidi vir para a Covilhã, apesar de ter de sair de casa
muito novo, tive todo o apoio da minha família. E tem valido a
pena”. Apesar de tudo, Filipe sabe que Portugal não lhe oferece
as condições que necessita para ser um músico bem sucedido. E

GRANDE TEMA // 11
já pensa na próxima viagem, esta um pouco maior do que a que ao nível internacional: “O Jorge mostrou como poderia seguir a
fez ao vir para a Covilhã. “A Art School de Amesterdão pode ser música como carreira. Tomei-o como exemplo e pensei ‘Se ele
um dos possíveis destinos. Sei que é inevitavelmente algo sobre pode dedicar-se à música, eu também’”.
o qual terei de me debruçar brevemente”. Grande apreciadora de todos os géneros de música, Ana aproveita
Sentimos que não podemos continuar a perturbar a aula e os seus poucos tempos livres para simplesmente ouvir. Esse
retiramo-nos discretamente. A porta emperra, talvez fruto é talvez o melhor conselho que pode dar a alguém que tente
dos anos, e faz um barulho estridente, como uma nota decifrar a linguagem musical: “ouvir muita música, de todos os
desafinada. No centro da sala pouco iluminada continua Filipe géneros e encontrar a nossa maneira de nos exprimirmos”.
a sua aula, sob o olhar atento do professor, encasacado por As várias experiências fora de Portugal, em concertos em
causa do frio que teima em ficar. E uma nota solta-se do Vigo, na Rússia ou em Itália, fizeram-na reflectir sobre as
trombone, atravessa as paredes, e sai à rua. limitações que um músico ainda encontra no seu país: “A
grande questão é que é impossível viver-se em Portugal de
concertos. Por isso, muitos recorrem ao ensino”.
Ana Zé ou a música como escrita Muito em breve, Ana terminará o seu curso superior e um
novo desafio surgirá na sua vida: “Dar aulas vai ser um
“Comecei a estudar música aos sete anos no Conservatório desafio para mim, isto é, tentar explicar aos outros uma coisa
da Covilhã. Aprendi piano com uma professora cega e foi com que eu andava a tentar aprender e que continuo a aprender.
ela que aprendi a minha escrita. Estive no Conservatório até Assusta-me o ensinar alunos que comecem a aprender piano
aos 11 anos e depois vim para a Academia, no Fundão. Fiz porque um aluno avançado é mais simples de ensinar pois já
o Conservatório e, como cada vez gostava mais de música, está familiarizado com a linguagem…”
decidi que devia continuar. Agora estou na Escola Superior Por enquanto, prefere definir-se ainda como aluna. Pedimos-
de Artes Aplicadas de Castelo Branco, no último ano.” lhe para tocar qualquer coisa no piano que não parou de olhar
Assim define Ana Zé, em poucas palavras, o seu percurso para nós durante toda a entrevista, como se pedisse para ser
na música. Com uma grande simplicidade e um sorriso tocado. A suavidade com que Ana o toca e, simultaneamente,
permanente de quem reflecte que respirar a música todos os a intensidade com que a ele se dedica, fazem-no falar. A
dias é tão importante como o ar. O piano de cauda preto é o insegurança que Ana referiu várias vezes ao longo da entrevista
protagonista da sala, onde Ana Zé passa todo o tempo que desaparece naquele momento. Ela e o piano são um só e a
pode, desde que chega a casa da Escola Superior de Castelo linguagem do corpo funde-se com a linguagem da música.
Branco. “Escolhi estudar piano por influência dos meus pais Naquele momento, Ana já não está ali na sala. Está noutros
mas ainda bem pois fui aprendendo a gostar dele cada vez mundos, viaja.
mais. Pelos 13 anos soube que era mesmo isso o que queria
para mim.” Uma decisão acertada, pois o piano ficou para
toda a vida. Agora, finalista da Escola Superior, galardoada até Duas escolas do Interior: a música que
então com o prémio de uma das melhores alunas da Escola, forma melhores pessoas, mais cultas e
Ana Zé não se preocupa demasiado com as dificuldades que sensíveis
sabe que irá encontrar futuramente no país: “Os meus pais
tinham muita consciência dessas dificuldades e queriam
ACBI: “a característica principal na
que eu fizesse outra coisa para além da música mas eu quis
dedicar todo o meu tempo exclusivamente à música.”
aprendizagem de um instrumento é a
Actualmente, já nem contabiliza o tempo de estudo. Mantém
humildade”
a média de umas seis a sete horas de ensaios por dia mas
acredita que esse momento a sós com o piano é período de Apesar de todos os problemas e dificuldades em dirigir uma
dedicação extrema que não deve ser regido pelas leis da escola no Interior do país, Luís Cipriano acredita que as diferenças
matemática. Chopin, Bach, Mozart, Lopes-Graça… todos fazem entre um aluno que estude música no Interior e na capital do
parte do seu repertório. “É impossível eleger um ou dois país se devem a outros factores que não o talento. A diferença,
compositores. Cada um foi muito importante para a História para o director pedagógico da escola, reside nas condições que
da Música e sinto que tenho de conhecer um pouco de cada”. são dadas às pessoas para poderem revelar o seu talento: “As
Ainda se lembra de ter subido ao palco aos sete anos. infra-estruturas, por exemplo, são muito importantes. Em Lisboa,
Seguiram-se até à data vários concertos, concursos e audições. as pessoas podem ir a bibliotecas, assistir a concertos ou a uma
Aos 16 anos participou num concurso que foi marcante no seu master classes. No Interior também o podem fazer mas perdem
percurso: o concurso Lopes-Graça, em Tomar, onde apresentou um dia para fazerem uma coisa que em Lisboa se faz em duas ou
um repertório de música portuguesa. Ganhou uma menção três horas. Por outro lado, a diferença reside também na ‘matéria’
honrosa mas recorda essa experiência pelo facto de lhe ter que comanda. A Covilhã é uma cidade pequena e politicamente
possibilitado a descoberta dos compositores portugueses. extremamente fraca. Mas esse poder é ainda rodeado por poderes
Reconhece-se uma pessoa muito auto-crítica que nunca esquece mais fracos que tomam conta das instituições. A diferença não
o papel determinante que alguns professores tiveram na sua está por isso nas capacidades das crianças ou das instituições. Há
vida: a professora Beatriz, que lhe lançou as bases da linguagem 15 anos que, por exemplo, ao contrário do que antes se verificava,
musical, a professora Olga Silva ou até mesmo Maria João Pires, o Conservatório da Covilhã não coloca pessoas em instituições
com quem teve algumas aulas: “Ficava sempre um bocadinho superiores. A EPABI ganhava antigamente vários prémios, algo
nervosa quando ia ter aulas com a Maria João Pires mas quando que também se alterou. O Interior é interior por causa das mentes
ela começava a falar passava-me todo o nervosismo porque ela interiores que o comandam.”
é tão natural que somos quase obrigados a relaxar. Aprendi com Segundo Luís Cipriano, a Covilhã já provou as suas qualidades
ela a, antes de começar a tocar, libertar todas as tensões que ao nível de músicos, no entanto, alerta o maestro, temos de
temos no corpo.” Não esquece também algumas pessoas com saber lidar com o problema de fazer músicos antes do o serem
quem se cruzou, tais como o amigo Jorge, invisual, dois anos à efectivamente: “Transformar os alunos numa espécie de estrelas
frente na Escola, que tem feito um percurso notável, inclusive é meio caminho andado para que nunca venham a ser músicos [x]

12 // GRANDE TEMA
porque a característica principal na aprendizagem de um
instrumento é a humildade. Por melhor que um músico seja vai
sempre encontrar no mundo outro que seja melhor do que ele.
O ensino da música não é só o ensinar a criança a debitar notas
mas é também o ensinar-lhe a ter uma postura. Quando se sobe a
um palco não deve haver dúvidas, mas a seguir a um concerto elas
deverão sempre surgir. A dúvida é a margem de progressão que
deveremos sempre ter”. A ACBI tem assim apostado na formação
de crianças desde os 3 anos, acreditando que, mais do que formar
músicos é imperativo formar ouvintes: “Queremos incutir a cada
criança cultura e uma certa sensibilidade, pois não podemos
prever o lugar profissional que cada uma delas venha a ocupar no
futuro. O problema de muitos políticos em Portugal é que não têm
formação cultural, logo, não estão abertos a estas questões.”
O Coro Misto, outro caso de sucesso, tem, no entender de Luís
Cipriano, provocado algumas contradições: “Não podemos
admitir que muitas das pessoas do coro – amadoras – tenham
assistido a muitos mais concertos do que os professores do 1º
ciclo do país inteiro! Essa é outra das situações a combater”.
Quanto a Joana Cipriano e Filipe Quaresma, dois alunos
relativamente aos quais acompanhou de perto o percurso, não
hesita em afirmar que os bons professores de instrumento
que tiveram, a humildade, o sentido auto-crítico e a vontade
de aprenderem foram determinantes para hoje serem quem
são. “O Filipe Quaresma está, do meu ponto de vista, mal
aproveitado pelo nosso país. Para mim, é um dos melhores
violoncelistas que existem em Portugal. Acho que a partir de
uma certa altura devia ter perdido um pouco da humildade que
tem. Enquanto a Joana ainda está numa fase de continuar a
provar, ele já não precisa de provar nada”.

Academia de Música e Dança do Fundão:


“o sistema educativo continua a criar
grandes incompatibilidades às escolas de
música”
João Correia, director pedagógico da Academia de Música e
Dança, no Fundão, não hesita em afirmar que, actualmente,
é o próprio sistema educativo que cria entraves ao
desenvolvimento das escolas de música. Ao contrário de
outros países da Europa, muito mais desenvolvidos, deparamo-
nos actualmente com um “sem número de obstáculos que
impedem que os nossos jovens sigam de forma mais facilitada
a carreira de músicos”. “Em 2001, a Academia abraçou o ensino
integrado, isto é, aqui os alunos podem ter todas as disciplinas
e abraçarem simultaneamente a vida artística. A escola tenta
assim responder às exigências artísticas de uma carreira que
não é de todo apoiada pelo nosso país”.
A Academia segue duas linhas pedagógicas orientadoras que,
para João Correia, são fundamentais para o êxito da escola:
“por um lado, numa primeira fase, o contacto com a música e,
por outro lado, o equacionar as condições e a vontade de se
fazer da música carreira”. Com crianças desde os quatro anos, a
Academia tenta “acompanhar o próprio crescimento da criança,
fomentando o seu encontro e familiarização com a música.”
Certo é que, para João Correia, apesar da Academia já se ter
destacado no panorama nacional e internacional com alguns alunos,
“a humildade continua a ser a característica principal de um bom
músico. Cada um destes jovens tem à sua frente um percurso
longo, duro, repleto de obstáculos e em constante aprendizagem.
Existem sempre outros que conseguem fazer melhor, por isso há
que fomentar e abraçar uma grande vontade de trabalho.” Para
João Correia, a máxima a seguir é feita das palavras que uma
das professoras da Academia, Tâmara, diz todos os dias aos seus
alunos: “apesar do talento devem ser exigentes consigo próprios
e, sobretudo, trabalhadores. A música é um trabalho diário”. [x]

GRANDE TEMA // 13
// Pagar para parar
Texto | Pedro Leal Salvado
Fotografia | contiudo.com | Pedro Seixo Rodrigues
e António Supico

As placas rectangulares com o enorme P que indicam o


início das “zonas de parqueamento pago” têm nos últimos
anos brotado por todo o lado nos pólos urbanos do Interior.
Defendidas como inevitáveis e necessárias pelas autarquias,
estas zonas revelam uma outra realidade preocupante:
diminuição da qualidade de vida dos habitantes desta região.
14 // DOSSIER CIDADANIA
A A23 analisou os parqueamentos pagos de quatro cidades do Covilhã – resolução de um problema com Mesmo perante tal evidência, o Município aprovou
Interior – Castelo Branco, Covilhã, Fundão e Guarda – tentando danos colaterais recentemente a implementação de parquímetros na cidade.
responder à pergunta: “é realmente necessário pagar para Estar-se-á a criar uma necessidade que na realidade não
parar no Interior?” O centro da Covilhã encontrava-se também desde há existe, ou essa implementação será condição sine qua non de
muito estrangulado em termos de transito automóvel. Às concessão a privados?
Massificados nos finais da década de 80 e princípios de 90, nos dificuldades de estacionamento do quotidiano acresciam De qualquer modo, é um facto que, pelo menos actualmente,
grandes pólos urbanos do país, o chamado “estacionamento aquelas emergentes do enorme tráfego provocado pelo a necessidade de pagar para parar ainda não se faz sentir de
pago” apresentou-se como a única via possível para disciplinar turismo de Inverno na Serra da Estrela, altura em que maneira a ser considerada uma opção pela grande maioria dos
o trânsito cada vez mais caótico que tomava conta de cidades centenas de pessoas de todo o país acorrem à neve e às condutores fundanenses, sendo a única justificação possível
como Lisboa ou Porto. valências turísticas oferecidas pela Serra. para a implementação de parquímetros, e que resultará numa
Inicialmente utilizados em empreendimentos privados O problema da disciplina do trânsito automóvel no centro da clara perda da qualidade de vida dos cidadãos, a simples
rapidamente o uso dos parquimetros foi visto pelas autarquias cidade foi inicialmente atenuado com a construção de um criação de mais uma fonte de receitas, municipal ou não.
para além de um elemento disciplinador do trânsito e silo auto privado – no Shopping Sporting – mas depressa se Terá o Município do Fundão que atentar nas experiências
dissuasor do uso descomedido do automóvel na cidade, como revelou insuficiente para o fluxo de novos automóveis que vizinhas e retirar as ilações necessárias, ponderando os prós e
um meio gerador de receitas. invadem a cidade durante todo o Inverno. contras da criação de um regime de parqueamento tarifado e as
Inserida também no programa POLIS, a Covilhã aproveitou os repercussões que o mesmo poderá ter a nível da qualidade de
No Interior, os parquímetros começaram por aparecer fundos destinados à requalificação e recuperação do centro vida dos habitantes da cidade e no comercio local, restando saber
timidamente em meados da década de 90, em pequenas para construir um projecto ambicioso de estacionamento se estarão esses mesmos habitantes e comerciantes dispostos a
zonas, principalmente nas zonas históricas. No entanto, subterrâneo com 250 lugares, que representa do ponto de pagar por algo cuja compensação não foi até à data explicada.
nos últimos anos, as autarquias do Interior adicionaram os vista da construção e de engenharia uma obra notável.
parqueamentos subterrâneos à lista de obras indispensáveis, Com a construção do silo auto ficaram resolvidos definitivamente Guarda – uma questão antiga
gastando milhões de euros na sua construção. Mas serão os problemas de estacionamento no centro da cidade. A
assim tão indispensáveis? autarquia dotou ainda toda a zona envolvente do centro de A discussão em torno do parqueamento pago na cidade da
parquímetros, sendo hoje praticamente impossível estacionar Guarda é um assunto que desde há algum tempo tem movido
Castelo Branco – um mal necessário sem pagar, embora segundo uma projecção avançada pela C.M. a sociedade civil daquela cidade.
da Covilhã, o executivo camarário afirme que na cidade existem Nesta capital de distrito o mote para a discussão partiu dos
Na capital de Distrito, o parqueamento subterrâneo encontra-se 559 lugares de estacionamento não tarifado, para 169 pagos. Já comerciantes, mormente dos que possuem estabelecimentos
inserido no projecto que repensou e reconstruiu o centro da cidade em fase de concessão encontra-se um novo silo auto construído comerciais no centro da cidade, concretamente no Largo
e foi realizado ao abrigo do programa POLIS. na Estação, não se sabendo ainda se os estacionamentos até de S. João – Largo do Cinema – e Rua Mouzinho da Silveira
No caso de Castelo Branco, o problema do estacionamento era agora gratuitos na área envolvente passarão a ser tarifados. que, em 2004, se organizaram e entregaram à autarquia um
um problema real, onde centenas de carros se amontoavam A taxa de ocupação situa-se próxima dos 70%, sendo superior abaixo-assinado tendo em vista a criação de mais lugares de
ao longo dos passeios e em estacionamentos improvisados durante o Inverno, principalmente devido ao turismo. De novo estacionamento tarifados, nomeadamente com a colocação
constituídos em lotes por construir. “Às vezes era às meias ao ouvirmos os utentes, o principal problema apontado foi o de mais parquímetros no aludido centro. Alegavam os referidos
horas que andávamos às voltas para encontrar um lugarzito”, preço das tarifas e a falta de alternativas gratuitas. comerciantes que eram grandes as dificuldades de estacionamento
referiu-nos um dono de um estabelecimento comercial. No entanto, se por um lado se resolveu o problema do naquela zona e que tal facto prejudicava o comércio.

Parque de estacionamento do Fundão em hora de ponta.

Com o programa POLIS a autarquia albicastrense retirou por estacionamento e se disciplinou o trânsito, na medida em que No entanto, tal proposta não foi acolhida unanimemente por
completo os automóveis do centro, construindo uma ampla é possível fazê-lo numa cidade com as características físicas da todos os comerciantes, pois muitos levantaram a questão
praça pedonal dotada de jardim e inúmeras infra-estruturas Covilhã, a obrigatoriedade de pagar para parar no centro da cidade de ser economicamente insustentável o pagamento de
culturais, de recreação e de restauração. teve um efeito colateral negativo no comércio desse mesmo estacionamento durante todo o dia (por eles comerciantes),
Para o estacionamento foi construído no subsolo daquelas centro: a menos de 5 minutos do centro da cidade existem várias face à inexistência de alternativas gratuitas, tendo sido
infra-estruturas um silo auto com 386 lugares e para o trânsito grandes superfícies comerciais dotadas de parqueamento grátis, sugerido inclusive por alguns a criação de um silo auto, de
foram abertos túneis, de modo a retirar por completo os sendo uma delas dotada de estacionamento coberto, gratuito, maneira a minorar os custos de tal parqueamento diário.
automóveis da praça central. o que afastou muitos consumidores do comércio tradicional, Perante a inegável necessidade de disciplinar o trânsito
É um facto que os habitantes de Castelo Branco, mormente principalmente durante o Inverno. automóvel no centro da cidade, numa localidade em que
aqueles que residem no centro, viram diminuída a sua o uso de automóvel se torna impreterível face aos duros
qualidade de vida no que toca ao estacionamento gratuito Fundão – um investimento para o futuro Invernos, o Município optou pela colocação dos parquímetros
dos seus veículos. A compensação foi um novo centro livre naquela zona, não tendo construído qualquer silo auto de raiz,
de carros e completamente revitalizado, tendo renascido uma Também a cidade do Fundão se encontra dotada de um sendo actualmente o centro da cidade servido pelo parque
zona de lazer que há muito desaparecera. parque de estacionamento subterrâneo pago com capacidade coberto do Teatro Municipal da Guarda.
Toda a zona histórica foi também dotada de parquímetros, para 300 veículos – desde há vários anos que é utilizado um
facto que criou algum desagrado. outro silo auto sito no Pavilhão Multiusos, gratuitamente, Num país onde cada vez mais se discute o “parar para pagar”,
O silo auto tem uma taxa de ocupação de cerca de 70% e embora de modo condicionado. A obra, finalizada em Agosto nomeadamente com a questão da criação de portagens
contribuiu para disciplinar o trânsito outrora caótico do centro de 2005 e orçada em dois milhões de euros, faz parte do nas SCUT´s, no Interior parece estar a tomar forma um outro
da cidade, ao mesmo tempo que revitalizou e requalificou projecto de requalificação do centro do Fundão. problema: o “pagar para parar”, considerado por muitos um
esse mesmo centro. Das cidades abordadas, o Fundão é a única onde a criação de “mal menor” e, em muitos casos, sendo uma inevitabilidade,
Embora os habitantes que ouvimos serem praticamente uma zona de parqueamento pago se apresenta mais como um é, no entanto, um factor de diminuição de qualidade de vida
unânimes na necessidade que Castelo Branco tinha de um investimento de futuro do que solução para um problema actual. dos habitantes do Interior que, não dispondo ainda de redes
silo auto, a grande maioria disse à A23 que as tarifas são O que poderá indiciar a desnecessidade actual de um de transportes públicos equiparáveis – quer em quantidade
demasiado caras e que as alternativas ao estacionamento pago parqueamento pago na cidade do Fundão encontra-se na taxa quer em qualidade – aos dos grandes pólos urbanos do Litoral,
são poucas ou nenhumas. de ocupação daquela infra-estrutura: cerca de 2%. continuam a necessitar de se deslocar nos seus automóveis. [x]

DOSSIER CIDADANIA // 15
// A Dupla Vontade
de Monsieur
Ramos INÉDITO
Manuel da Silva Ramos

Sou um homem muito estranho e com terríveis e abissais transtorna as cabeças mais racionais. Tinha que lhe falar,
formas de emoção que às vezes quando se manifestam à talvez ela quisesse um conselho para comprar um vinho
superfície podem chocar muita gente. Vivi e assisti a inúmeros para o marido que lhe bateria depois de ter bebido sozinho
casos desses (claro que me deixaram sempre incomodado, uma a garrafa e foi precisamente isso (essa particularidade
vez em Nice abracei-me a uma palmeira pensando abraçar a tipicamente portuguesa, a violência doméstica, em cada
Catherine Deneuve!) mas a história que eu vou contar passada três mulheres uma é espancada) que me impediu. Foi pois
toda num bairro típico de Lisboa é das mais sintomáticas pois ela que naturalmente me dirigiu a palavra. Via-se que
como duas irmãs gémeas que entram num cemitério vazio de estava interessada pela minha pessoa. «Monte Velho ou
província ela lembra que a vida é mais singular e mais forte Duas Herdades, o que é que escolheria?» perguntou-me ela
que a imaginação. resolutamente. Sabia que o Monte Velho era um vinho forte,
Durante os quatro primeiros anos em que regressei ao poderoso, e que uma vez deglutidos dois copos o seu marido
país da confusão depois de um longo e produtivo exílio estaria apto para passar ao soco. Assim aconselhei-lhe o outro
aconteceu-me passar longos meses fechado no meu pequeno que não conhecia mas que não poderia atingir a potência do
apartamento a escrever tendo como única companhia o Tejo. vinho tão conhecido dos arredores de Évora. Ela riu e colou-se
O meu objectivo era regressar ao primeiro plano da literatura a mim com a garrafa na mão: «Tem um saca-rolhas em sua
e foi assim que sacrifiquei muitas amizades. Durante o ano de casa que me empreste, que o do meu marido foi para o lixo?»
2002 mergulhei voluntariamente num longo romance sobre a disse ela toda empenada. Achei tanta graça a esta proposta
minha cidade natal e durante esse período de tempo a minha original que fiquei de repente sério a olhar o meu carrinho.
concentração foi tão coagulante como a minha solidão. Saía E desatei também à gargalhada. É que no meu veículo sem
só para meter cartas no correio, pagar alguma factura e claro, carta cheio até ao cimo havia duas unidades de cada produto.
fazer compras em qualquer supermercado. Foi pois num desses Era o poder erosivo e encantatório da literatura. Mais tarde,
pequenos supermercados de bairro que encontrei Sandra. já em minha casa, estendido o sofá da Moviflor, e ela já nua,
Sandra, a comovente Sandra, sempre com a bíblia sagrada ela reservava-me uma grande surpresa. Pois, acreditem ou
na mão, bíblia de Petrópolis, 49ª edição, testemunha de não, ela tinha duas vaginas. Foi ela própria que mo disse
Jeová, mas nesse dia eu não vi nada só sei que ela me ao fim do nosso primeiro “ round “. E eu, cada vez mais
engatou como um robalo numa rede de arrasto. Andava espantado com a senhora, já longe da literatura, achando
eu a fazer compras com o meu carrinho vertiginoso piada à situação pus-me a procurar a vagina número dois. Lá “Era uma belíssima
quando observei que uma mulher loira de meia-idade a achei facilmente e pus-me a gozar nela. Era uma sensação
me perseguia. Para onde eu ia, ela seguia também. Se eu esquisita essa, era como um morto que ressuscita para rapariga do povo
ia para a prateleira dos produtos biológicos ela conduzia fazer amor com duas esplêndidas gémeas numa paragem com os seus 18 anos
para aí. Se eu ia para a prateleira dos produtos de limpeza de autocarro em plena capital. Ou então como um fervente
doméstica ela derivava para aí. Se eu ia para perto das pedestriano que tem duas estradas só para escolher sendo remolhados e que tinha
arcas dos produtos congelados ou para as prateleiras das ambas auto-estradas forradas de pele de bacalhau. Mas escapado à fábrica e ao
latas de conserva ela aparecia logo mais pertinente que como o género humano se habitua a tudo, e sendo eu um
a lua do meu Tejo. Para experimentar onde até ia o seu homem de muitas experiências, nessa mesma tarde ri da pai saltando pela janela
descaramento resolvi destravar-me até à secção dos vinhos situação enquanto ejaculava em duplicado. Tinha um vago porque este dizia que ela
e aí pus-me a escolher pacientemente um vinho alentejano. pressentimento de que ela me tinha escolhido a mim porque
Pensam que ela desistiu? Ninrien. Acercou-se de mim, olhou vira a minha duplicidade, a minha dupla personalidade, era uma mulher da má
resolutamente para o meu carrinho e pôs-se a imitar-me. Lia estampada em produtos efémeros e miseráveis. Perguntei- vida...e era, só que era
até ao fim todas as etiquetas dos vinhos alentejanos para lhe. Ela riu e disse que sim, que isso lhe lembrava o seu corpo
ficar consciente de todas as potencialidades do néctar que sempre ávido... virgem!”

16 // CRÓNICA
© Maria Sofia Xavier
Andei três meses com Sandra e um dia cortei as nossas
relações porque já não tinha tempo para nada. Nem para
meter cartas, nem para escrever. Vocês não sabem o que
é uma mulher com duas vaginas, não se tem um fim-
de-semana livre, nem domingos, nem feriados. É-se um
autêntico escravo. Os jornais, que eu lia com voracidade,
deixei-os de ler e o mundo para mim resumia-se agora à
tremenda complexidade de duas vaginas que molhadíssimas
como os pinheiros do Caramulo no inverno se tornaram
autênticos labirintos mitológicos. Quanto a ela, depois da
doutrina sexual, quis endoutrinar-me religiosamente. E
abrindo o livro de Petrópolis lia-me a batalha de Gelboé
e a morte de Saul, Siceleg destruída e a inobservância do
sábado, ou a elegia sobre a ruína de Jerusalém, Elias anuncia
uma seca ou Jesus e Nicodemos... Terminámos quando ela
um dia me começou a ler o Tobias, que é um dos sete livros
deuterocanónicos...
Hoje que já vai longe esta história e que a minha obra
ganhou consistência e está mais patente ao público em todas
as livrarias rio de toda esta aventura e lembro-me de outra
Sandra, «a puta virgem», que eu conheci na Covilhã nos
finais dos anos 60. Era uma belíssima rapariga do povo com
os seus 18 anos remolhados e que tinha escapado à fábrica
e ao pai saltando pela janela porque este dizia que ela era
uma mulher da má vida...e era, só que era virgem! Lembro-
me de uma vez, eu, o Marquês, o Paiva e o Xavier que era
mais cómico que o São Sebastião varado, a termos levado
ao Paúl num citroen boca de sapo e lá, eu a ter despido
completamente e a ter colocado num altar ao ar livre que
servia para as festas de verão. Fomos corridos de caçadeira
por um velho sacristão mas como foram boas as trutas dessa
pândega! Mais tarde encontrei-a em Lisboa e continuava
virgem e na má vida. A virgindade, fruta condenada, não sei
se durou muito ou pouco tempo...
Se estás viva, onde estás tu hoje Sandra?
Hoje, enquanto bebia café sem açúcar, entre dois capítulos
de um novo romance, pensei que a vida é sempre mágica
e defensável, co-autora fiel e volante, como os conirrostros
que voltam todos os anos ao sítio das nossas recordações
sem fim... [x]

CRÓNICA // 17
// Portfolio

Rui Dias Monteiro


Instantes
Natural de Castelo Branco, Rui Dias Monteiro
tem já um futuro promissor na arte da
captação dos instantes. A frequentar o Curso
Avançado de Fotografia da ARCO – Centro
de Artes Visuais, viu, neste ano de 2006,
o seu trabalho exposto na Estufa Fria, em
Lisboa, em Badajoz e no Boavista 132. Para
trás fica já a publicação de um portfolio na
revista “Magazine Artes”, bem como outras
exposições, inclusive ao nível internacional,
em Torun, na Polónia. No coração de Nova
Iorque, surge um prazer contemplativo para
os nossos olhos. Uma cidade que nos é dada
a ver pelos olhos debruçados sobre um
mundo onde o ruído se cruza com o silêncio.
Inexplicavelmente, vemos Nova Iorque
imbuída de uma espessa camada de silêncio.
Uma sensação de captação do tempo que o
fotógrafo lhes conseguiu imprimir.
Nesses momentos, sem ontem ou amanhã,
parece-nos ouvir, lá longe, o burburinho da
cidade. E na espuma suja dos dias, a cidade
ganha vida e o tempo corre.
// Chico Buarque
O músico que escreve livros
Entrevista | Ricardo Paulouro
Fotografia | Magda Fernandes

Em São Paulo, na sua adolescência, Chico Buarque era Disse recentemente: “Não escolhi a música como carreira, a Disse uma vez que a música o tinha roubado à literatura...
conhecido como «o carioca». O cd homónimo, Carioca, música é que me escolheu”. Quando é que a música surgiu no Acho que isso aconteceu um pouco com toda a minha
seu percurso? geração. Aquele momento da música popular brasileira foi
assinala o seu regresso à música depois de se ter
CHICO BUARQUE – Sou um músico que escreve livros. Tenho marcante. Possíveis vocações literárias, cinematográficas ou
repensado na escrita com o último livro, Budapeste,
conseguido alternar os dois trabalhos que, para mim, são teatrais convergiram para a música. Caetano Veloso, Gilberto
aclamado pela crítica. Falar de Chico Buarque é bastante diferentes. Nesta fase já não sei se distraio o Gil, Edu Lobo e tantos outros da minha geração estudavam
descobrir a riqueza de músicas, poemas, dramaturgias e compositor escrevendo livros ou vice-versa porque o tempo e nas áreas mais diversas, desde Engenharia a crítica de
romances construídos e vividos ao longo de cerca de 60 a minha cabeça ocupam-se igualmente das duas coisas. Mas cinema, como era, por exemplo, o caso do Caetano Veloso.
anos. O autor de «A Banda» é um contador de histórias, sempre separadamente. Todos eles foram atraídos pela Bossa Nova e por João Gilberto.
Também eu abandonei a ideia de escrever. Ainda escrevi para
sempre trabalhadas por uma poderosa imaginação e
Quando é que o Chico Buarque sentiu essa atracção pela teatro mas considero essa vertente um complemento ao meu
marcadas pela cultura popular brasileira. Definindo-se
literatura? trabalho musical. Os diálogos eram uma espécie de costuras
como “um músico que escreve livros”, Chico entregou- Esse interesse vem desde muito novo. A literatura talvez não entre canções. O escritor ficou adormecido durante todo este
se à literatura e ao romance em 1991, com a publicação seja anterior à atracção pela música, mas a ideia de ser escritor tempo. Eu nunca imaginei voltar à literatura, à excepção de
de Estorvo. Quatro anos depois seguiu-se Benjamin e surgiu antes da vontade de ser músico. Quando era muito jovem uma novela escrita em 73 ou 74 chamada Fazenda Modelo,
em 2003, com Budapeste, consagrou definitivamente escrevia em jornais de colégio, escrevia crónicas, cheguei mesmo que foi escrita como um “desafogo”...
a publicar um conto (Ulisses) no Estado de S. Paulo. A intenção de
o trabalho de artesão da palavra que já se vinha
me tornar um escritor já estava aí, de algum modo, presente. No Esse desejo de liberdade era motivado pela censura que se
esboçando. 2007 será o ano da adaptação mundial
entanto, em São Paulo, a cidade onde estudava, não havia uma vivia no país?
para teatro do seu último romance, numa produção boa escola de Letras que me tornasse um escritor. Curiosamente, Sim, a censura era muito rígida, mas mais direccionada para
no Teatro Nacional D. Maria II, com dramaturgia do eu sou filho de um escritor. O meu pai era professor, foi director a música, televisão e cinema. No entanto, não existia censura
espanhol José Sanchis Sinisterra. As palavras cirúrgicas, de um museu, foi crítico literário... Mas a verdade é que o prévia na literatura. A Fazenda Modelo acabou por ser um
meticulosamente dispostas como num puzzle, o trabalho que mais ocupava o seu tempo era aquele que não era artifício para dizer coisas que não podiam ser ditas através da
remunerado. No Brasil é difícil viver da escrita. música. Este é, por isso, um livro com uma motivação política
discreto humor de quem gosta de se surpreender com
muito evidente. Mais tarde, quando escrevi o meu primeiro
a escrita e com a leitura, justificam, por exemplo, o
Foi esse conjunto de circunstâncias que o levou a ingressar romance, Estorvo, a motivação foi muito diferente. Nada me
sucesso deste seu último romance, traduzido em mais num Curso Superior de Arquitectura? motivou a escrever o livro senão a própria literatura.
de 20 línguas. A música, tal como a literatura, é, para Sim, a escola de Arquitectura era uma instituição séria e, de
Chico, uma reaprendizagem constante. alguma forma, ligada ao mundo das artes. Já nessa altura tocava Em Budapeste cria um José Costa fascinado pela palavra.
Ambas as vertentes da sua obra são como um mosaico, violão e a Arquitectura não me impediu de fazer música. Certo Também no romance é a melodia da palavra que lhe
dia gravei algumas canções que me transformaram num músico interessa?
um fio que se vai tecendo com o rigor e o engenho dos
e num compositor profissional. Mas eu não me preparei para De facto, a música e a literatura estão absolutamente separadas
mestres. Carioca é por isso uma homenagem ao Rio de
isso, nem tinha conhecimentos técnicos que fizessem prever que no tempo. Eu não ouço música quando escrevo mas não posso
Janeiro. Um presente para a cidade daquele que é uma me fosse tornar músico. Só o tempo e a experiência permitiram deixar de reconhecer que a música está presente na minha
referência obrigatória da música brasileira mas também aperfeiçoar a minha técnica musical. Talvez estivesse mais literatura. Acredito que haja uma lógica musical na escrita mas
já da literatura. preparado para escrever do que para fazer canções! mais até do que escrever, o meu grande prazer é ler. O trabalho

22 // ENTREVISTA
de escrita é um trabalho quotidiano. Todas as noites, antes de “Não ouço música quando escrevo espécie de toca onde se refugiam mas há que encontrar a
dormir, o meu verdadeiro momento de prazer era ler o que medida certa para essa exposição. No momento em que o escritor
tinha escrito. Prazer ou não... [risos] porque, fechada a oficina, mas não posso deixar de reconhecer começar a competir com os artistas do show business perdem-se
impresso o trabalho atentamente lido na cama, o dia seguinte que a música está presente na minha algumas das características da criação literária. Costumo dizer que
revelava um texto todo ele reescrito ou rasurado. a literatura não precisa de se exibir, ao contrário de outras artes.
literatura.” Recentemente têm surgido muitas leituras públicas, motivadas
Este é quase um critério de músico... sobretudo por uma influência anglo-saxónica. A primeira vez
É isso mesmo. As palavras estavam lá, a história também mas Também encontra esse prazer da leitura na construção dos que estive numa dessas sessões foi na Alemanha, em Colónia.
havia uma insatisfação motivada por uma palavra a mais ou seus romances, isto é, diverte-se com a sua escrita? Li um trecho do Estorvo, em Português, o tradutor leu o mesmo
a menos, o ritmo errado. Nessa altura recomeçava o dia a Divirto-me mais quando leio do que quando escrevo. É trecho em alemão e a plateia estava atenta, como se fosse
remexer nesse quebra-cabeças. curioso porque muitas vezes algumas passagens de livros quase um espectáculo [risos]. No caso específico de Budapeste,
meus, considerados sombrios, como é o caso de Estorvo, a vaidade e a inveja são dois temas muito presentes mas é claro
Esse trabalho de depuração é mais facilmente conseguido no provocam-me o riso. Alguém disse que escrevemos para que não são exclusivos da literatura porque estão presentes
verso ou na prosa? nos surpreender. É extraordinário quando lemos aquilo que noutros circuitos artísticos. Talvez no meio literário tenham uma
Na realidade a prosa é um processo de criação escrevemos e conseguimos achá-lo cómico, bonito ou poético. força maior por causa dessa necessidade de aplausos que não
completamente distinto do verso. Só escrevo versos para É claro que até se chegar a esta fase existe um trabalho existem habitualmente. Ao contrário da música ou das artes
uma música já existente e não o contrário porque os versos de reescrita muito grande onde chegam a ser eliminadas plásticas, na literatura um livro é não só escrito como também lido
existem apenas para se encaixarem na melodia. No caso da dezenas de páginas. Como para mim este é um ofício muito individualmente. É sempre um acto solitário.
prosa, é um processo quase instintivo. Apenas sei que algo solitário, às vezes não sei se vou terminar o livro que estou a
me incomoda e me compele a reescrever porque quer na escrever ou se valerá a pena todo aquele trabalho.
prosa, quer no verso, sou movido por um rigor sem contornos “Sempre que começo a escrever não
muito definidos. O seu último romance, Budapeste, foi um trabalho de maior
fôlego...
venho de uma experiência literária
Um livro da sua juventude que o tenha especialmente Demorou dois anos a ser escrito, o dobro do tempo em relação anterior mas de um período de criação
marcado como leitor. aos livros anteriores. Acho que a grande diferença entre a canção
Eu li muita coisa, de forma indisciplinada, fora do tempo, e a prosa, deste ponto de vista, é que a canção demora uma
musical. Assim, quando inicio um livro
na minha juventude. Eu tinha uma ambição literária desde semana, o máximo um mês a ser feita e logo que terminada não tenho nada planeado mas sim uma
muito novo. Talvez por morar numa casa cheia de livros. é mostrada. Porque a canção é exibicionista, quer-se mostrar
Tinha a impressão de que queria ler aqueles livros todos! e permite-nos, de imediato, com esse feed-back, perceber se
grande vontade de escrever.”
[risos] Lembro-me de ler o Monteiro Lobato, tal como todas está ou não bem feita. No caso do romance são dois anos sem o
as crianças brasileiras. Na escola li a Moreninha, Machado de poder mostrar, chegando quase a ser angustiante. O poeta Mário de Sá-Carneiro disse: “Eu não sou eu nem sou o
Assis, A Cidade e as Serras de Eça de Queirós... Numa fase outro. Sou qualquer coisa de intermédio”. Através da palavra,
seguinte, lembro-me de ficar entusiasmadíssimo pelo facto Em Budapeste, por exemplo, há uma ironia muito subtil em o eu, mesmo que ficcional, é sempre o outro, um duplo?
de conseguir ler e entender livros em francês. Ter chegado, relação ao mundo literário, enquadrado num contexto quase No caso de Budapeste, o facto de o narrador ser um
por exemplo, ao fim dos seis volumes de Guerra e Paz foi para mediático... escritor aproxima-me ainda mais da personagem. Eu não
mim uma proeza! [risos] Às vezes acho até quase salutar que os escritores saiam dessa só o entendo como partilho muitos dos seus pontos de vista.

ENTREVISTA // 23
Se não conseguirmos chegar desta forma à personagem ela Em Budapeste, no Estorvo e em Benjamin existe, até mesmo o caso da tradução húngara, já não posso ajudar. No entanto
provavelmente não andará. Até começar o livro propriamente dito, do ponto de vista formal, uma sensação de vertigem e fuga devo dizer que a melhor tradução de capa do Budapeste é a
não sei quem será o narrador. Talvez porque sempre que começo muito forte. Do que é que as personagens fogem? húngara! [risos]
a escrever não venho de uma experiência literária anterior mas de Nunca pensei muito nesse aspecto mas de facto as
um período de criação musical. Assim, quando inicio um livro não personagens estão sempre em trânsito... Acho que pode ser Para além da música e do romance, Chico Buarque tem
tenho nada planeado mas sim uma grande vontade de escrever. tanto uma qualidade como um defeito. O escritor exige sempre também uma vertente de cronista, lembrando as crónicas
Antes de ter começado a escrever a primeira frase de Budapeste muito do leitor. O leitor menos atento ou interessado não vai sobre futebol que escreveu...
estive cerca de três meses em preparação, pesquisando, tentando certamente seguir esse fluxo e acaba por perder a história. No Essas crónicas foram escritas para a Copa de 98. Antes disso
descobrir qual seria o tom do livro e quem seria a pessoa que o entanto, isto é algo que também me preocupa porque a pouca tinha escrito alguma coisa para o Pasquim, um jornal de uma
iria escrever. A personagem do escritor, em Budapeste, não surgiu vontade de explicar certas coisas enquanto escrevo acaba por cooperativa de jornalistas brasileiros de oposição à ditadura.
logo de início. Depois de muita reescrita surgiu inexplicavelmente dificultar a leitura a muitas pessoas. E é sempre difícil exigir Durante o período em que vivi em Roma colaborei pontualmente
aquele momento que é a chave da história. Nesse instante peguei do leitor essa atenção porque na leitura existem paragens, as com este jornal. Por ocasião da Copa de 98 contrataram-me
a mão do escritor e passei a ser esse intermediário: não sou eu pessoas vão lendo e integrando o livro nos tempos livres do para escrever sobre futebol, o que para mim foi um prazer
mas na realidade também não sou o José Costa. seu quotidiano. poder assistir aos jogos na tribuna. Tinha de escrever apenas
É o ghost writer do José Costa. Ás vezes pensava que estava a escrever como quem escreve uma vez por semana mas ao meu lado estavam todos os outros
uma canção ou uma partitura que determina o andamento de jornalistas desportivos que escreviam diariamente.
como aquela música vai ser executada. No entanto, não há um
“Mesmo que eu escreva a quatro mãos, manual sobre como ler um livro. “Cada vez que volto não sei mais onde estava, é um
em parceria, o momento da escrita é recomeço”. Este é agora um recomeço literário ou musical?
A escrita é, para si, um ofício solitário? A certeza com que fico depois de escrever um livro é que
solitário.” Absolutamente. Até mesmo a própria escrita de canções. tenho de fazer música, até reaprender. É algo penoso porque
Mesmo que eu escreva a quatro mãos, em parceria, o demora a apanhar novamente o jeito mas é bom porque
José Saramago disse a propósito de Budapeste que esta obra momento da escrita é solitário. tenho a impressão de que recomeço sem vícios. Neste
gira em torno de duas grandes questões: o que é a realidade? momento, as canções que procuro agora escrever têm pouco a
Quem sou eu? Esta é a grande busca de quem escreve? Tem ideia do número de línguas em que está traduzido o ver com aquelas que escrevi há cinco anos atrás. [x]
Não sei... Acho que apesar de ser meu leitor nunca fico com a Budapeste?
ideia do livro como um todo, na medida em que o trabalho como O número exacto não sei mas em mais de 20 línguas.
O Estorvo foi editado em quase toda a Europa Ocidental.
Ás vezes pensava que estava a escrever
se fosse algo artesanal, um mosaico. Acontece-me muitas vezes
mexer nessa peça e aperceber-me que, por algum motivo, ela Budapeste foi um pouco mais além, para o leste europeu, como quem escreve uma canção
não funciona. Descubro então que esse mau funcionamento se Israel, Japão...
Costuma acompanhar a tradução dos seus livros?
ou uma partitura que determina o
deve a algum problema anterior e o meu papel é o de consertar,
reescrever. Trabalho assim mais a minúcia do que o geral. Quando Durante o ano seguinte à saída do livro no Brasil acompanho andamento de como aquela música vai
a linguagem não está boa, a história tem que ser mais trabalhada. as traduções das línguas que sei, em francês, inglês, italiano e
espanhol. Nestes casos posso sugerir, dar palpites, identificar
ser executada.
Mesmo tendo um roteiro de escrita, esse roteiro é infringido
sempre e, logo, existe uma busca constante – a busca pela palavra. alguns equívocos de compreensão. Noutras traduções, como é

24 // ENTREVISTA
Texto | Manuel Halpern

Carioca, Chico Buarque O 25 de Abril cantado por Chico Buarque


Ele faz canções, ele é o tal
Dedicou a música Tanto Mar à Revolução dos Cravos, em Portugal.
O álbum chama-se Carioca, mas é dedicado a São Paulo, porque Como foi escrever sobre a liberdade de um povo quando o Brasil ainda passava pela noite da censura?
era assim que chamavam a Chico quando viveu na cidade mais
populosa da América do Sul. Mas procurar um conceito que una Eu ia a Portugal com alguma frequência. Estive lá com o Vinicius de Moraes e a Nara Leão fazendo concertos, em 66 estive em
este disco é puro exercício de retórica. O que aqui conta são as Portugal com o grupo de Morte e Vida Severina. Nessa data de 74 ia para Itália de barco. Lembro-me que a bordo havia um boletim
canções. Como sempre. No seu todo, talvez seja um dos álbuns informativo. Quando aconteceu o movimento dos Capitães de Abril eu estava em viagem. Atracámos alguns dias em Lisboa.
mais heterogéneos do seu percurso. O que na escala de Chico não Por pouco não chegava no dia da revolução! Fiquei muito sensibilizado com todo aquele ambiente e com a repercussão dessa
significa uma esquizofrenia de estilos, à moda de Zeca Baleiro, revolução. Os acontecimentos em Portugal eram muito importantes no Brasil. A música que compus foi um abraço a Portugal e,
mas apenas ligeiras flutuações na linha rigorosa e perfeccionista simultaneamente, um incentivo à reivindicação aqui no Brasil. Tanto Mar foi verdadeiramente uma canção de esperança.
com que tem desenhado a sua carreira. Todavia, não deixa de ser
surpreendente encontrar opções tão díspares como o rap-baião
de Ode aos Ratos (música de Edu Lobo) e a obtusa e incantável
peça de peça de Jorge Hélder, Bolero Blues. Quase todas estas Tanto Mar* Chico Buarque/1975 (1ª versão) Tanto Mar* Chico Buarque/1978 (2ª versão)
doze novas canções se encaixam directamente no reportório
de Chico, como se sempre tivessem existido. Numa exímia Sei que estás em festa, pá Foi bonita a festa, pá
adaptação da letra à melodia, muitas delas, mais do que agradar Fico contente Fiquei contente
os ouvidos, inscrevem-se na alma dos seus fãs. Encontram-se E enquanto estou ausente E inda guardo, renitente
pormenores geniais. Outros Sonhos, o mais melodioso de todos Guarda um cravo para mim Um velho cravo para mim
os temas, é uma utopia política e social que desagua na mais
bela declaração de amor: «E por sonhar o impossível, sonhei
Eu queria estar na festa, pá Já murcharam tua festa, pá
que tu me querias». Os três minutos e meio de As Atrizes
Com a tua gente Mas certamente
condensam a nostalgia de um Cinema Paraíso, com «peitinhos
assaz, bundinhas assim». E só Chico para se lembrar de cantar
E colher pessoalmente Esqueceram uma semente
algo tão difícil de dizer como «presentemente represente muito Uma flor do teu jardim Nalgum canto do jardim
para mim». Em Subúrbio, novamente uma perspectiva social,
numa viagem a um «lá» que «não tem turistas» e de que Sei que há léguas a nos separar Sei que há léguas a nos separar
«não sai foto nas revistas». Recorre ao calão, sem sombra de Tanto mar, tanto mar Tanto mar, tanto mar
brejeirice, numa suprema elegância, no uso justo da palavra Sei também quanto é preciso, pá Sei também quanto é preciso, pá
para a cadência pretendida: «É pau, é pedra, é fim da linha, é Navegar, navegar Navegar, navegar
lenha, é fogo, é foda». Talvez o tema mais exemplar seja Ela
Faz Cinema, em que canta: «Não sei se ela realmente sente o Lá faz primavera, pá Canta a primavera, pá
que mente para mim». É que este exercício cénico da verdade Cá estou doente Cá estou carente
da mentira comum a diferentes artes é um campo onde Chico é
Manda urgentemente Manda novamente
sublime. Fernando Pessoa deixou bem claro que o poeta é um
Algum cheirinho de alecrim Algum cheirinho de alecrim
fingidor. Nesse jogo de enganos, que em nada lesa o público,
torna-se apetecível procurar nas entrelinhas a alma do criador.
Mas, pessoalmente, o que mais conta é que tantas vezes sinto o * Letra original, vetada pela censura; gravação
que Chico realmente mente para mim. editada em Portugal, apenas em 1975.

ENTREVISTA // 25
// Dave Mckean
O ilustrador de sonhos
Texto | Pedro Leal Salvado
Fotografia | contiudo.com | David Duarte

O Festival IMAGO, subordinado à temática da BD, trouxe este que se revelou uma união perfeita e que perdura até hoje.
ano a Portugal Dave McKean. Verdadeiro “homem dos sete Nos finais da década de 80, Mckean, juntamente com
instrumentos” no que toca ao trabalho de imagem é hoje Gaiman, torna-se conhecido do grande público, após a gigante
apontado como um dos mais criativos e originais ilustradores da americana da banda desenhada DC lhe entregar as ilustrações
actualidade. No entanto, o seu trabalho não se fica pela ilustração. das capas de “Sandman” – 75 ao todo –, que número após
Fã convicto de Luis Bunuel e de Salvador Dali, confessando número contribuíram para a formação de uma verdadeira
ser “Un Chien Andalou” o filme da sua vida, Dave Mckean, legião de fãs do estilo inovador do ilustrador. Graças ao sucesso
exímio contador de histórias pela imagem, é hoje considerado do seu trabalho com a série “Sandman”, Dave continuou a
como um dos melhores ilustradores da actualidade, quer trabalhar com a DC, tendo realizado ilustrações de capa para
pela novidade das suas técnicas, quer pela sua abordagem várias séries, mini-séries e especiais da editora, em títulos
original, bizarra e provocante a temas do quotidiano e do como “Hellblazer” e “The Dreaming”. Mas embora a sua arte se
imaginário comum, mostrando categoricamente que uma sua direccione naturalmente para ilustrações de capa, Mckean quis
imagem vale mesmo mais que mil palavras e que lhe valeu provar à editora americana que as suas ideias eram igualmente
recentemente o titulo de “o artista inglês mais absurdamente quadriculáveis e, com os textos do escocês Grant Morrison, criou
talentoso da actualidade”. “Arkham Asylum”, uma nova abordagem de Batman, numa
Herdou a paixão pela banda desenhada de seu pai, funcionário historia que explora um lado mais pessoal e intimista do cavaleiro
de uma empresa aérea que desenhava nas horas vagas, das trevas mergulhado no famoso hospício para criminosos,
que perdeu cedo mas cuja memória tão comoventemente abordagem que da parte de Mckean seria a única possível pois
imortalizou na banda desenhada “His Story”. nunca foi grande fã deste tipo de super-heróis - “não percebo
Em 1982, ingressou na Berkshire College of Art and Design, porque alguém se vestiria de morcego, com uma capa e andasse
que frequentou até 1986, onde, através de trabalhos de José depois por aí nessa figura atrás de bandidos…”, refere.
Munos e Bill Sienkiewicz, percebeu que era possível conjugar Novamente em parceria com Neil Gaiman, Mckean cria, em
varias técnicas para se contar um história. Experimentando 1992, “Signal to Noise”, uma historia negra em que o leitor
de tudo um pouco, desde colagens a pinturas, passando por sabe a hora exacta do fim e é levado a deambular por todas as
sobreposições aleatórias feitas numa fotocopiadora, assume implicações que esse conhecimento traz; em 1994, juntos recriam
que o apelo era primordialmente dirigido aos sentidos e não a história tradicional de “Mr. Punch”, um perverso personagem
tanto a uma história, usando a sua arte como um portal de que “basicamente é um serial killer, não obstante ser uma história
viagens por entre texturas, cores e imagens, um pouco à que contamos às nossas crianças e que supostamente tem uma
semelhança do som psicadélico e progressivo da sua banda moral esquisita qualquer”, historia esta que adaptou para o grande
musical preferida de sempre, os King Crimson. ecrã no formato de uma curta-metragem violenta e caótica, com
Apesar de centrar o seu trabalho na ilustração, Mckean nunca um trabalho exímio de representação e realização. Ainda para a
esqueceu a sua primeira paixão, a banda desenhada, tendo DC e com Neil Gaiman, criou, em 1998, a mini-série amplamente
desenvolvido e aprofundado as suas técnicas nos “quadradinhos”, aclamada pela crítica, “Black Orchid”.
nos anos que frequentou a Berkshire. Mas continuava a faltar algo Realizando um sonho de sempre, Dave Mckean, em 1998,
às suas imagens, “um roteiro” nas suas palavras. publicou a premiada “Cages”, uma mini-série de banda desenhada
dividida em 10 volumes, onde para além das ilustrações foi
Dave Mckean e a BD responsável pelos textos, assumindo assim todo o trabalho de
criação da obra. “Cages” evoca o mito da Criação, contado a partir
É em 1986, após finalizar o seu curso, que Mckean conhece das relações que se desenrolam num edifício urbano, tendo como
o então promissor jornalista/guionista Neil Gaiman e juntos centro inúmeras personagens que vão desde artistas, passando
criam “Violent Cases”, uma estranha história sobre a relação por escritores e até um simples gato preto.
de um pequeno rapaz e o osteopata de Al Capone. A edição Ainda em parceria com Neil Gaiman, Mckean ilustrou vários livros
inglesa publicada em 1987, que por razões económicas foi para crianças, como “The Wolves in the Wall” (2002), “Carolin” e
editada a preto e branco, foi aplaudida pela crítica e por nomes (2001) e “The Day I Swapped My Dad For Two Goldfish” (1996),
estabelecidos da BD inglesa como Alan Moore e Clive Barker. este último “um grande sucesso no dia do pai (risos)” e cuja capa
O estilo misterioso e excêntrico das imagens de Mckean teve que alterar nas edições seguintes pelo facto de o vocalista
materializava com exactidão as palavras obscuras e o refinado dos Counting Crows ter gostado de tal forma da ilustração que a
humor negro dos textos de Gaiman, nascendo assim aquela quis usar como capa de um dos seus CD´s.

26 // CULTURA
Dave Mckean e as outras artes

O nome Dave Mckean não é sinónimo de qualidade apenas no


mundo da banda desenhada. De facto, actualmente, Mckean
disse-nos que deixou a banda desenhada como profissão. Continua
a ser a sua grande paixão, mas deixou de aceitar ilustrar guiões
fornecidos pelas editoras, “deixei de ver qualquer sentido nisso,
acho que não estava a acrescentar nada de novo”, confessou.
A sua mais recente aventura deu-se na 7ª arte, com a longa-
metragem “Mirrormask” (2005), uma produção “low-budget” da
Jim Henson Studios, cujos cenários Mckean idealizou e realizou.
O argumento é, como não poderia deixar de ser, de Neil Gaiman.
“Mirrormask” é a primeira longa-metragem de Dave Mckean e
nela encontramos todo o imaginário das suas ilustrações a par
das suas qualidades como realizador. A crítica recebeu bem o
filme que, embora não tenha sido um “blockbuster”, fez parte
da Selecção Oficial do Sundance Film Festival 2005 e ganhou o
prémio do público no Sarasota Film Festival 2005. Dave Mckean
realizou já diversas curtas-metragens. Entre outras, “Sonnet nº 138
(Shakespeare)”, cujos versos poderíamos ouvir de Mckean e
tomá-los por seus, tal é a similaridade entre aqueles e as
concepções deste acerca da importância da memória e da
analise do passado com a experiência acumulada do presente;
“The Week Before”, onde Dave nos transporta numa hilariante
viagem à semana que antecedeu a criação do Mundo e onde
retrata o quotidiano de Deus, na pesca, num jogo de cartas com
o seu vizinho (o Diabo). Aqui, o espectador é ainda confrontado
com um daqueles momentos de total falta de inspiração de um
qualquer criador, a que Deus não foi excepção; destacamos ainda
“Mr. Punch”, uma curta-metragem com uma violência que nos
impressiona de inicio e que depois nos cativa, com um trabalho de
excelência a nível de realização e de representação.
Encontramos depois o trabalho de Mckean nas mais variadas
áreas. Na música, além de estar à frente da Feral Records
que gere com o saxofonista Iain Bellamy, desenhou, ilustrou
e fotografou mais de 150 capas de CD´s de músicos como Bill
Brufford, Michael Nyman, Fear Factory, Skinny Puppy, Tori Amos,
Frontline, Counting Crows e Rolling Stones, tendo ainda desenhado
e realizado um videoclip do estranho Buckethead, “um músico
que actua com um balde do KFC na cabeça…e que recentemente
se juntou aos Guns and Roses…personagem bizarra…”, referiu.
Na fotografia, o trabalho de Mckean não consegue esconder
o fascínio do ilustrador pelo surrealista Salvador Dali, sendo
grande parte do seu portofolio autênticas odes à pintura do
grande mestre, que vão desde encenações a montagens e
manipulações digitais.
Finalmente, na área da publicidade, onde o ilustrador criou a
imagem e o design para marcas como a Nike, Kodak, British
Telecom, Eurostar, Smirnoff, BMW e Sony Playstation 2 e para
publicações como a New Yorker, a Mojo, a Playboy e a Penthouse. [x]

CULTURA // 27
// Voar
Texto | Pedro Fiúza

Estou neste momento a planear uma outra investida ao mundo


dos fantasmas do teatro. Há imagens que aparecem na cabeça.
Vozes. Movimentos. Corpos. É tudo como num jogo de estratégia
onde não há um objectivo definido, um jogo em que o objectivo
se vai construindo a si mesmo, se vai cavando, se vai revelando.
Aquilo que procuro num texto de teatro é uma revelação, um
momento íntimo, daqueles que nos atiram de repente para um
outro tempo, que nos fazem saltar para dentro das coisas. O

Debaixo
que me interessa no teatro é chegar à estrutura, Muller usa a
imagem do esqueleto, fascina-me o despir da máscara, tirar as
camadas, esgravatar. Quando se chega ao centro chega-se a uma
verdade, é a dramaturgia da morte, é a dramaturgia da vida. //
de Olho
Não existe teatro sem questão, sem conflito. O actor combate
com a angustia do seu próprio fracasso, mas isso não importa, o
público é carnívoro, quanto mais o actor voa mais o público quer
a queda, depende… estou a divagar dentro das minhas próprias
questões. Isto do teatro anda a custar-me demasiado, não vai
sendo justo. Preciso do teatro grande. Preciso daquele salto sem
rede, daquela verdade louca, daquele momento de vida que
parece fugir cada vez mais destas salas, dos cafés, das relações,
Jean Marc Vallée
das imagens. Porque para que serve o teatro se não for para nos
voltar a dar um pouco de humanidade? Durante um curto espaço
Do Canadá para o Mundo
de tempo em que tudo se condensa, tudo se torna mais do
Texto | Pedro T. Ramos
que aquilo que é. Tudo é. Falo do ser. O dentro. O actor. O grito.
O silêncio. Mas depois fico à janela!!! Para quê? Fico debruçado
na janela a fumar um cigarro e a ouvir música, penso no teatro,
penso mais no teatro, farto-me de pensar no teatro, ando com
a cabeça em círculos, a planear grandes obras, a reinvenção
do clássico, grandes cenas teoricamente perfeitas, imagens
quase épicas… e não faço nada!!! A relação do teatro com a
preguiça devia ser estudada. Quero voltar a acreditar. Estou neste
momento a estudar o Quarteto do Heiner Muller, consigo inseri- O Canadá é definitivamente um dos países a ter mais em Olhando posteriormente para o filme com mais
lo na minha estética ou na estética que procuro, porque sou conta neste início do século XXI. À diversidade e qualidade distanciamento e frieza também me pus a pensar como é
demasiado novo para ter uma estética definida, ele consegue musical de músicos ou bandas tão diferentes quanto simples fazer bem com poucos recursos, não renegando
reinventar o clássico, dar uma força brutal aos seus textos, vai ao indispensáveis, como os Pink Mountaintops, Junior Boys, as idiossincrasias subjacentes e conseguindo alcançar uma
fundo, é comprometido, está pessoalmente implicado em todos Broken Social Scene, Final Fantasy, Bell Orchestra, Wolf leitura universal. Tudo o contrário do que acontece com
os seus textos. Agarra no clássico e procura-lhe as linhas, o cerne, parade, Feist, Tiga, Rufus Wainwright ou os grandiosos os filmes portugueses. Veja-se o caso do sobrevalorizado
mas sempre inserido no seu tempo e na sua vida, é como se ele Arcade Fire, junta-se agora uma fornada de jovens e menos “Rapace” de João Nicolau (recentemente exibido no IMAGO
procurasse a semelhança da situação, o paralelo, e procurasse jovens talentos cinematográficos que começam a invadir os e agora em exibição comercial) que, partindo de um
uma explicação de si, um exorcismo, uma consciência. Este é vários terrenos por onde se movem os cinéfilos. Se David bom tema, se perde em preciosismos pretensiosos não
o meu projecto para o próximo ano. Agarrar em dois actores Cronemberg, Atom Egoyan, Guy Maddin ou Dennis Arcand conseguindo transmitir a mínima emoção. Prova disso é
com o peso necessário e partir para o problema. Mais uma vez só vieram provar que com a idade estão cada vez melhor, a baixíssima receptividade que o público do festival lhe
a base é a relação homem-mulher. O texto é denso. A imagem se Mary Harron se posiciona cada vez mais como um caso concedeu atribuindo-lhe uma das piores classificações no
que tenho na cabeça é uma visão romântica do teatro, voltar ao à parte e Paul Haggis surpreendeu meio mundo com dois prémio do público. Como é que um filme destes ganha o
clássico, voltar ao clássico… assumir a forma, procurar a estrutura Óscares como argumentista e realizador, em 2005 e 2006, prémio do Júri Internacional de Vila do Conde é um mistério
que define o teatro, não gosto de formas híbridas. Não acredito respectivamente, a verdadeira nova estrela da companhia que provavelmente nunca será resolvido. Já o jovem Diogo
que a reinvenção do teatro passe pelo cruzamento, acredito que chama-se Jean-Marc Vallée e é absolutamente indispensável Camões, com “Morrer”, mostra um potencial que merece
tem de voltar a aceitar aquilo que o define para redescobrir a conhecer “C.R.A.Z.Y.”, o único filme fresco e surpreendente ser seguido com toda a atenção e que mereceu a mais alta
sua força única. É preciso agir. A manutenção está a acabar com que me foi dado a ver este ano. distinção por parte do público e do júri da competição Under
o risco. O teatro está fechado. O público tem dúvidas. Voar. Esta Apesar de se tratar de uma história muito localizada (a 25 do IMAGO.
é a imagem que mais me percorre. O teatro está na beira do religião, as paisagens, o tipo de família classe média), o filme Não tenho a mínima dúvida de que há muitos e grandes
abismo e não salta. Medo. Não sabe se voa ou se cai. Prefere transcende fronteiras como no caso de “Cidade de Deus” ou talentos entre os jovens cineastas portugueses que se
andar ao longo da fórmula. Sim, talvez eu esteja a falar de coisas “Amores Perros”, filmes muito vinculados aos locais onde mexem à margem dos esquemas de produção sorvedores
específicas. Não quero desistir, não quero ser um empregado do ocorrem mas de absoluta leitura universal. Será talvez porque dos dinheiros públicos para o cinema. Urge uma tomada
teatro, não quero. Quero ser feliz. Quero trabalhar, talvez esteja se trata de um filme sobre emoções e não existem territórios de posição radical por parte das instituições para que os
na altura de correr riscos, é agora ou nunca, é a vantagem de específicos para as emoções. dinheiros sejam distribuídos de outra forma, os esquemas
ser novo, há um longo caminho para percorrer, tanta coisa para Mas porque é que “C.R.A.Z.Y.” é um filme especial dentro da de produção sejam mais diversificados e permitam que mais
aprender, tanta coisa para explorar, ir descobrindo a forma, ir avalanche recente de filmes centrados em histórias sobre a gente vá filmando. O Canadá é um bom exemplo disso e
descobrindo o próprio caminho. Porque há tanta coisa para fazer homossexualidade? Precisamente pelo facto da sua personagem seria tão bom se dentro de alguns anos pudéssemos estar
e o tempo urge e para quê esperar? O teatro insiste-se na cabeça principal ser homossexual e de não ser determinante para a a falar com o mesmo entusiasmo de um Jean Marc Vallée
e precisa de sair. Este texto tornou-se de repente demasiado história que se quer contar. É um filme basicamente sobre as português. Até lá esperemos que alguma distribuidora se
pessoal mas não podia ser diferente. É o compromisso. Estou diferenças e sobre o facto de as aceitarmos ou não. lembre de estrear “C.R.A.Z.Y.” em Portugal. [x]
farto de coisas que nos atravessam muito e não nos tocam Jean Marc Vallée dedicou 10 anos da sua vida a esta obra-
nunca. Não conheço o futuro e não sei o que nos espera. Estou prima e isso nota-se. Um argumento com um ritmo frenético e Mais info em:
farto da minha janela. A vista é o horizonte. O horizonte talvez apaixonante, uma direcção artística primorosa, uma selecção http://concours.canoe.com/concours_crazy/
projecte demasiado. Lá fora está o mundo com todas as suas musical de primeira água, um casting e direcção de actores http://www.excessif.com/news.php?15117
possibilidades e todos os seus enganos e toda a sua beleza. O acertadíssima. Tudo foi pensado e trabalhado para fazer de http://www.arcadefire.com/flash.html
teatro anda por aí algures e espera que o agarrem para que “C.R.A.Z.Y.” um dos objectos fílmicos mais estimulantes dos http://www.curtasmetragens.pt/agencia/p/filme.php?fil=151
possa acontecer. Acreditar é o caminho. [x] últimos anos.

28 // CULTURA
Parabéns,
//
Ballet Gulbenkian!
Texto | Luiz Antunes

Quinze meses após a extinção abrupta do Ballet Gulbenkian, Birgit Culberg (fundadora o Culberg Ballet, na Suécia), Hans lusa, provocando no público feminino e até no mais insensível
o balanço que se pode fazer é que esta abalou a cultura do van Manen, Maurice Bejárt, Jiri Kylian, Nacho Duato, entre dos homens sensações absolutamente… artísticas!), fizeram
país e empobreceu significativamente o panorama artístico outros. Desde o início, sempre com uma grande componente acontecer dança, em momentos inebriantes.
português, em troca de nada. plástica nas suas produções, o Ballet Gulbenkian fez apelo Que aconteceu realmente? Que disseram as notícias?
A origem do Ballet Gulbenkian está intimamente ligada à colaboração de artistas portugueses bem conhecidos, Pelo lado dos factos, isto: NADA… ninguém soube realmente
à visão de Anna Mascolo que depois de ter reconhecido estimulando vários deles a, pela primeira vez, trabalharem o que levou ao encerramento das portas da companhia. A
potencialidades de futura companhia profissional ao Grupo para uma cena teatral: criaram cenários e figurinos para a responsabilidade deste encerramento morreu solteira. Do lado
Experimental de Ballet do Centro Português de Bailado, companhia alguns nomes, como Júlio de Resende, Nadir das conclusões, o que importou à comunicação social foi noticiar
do qual era Directora Artística não remunerada (bem ao Afonso, Espiga Pinto, Cruzeiro Seixas, Nuno Carinhas, Vera não os factos, mas sim as lágrimas dos muitos que choraram
gosto português, pois os artistas alimentam-se de ar e Castro, António Lagarto, Paula Rego, José António Tenente este fim, e o valor das indemnizações pagas aos bailarinos pelo
vento, e sobrevivem de promessas e sonhos, não precisam e muitos mais. E a estes nomes vieram juntar-se os de despedimento. As opções estratégicas e as que dizem respeito à
orientações claras quanto aos seus deveres e prescindem de alguns estrangeiros com prestígio no mundo das artes cultura escaparão sempre à democracia, mas devemos discuti-
protecção dos seus direitos) demite-se do cargo e apresenta cénicas, como André Acquart e Germinal Casado… O mérito las e entendê-las. A Fundação Calouste Gulbenkian na pessoa
em Assembleia-geral do Centro Português de Bailado uma destas produções de excepção, no aspecto plástico, foi do seu presidente do Conselho Administrativo é soberana, mas
moção aprovada pelos associados que o transforma em Grupo recompensado, em 1973, com uma menção honrosa da XII será certamente capaz de entender, que “ uma obra cultural”,
Gulbenkian de Bailado, ex-Ballet Gulbenkian. Bienal de São Paulo. Expressamente destinadas ao Ballet tal como um quadro, e tal como o Ballet Gulbenkian, a partir do
Nos 40 anos de existência da companhia fez-se história, e Gulbenkian foram encomendadas obras aos compositores seu momento de encantamento, passa a ter vida própria e uma
se esta se pode qualificar de melhor ou pior…aos olhos da portugueses Joly Braga Santos, António Victorino d’Almeida, “pertença cultural” universal.
maioria, foi da melhor. No início era uma companhia de Constança Capdeville. Como artistas convidados actuaram com Sem pôr em causa a soberania referida, poderíamos sempre
repertório clássico, tendo sido alterado o seu rumo estético, a companhia os pianistas Tania Achot, Pedro Burmester, Jorge dizer que, uma grande diferença e uma grande semelhança
pelas mãos do jugoslavo Milko Sparemblek e acentuando- Moyano, Jorge Peixinho e o guitarrista Carlos Paredes. existem entre o quadro e o Ballet Gulbenkian: se no primeiro
se sob a direcção do português Jorge Salavisa, aquando da Depois de um período de maturação é nos anos 80, com jamais podemos acrescentar uma pincelada, já no Ballet
abertura da Companhia Nacional de Bailado na década de 70. um reportório de excepção e estilisticamente moderno e Gulbenkian seria sempre possível aperfeiçoá-lo. A grande
Numa perspectiva de consolidar uma arte da dança de raiz contemporâneo, que é considerada uma das cinco melhores semelhança é que a ambos a destruição deveria sempre ser
portuguesa, o Ballet Gulbenkian foi encorajando a revelação companhias de dança do mundo, actuando de Norte a Sul interdita.
e o desenvolvimento da carreira de novos coreógrafos do país, bem como nas melhores salas do mundo, com Parafraseando Anna Mascolo: “enquanto no nosso país a
(portugueses ou residentes em Portugal), permitindo-lhes digressões regulares. Muito disto deveu-se aos excelentes Dança não for encarada com a admiração e o respeito que
assumir uma dimensão artística de referência nacional bailarinos que passaram pela Fundação e contribuíram com o merece, enquanto não formos capazes de alicerçar uma
e internacional: Carlos Trincheiras, Armando Jorge, Vasco seu enorme talento e domínio técnico, alguns deles oriundos tradição profissional, a Dança, como alta expressão de um
Wallenkamp, Olga Roriz, João Fiadeiro, Vera Mantero, Paulo Curso de Formação Profissional de bailarinos que funcionava povo e forma de expansão da sua cultura no mundo, não
Ribeiro… Pelos estúdios, nos subterrâneos do edifício da em anexo à Companhia. Bailarinos como Gagik Ismailian, José poderá singrar entre nós.”
Fundação, passaram os melhores mestres, coreógrafos e Grave, João Afonso, Allan Falieri, Jermain Spivey, Romeu Runa, Em tempo de comemorações dos 50 anos de existência da
colaboradores de diversas áreas artísticas, de todo o séc. Graça Barroso, Barbara Giggi, Elisa Ferreira, Sandra Rosado Fundação Calouste Gulbenkian e 40 anos da sua orquestra, o
XX, enriquecendo de alguma forma o mundo da dança e e os “quatro Cavaleiros Apoteóticos”: Francisco Rosseau, Ballet Gulbenkian, que teve um papel crucial na história da dança
contribuindo para a sua história. São de referir nomes como Benvindo Fonseca, Luís Damas e Rui Pinto (com uma técnica em Portugal, como na projecção do nome da própria fundação e
Serge Lifar, Leonide Massine, Anton Dolin, Lar Lubovitch, arrebatadora e uma expressividade emotiva absolutamente do país, parece ter sido completamente esquecido. [x]
// O arquitecto
da memória
Texto | Margarida Gil dos Reis
Fotografia | contiudo.com | Pedro Seixo Rodrigues
e Arquivo Centro Cultural Raiano

Nos últimos anos tem-se desenvolvido uma actividade


interessante em torno das questões da recuperação da
cidade contemporânea e da preservação de espaços.
Ao longo da modernidade, a metrópole assumiu-se
como um dos temas centrais das sociedades modernas.
Transcender a lógica efémera do mercado e valorizar
a permanência da arquitectura e da cidade são hoje,
cada vez mais, duas necessidades. O Arq.º Luís Marçal
Grilo foi responsável por algumas das intervenções mais
bem sucedidas na região da Beira Interior. Falamos,
em primeiro lugar, do Cine-Teatro Avenida, em Castelo
Branco. Danificado por um incêndio, em 1986, o Cine-
Teatro, projectado pelos arquitectos Raul César Caldeira
e Alberto Cruzeiro Galvão Roxo, é hoje um dos ex-libris
da cidade. A recuperação esteve a cargo de Marçal
Grilo que preservou a fachada original, mantendo a
harmonia com os restantes edifícios que o rodeiam.
Na Idanha-a-Nova, Marçal Grilo assinou o projecto
do Centro Cultural Raiano. Há já quem considere este
centro o último Castelo Raiano, devido à sua sólida
e granítica volumetria, com poucas aberturas para o
exterior. A questão das relações transfronteiriças é bem
visível nesta obra maior, onde todos os pormenores
são relevantes e nada foi deixado ao acaso. Destaque
ainda para o Centro de Artes e Espectáculos da Figueira
da Foz, inaugurado em 2000, um importante marco de
intervenção cultural. [x]

30 // ARQUITECTURA
Cine Teatro Avenida e Centro Cultural Raiano
Texto | Luís Marçal Grilo_ Arquitecto

Embora com finalidades semelhantes, a abordagem à


elaboração dos projectos destes dois edifícios destinados a
actividades no âmbito cultural, foi totalmente distinta.
No caso do Cineteatro Avenida tratou-se de um projecto de
recuperação para um edifício perfeitamente integrado na
malha urbana da cidade, inaugurado em fins de 1954, e
destruído em Agosto de 1984 por um violento incêndio que
consumiu todo o seu interior.
Durante três décadas o Cineteatro foi, sem dúvida, o centro de
actividades culturais mais importante de Castelo Branco.
Projectado pelos Arquitectos Raul Caldeira e Albertino Roxo,
o edifício de indiscutível qualidade com uma arquitectura
característica dos anos 50, contribui de forma significativa
para uma valorização não só da zona em que se situa como
da própria cidade.
Nesta perspectiva, a abordagem ao projecto teve o cuidado e
a preocupação de não interferir com a solução volumétrica e
arquitectónica evitando adulterar a identidade do edifício e a
apagar a própria memória do local.
Por isso, as alterações introduzidas centraram-se
fundamentalmente numa reorganização dos espaços, em
particular na área de palco, dependências de apoio, instalação
de equipamento cénico e melhoria das áreas públicas,
procurando uma solução que permitisse dotar Castelo Branco
de um equipamento cultural com capacidade de resposta às
diferentes solicitações dos dias de hoje totalmente diferentes
das que se verificavam nos anos 50.
Relativamente ao Centro Cultural Raiano, o projecto foi
concebido de um modo totalmente diferente, já que se
tratava de um edifício de raiz baseado num programa bem
estruturado com definição clara dos objectivos a atingir –
museu e serviços de apoio, exposições temporárias, auditório
e apoios, salas polivalentes, instalação para investigadores e
serviços administrativos.
Aqui houve liberdade para articular os diferentes espaços do
modo que julgamos mais funcional, com um esquema de
circulação de leitura muito fácil em torno de um páteo central o
qual permite ao edifício obter iluminação natural no seu interior.
Esta solução permitiu desenvolver os alçados com muito
pouca fenestração, o que aliado à utilização de pedra de
granito nas fachadas, conferem ao edifício uma identidade
própria com uma forte integração na paisagem local. [x]

ARQUITECTURA // 31
// Constância
ao sabor dos rios
Texto | Paula Nogueira
Fotografia | contiudo.com | Pedro Seixo Rodrigues

“Todas as terras que têm rio têm uma beleza especial. Esta tem
dois. Por isso tem uma beleza a dobrar”, diz-nos Carlos Dâmaso,
sentado à nossa frente, no seu restaurante. Um espaço de bom
gosto e de bons paladares, cujo nome, “Remédio d’Alma”, bem
podia ser o novo slogan de Constância.
“Há aqui um aconchego. Um aconchego que vem destes dois rios”
explica-nos o nosso anfitrião, um albicastrense que há oito anos
veio parar a Constância para dar aulas de música, que toca com
Pedro Barroso e que há seis anos resolveu aceitar o desafio da
mulher. Ela, uma açoriana apaixonada pela cozinha das ilhas, quis
abrir um restaurante, cujo ambiente casa com a harmonia que se
respira quando saímos porta fora, de estômago reconfortado, à
descoberta desta vila, abraçada pelo Rio e pelo Tejo. Sim, pelo Rio
e pelo Tejo. Porque aqui “o rio” é o Zêzere e o Tejo é o Tejo.
“O Rio é o Zêzere porque era de lá que as pessoas tiravam a água para
casa, para cozinhar, regar, lavar a roupa. Era uma água limpa, via-se o
fundo. Por isso o Zêzere é o rio afectivo, porque nos dava a água.
O Tejo metia medo. Mas as pessoas da vila viviam dele, do
transporte fluvial. Por isso Constância explorava o Tejo e amava o
Zêzere”. Quem assim fala é o cónego José Maria Oliveira. Para além
de guardião da fé dos seus paroquianos, ele é também o guardião
das estórias que ajudam a fazer a história do último século de
Constância.
Da sua casa, situada no cimo da vila, ao lado da Igreja Matriz (cujo
tecto guarda pinturas de Malhoa), a vista alcança os dois rios. Mas
é sobre o Tejo que desfia as suas memórias. Filho e neto de arrais
(homens que comandavam embarcações) a sua família viveu
do transporte fluvial, actividade a que se dedicava a maioria da
população de Constância, até à década de 50 do século passado.
“O transporte de mercadorias era a grande força da vila”, conta.
Do Norte vinham as mercadorias agrícolas, o que também fazia
dela um importante entreposto comercial. Do Sul, os barcos
traziam produtos químicos, combustível, produtos alimentares e
também o sal.

32 // VIAGEM
Quando o rio era a auto-estrada Com um pé no rio e a cabeça na lua

As praias dos dois rios também serviram de estaleiros navais Foi o que fizemos. Era sábado de manhã e por isso fomos os enorme língua de areia e fazer a maior pista de pesca
e ali se construíam uma grande diversidade de embarcações, únicos a embarcar. À semana este meio de transporte é utilizado desportiva de rio do País, dando assim continuidade ao
consoante o fim a que se destinavam. Batelões, lanchas de pelos funcionários da celulose e pela população da aldeia de Santa plano de ordenamento e de valorização das margens dos
passagem, catrafuso, desalijo, bateira, varino, barco d’água Margarida, nas suas deslocações à vila. Leva 20 pessoas e foi feito rios. Um plano que ficará completo com a construção de um
acima, lancha praieira. Barcos que o cónego José Maria pelo próprio Sérgio Silva que, para além de ser barqueiro, também açude e espelho de água, que permita ordenar as margens,
Oliveira já não vê da sua casa, nem da praça de onde “se é construtor de barcos. Aponta para a margem, onde estão desta vez do Zêzere, e tornar a zona mais atractiva para
avistavam só os mastros tal era a fundura do Tejo, na altura. atracados quase uma dezena e diz: “aqueles foram quase todos banhistas.
Hoje o rio está assoreado e da praça vimos o casco dos feitos por mim”. Aprendeu com o pai e com outros pescadores, Mas este passeio por Constância não ficaria completo se não
barcos”. que também faziam barcos até que começaram a pedir-lhe para nos afastássemos da vila e dos seus rios, para seguir as setas
Mas a memória desta vila, fervilhante de vida e de comércio os consertarem. E um dia atreveu-se a fazer o primeiro. Os seus que indicam “Centro de Ciência Viva-Parque Temático de
à beira Tejo, não se esgota nas histórias do cónego José Maria. clientes são pescadores da vila, de Tancos ou da Barquinha, que Astronomia”. Só até Agosto deste ano já tinha acolhido 13 mil
O Museu dos Rios e das Artes Marinhas é depositário desses têm de esperar algumas semanas, porque só depois do trabalho visitantes. Feita a visita percebe-se porquê.
tempos, mesmo que os barcos já só sejam de miniatura. de barqueiro é que pode refugiar-se na sua pequena oficina para Para além do planetário e do observatório astronómico, que
Acolhedor e pedagógico, vale bem uma visita. E uma se dedicar a uma arte, também ela em vias de extinção. às quintas-feiras está aberto até às 23horas, os módulos
ampliação. Enquanto o passeio se prolonga, rio abaixo, rio acima, Sérgio exteriores, de dimensões atractivas, convidam miúdos e
A construção da linha da Beira Baixa, refere o cónego José lamenta que o rio não esteja desassoreado. “Isso era bom para o graúdos a uma aventura à descoberta do universo.
Maria, “levou a que o transporte de mercadorias passasse turismo fluvial, mas assim não é possível. Aqui os visitantes andam à volta da terra, passeiam pela
a fazer-se pela ferrovia e pôs fim ao transporte fluvial”.
Constância passa a viver dos comboios e das fábricas,
sobretudo da celulose do Caima, cuja instalação “foi vista
como uma divindade”.
Mas a divindade de antes tem hoje custos elevados, para uma
terra baptizada também de “vila museu”. O monstro que se
ergue na margem Sul do Tejo continua a dar emprego e a ser
uma das empresas mais importantes do Concelho. Mas, como
refere António Mendes, presidente da Câmara de Constância
“não estraga só a fotografia”.
A dimensão da fábrica, o fumo que sai das suas chaminés,
a água de cor amarelada que lança para o rio atestam um
impacto ambiental difícil de contornar, e que António Mendes
gostaria de minimizar.
O autarca fala-nos da existência de uma celulose, em pleno
centro da cidade finlandesa sede da Nokia, “e de que não se dá
conta”. O Caima, diz, “também devia ser assim”. Por isso está
nos seus planos dar um salto até lá para conhecer o projecto e
tentar que a empresa deixe de estragar a fotografia e o resto.
A verdade é que, mesmo com a celulose a ver-se do lado de
Tejo, Constância preserva quase intacto o seu encanto. Ou
“aconchego”. Aqui tudo parece estar no seu sítio, desde a
harmonia dos edifícios, às flores que brotam em quase todas Este barco leva 20 pessoas mas só posso transportar 10, senão esfera celeste, sentam-se num carrossel que nos põe a girar
as janelas, aos inúmeros terraços e recantos onde apetece ele bate no fundo”. O passeio continua, agora Tejo acima. com a terra e com a lua, medem o diâmetro do sol, entre
ficar: a ler um livro, a namorar, a ouvir o burburinho suave das Vista da água, a enorme língua de areia com cerca de dois outras actividades que, sob a orientação de uma equipa
vozes e dos pássaros, ou simplesmente a contemplar os rios. quilómetros, depositada ao longo dos anos pelas empresas de multidisciplinar, dão um cunho particular à visita, onde o
Aqui não se pode vir com pressa. É preciso percorrer as ruelas, extracção de inertes, é bem mais aterradora, do que a visão lúdico se harmoniza com a descoberta e a aprendizagem.
entre casas bem caiadas, apreciar os arcos, as fachadas das que tínhamos tido por terra, numa visita guiada, dias antes, Máximo Ferreira, um homem da física e da electrónica que
casas solarengas ou mais humildes, deter-se diante de uma pelo presidente da Câmara de Constância. António Marques há muitos anos se começou a interessar pela divulgação
janela. E ir descendo. Até aos rios, claro. admitia então que esta era, a par da poluição dos rios a da astronomia, é o pai deste centro. Um pai visivelmente
Cá em baixo, um passeio marginal de quase dois quilómetros, sua “maior dor de cabeça”. E o seu tom sereno de imediato orgulhoso com a sua obra, que nasceu de uma conversa com
cujo projecto obteve, em 1995, o primeiro Prémio Nacional endurece para apontar o dedo à administração central: o presidente da Câmara da sua terra natal.
do Ambiente, sugere, para começar, um passeio. Com a água “Autorizam a extracção sem ter em consideração a opinião de Depois de vários anos a trabalhar no Planetário da Gulbenkian
quase aos nossos pés podemos depois fazer um piquenique quem aqui está a vive”. e de ajudar a implementar alguns pólos de astronomia em
no parque de merendas, beber um copo ou almoçar numa das A extracção de areias no seu concelho ”inutilizou cerca de vários pontos do País, veio para Constância dar o corpo e alma
esplanadas, estender a toalha na areia e dar um mergulho (se 50 por cento do leito do Tejo e há empresas que estão a a este projecto, que abriu as portas há seis anos e onde para
o tempo estiver de feição), acampar, alugar um kayak, pescar. trabalhar à margem da lei”, denuncia. além das visitas são também realizadas acções de formação,
Ou ainda esperar que chegue a hora de Sérgio Silva fazer uma Agora pôr fim a mais este atentado ambiental vai custar destinadas a professores e outros amantes da astronomia.
das suas muitas travessias diárias para transportar os munícipes uns milhões de euros. António Marques já sabe o que quer Com os olhos nos rios, nas flores, ou nas estrelas vá.
que utilizam o barco da Câmara para atravessarem o Tejo. fazer, logo que consiga financiamento: destruir aquela Porque Constância é mesmo uma “Vila poema”. [x]

VIAGEM // 33
A poesia está na rua

Alexandre O’Neil foi um dos poetas deste nosso tempo que Trata-se de Luís de Camões e, dizem os estudiosos, que terá Guiados por Ana Maria Romãozinho, uma das técnicas
se deixou seduzir pela harmonia de Constância e ali montou sido obrigado a vir para o Ribatejo alegadamente para o responsáveis pelas visitas a este verdadeiro jardim poema,
casa, onde passava temporadas. Após a sua morte, a família afastarem de uma dama cujo amor não era bem visto na cheiramos as folhas da árvore da canela, da segurelha, ficámos
decidiu oferecer o espólio do poeta à Biblioteca Municipal que corte. Ainda hoje não se sabe com certeza se Camões terá a saber como é a árvore da pimenta, a planta da cânfora, vimos
tem hoje o seu nome. vivido em Constância. Mas o facto de nos seus poemas ter tamareiras. Ao todo estão ali representadas as 52 espécies
A presença da vila na poesia de O’Neil ficaria registada feito várias referências aos dois rios, a descrição que faz da botânicas a que o poeta faz referência, quer em Os Lusíadas,
num pequeno poema a que deu o título de “O Barqueiro paisagem e os amigos íntimos que tinha na vila, levam a crer quer na sua lírica, e alguns dos versos onde as plantas são
de Constância”: “…e com a fome ninguém se meta!/disse que sim. referidas encontram-se afixados em placas no meio das plantas.
o barqueiro aproando ao peixe/que, sobre brasas, virado, Obra da fundadora da Associação Casa memória de Camões, Ana Maria Romãozinho segreda-nos que a melhor altura do
revirado/da margem o tocava para almoçar”. Manuela Azevedo, o Jardim-Horto tem a assinatura do arquitecto ano para apreciar o jardim em todo o seu esplendor é no
Mas um outro poeta tem o seu nome inscrito na vila. O seu Gonçalo Ribeiro Teles e percorrê-lo é penetrar numa atmosfera mês de Março. Nós fomos já no final do Verão e podemos
nome, a sua estátua e até um Jardim-Horto, um dos recantos mais quase mágica, onde a beleza se associa a uma reconfortante assegurar que a magia do lugar, para lá do ciclo de vida das
inspiradores da vila, que merece igualmente visita demorada. sensação de tranquilidade, que convida a estar, a ficar. plantas, merece uma visita em qualquer altura do ano. [x]

Onde Ficar
O PALÁCIO QUINTA DE SANTA BÁRBARA RESIDENCIAL JOÃO CHAGAS VIVENDA S. JOSÉ
Turismo de Habitação Turismo de Habitação t. 249 739 403 Aluguer de Quartos
t. 249 739 224 t. 249 739 214 Rua João Chagas, 1 t. 249 739 575
Rua Francisco da Costa Falcão, 1 Constância 2250 Constância Rua Cândido dos Reis, 45
2250 Constância 2250 Constância 2250 Constância

Onde Comer

ADEGA TÍPICA REFEITÓRIO QUINHENTISTA CASA DE PASTO AIDA RESTAURANTE DA ODETE


RESTAURANTE D. JOSÉ PINHÃO Encerra à 2º feira t. 249 736 459 t. 969 669 910
Encerra á 4ª feira t. 249 739 214 Estrada Nacional 118 Praça Alexandre Herculano
t. 249 739 960 Quinta de Santa Bárbara 2250 Constância 2250 Constância
Rua Luís de Camões, 5 - 5 A 2250 Constância
2250 Constância

REMÉDIO D´ALMA RESTAURANTE TRINCA - FORTES O ZANGARILHO RESTAURANTE O FALCOEIRO


Encerra à 2ª feira Encerra à 2ª feira Restaurante - Cervejaria t. 249 739 421
t. 249739405 t. 249 739 221 t. 249 736 528 Constância
Av. das Forças Armadas Av. das Forças Armadas Aldeia 2250 Constância
2250 Constância 2250 Constância 2250 Constância
// Restaurante Marisqueira

Bela Vista
Uma bela vista para o sonho,
para o paladar e para o calor humano
Texto | Jacinto Galeão de Tormes
Fotografia | contiudo.com | David Duarte e Nuno Lages

Marisqueiras são feiras húmidas de sonho. do senhor Alfredo são famosos. Mas acampámos nas petingas
E até inventaram uma nova categoria humana: os chupadores. porque as petingas só existem em Portugal, é a nossa
Com sons infernais. especialidade filosófica, o nosso humanismo.
Aqui a vida nunca pára embora o efémero seja aqui o reino Chegámos por fim ao centro do nosso apetite. A escolha
proposto. Um efémero que nos satisfaz. era imensa, embaraçosa. Se, por um lado, tínhamos os
Animais de carapaça baça, outros com tentáculos esquisitos lavagantes, as sapateiras, as santolas, as navalheiras, os
e fantasmagóricos, outros com olhos galáxicos, esperam e lagostins, os camarões da costa, as canilhas, as amêijoas, os
desprezam os humanos em águas imortais, sossegadas. mexilhões, que nos tentavam extraordinariamente, o peixe
Esta vida aquática, misteriosa, letárgica, sempre fascinou. fresco não era menos apelativo. Tamboril, salmão, robalo,
A escritora M.F.K. Fisher fez o melhor livro sobre ostras onde dourada, linguado, cherne, tudo vindo expressamente de
ela devolve e desenvolve segredos incalculáveis destas Peniche e de Aveiro. Optámos por um arroz de tamboril que
conciliadoras do amor. se revelou ser tão bem confeccionado como nos restaurantes
Uma vez em Lisboa na Cervejaria Portugal também observei os algarvios mais cotados. Estava simplesmente divino. Mas
perigos das marisqueiras. Era uma época festiva e uma família antes comemos umas lulas com camarão, tão tenrinhas,
tinha reunido algumas economias e levara até a avozinha para ligeiramente alouradas, que nos enviaram logo para o paraíso.
compartilhar algumas sapateiras. Pois acreditem ou não, entre Provámos entretanto duas açordas (de camarão, de marisco)
dois potentes golpes de martelinho, a avozinha foi atingida. que, magníficas, nos consolidaram todas as vértebras.
Uma casquinha voadora entrou-lhe no olho ainda vivo. Pânico Neste restaurante stevensoniano podemos também ter uma
nas hostes com remelas na boca. Felizmente que o hospital dupla personalidade. Em vez de termos adoptado o mar,
de S. José estava ao lado. Quando voltou, ao lado de uma podíamos ter mergulhado num restaurante normal e comido
montanha de cascas, comeu um prego. as especialidades regionais: o cabrito, o ensopado de borrego,
Marisqueiras são, felizmente, uma especialidade portuguesa. as belíssimas carnes de vitela. Estes pratos do dia, como
Poucas vi através do vasto mundo e elas vão de encontro ao explicámos, podem-nos tornar também monstruosamente
nosso “fare niente”. Nelas no Verão abre-se a chalaça, ri-se e satisfeitos. É só pedir à dona Isabel.
chora-se de riso, passa o tempo despressurizado com a sua asa Avançámos para as sobremesas. Escolhemos o soberbo arroz
de ave migratória. As marisqueiras desenvolvem o calor humano doce (é o meu éden!) mas havia papas de carolo, variedades
e quando uma abre ou se destaca, temos automaticamente semifrias, leite de creme. Continuámos com uma fatia de
que lhe tirar o chapéu pegando nos nossos dedos glutões, no queijo da serra, ímpar com um gosto de alturas. Aqui parámos
martelinho ou nos pequenos garfinhos que nos conduzem para respirar. Tínhamos atingido os pináculos.
indiscutivelmente ao cerebelo do sonho invertebrado. Olhámos a mesa. Tínhamos bebido bem, e à nossa maneira:
No Fundão temos agora o do senhor Alfredo. Este homem escolhendo o melhor vinho. Numa carta de vinhos sumptuosa
calmo, afável e que conhece tudo das vidas aquáticas, tem (onde brilha o Douro com a Quinta da Leda, o Alentejo com
um passado atrás dele. Quantas vezes não nos regalámos no o Mouchão e a Cartuxa e o Dão com a Casa de Santar) os
seu pequeno mas formidável restaurante da rotunda Eugénio brancos estão também presentes em fileiras dignas de sonho.
de Andrade, cantinho único de cozinha familiar requintada. Despedimo-nos do senhor Alfredo e perdemo-nos satisfeitos na
Agora o senhor Alfredo trespassou a sua simpatia para a noite. Com o frio a lua tinha minguado lá para os altos da Gardunha.
rua do Parque Desportivo. Com a sua mulher Isabel, que faz Caro leitor desportivo, se no próximo verão quiser perder
milagres numa cozinha espaçosa e brilhante, propõem o mar muitas calorias, vá fazer squash no Parque Desportivo e depois
à beira da Gardunha. Na verdade, o belo panorama sobre a instale-se na esplanada do senhor Alfredo diante de uma
serra rejuvenesce-nos a boca e as árvores acolhedoras deram- imperial com uns mariscos e regale-se com a brisa serrana.
nos uma personalidade num pequeno caminho de intimidade Mas você, caro leitor gastrónomo, não perca tempo. Vá desde
que conduz ao alto templo dos sabores. já ao Alfredo (Marisqueira da Bela Vista). O restaurante do
Fomos lá comer numa sexta-feira fria e o nosso coração saiu senhor Manaia é uma fonte de sabores.
de lá a bater de alegria. Faltava no Fundão um local marítimo E saiba ser efémero e feliz. E no final olhe para eternidade
acolhedor. Ei-la, a única marisqueira no Fundão com viveiro. da serra que, como um monstro marinho, nos observa
Na sala confortável, brilhantíssima, bem iluminada com tons silenciosamente com a ternura dos eleitos. [x]
modernos e quentes, instalamo-nos ao lado do aquário central
que divide ao meio o restaurante. E começámos a comer um Preços Médios
delicioso e untuoso queijo fresco (o melhor que comemos nos 15 - 20 Euros
últimos tempos) e mastigámos um bom e cheiroso pão caseiro Almoço – pratos do dia (7 - 12 Euros)
do Souto da Casa. Vieram depois umas petingas de escabeche
que nos entonteceram. Claro, podíamos ter escolhido outros Restaurante Marisqueira Bela Vista
petiscos como carapaus em molho de escabeche, salada de Rua do Parque Desportivo
polvo, mexilhão, búzios, etc, salada de grão com bacalhau ou 6230 - 411 Fundão
de atum com feijão-frade. Ou enchidos. Porque os enchidos Tlf.: 275 771 920

GASTRONOMIA // 35
// Alforge De Maria Anunciação Salvado Forte
Edifício Acrópole, Loja 11, Piso 0
6230 Fundão
Tlf. 275 772 824 | Tlm. 967 424 070

A tradição com muito estilo


Escolhemos alguns presentes a pensar em si. Estilos de roupas e acessórios que marcam a diferença
porque são verdadeiras obras artesanais. De olhos postos na moda, crie a imagem que melhor reflecte a
sua personalidade. Dê um toque de poesia à sua imagem e ao espaço do seu lar um toque de bem-estar.
Porque ser e parecer podem andar de mãos dadas e a elegância é a marca deste início de novo ano.

Saia bordada com poema de Vestido e casaco Vestido de lã composto


Eugénio de Andrade e motivos tecidos em tear com motivos de tecelagem
de Castelo Branco Carteira de lã com patchwork

Linha Estátuas

Santo Sentado: Figura do artesão Ribom. Artistas vários, Júlia Ramalho, entre outros

Ao lado do artesanato convivem várias obras


plásticas de artistas de renome nacional e
internacional.

Poderá encontrar no Alforge peças únicas de:


- Armanda Passos
- Manuela Pinheiro
- Noronha da Costa
- Mário Alberto
- Cargaleiro
- José Pádua
- José Freire
- Dália Almeida,
entre muitos outros

36 // VÍCIOS
Linha dos namorados

Chávenas, lenços bordados e objectos


vários com o motivo dos versos dos
namorados

Linha de cerâmica

(conjunto de café, pratos, velas, jarras,


motivos decorativos) de Olga Marques,
pintada à mão com versos de Eugénio de
Andrade

Linha Bordados/Cerâmica
de Eugénio de Andrade
e Fernando Pessoa

Bordados artesanais de Olga Burmarante,


com tecelagem de Vila Verde. Linhos
bordados de Bogas. Sacos bordados com
poemas de Albano Martins. Colchas várias
com bordados de Castelo Branco.
Prato em cerâmica pintado
de Fátima Mendes

Presépios

de Carlos Baraça, J. Pias, Eugénia Cavaca,


Olga Marques entre outros

VÍCIOS // 37
Teatro das Beiras
//
no Teatro Nacional
O reconhecimento de uma companhia do Interior
Texto | Ricardo Paulouro

É já no próximo ano (2007) que o Teatro das Beiras levará ao aquela que é, acima de tudo, uma reflexão sobre o poder e os
palco, numa co-produção com o Teatro Nacional D. Maria II, a atavismos próximos da sua natureza. Apercebemo-nos como
peça do conceituado dramaturgo Manuel Martinez Mediero, podemos quase eleger o universo doméstico do salazarismo a
“Longas Férias com Oliveira Salazar”. Em 1997, numa co-produção um paradigma nacional, ao cariz provinciano de um país.
com o Distrito de Castelo Branco / Capital do Teatro, o Teatro das Mediero tem por isso a rara capacidade de olhar para Portugal
Beiras estreou no Centro Cultural Raiano, em Idanha-a-Nova, uma derrubando qualquer fronteira e fomentando a cooperação
produção que é, antes de mais, uma estreita colaboração com o cultural entre os dois países. No final, apetece-nos sorrir, como
teatro espanhol, mais precisamente o extremenho. Mediero, um sorriso aparentemente distanciado sobre o fascismo
Com cenografia de José Manuel Castanheira e adaptação e à portuguesa, sobre a pobreza mitigada pelo céu quando “o
encenação de José Carretas, o Teatro das Beiras prepara agora caldo e a côdea” eram prescrição alimentar do salazarismo.
a reposição da peça de um dos maiores dramaturgos europeus,
permitindo, mais uma vez, que o trabalho que tem desenvolvido Teatro das Beiras, nos palcos há trinta anos
nos últimos anos ao serviço do teatro e da cultura na Beira
Interior e ao nível internacional seja, mais uma vez, reconhecido. O Teatro das Beiras foi fundado a sete de Novembro de 1974,
A obra dramática de Mediero é uma obra deveras inquietante com a denominação de Grupo de Intervenção Cultural da Covilhã
pela forma como formula questões sobre o destino do Homem (GICC), com o objectivo de produzir espectáculos teatrais com espectáculos de António Aleixo, Tankred Dorst, Ângelo Beolco,
e a Liberdade. O extremenho de Badajoz é um observador regularidade. O Teatro das Beiras estreou-se, no entanto, só Aristófanes, Fernando Dacosta, Gil Vicente, Antoine Saint-Exupéry,
atento do quotidiano, consciente dos deveres e obrigações da em 1976 com uma encenação colectiva de “A Farsa do Mestre Fernando Paulouro Neves, António Gedeão, Anton Tchekov,
cidadania. “As Longas Férias com Oliveira Salazar” fazem conviver Pathelin”. Em 1977 é cedido ao grupo um espaço sede onde entre tantos outros. Em 1996 foi retomada a organização
a aventura criadora com História com a desumanização progressiva desenvolve feiras do livro, exposições de pintura, escultura, do Festival de Teatro então denominado Festival de Teatro
da sociedade. De algum modo, acabamos por nos reconhecer serigrafia, desenho, além de diversos espectáculos de música da Covilhã. Em Janeiro de 1998 a companhia consegue o
como personagens dessas tragédias colectivas. Mediero sabe, e dança. Ao todo, o espaço permitiu a realização de mais de Diploma de Utilidade Pública. Um verdadeiro projecto de
como poucos autores, envolver os espectadores no mistério da 400 espectáculos, tornando-se o centro cultural da Covilhã. Em descentralização da Beira Interior, mais uma vez comprovado
representação e mergulhá-los na consciência da servidão humana. 1981, realizou pela primeira vez o Ciclo de Teatro de Outono, pelo Festival de Teatro organizado este ano, com mais de duas
O cenário de José Manuel Castanheira, arquitecto e cenógrafo que se prolongou durante dez anos consecutivos e por onde décadas de existência, por onde passaram, entre 12 a 25 de
cujo trabalho tem abrangido um notável leque de dramaturgias, passaram muitas companhias profissionais portuguesas. Só em Novembro, um total de 13 peças interpretadas por outras
quer ao nível nacional, quer internacional, capta na sua essência 1994 passou a Companhia profissional mas para trás ficaram tantas companhias. [x]

PUB
// Alternativos de todo o mundo, uni-vos
Fotografia | Mário Raposo

O Boom Festival tem atraído,


desde 1997, milhares de
pessoas a Portugal. Nas
margens da lagoa de Idanha-
a-Nova, na Herdade do Torrão,
fãs da música trance, de
vários pontos do mundo,
encontram-se erguendo a
bandeira da defesa ambiental.
Este ano, reuniram-se cerca
de 20 mil pessoas, de 63
países diferentes. Já lhe
chamam o «maior festival
de entretenimento visionário
mundial», onde reina a música,
mas também actividades de
meditação ou terapias orientais.
Mário Raposo, senhor de uma
lente humana e apaixonada,
esteve lá e traz-nos a
fotoreportagem deste trimestre.
// memória // filme
Blow-Up
Michelangelo Antonioni

Filmado em 1965, Blow-Up


justifica um regresso ao cinema
de Michelangelo Antonioni.
Lançado agora numa edição
cuidada em DVD, Blow-Up conta
a história de um fotógrafo de
moda, numa Londres fashion.
[B] Este filme conquistou em 1996
os prémios de Melhor Filme e
Melhor Realizador da National Society of Film Critics e tornou-se
numa obra obrigatória e exemplar da técnica de desnorteamento
e intriga paranóica. Thomas, interpretado por David Hemmings,
ao revelar as fotografias inocentes que tirou a um casal no parque
(a mulher misteriosa é Vanessa Redgrave), apercebe-se de um
assassínio em curso. Thomas faz várias ampliações e descobre
numa delas algo que se assemelha a um tiro e um corpo por detrás
[C] de um arbusto. Nessa mesma noite, regressa ao jardim e confirma

© Arquivo Foto Cidade - Covilhã


a presença do cadáver, mas as fotografias desapareceram do seu
estúdio. No jogo entre o acaso e as evidências, as fronteiras entre
o real e a ficção tornam-se cada vez mais permeáveis. O jogo da
[A] ampliação fotográfica esconde um mistério e uma história que
desperta no espectador a vontade de a designar quase como uma
não-história, mas tão estranhamente apaixonante como outras
obras de Antonioni como Profissão: Repórter. Mais uma vez, a
[A] Vista parcial da Praça do Município da Covilhã em 1942. deambulação é uma das características deste cinema e os cenários
[B] Igreja da Misericórdia, ainda antes do restauro da década de 40 do século passado. são meros espelhos da condição das personagens. Uma Londres
[C] Posto de Turismo do final dos anos sessenta, com o seu amor livre, as modas , as
paixões, as festas e a música (a banda sonora é da autoria de
Herbie Hancock, e podemos mesmo ouvir os lendários Yardbirds
em alguns momentos), onde uma estrada nunca tem fim e uma
viagem é sempre sem destino.

// curiosidade // livro
MONA LISA SHALIMAR, O PALHAÇO
Uma das maiores obras-primas da pintura de todos os tempos, de Salman Rushdie
Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, foi um dos primeiros retratos Editora Dom Quixote, 2006
da história da arte ocidental a incluir as mãos do modelo. Até
então, os retratos mostravam as mulheres apenas do busto para Los Angeles, 1993. Este romance tem início quando Max Ophuls,
cima. Mona Lisa (também conhecida como La Gioconda ou, um ex-embaixador dos Estados Unidos na Índia e líder do anti-
em francês, La Joconde é um dos quadros mais questionados, terrorismo americano é assassinado pelo seu motorista, um
valiosos, elogiados ou reproduzidos. Leonardo começou o retrato muçulmano conhecido como Shalimar, o Palhaço. O que à primeira
em 1503 e terminou-o três ou quatro anos mais tarde. A pintura vista parece ser um crime é afinal um caso passional. A França
a óleo sobre madeira de álamo encontra-se exposta agora no ocupada pelos nazis, o Paquistão, mais precisamente Caxemira e,
Museu do Louvre, em Paris, e é a maior atracção do museu. O sobretudo, os radicalismos islâmicos
sorriso contido da Mona Lisa, obra-prima da pintura universal servem de pano de fundo a esta
de todos os tempos, é um enigma. Várias hipóteses foram tão aguardada obra de Salman
levantadas para explicá-lo, desde a tristeza de mãe pela perda Rushdie. Uma história onde o
do filho pequeno até a uma dor de dentes. Muitos historiadores cruzamento das paixões, o amor, a
da arte acreditam que o modelo usado para a pintura pode ter traição ou o terrorismo exprime bem
sido a esposa de Francesco del Giocondo, um rico comerciante as controvérsias do nosso tempo.
de seda de Florença e uma figura proeminente no governo Diríamos mesmo, uma intriga de
florentino. Mas, recentemente, há mesmo quem defenda que carácter quase épico que tem lugar
a Mona Lisa seja um auto-retrato de Leonardo, porém, vestido num mundo onde as fronteiras
de mulher. Esta teoria baseia-se no estudo da análise digital das são cada vez mais permeáveis,
características faciais do rosto de Leonardo e os traços do modelo nomeadamente entre o Ocidente e
que coincidem de forma quase perfeita. o Oriente e as etnias se confundem.

PUB

Potrebbero piacerti anche