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HistÓria da Filosofia

Volume catorze
Nicola A bbagnano

obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes.


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HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME XIV

TRADUÇÃO DE: CONCEiÇÃO JARDIM EDUARDO LOCIO


NOGUEIRA NUNO VALA.DAS

CAPA DE: J.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO

TIPOGRAFIA NUNES

R. D. João I V, 590 - Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1970

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA


Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à


EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 e/v.-E. ~ Lisboa

xiii

O NEO-EMPIRISMO

§ 805. CARACTERISTICAS DO NEO-EMPIRISMO

Sob o nome de "neo-empirismo" ou de "empirismo lógico" podem ser


reagrupadas todas aquelas filosofias que entendem e praticam a
filosofia como análise da linguagem. Mas por análise da linguagem
podem compreender-se duas coisas diferentes:

1.o A análise da linguagem científica, isto é, da linguagem própria


das ciências parcelares; e neste caso a filosofia é reduzida à lógica,
à qual é ainda atribuída a tarefa de determinar as condições gerais
e formais que tornam possível uma qualquer linguagem.

2.o A análise da linguagem comum, isto é, das formas de expressão


próprias do senso comum e usadas na vida quotidiana; e neste caso a
tarefa da

filosofia será a de interpretar estas formas e de


investigar o seu significado ou os seus significados autênticos,
eliminando os equívocos a que conduz o uso impróprio de tais
significados.

À primeira posição pode dar-se o nome de "positivismo lógico"


porque, tal como o positivismo clássico, privilegia a ciência e
considera-a como única forma válida de conhecimento. À segunda
pode chamar-se "filosofia analítica", nome que é usado pelos seus
próprios defensores.

Ambas as formas do neo-empirismo consideram que a simplificação


da linguagem conduz à eliminação dos problemas tradicionais da
filosofia e, sobretudo, dos da metafísica que façam uso do
vocabulário e da sintaxe da linguagem científica ou comum que é
estranho a esse vocabulário e a essa sintaxe. Esses problemas
tornam-se assim "privados de sentido" se a linguagem em que vêm
expressos for reconduzida às suas regras. Reconhecê-los como
privados de sentido é o papel curativo ou terapêutico da filosofia,
da qual portanto se pode dizer que tem por tarefa a libertação da
própria filosofia.

A esfera da linguagem, isto é, dos significados ou dos usos


linguísticos, tem no neo-empirismo, e em certa medida, a função que
a "experiência" tinha no velho empirismo; ou seja, a de constituir o
critério ou norma da investigação filosófica. Mas o mais importante
precedente histórico do neo-empirismo é a dicotomia instaurada
por Hume entre as proposições que se referem às relações entre as
ideias (tais como as proposições matemáticas) e as
proposições que se referem a factos: as primeiras

têm em si mesmas a sua verdade, as segundas só são verdadeiras se


estiverem de acordo com a experiência (§ 468). Esta dicotomia é
geralmente admitida pelas correntes neo-empiristas, e é para elas,
tal como para Hume, a base para a eliminação da metafísica, cujas
proposições não entram nem numa
nem noutra categoria. Mas a verificação empírica supõe o recurso a
dados imediatos e, portanto, uma teoria da experiência, do mesmo
modo que a análise das proposições matemáticas supõe a lógica. O
neo-empirismo aproveita de Mach a teoria da experiencia, e de
Russell os princípios fundamentais da sua
indagação lógica. Simultâneamente, utiliza todo o rico património de
investigações metodológicas provocadas pela tendência crítica
prevalecente nas matemáticas, na física e nas outras ciências nos
últimos decénios; e participa no enriquecimento dessa tendência
com contributos de importância fundamental.

§ 806. ESCOLAS NEO-EMPIRISTAS

O neo-empirismo foi primeiro uma tendência seguida pelo chamado


"Círculo de Viena", isto é, por aquele conjunto de estudiosos de
várias proveniências que se juntou, a partir de 1923, à volta de
Moritz Schlick. O Tractatus, de Wittgenstein. (o qual, no entanto,
só ocasionalmente se encontrava com alguns membros do Círculo),
publicado pela primeira vez nos "Annalen der Naturphilosophie" de
1921, e a obra de Carnap, que fora chamado para

a Universidade de Viena em 1926, forneceram as principais bases


das discussões do Círculo, nas quais tomaram parte, entre outros,
H. Haim, F. Waisman, H. FeigI, Otto Neurath, Philip Frank, K.
Gõdel, G. Bergmann, K. Popper e H. Kelsen.

Ao Círculo de Viena ligou-se o grupo de Berlim, que se constituiu em


1928 com o nome de "Gesellschaft fü r empírische Philosophie" à
volta de Hans Reichenbach, e que inclui entre outros K. Lewin, W.
KõhIer e C. G. Hempel. A colaboração entre os dois grupos
estabeleceu-se sobretudo na revista "Erkenntnis" que se publicou
de 1930 a 1938 e que foi dirigida por Carnap e Reichenbach,

Na Polónia, surgiu um movimento análogo por influência de Casimir


Twardowsky, que fora aluno de Bolzano na Universidade de Viena e
que renovou na Polónia a tradição dos estudos lógicos, mais tarde
retomada por T. Kotarbinski, Jan. Lukasiewiez, Alfred Tarsky e
muitos outros.

Depois da vitória do nazismo na Alemanha e na Áustria, muitos


representantes do neo-empirismo retiraram-se para os Estados
Unidos da América, tendo aí encontrado um ambiente receptivo
sobretudo entre os pensadores da corrente pragmatista que se
inspiravam em Peirce e Dewey. Foi assim possível retomar a ideia,
expressa em 1929 numa espécie de manifesto, do Círculo, de uma
"ciência unificada" que tivesse por objecto toda a realidade
acessível ao homem e que se servisse de um único método de análise
lógica. Nascia assim a Enciclopédia Internacional da Ciência
Unificada, que se começou a publicar em Chicago em 1938 sob a
direcção
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de Neurath, Carnap e Morris e que publicou monografias assinadas


por cientistas e filósofos de muitos países (Bohr, Dewey, Rougier,
Reichenbach, Russell, Tarski, etc.). Apesar do valor de muitos dos
contributos publicados na Enciclopédia, não nos devemos esquecer
de que ela mostra uma substancial diferença de opiniões sobre o
próprio modo de entender a unidade da ciência. Com efeito, esta
unidade é ainda compreendida por Neurath no sentido clássico,
como combinação dos resultados das várias ciências e tentativa de
os reunir num sistema axiomático, único (Internat. Enc. of Un. Sc.,
1, 1, 1938, p. 20). É entendida por Dewey como uma exigência de
estender o papel e a função da ciência a todo o palco da vida (Ib., p.
33); para Russell, apresenta-se como "unidade de método"; para
Carnap, como
unidade formal que respeita às "relações, lógicas entre os termos e
as leis dos vários ramos da ciência" (Ib., p. 49); para Morris, como
"uma ciência da ciência", isto é, implicando que tal unidade se
verificasse no âmbito da semiótica, de que ele é defensor (Ib., p.
70). Por outros termos, o próprio conceito da ciência unificada não
se apresenta suficientemente unificado nos seus diversos
defensores, que atribuem a essa expressão significados diversos e
demonstram assim, de facto, o seu carácter utópico. Na realidade,
o conceito de unidade da ciência não é um conceito científico mas
sim filosófico que, portanto, acolhe e respeita a diversidade das
filosofias.

Mais do que unidade, pode-se falar legitimamente de "conexões" ou


relações recíprocas entre as ciências; e tais conexões ou relações
constituem
11

problemas filosóficos importantes aos quais se dedicam útilmente


os neo-empiristas (e não apenas eles).

Em 1939 Wittgenstein foi chamado a Cambridge, na Inglaterra,


para suceder na cátedra a G. E. Moore. Nessa época, começava a
elaborar a segunda forma da sua filosofia, que se inspira no clima
filosófico característico da Inglaterra nestes últimos decénios: o
da chamada "filosofia analítica", que assume como tarefa
fundamental a análise da linguagem comum.

Hoje, no entanto, o neo-empirismo já não é apanágio de uma escola


localizada. Muitas das suas exigências foram largamente aceites, e
os resultados a que se chegou, sobretudo no campo da metodologia
das ciências e da crítica da lógica, podem ser examinados e
discutidos independentemente das posições polémicas em que se
inspiravam os seus primeiros defensores.

§ 807. NEO-EMPIRISMO: SCHliCK

O homem em torno do qual se concentra o Círculo de Viena, Moritz


Selilick (1882-1936), foi assassinado na escadaria da Universidade
de Viena e
o seu assassino foi exaltado pelo nazismo como sendo
o homem que impedira o desenvolvimento de uma filosofia "viciosa".
Os fragmentos publicados postumamente com o título Natureza e
cultura (1952) dão-nos a conhecer a oposição de Sclilick à estrutura
moral da sociedade e do estado nazis. A vida moral era considerada
por Sclilick como a continuação da vida natural e, logo, como
directamente
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dirigida ao prazer e consistindo essencialmente na escolha do


prazer. A antítese polémica desta posição era constituída, segundo
Schlick, pela filosofia dos valores e pela sua tentativa de tornar
absolutos os próprios valores.

Schlick começava por realizar uma interpretação crítico-realista da


ciência (Teoria geral do conhecimento, 1918); mas aceitou
imediatamente o ponto de vista de Wittgenstein e Carnap,
reproduzindo-o e desenvolvendo-o em numerosos artigos publicados
no "Erkenritnis" e noutras revistas, artigos que depois da sua morte
foram recolhidos em livro. O seu ponto de partida é o de
Wittgenstein: a filosofia não é uma ciência mas sim uma actividade;
e é uma actividade intrínseca ao próprio exercício da investigação
científica. Esta, com efeito, é condicionada pela rigorosa
comprovação dos termos que emprega; e esta comprovação é
precisamente o objectivo da filosofia. Mas a filosofia não pode ser
definida como "ciência do significado" dado que na comprovação dos
significados não chega a proposições mas sim a actividades ou a
experiências imediatas. "A descoberta do significado de uma
proposição deve, em

última análise, terminar num acto, num procedimento imediato, como


por exemplo na indicação de uma cor; não pode ser dada numa
proposição. A filosofia como procura do significado, não pode
consistir em proposições, não pode ser um ciência. Essa procura não
é mais do que uma espécie de actividade mental" (Gesammelte
Aufsãtze, 1938, p.
130). A filosofia conserva assim, aos olhos de Schlick, a sua
dignidade -de "rainha das ciências"-,

13

mas a rainha das ciências não pode ser uma ciência, mesmo
atendendo à sua inclusão no campo especulativo de todas as
actividades científicas. Deste ponto de vista, não existem outros
problemas cognitivos além dos científicos. Quanto aos chamados
problemas filosóficos, ou são resolúveis pelos métodos das ciências
parcelares ou são problemas fictícios que devem ser considerados
carentes de sentido. Por exemplo, o problema de o mundo ser finito
ou

infinito, que Katit julgara impossível de resolver, foi resolvido, no


sentido da finitude do mundo, pela física moderna, mais
precisamente pela teoria da relatividade generalizada e por
observações astronómicas. Por outro lado, existem problemas que
não são susceptíveis de uma solução que possa ser verificada
empIricamente: tal é, por exemplo, o problema do "mundo externo",
entendido como uma realidade transcendente que se encontra para
além da natureza dada empiricamente. A existência ou não
existência deste inundo externo nada altera em relação à
experiência efectiva: não pode assim ser comprovada
experimentalmente e, como tal, carece de sentido. Aqui deparamos,
segundo Sclilick, com o critério que permite distinguir os problemas
verdadeiros dos falsos. "Uma questão é em princípio resolúvel se

pudermos imaginar as experiências que deveríamos fazer para dar-


lhe uma resposta. A resposta a uma

pergunta é sempre uma proposição. Mas para entender uma


proposição devemos poder indicar exactamente quais as
circunstâncias particulares que a

tornariam verdadeira ou falsa. 'Circunstâncias' significa factos de


experiência; sendo assim, a experiên-
14

cia decide sobre a verdade ou falsidade das proposições, isto é,


verifica as proposições; será resolúvel todo o problema que puder
ser reduzido à experiência possível" (Ib., págs. 141-142). A
diferença entre o velho e o novo empirismo consiste no facto de o
primeiro ser uma análise das faculdades humanas e o segundo uma
análise das expressões em geral. Todas as proposições, linguagens,
sistemas de símbolos, e mesmo filosofias, devem exprimir qualquer
coisa. Mas para que assim seja é necessário que exista alguma coisa
que possa ser expressa: esse é o material do conhecimento, e
afirmar que deve ser dado pela experiência é uma forma de dizer
que as coisas devem existir antes de as conhecermos. Schlick
mostra-nos o pressuposto fundamental da sua concepção,
pressuposto que é também o de toda a moderna metodologia da
ciência: conhecer não significa identificar-se com o objecto
conhecido. "A** ffituição, a identificação do espírito com um

objecto, não é o conhecimento do objecto e não ajuda a alcançá-lo,


pois não realiza a tarefa que define o conhecimento. Esta tarefa
consiste em encontrar o nosso caminho por entre os objectos, em

prever o seu comportamento, e isto faz-se descobrindo a sua


ordem, assinalando a cada objecto o seu lugar na estrutura do
mundo. A identificação com uma coisa não nos ajuda a encontrar
esta ordem, antes nos impede de o fazer. A intuição é desfrute, e
este é vida, não conhecimento. E se disserem que isto é mais
importante do que o conhecimento, eu não os contradirei; mas esta
é mais uma razão para não o confundir com o conheci-
15

mento (que tem uma importância própria)" (Ib., p. 196). Schlick vê


em Sócrates o pai da filosofia assim entendida. "Foi um
investigador do significado das proposições, particularmente
daquelas que servem aos homens para avaliar mutuamente o seu

comportamento moral. Reconheceu que estas proposições, as mais


importantes para dirigir a nossa

conduta, são também as mais incertas e difíceis dado que não se


atribui às proposições morais nenhum significado claro e unívoco. E
o mesmo sucede ainda nos nossos dias, salvo no que se refere ao
significado das proposições que são continuamente confirmadas
ou refutadas pelas nossas experiências quotidianas, tais como as
que tratam dos utensílios, da nutrição, das necessidades e das
comodidades da existência humana. Pelo contrário, reina hoje nas
coisas de ordem moral a mesma confusão que nos tempos de
Sócrates" (Ib., p. 396).

§ 808. NEO-EMPIRISMO: NEURATH

A ala extrema das primeiras posições empiristas é representada


pelo sociólogo e economista vienense Otto Neurath (1882-1945),
que foi um dos filósofos mais importantes do Círculo de Viena e o
mais resoluto defensor da unidade de todas as ciências na
linguagem (Sociologia empírica, 1931; Unidade da ciência e da
psicologia, 1933; Fundamentos das ciências sociais, 1944, na
EncicUintern. da ciência unificada). O ponto de vista de Neurath é o
de um nominalismo radical que reduz a ciência à linguagem,

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sem referência a nada externo. "A linguagem, afirma (in "Scientia",


1931, p. 299), é essencial para a

ciência: é apenas no seio da linguagem que ocorrem todas as


transformações da ciência, e não num confronto da linguagem com
um 'mundo', com um conjunto de 'coisas', cuja diversidade seria
reproduzida pela linguagem. Fazer uma tal tentativa seria entrar no
campo da metafísica. Apenas a linguagem científica pode falar da
própria linguagem, isto é, uma

parte dela pode falar da outra parte; mas não se

pode passar para além da linguagem". Esta intranscendibilidade da


linguagem, é a tese fundamental de Neurath, que se encontra neste
ponto em polémica com os outros representantes do Círculo de
Viena, especialmente com Carnap e Sclilick ("Erkenntnis",
111, 1932, págs. 204 e segs.; IV, 1933, págs. 346 e

segs.). O critério de verdade das proposições linguísticas não


consiste no seu confronto com dados ou experiências imediatas mas
sim no seu confronto com outras proposições linguísticas, dentro do
sistema universal da linguagem científica. As expressões só podem
ser confrontadas com outras expressões; são consideradas
verdadeiras quando cabem no sistema linguístico geral e falsas
quando não encontram lugar nele, mas não é possível falar de
"linguagem" e emitir juízos sobre ela colocando-nos fora da própria
linguagem, no ponto de vista da "realidade". Esta é, para Neurath,
"a totalidade das proposições", isto é, a linguagem, já que não
existe isomorfismo, ou seja, correspondência entre linguagem e
realidade, mas sim uma identidade; e como a realidade é a
linguagem, também a linguagem é a realidade, isto

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é, um facto físico ao mesmo título de qualquer outro. É esta a tese


do fisicalismo, na sua forma extrema.

Deste ponto de vista, Neurath rejeita a existência de "protocolos


originários" relativamente a um sujeito singular, rejeitando deste
modo o solipsismo de Carnap. Uma proposição protocolar, enquanto
proposição linguística, é em si mesma universal e inter-subjectiva
mesmo que inclua nomes próprios e

circunstâncias bem determinadas. É evidente que este ponto de


vista deve excluir, como privado de sentido ou como puro lirismo",
qualquer problema filosófico que não possa ser formulado na
linguagem física, e tende mesmo a reduzir a própria linguagem ao
facto físico do som. Neurath formulou nestes termos as premissas
de uma sociologia fisicalista, uma parte da ciência unificada que
estudaria o comportamento social. Esta sociologia devia limitar-se à
observação das correlações de factos existentes entre os
fenómenos sociais, tentando prever o

futuro. A sua última formulação deste conceito (na Enciclopédia da


ciência unificada), no entanto, refere-se largamente ao carácter
incerto e problemático de toda a previsão sociológica.

§ 809. WITTGENSTEIN: LINGUAGEM E FACTOS

A figura dominante do neo-empirismo é a de Ludwig Wittgenstein,


nascido em Viena em 26 de Abril de 1889 e falecido em Cambridge
a 29 de Abril de 1951. Antes da primeira guerra mundial
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foi para Cambridge estudar com Russell durante alguns anos. Depois
da guerra foi professor em escolas elementares austríacas e esteve
em contacto com alguns membros do Círculo de Viena. Em 1929
voltou a Cambridge onde, em 1939, sucedeu na cátedra a Moore.
Durante a segunda guerra mundial foi por algum tempo empregado
num hospital de Londres. Demitiu-se da cátedra em 1947.

Em 1921 publicava nos "Annalen der Naturphilosophie" o Tratado


lógico-filosófico, que no ano

seguinte (1922) foi publicado em Londres, traduzido e prefaciado


por Russell. Durante todo o resto da sua vida só publicou um artigo
(Observações sobre a forma lógica, nos Actos da "Aristotelian
Society",
1929). Mas deixou inéditos numerosos manuscritos, alguns dos quais
correram privadamente a Inglaterra com o nome de Cadernos azuis
(Blue Book, 1933-34) e de Cadernos castanhos (Brown Book, 1934-
35). Foi deste material inédito que se extraíram mais tarde as
Investigações filosóficas., publicadas em 1953, as Notas sobre os
fundamentos da matemática, em

1956, e os Cadernos azuis e castanhos, em 1958.

O Tratado e os outros escritos, especialmente os publicados nas


Investigações filosóficas, constituem as principais fontes de
inspiração das duas correntes fundamentais do neo-empirismo: o
Tratado foi a base do neo-positivismo, e os outros escritos da
filosofia analítica. A principal fonte de inspiração da primeira fase
do pensamento de, Wittgenstein foi a
obra de Russell.

A filosofia de Wittgenstein é substancialmente, nas suas duas


faces, uma teoria da linguagem. Com

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efeito, os termos de que se serve são dois: o mundo, como


totalidade de factos, e a linguagem como totalidade de proposições
que significam tais factos. As proposições, por sua vez, enquanto
palavras, signos, sons, etc., são factos; mas, diferentemente dos
outros factos, que ocorrem mas que são mudos, eles têm um
significado que consiste precisamente em factos. Estes
pressupostos constituem os limites genéricos de todas as
investigações de Wittgenstein. No Tratado lógico-filosófico, a
relação entre os factos do mundo e os da linguagem é expressa pela
tese segundo a qual a linguagem é a refiguração lógica do mundo.
Não existe, de acordo com este autor, uma esfera do "pensamento"
ou do "conhecimento" que seja mediadora entre o mundo e a
linguagem. Afirmações como as seguintes: "A refiguração lógica dos
factos é o pensamento" (Tract., 3); "A totalidade dos pensamentos
verdadeiros é uma refiguração do mundo" (3.01); "0 pensamento é a
proposição significante" (4), equivalem à identificação do
pensamento com a linguagem e à extensão ao pensamento da mesma
limitação que vale para a linguagem: não é pensável nem exprimível
aquilo que não for um

facto do mundo. É este o pressuposto empirista fundamental da


filosofia de Wittgenstein.

Como se disse, e na opinião de Wittgenstein, o mundo é "a


totalidade dos factos"; mais precisa' mente, a totalidade dos
factos atómicos (Sachverhalte = estados das coisas), isto é, dos
factos que ocorrem independentemente uns dos outros (2.04-
2.062). Todo o facto complexo é composto por factos atómicos. Por
sua vez, um facto atómico é

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composto por objectos simples, isto é, indecomponíveis, que


constituem "a substância do mundo" (2.021). Chama-se forma dos
objectos ao conjunto dos modos determinados em que eles se
podem combinar nos factos atómicos. É por isso que a forma dos
objectos é também a estrutura do facto atómico, sendo o espaço, o
tempo e a cor considerados como formas dos objectos (2.0251-
2.034).

Os objectos assim entendidos são aquilo a que Mach chamava


"elementos" e que identificava com as sensações (§ 785). Segundo
Mach, estes elementos entram na composição das coisas e dos
processos psíquicos que permitem o conhecimento das coisas.
Segundo Wittgenstein, os objectos entram na composição dos
factos atómicos que são os elementos constitutivos do mundo e, sob
a forma de nomes, na composição das proposições atómicas que são

os elementos constitutivos da linguagem. Com efeito, a proposição


é, segundo este autor, a refiguração (Bild) de um facto; mas não no
sentido de construção de uma imagem ou cópia e sim no de uma
refiguração formal ou lógica do facto, isto é, da representação de
uma configuração possível dos objectos que constituem o facto.
Toda a refiguração deve ter qualquer coisa em comum com a
realidade refigurada. A proposição tem em comum com o facto
atómico a forma dos objectos, isto é, uma determinada
possibilidade de combinação dos objectos entre si. Isto estabelece
a conexão necessária entre as proposições e os factos: conexão que
por um lado torna os factos refiguráveis, isto é, exprimíveis na
linguagem, e que por outro lado toma válida, ou

21

seja, dotada de sentido, a própria linguagem, garantindo-lhe a sua


concordância com o mundo. Deste ponto de vista, uma proposição
tem sentido se exprime a possibilidade de um facto: isto é, se os
seus constituintes (signos ou palavras) se combinam numa forma que
seja uma forma possível de combinação dos objectos que
constituem o facto. Wittgenstein afirma que o sentido de uma
proposição consiste numa "situação construída através da
experiência" (4.031), pretendendo dizer com isto que uma
proposição que seja dotada de sentido refigura um facto possível, e
possível na medida em que é possível a combinação de objectos que
o constituem. O sentido da proposição é diferenciada da sua
verdade, que existe quando a proposição refigura não um facto
possível mas sim um facto real. A forma afirmativa e a forma
negativa da mesma proposição (por ex., " Esta rosa é vermelha",
"esta rosa não é vermelha") têm sentido por serem igualmente
possíveis; mas só uma delas é verdadeira (4.05-4.061).

Deste ponto de vista, é fácil justificar a validade das ciências


empíricas da natureza. Com efeito, "o

mundo é completamente descrito por todas as proposições


elementares acrescidas da indicação de quais são verdadeiras ou
falsas" (4.26); e "a totalidade das proposições verdadeiras c
constitui a ciência natural total ou a totalidade das ciências
naturais" (4.11). Mas as ciências são constituídas, para além das
proposições elementares, por leis, hipóteses e teorias; acerca do
valor destes instrumentos, Wittgenstein assume uma atitude que
reproduz a
22

de Hume. De uma proposição elementar não se

pode inferir nenhuma outra (5.134) porque toda a

proposição elementar diz respeito a um facto atómico e os factos


atómicos são independentes uns

dos outros. Não existe nenhum nexo causal que justifique tais
inferências e é assim impossível inferir os acontecimentos do
futuro a partir dos do presente. "A fé no nexo causal é uma
superstição" (5.1361), afirma Wittgenstein. Deste ponto de vista,
não existem propriamente leis naturais. Estas, ou

melhor, a regularidade que elas exprimem, pertencem apenas à


lógica e "fora da lógica tudo é acontecimento" (6.3). As teorias que
reduzem a uma forma unitária a descrição do universo, como por
exemplo a mecânica de Newton, são comparadas por Wittgenstein a
um reticulado bastante fino, de malha quadrada, que cubra uma
superfície branca na qual existam manchas negras irregulares. Com
o reticulado é possível reduzir a uma forma unitária a descrição da
superfície, na medida em que se pode afirmar que cada um dos
quadradinhos é negro ou branco. Mas trata-se então de uma forma
arbitrária, dado que poderia utilizar-se uma malha triangular ou
hexagonal. Da mesma forma, são arbitrários os vários sistemas que
podem ser usados para descrever o

universo, e quanto muito pode-se dizer que é possível conseguir com


um sistema uma descrição mais simples do que com outro. A rede é
a instrumentação lógica da teoria, instrumentação que fornece os
tijolos para a construção do edifício da ciência, e isto porque uma
teoria científica significa apenas: "Se queres construir um edifício,
tens de o construir

23

com estes tijolos e só com estes" (6.341). Uma teoria científica não
nos diz nada, portanto, sobre o universo, tal como a rede do
exemplo anterior nada nos diz sobre a forma das manchas. Mas já
nos diz algo sobro o universo o facto de ser possível descrevê-lo
mais simplesmente utilizando uma

teoria em lugar de outra (6.342). Estas considerações retiram ao


universo todo o tipo de necessidade: "Não existe nenhuma
necessidade que obrigue uma dada coisa a acontecer pelo simples
facto de outra ter acontecido" (6.37). O facto de o Sol surgir
amanhã é uma hipótese, o que equivale a dizer que não sabemos se
ele surgirá. Mesmo a probabilidade não é senão ignorância. Com
efeito, uma proposição não é em si mesma provável ou improvável,
porque o

facto a que ela necessariamente se refere ocorre ou não ocorre,


sem que haja soluções intermédias (5.153). Utiliza-se a
probabilidade quando nos falta a certeza, quando não se conhece
perfeitamente um facto mas se sabe algo sobre a sua forma, isto é,
sobre a sua possibilidade (5.156).

§ 810. WITTGENSTEIN: AS TAUTOLOGIAS

Estas considerações do autor equivalem à confirmação da doutrina,


comum a Leibnitz e a Hume, do carácter contingente (não
necessário) das proposições relativas aos factos. Mas
paralelamente a tais proposições Leibnitz admitia "a verdade da
razão" e Hume as verdades que respeitam às "relações entre
ideias"; e a este outro tipo de proposições
24

ambos atribuíam a "necessidade", no sentido de que a sua negação


implica a contradição. Wittgenstein admite, além das proposições
elementares que exprimem a possibilidade dos factos e que são
verdadeiras quando os factos as confirmam, proposições que
exprimem a possibilidade geral ou essencial dos factos mas que são
verdadeiras independentemente dos próprios factos. Estas
proposições são chamadas tautologias e o seu estudo constitui uma
das maiores contribuições de Wittgenstein para a teoria lógica.

A proposição "Chove" exprime a possibilidade de um facto e é


verdadeira se o facto acontece, isto é, se na realidade chove. A
proposição "Não chove" exprime também a possibilidade de um
facto e é do mesmo modo verdadeira se na realidade não chove.
Mas a proposição "Chove ou não chove" exprime todas as
possibilidades que se referem ao tempo. Ela é verdadeira
independentemente do tempo que faz; e o facto de chover não a
confirma nem a desmente. Por outro lado, a proposição "Este
solteiro está casado" não exprime um facto mas sim uma
impossibilidade (já que "solteiro" significa "não casado"): ela é
portanto falsa independentemente de qualquer facto, dado que o
estado de solteiro ou casado em que se encontre o homem a que ela
se refere não adianta nada relativamente à impossibilidade da
frase. Ora "Chove ou não chove" é um exemplo de tautologia, "Este
solteiro é casado" é um exemplo de contradição. Tautologia e

contradição são assim necessariamente verdadeiras ou falsas,


independentemente de qualquer experiên-
25

cia. Isto acontece, segundo Wittgenstein, porque a


tautologia é verdadeira e a contradição falsa para todas as
possibilidades de verdade das proposições elementares que as
constituem; ou por outros termos, a primeira é verdadeira e a
segunda falsa seja o que for que aconteça (4.46-4.461). Mas isto
quer dizer que tautologia e contradição não são refigurações da
realidade, isto é, não representam nenhuma situação possível. A
primeira permite toda a situação possível, a segunda nenhuma
(4.462). Então, elas i-ião têm o "sentido" que se pode atribuir às
proposições elementares; mas também não se podem considerar
"sem sentido" porque faz= pai-te do simbolismo, isto é, constituem
o verdadeiro campo da lógica.

Todas as proposições da lógica são tautologias, segundo


Wittgenstein (6.1). "Não dizem nada": são analíticas, no sentido
kantiano (6.11). A sua característica fundamental consiste em só se
poder reconhecê-las como verdadeiras tendo em conta o símbolo,
enquanto que a característica das proposições não lógicas é o não se
saber se são verdadeiras ou falsas atendendo apenas às
proposições (6.113). As proposições lógicas não dizem nada porque
não dizem respeito a factos mas a possíveis modos de conexão
entre as proposições ou de transformação de uma proposição
noutra; isto é, respeitam a operações puramente linguísticas que
estabelecem equivalência (ou não equivalência) de significado entre
expressões linguísticas. É por esta razão que a experiência não
pode confirmar ou negar as proposições lógicas (6.121-6.1222). A
única relação entre as pro-
26

posições lógicas e o mundo é que elas pressupõem que os nomes


tenham significado e que as proposições elementares tenham
sentido. A lógica revela aquilo que existe de necessário na natureza
dos signos linguísticos: "Na lógica, fala a própria natureza dos
signos necessários" (6.124). A matemática que, segundo
Wittgenstein, é "um método da lógica" (6.2), reduz-se a esta última.
O sinal de igualdade, usado na matemática, exprime a
substituibilidade recíproca das expressões que reúne, o que quer
dizer que as

duas expressões têm o mesmo significado, isto é, são tautológicas.


A lógica e a matemática constituem todo o campo da necessidade.
A necessidade e a

impossibilidade só existem na lógica, dado que os

factos não têm necessidade e que as proposições que exprimem


factos não a podem ter como característica. Wittgenstein diz
sobre isto que a verdade das tautologias é certa, a das proposições
é possível, e a das contradições é impossível (4.464). No entanto, a
necessidade da lógica não restringe nada; deixa que os factos
aconteçam de forma puramente casual (6.37; 6.41).

Assim, Wittgenstein retomou a dicotomia instaurada por Hume


corno distinção entre as proposições significantes que exprimem os
factos possíveis e as

proposições não significantes, mas verdadeiras, que são chamadas


tautologias. Como Hume, admite também a existência de
proposições nem significantes nem tautológicas, os não-sensos. A
maior parte das proposições filosóficas são não-sensos, isto é,
derivam do facto de não se compreender a lógica da

27

linguagem. Com efeito, as proposições significantes são apanágio


das ciências naturais e não consentem nenhuma inferência para
além daquilo que mostram ou manifestam; por outro lado, as
tautologias, de que se ocupa a lógica, só se referem à forma das
proposições e não permitem dizer nada sobre a realidade do mundo.
Nem umas nem outras permitem assim nenhuma generalização
filosófica, nenhuma visão ou intuição do mundo na sua totalidade. A
única tarefa positiva que Wittgenstein reconhece na

filosofia é a de ser uma "crítica da linguagem" (4.0031), isto é, "uma


aclaração lógica do pensamento" (4.112). Mas neste sentido a
filosofia não é uma doutrina e sim uma actividade; e a sua tarefa
não consiste em fornecer "proposições filosóficas" mas em
esclarecer o significado das proposições. "A filosofia deve
esclarecer e delimitar com precisão as ideias que de outro modo
seriam, por assim dizer, turvas e confusas" (4.112). E é esta
precisamente a tarefa a que se dedicou o Tratado lógico-filosófico.

Todas as teses desta obra são condicionadas pelo princípio que


constitui a posição ontológica fundamental de Wittgenstein: o
mundo é constituído por factos, e os factos ocorrem e manifestam-
se nesses outros factos que são as proposições significantes.
Assim, os limites da linguagem são os limites do mundo e os limites
da minha linguagem são os

limites do meu mundo, isto é, de tudo aquilo que compreendo, penso


e exprimo. Neste sentido, o

solipsismo será verdadeiro não quando reduz o

28

mundo ao eu mas sim quando reduz o eu ao mundo. Mas os limites de


que falamos não pertencem ao
mundo (não são factos do mundo), e por isso não se exprimem na
linguagem e não podem ser ditos: então, até o solipsismo é
inexprimível (5.62-5.641). E não se pode falar do mundo na sua
totalidade, dado que então deixa de ser um facto. Afirma
Wittgenstein: "Aquilo que é místico é o que é o mundo, e não o como
ele é" (6.44). Os factos constituem, e as proposições manifestam, o
como do mundo, as suas determinações; nunca o que, a sua essência
total e única, o seu valor, o seu porquê. E o

valor, que é um dever ser, nunca é um facto; se for um facto deixa


de ser valor, já que "no mundo não existe nenhum valor e, se
existisse, não teria valor" (6.41). Também não podem existir
proposições da ética; e a ética, é inexprimível (6.42). Nem se pode
falar da morte, que já não é um facto ("Não se vive a morte",
6.4311). Assim, não se pode pôr nenhum dos problemas relativos ao
mundo, à vida, à morte ou aos fins humanos: não podem ter resposta
porque nem sequer podem ser formulados como perguntas.
Wittgenstein não nega que o inexprimível exista: afirma que ele "se
mostra, e que constitui o

místico" (6.522). Mas o que significa este existir do inexprimível, é


coisa a que o autor se não refere. E quanto ao seu mostrar-se,
também nada nos diz. Quando se mostrou que todas as perguntas
metafísicas carecem de sentido e que se deve guardar segredo de
tudo aquilo de que não se pode falar, não resta nenhuma pergunta.
Mas é esta precisamente a rês-
29

posta: o problema da vida resolve-se quando desaparece (6.52-7).

§ 811. WITTGENSTEIN: A PLURALIDADE DAS LINGUAGENS

A teoria da linguagem que é exposta no Tratado é, tal como a de


Aristóteles, uma teoria afirmativa: a linguagem é a manifestação
daquilo que é. Mas para Aristóteles "aquilo que é" constitui a
estrutura

necessária do mundo, e essa estrutura determina necessariamente


as formas linguísticas que, nas suas

expressões essenciais, a reproduzem. Para Wittgenstein, pelo


contrário, "aquilo que é" é um conjunto de factos que simplesmente
"acontecem", sem ordem e sem relações recíprocas, isto é, sem
serem necessários. No entanto, esses factos determinam as suas
manifestações linguísticas, isto é, as proposições atómicas; e
indirectamente determinam a necessidade das proposições da
lógica. Ora a necessidade da relação mundo-linguagem, se bem que
concorde

com o empenho ontológico de Aristóteles, para o qual o mundo é


necessidade, não é corrente com o de Wittgenstein, para o qual o
mundo é causalidade. Não admira portanto que este autor tenha a

certa altura abandonado as teses do Tratado e tenha introduzido


na relação mundo-linguagem o carácter não necessário que
reconhecera nos factos do mundo. Ora se tal relação fosse
necessária, seria também única (não pode ser diferente da que é), e

seria única a linguagem definida pela natureza da própria relação.


Mas se essa relação não é necessá-
30

ria, pode assumir formas diferentes; e são então possíveis diversas


formas de linguagem, correspondentes às várias formas que a
relação pode assumir. Foi esta tese que Wittgenstein começou a
desenvolver a partir de 1933 e que tem a sua melhor expressão nas
Philosophical Investigations, cuja primeira parte só ficou completa
em 1945 e cuja segunda parte foi escrita entre 1947 e 1949.

Deste ponto de vista, a linguagem definida no Tratado, onde a todas


as palavras é atribuído um significado que é constituído
precisamente pelo objecto a que corresponde a palavra, é apenas
uma

das infinitas formas da linguagem. A multiplicidade das linguagens


não pode também ser estabelecida de uma vez por todas: novos
tipos de linguagem, novos jogos linguísticos nascem continuamente
enquanto que outros caiem em desuso e são esquecidos. A
expressão "jogos linguísticos" é utilizada por Wittgenstein para
sublinhar o facto de a linguagem ser

uma actividade ou uma forma de vida. Como exemplos da


multiplicidade dos jogos linguísticos, apresenta os seguintes: dar
ordens e obedecer-lhes; descrever a aparência de um objecto ou
dar as suas

medidas; construir um objecto partindo de uma descrição (um


desenho); relatar um acontecimento; especular sobre um
acontecimento; formular uma hipótese e pô-la à prova; apresentar
os resultados de uma experiência em tabelas e diagramas; inventar
Lima. história e lê-Ia; representar uma peça teatral; cantar um
estribilho; descobrir enigmas; inventar uma anedota ou contá-la;
resolver um problema de aritmética; traduzir de uma língua para

31

outra, mendigar, agradecer, maldizer, augurar, pregar (Phil. Inv.,


23). A própria matemática é um jogo linguístico. Com efeito, fazer
matemática significa "agir de acordo com certas regras" (Remarks
on the Foundations of Mathematics, IV, 1). A necessidade que
preside a esta actuação, o "deve" (Must), é próprio das técnicas em
que consiste a matemática e

que constituem um modo particular de tratar as situações. "A


matemática, diz Wittgenstein, constitui uma rede de nonnas" (Ib.,
V, 46). A heterogeneidade dos jogos linguísticos é tal que não
podem ser reduzidos a qualquer conceito comum, as suas relações
recíprocas podem ser caracterizadas como "reuniões de família" e,
tal como os membros de uma família apresentam várias
semelhanças, seja na estatura, na

fisionomia, etc., também as várias linguagens têm entre si relações


diversas que não se podem reduzir a um só (Phil. Inv., 67). Em
muitos jogos linguísticos, o significado das palavras consiste no seu

uso. "Num grande número de casos, se bem que não em todos, em


que utilizamos a palavra 'significado', ela pode ser assim definida: o
significado de uma

palavra é o uso que tem na linguagem" (Ib., 43). Mas o uso não é uma
regra normativa que possa ser

imposta à linguagem: é aquilo que surge na própria linguagem, é o


que há de habitual nas suas técnicas.
O ideal da linguagem deve ser procurado na sua própria realidade
(101). "É claro, diz Wittgenstein, que todas as proposições da nossa
linguagem se encontram numa ordem que a caracteriza. Não
procuramos a ordem ideal, tal como se as nossas frases habituais
não tivessem ainda um sentido acabado e

32
WITTGENSTEIN

como se ainda tivéssemos de construir uma linguagem perfeita. Por


outro lado parece evidente que, onde existe sentido, existe ordem.
Logo, deve existir uma ordem perfeita mesmo na mais vaga das
proposições" (98).

A filosofia, enquanto análise da linguagem, não pode portanto ter


como tarefa a sua rectificação ou o seu desenvolvimento, até
atingir uma forma mais completa ou perfeita. Segundo
Wittgenstein, "não pode de forma alguma interferir no uso efectivo
da linguagem mas sim, e apenas, descrevê-la. Com efeito, a filosofia
não pode fundar a linguagem, e é obrigada a deixar tudo como
encontra" (124). Ela não explica nem deduz coisa alguma: limita-se a
pôr as coisas à nossa frente. A partir do momento em que todas as
coisas se encontram perante nós, já não há nada para explicar. O
que está oculto, está-o apenas devido à sua simplicidade e
familiaridade: não se nota porque está sempre à frente dos nossos

olhos, e está sempre à frente dos nossos olhos porque é aquilo que
mais nos interessa (129). A filosofia pode igualmente comparar
entre si os vários jogos linguísticos e estabelecer entre eles uma
ordem, com vista à realização de uma tarefa particular mas tal
ordem será apenas uma das muitas possíveis (132). "Não
pretendemos, diz Wittgenstein, refinar ou completar o sistema de
regras que regula o uso das nossas palavras. A clareza para que
tendemos é sempre uma clareza completa e isto significa
simplesmente que os problemas filosóficos devem desaparecer
completamente. A descoberta real é aquela que me toma capaz de
deixar de filosofar quando quero:

33
só ela elimina a filosofia, na medida em que deixa de a atormentar
com as questões que servem para a justificar (133). O conceito da
filosofia como "doença", e da cura desta doença pela abstenção de
filosofar domina a segunda fase da filosofia do pensamento de
Wittgenstein, tal como a procura de um

silêncio místico relativamente aos problemas filosóficos dominara a


primeira. No entanto, não existe uma cura definitiva e imunizante:
"Não existe um método de cura da filosofia, mas existem vários
tipos de tratamento" (133). Todas estas terapias consistem
essencialmente em dizer as palavras do seu uso metafísico para o
seu uso quotidiano; e os

resultados dessas terapias são a descoberta deste ou daquele não-


senso que o intelecto inventara batendo com a cabeça contra os
limites da linguagem. É o próprio não-senso que mostra o valor da
descoberta (119). Eliminando os não-sensos, a actividade filosófica
curativa limita-se a reportar as palavras aos seus usos correntes e
quotidianos sem

afirma nada de novo. "A filosofia, diz Wittgenstein, afirma apenas


aquilo que todos já sabemos" (599).

A defesa da multiplicidade das linguagens ou, como se poderia


dizer, do relativismo linguístico, é o aspecto mais importante da
segunda fase de Wittgenstein. Esta tese, que é paralela e
semelhante à do relativismo das culturas, é hoje confirmada, no
terreno dos factos, pelos estudos linguísticos. Está relacionada com
ela uma outra tese fundamental que surge aqui e ali nas
Philosophical Investigations: a linguagem é um instrumento (uma
técnica ou um

34
conjunto de técnicas) para resolver situações existenciais. Afirma
WitIgenstein: "A linguagem é um

instrumento. Os seus conceitos são instrumentos... Os conceitos


aplicam-se à investigação; são a expressão dos nossos interesses e
dirigem esses mesmos interesses" (569-70; cfr. 11). Por outro lado,
existem outras teses fundamentais de Wittgenstein que não
parecem muito coerentes com estas. A primeira é a

de a linguagem ser um "jogo". Se bem que Wittgenstein declare


servir-se desta palavra para sublinhar o

carácter de actividade ou de vida da linguagem, é difícil não ligar à


palavra a conotação comum segundo a qual o jogo é unia actividade
que se efectua tendo-a em vista a si mesma e não para atingir outro
fim qualquer. Se a linguagem fosse jogo (pelo menos

assim parece) seria um fim e não um instrumento, A segunda tese é


a do privilégio concedido à linguagem ordinária ou quotidiana que é
óbviamente apenas um dos jogos linguísticos possíveis, e que
portanto não se sabe porque deverá ser a indicada para fornecer o
critério e a norma para a eliminação dos problemas filosóficos e das
suas dúvidas. Diz o autor: "Pensem nos instrumentos que se
encontram na caixa de ferramentas de um operário: há um martelo,
um alicate, uma serra, uma chave de parafusos, uma régua, grude,
pregos e parafusos. As funções das palavras são tão diferentes
como as destes objectos" (Phil. Inv., 11). Mas basta interessarmo-
nos um pouco pela actividade de um artesão qualquer para nos
rendermos conta de como, na linguagem em que ele se exprime, se
encontram palavras, expressões ou

modos de dizer que não se referem à linguagem nor-


35

mal mas sim à actividade específica do artesão. As linguagens


científicas estão óbviamente ainda mais longínquas da quotidiana, e
têm significados ainda menos redutíveis aos de uso corrente,
mesmo que sejam expressos pelas mesmas palavras. Se pluralismo
linguístico significa relativismo linguístico, se

qualquer linguagem, como afirma Wittgenstein, está numa certa


ordem tal como está, não existe nenhuma linguagem que
compreenda todas as outras ou que possa oferecer às outras um
critério qualquer de interpretação ou de rectificação. Por outro
lado, se a linguagem comum está sempre em ordem, se ela apresenta
de uma forma aberta e evidente tudo aquilo que deve significar,
como é possível que nela nasçam os não-sensos que levam a dúvidas
angustiantes e nos tiram o sossego?

§ 812. CARNAP: RELAÇõES E EXPERIÊNCIAS

Uma outra figura dominante do neo-positivismo foi a de Rudolf


Carnap, que nasceu em Wuppertal, na Alemanha, em 1891, ensinou
na Universidade de Viena e na de Praga, e que posteriormente a
1936 foi para a América onde ensinou nas Universidades de Chicago
e Los Angeles. As seguintes obras pertencem ao período em que
este autor viveu na

Áustria e na Alemanha: A construção lógica do mundo, 1928;


Pseudo-problemas da filosofia, 1928, Compêndio de lógica, 1929;
Sobre Deus e a alma,
1930; A sintaxe lógica da linguagem, 1934, e ainda numerosos
artigos publicados em "Erkenntnis", sendo

36
o mais importante intitulado A eliminação da metafísica através da
análise lógica da linguagem.

Durante a sua estadia na América publicou as seguintes obras: Os


fundamentos da lógica e da matemática (na " Enciclopédia
Internacional da Ciência Unificada"), 1939; Introdução à semântica,
1942; A formalização da lógica, 1943; Significado e necessidade,
1947; Fundamentos lógicos da probabilidade,
1950, e ainda muitos outros artigos entre os quais sobressai o
intitulado Probabilidade e significado (1936), que marca uma
viragem na interpretação da exigência básica do neo-positivismo.

Se as obras de Wittgenstein constituíram a principal fonte de


inspiração para os filósofos do neo- _empirismo, as de Carnap
deram às teses polémicas e

construtivas desta corrente a clareza e o desenvolvimento analítico


que a tornaram muito importante na filosofia contemporânea.
Carnap teve sempre presente e defendeu constantemente uma das
teses básicas do Círculo de Viena: a ciência é una, apesar da
diversidade de conteúdo existente nos vários campos específicos
correspondentes às diversas ciências, e a sua linguagem é também
una. É por isso que a

doutrina de Carnap é substancialmente, tal como a

de Wittgenstein, uma teoria da linguagem. Mas enquanto


Wittgenstein insiste no atomismo da linguagem, a qual reflecte nas
suas proposições elementares a não relatividade e a causalidade
dos factos atómicos, Carnap insiste no seu carácter sintáctico, isto
é, nas relações que ligam as proposições entre si. Assim, concorda
com Wittgenstein quando admite, pelo menos a um certo nível ou
para um certo tipo

37

de linguagem, uma relação ou contacto com um

dado imediato; no entanto, este dado não é um "facto" mas sim um


elemento de natureza psíquica. A primeira obra de Carnap, .4
construção lógica do mundo, tem a tarefa explícita de formular o
sistema de conceitos (ou objectos) constitutivos da ciência
utilizando por um lado a teoria das relações aceite na lógica de
Russell e Whitchead e, por outro lado, a

redução da realidade a dados elementares que é própria da filosofia


de Avenarius, Mach e Driesch (Der Logische Aufbau der Welt, § 3).
Mas é evidente na

obra de Carnap a influência do neo-criticismo, o qual insistira no


carácter logicamente construtivo do conhecimento humano e que
tinha considerado a relação como categoria fundamental (§ 730).

Deste ponto de vista, a teoria do conhecimento é uma análise do


modo como são logicamente construídos os objectos da ciência a
partir de certos elementos originários que, precisamente enquanto
tais, não podem ser considerados por sua vez como construções
lógicas. Esses elementos são, segundo Carnap, as experiências
elementares vividas (Elementarerlebnisse), que ele prefere às
"sensações" de Mach porque a psicologia da forma (Kõhler,
Wertheimer) mostrou que as sensações não são dados mas sim
abstracções dos dados, pelo que não podem ter prioridade
gnoseológica. No entanto, Carnap defende que as experiências
elementares são, tal como as sensações de Mach, neutras no
sentido de nem serem propriamente físicas nem psíquicas, e que são
referidas ao eu, não originariamente, mas

apenas na medida em que se fala das experiências

38

vividas pelos outros e que são reconstruídas através das minhas


(Ib., § 65). As experiências elementares têm entre si "relações
fundamentais" já que <todo o enunciado de um objecto é
materialmente um

enunciado dos seus elementos fundamentais e formalmente um


enunciado das relações fundamentais" Qb., § 83). Carnap considera
como relação fundamental a da "recordação da semelhança", que
permite identificar parcialmente duas experiências vividas através
do confronto de uma delas com a recordação da outra (Ib., § 88).
Utilizando as experiências elementares vividas e a relação
fundamental pode-se, segundo Carnap, reconstruir todo o mundo
psíquico e físico, independentemente dos conceitos de substância e
de causa de que se servia a metafísica tradicional. O conceito de
"essência" é redifinido por Carnap no sentido de que se deve
entender por " essência constitutiva" de um objecto a indicação do
significado do signo do próprio objecto, e

dado que o signo só tem significado quando se encontra numa


proposição, a essência consistirá na indicação dos critérios de
verdade das frases em que pode aparecer esse objecto (Ib., p. 161).
Definindo a

,essência deste modo segue-se que o eu é apenas "o conjunto das


experiências elementares": Carnap nega que a existência do eu seja
um dado originário e repete a crítica de Nietzsche (§ 664) ao
cogito cartesiano Qb., § 163). Por outro lado, a "realidade"
(diferente do sonho, da alucinação, da fantasia) é constituída por
objectos que têm as seguintes características: 1.o -pertencem a um
sistema que obedece a leis, isto é, ao mundo físico, psíquico ou
espiritual;

39

2.o - são inter-subjectivos; 3.o - têm um lugar na ordem do tempo


(Ib., § 171). A realidade dos objectos não consiste pois no serem
independentes da consciência cognoscente (como afirma o realismo)
ou

no serem dependentes dela (como afirma o idealismo), mas sim no


pertencerem a um campo em que são válidas leis objectivas
independentes da vontade do indivíduo e que portanto são
interpretadas pela metafísica como sendo a expressão de uma
"substância": a matéria, a energia, ou qualquer outra (Ib., § 178).

Como vemos, a reconstrução da estrutura lógica do mundo põe,


segundo Carnap, a metafísica fora de jogo. E a crítica à metafísica
é reavivada por Carnap num artigo famoso que foi publicado em

"Erkenntnis" no ano de 1931 e que se intitulava A eliminação da


metafísica através da análise lógica da linguagem. Uma linguagem,
afirmava Carnap, consiste num vocabulário e numa sintaxe, isto é,
num conjunto de palavras que têm um mesmo significado e nas
regras que presidem à formação dos enunciados indicando como
estes devem ser construídos a partir de vários tipos de palavras.
Quando não se

têm em conta estes dois aspectos fundamentais, fica-se perante


duas espécies de "pseudo-proposições": aquelas em que figuram
palavras que se julga, erradamente, terem um significado e aquelas
que são compostas por palavras individualmente dotadas de sentido
mas reunidas de uma forma não concordante com as regras de
sintaxe formando por isso frases sem sentido. Estas duas espécies
de pseudo-proposições são aquelas que se encontram na metafísica,

40

não só na antiga como até na mais recente. Carnap mostrava como


na metafísica de Heidegger a palavra "nada" era considerada como
o nome de um objecto e tratada como tal, se bem que nada não seja
nome

de nenhum objecto mas apenas a negação de uma

proposição possível como por exemplo ao dizer-se "lá fora não há


nada" se pretende afirma o contrário de " lá fora há uma
determinada coisa" (Ueberwindung der Metaphysik durch logische
Analyse der Sprache, § 5). **Cam&p via na metafísica uma
expressão da atitude da pessoa relativamente à vida, isto é,
qualquer coisa de semelhante à arte, tendo para além desta a

vã pretensão de querer raciocinar. "No fundo, afirmava, os


metafísicos são músicos sem talento musical" (Ib., § 7). Numa nota
datada de 1957 e acrescentada à tradução inglesa desta obra,
Carnap declarou que ela era dirigida contra a metafísica tal como
era entendida por Fichte, Schelling, Hegel, Bergson, Heidegger,
isto é, como pretensão de conhecer a

essência das coisas de uma forma que transcende o

empirismo da ciência indutiva, mas não contra as

tentativas de síntese e de generalização dos resultados das várias


ciências. Esta limitação não estava certamente presente nas suas
primeiras obras, e o

prefácio à Sintaxe lógica da linguagem (1934) exprime


perfeitamente a tarefa que Carnap, atribuía verdadeiramente à
filosofia: "A filosofia deve ser substituída pela lógica da ciência,
isto é, pela análise lógica dos conceitos e das proposições das
ciências, e isto porque a lógica da ciência é precisamente a

sintaxe lógica da linguagem da ciência" (Logical Syntax of Language,


prefácio).

41

§ 813. CARNAP: DADO, PROTOCOLO, PREDICADOS


OBSERVÁVEIS

Na Construção lógica do Mundo, Carnap utilizou, como vimos, dois


tipos de elementos: um estrictamente lógico, a relação, e outro
psicológico, a experiência vivida. Estes dois tipos de elementos, com
diferentes designações, foram os temas fundamentais de todas as
suas investigações ulteriores.

No que diz respeito ao segundo tipo de elementos, isto é, ao dado


como ponto de partida e de referência da construção lógica, Carnap
aceitou (a partir de 1931) a tese de Neurath sobre a
intranscendibilidade da linguagem, afirmando que isso não se

apresenta, por assim dizer, em pessoa na própria linguagem, mas


sim através da sua expressão ou

formulação linguística. No ensaio A linguagem física como linguagem


universal da ciência (publicado em
"Erkemtnis", 11, 1931), distingue na ciência a liberdade sistemática
e a linguagem dos protocolos. A primeira compreende as
proposições gerais ou leis da natureza; a segunda é constituída por
proposições protocolares que se referem imediatamente ao dado e
que descrevem o conteúdo da experiência imediata e as mais
simples relações reais conhecidas. Qual é precisamente a natureza
do dado, se consiste em sensações elementares, como pretendia
Mach, ou em experiências vividas, ou ainda em coisas, isto é, em
corpos tridimensionais imediatamente perceptíveis, é uma questão
que, segundo Carnap, se pode deixar em suspenso ("Erkenntnis", 11,
1931, p. 439). As proposições protocolares permitem realizar a ve-
42

rificação empírica da ciência se bem que esta verificação não diga


respeito às proposições singulares da própria ciência mas sim a todo
o sistema ou, pelo menos, a uma certa parte do sistema. Isto implica
necessariamente um momento convencional, que constitui
precisamente a forma do sistema; e mesmo uma lei natural,
relativamente às proposições simples, é apenas uma hipótese. Mas
dado que qualquer homem só pode assumir como ponto de partida
das suas afirmações os seus próprios protocolos, Carnap fala de um
solipsismo metódico. O adjectivo "metódico" realça o facto de não
se pretender afirmar a existência de um único sujeito e a

não existência dos outros, mas tão-somente reconhecer o carácter


dos protocolos originários a fim de construir proposições
linguísticas que possam valer para todos os sujeitos. Ora uma
afirmação qualquer, mesmo baseando-se nos protocolos do sujeito
que a faz, só tem validade inter-subjectiva se puder exprimir-se em
linguagem física. "Se, afirma Carnap, dois sujeitos tiverem opiniões
diferentes sobre o
comportamento de um segmento, sobre a temperatura de um corpo
ou sobre a frequência de uma

oscilação, esta diversidade de opiniões não é, na

física, atribuída a uma insuperável diferença, tentando-se antes


chegar a uma unificação dessas opiniões através de uma experiência
apropriada" (Ib., p. 447). A linguagem física é deste modo, e em

si mesma, inter-subjectiva e universalmente válida; e na medida em


que as várias ciências (compreendendo aqui as do espírito,
psicologia, sociologia, etc.) são autenticamente ciências, devem ser
expressas em

43

linguagem física e relacionar assim os próprios fenómenos psíquicos


ou espirituais com estados ou condições de um corpo físico. Daqui
deriva um materialismo metódico, isto é, um materialismo
que não afirma nem nega a existência da matéria ou do espírito mas
que exprime apenas a exigência de traduzir em termos físicos os
diferentes protocolos, a fim de construir com eles uma linguagem
verdadeiramente inter-subjectiva, isto é, válida universalmente.

Enquanto que na Construção lógica do mundo o dado se apresentava


em pessoa na linguagem, na forma da experiência imediata, nesta
segunda fase das investigações de Carnap apresenta-se na forma
de uma expressão linguística, a proposição protocolar, que permite
qualquer interpretação da natureza do próprio dado (que pode ser
uma coisa ou um processo psíquico). Numa terceira fase, que se
inicia com a obra Probabilidade e significado (1936-37), o dado
afasta-se ainda mais, apresenta-se agora sob a forma de uma
possibilidade, a possibilidade de reduzir, mediante um processo
mais ou menos longo e complexo, os predicados descritivos, da
linguagem científica a predicados observáveis que pertençam à
"linguagem cousal", isto é, à linguagem que usamos na vida de todos
os dias ao falar das coisas perceptíveis que nos rodeiam. É evidente
que os " predicados observáveis" são já a transcrição linguística, na
linguagem comum, da possibilidade de obter certos dados, enquanto
que os predicados descritivos da ciência são transcrições, no
sentido de poderem ser reconduzidos a estas últimas por um
oportuno processo de redução. Por outro lado, Carnap substitui a

44

exigência de uma verificação empírica directa dos enunciados


científicos, que fora defendida pelo Círculo de Viena e pela primeira
fase do neo-empirismo e era considerada como critério de
significação das proposições sintéticas, pela exigência muito mais
débil da confirmabilidade, que consiste precisamente na
possibilidade de reduzir os predicados descritivos a predicados
observáveis (Testability and Meaning, in Readings in the Philosophy
of Science, 1953, p. 70).

Deste ponto de vista, já não é possível uma verificação completa e


exaustiva; só é possível uma

confirmação gradualmente maior dos enunciados. Por outras


palavras, e de acordo com a terminologia que Carnap adoptou nos
últimos tempos, o acontecimento que constitui a confirmação de um
enunciado científico é um acontecimento possível, entendendo-se
por "possibilidade" a possibilidade física ou causal e não a
simplesmente lógica. Por exemplo, um acontecimento que implique a
transmissão de um sinal a uma velocidade superior à da luz não é um
acontecimento possível, de acordo com o princípio físico que exclui
a possibilidade de exceder a velocidade da luz; mas já é possível, se
bem que inverosímil, que um homem consiga levantar um automóvel
(The Methodological Character of Theoretical Concepts, in
Minnesota Studies in Philosophy of Science, 1956,
1, págs. 53-54).

Estes desenvolvimentos foram sugeridos a Carnap depois de uma


atenta consideração da ciência contemporânea, especialmente da
física, a qual faz, como vimos (§ 791), um uso bastante grande de

45

termos ou de entidades (chamadas por vezes "construções") que


não têm nenhuma referência aparente às coisas ou aos dados
simples da experiência. Uma destas entidades é o "campo", que tem
uma função básica na física relativista. Carnap entende que esta
entidade em particular é redutível a termos elementares e que
esses termos elementares podem ser, por sua vez, reduzidos a
propriedades observáveis das coisas (Foundations of Logic and
Mathematics, 1939, § 24). Mas é duvidoso que esta dupla redução
tenha fundamento, ou melhor, sentido, no âmbito da própria física.
Carnap observou que, na física, compreender uma expressão, um
enunciado, uma teoria, significa "capacidade para a usar na
descrição dos factos conhecidos ou na previsão de factos novos", e
que portanto uma "compreensão intuitiva ou uma tradução directa
de um enunciado científico em termos que se refiram a
propriedades observáveis não é necessária nem tão-pouco possível"
(Ib., § 25).

§ 814. CARNAP: A SINTAXE LóGICA

O outro terna fundamental em que se concentraram as indagações


de Carnap é o da estrutura lógica da linguagem. Como vimos, Carnap
considerou a
linguagem como um contexto de relações e não como um atomismo
de proposições (segundo a opinião de Wittgenstein no Tractatus).
Por outro lado, acabou por reconhecer o carácter arbitrário e
convencional do sistema de relações (isto é, da lógica)

46

em que consiste a linguagem. Estes temas encontram o seu melhor


estudo analítico na obra A sintaxe lógica da linguagem, publicada em
1934 e, em edição inglesa, em 1937. A tese fundamental desta obra
é a da multiplicidade e relatividade das linguagens, que Carnap
exprime sob a forma do princípio de tolerância: "Não é nossa tarefa
estabelecer proibição mas apenas chegar a convenções... Em lógica
não existe moral. Qualquer pessoa pode construir corno bem
entender a sua própria lógica, isto é, a sua forma de linguagem. Se
quiser discutir connosco, deve apenas indicar como o deseja fazer,
quais as regras sintácticas que irá respeitar, e não argumentos
filosóficos" (Logical SyWax of Language, § 17). Não existe, deste
ponto de vista, uma linguagem única ou uma linguagem privilegiada;
mas existem para cada linguagem regras determinadas, próprias
dessa linguagem, além das regras que são válidas para todas as
linguagens. Tais regras - e é esta a segunda tese fundamental da
obra - são de natureza sintáctica: exprimem simplesmente a
possibilidade de combinação dos termos linguísticos nos enunciados
e dos enunciados nas suas consequências. Trata-se aqui de unia
"arte combinatória" no sentido de Leibnitz ou, de acordo com a
definição de Carnap, de um

cálculo cujas regras determinam "em primeiro lugar as condições


em que uma expressão [isto é, uma série de símbolos] pertence a
uma certa categoria de expressões, e, em segundo lugar, as
condições que tornam lícita a transformação de uma ou mais
expressões numa outra ou noutras expressões" (Ib., § 2). Este
cálculo prescinde completamente do signi-
47

ficado dos termos e do sentido das proposições, já que não é nem


pressupõe nenhuma referência semântica a factos, realidades ou
entidades de qualquer tipo. Afirma Carnap: "Para, determinar se
uma

proposição é ou não consequência de outra, não se

faz nenhuma referência aos seus significados... Basta que seja dada
a figura sintáctica das proposições" já que "uma lógica especial do
significado é supérflua; uma lógica não formal é uma contradictio in
adjecto. A lógica é sintaxe" (Ib., § 61).

Posto isto, a sintaxe lógica de Carnap reduz-se a

uma formulação simbólica generalizada dos processos matemáticos,


que muito deve à obra de Hilbert (§ 794). Distingue uma linguagem
1 que compreende a aritmética elementar e que é caracterizada
pelo facto de nela só serem admitidas propriedades numéricas
definidas, isto é, tais que a sua aplicabilidade a um qualquer número
pode ser estabelecida por uma série finita de passagens dedutivas
que sigam um método pré-estabelecido; uma linguagem 11, que além
de conter a 1, compreende ainda conceitos indefinidos e na qual
pode ser expressa a aritmética dos números reais, a análise
matemática e a teoria dos conjuntos; e ainda uma ulterior
generalização que Carnap chama "sintaxe de qualquer linguagem",
que se baseia nas precedentes e especialmente na

segunda. A propósito desta última, Carnap insiste na importância


fundamental da noção de "consequência". " Dada uma linguagem
qualquer, afirma, ao ser estabelecida a relação consequência fica
imediatamente determinada toda a asserção que diga respeito às
relações lógicas" (Logical Syntax, § 46).

48

A sintaxe universal Ocupa-se do estabelecimento das regras com as


quais deve concordar a definição de consequência ou, por outros
termos, com as quais devem concordar as regras de transformação
de uma

expressão noutra.

A parte final desta obra é a propriamente filosófica, sendo o seu


tema "Filosofia e sintaxe". Aí se pretende defender aquilo que
Carnap chama "modo formal" ou "sintáctico" de falar, oposto ao

"modo, material". A diferença entre estes dois modos é ilustrada


pelos seguintes exemplos, escolhidos entre aqueles que são dados
por Carnap:

MODO MATERIAL

1. -Os números são classes de coisas.

2. -Os números fazem parte de um tipo primitivo especial de


objectos.

3. - Uma coisa é um complexo de dados sensoriais.

MODO FORMAL

1. - A s expressões numéricas são expressões de classes do segundo


nível.

2. - A s expressões numéricas são expressões do nível zero.

3. - Qualquer proPOSição em que figure uma designação de coisas é


equivalente a uma

classe de proposições em que não figurem designações de qualidade


mas apenas designações de dados sensoriais.

49

4. - O mundo é a to- 4. -A ciência é um talidade dos factos e


sistema de proposições não das coisas. e não de nomes.

5. -Deus criou os S. -Os símbolos dos números naturais


(**Kro- números naturais são **necker).
símbolos primitivos.

6.-Toda a cor 6. -Uma expressão ocupa uma posição.


decores é sempre

acompanhada, nas proposições, por uma designação posicional.

A vantagem do modo formal de falar consiste, segundo Carnap, no


facto de eliminar a possibilidade de controvérsias filosóficas,
possibilidade essa que é deixada em aberto pelo modo material.
Esta. é uma

forma desviada ou metafórica de falar, que não está errada em si


mesma mas que se presta facilmente a ser utilizada de uma forma
incorrecta. Carnap pensa "que a tradutibilidade no modo de falar
representa a pedra de toque de todas as proposições filosóficas ou,
mais exactamente, de todas as proposições que não entrem na
linguagem de uma

ciência empírica" (Ib., § 81). Não possui essa característica


nenhuma das proposições que apelam para o inexprimível,
compreendendo aqui as de Wittgenstein. A proposição de que "o
inexprimível existe, equivale a "existem objectos que não podem ser
descritos", isto é, "existem objectos a que não se dá nenhuma
designação objectiva", e é traduzida

50

em linguagem formal pela frase contraditória "existem designações


objectivas que não são designações objectivas" Qb., § 81).

Carnap admitiu sempre a distinção tradicional entre intenção e


extensão (ou conotação e denotação) do conceito (ou em geral do
signo), distinção que fora reintroduzida por Frege entre sentido e
significado (§ 795). No entanto, e seguindo as pegadas de Russell (§
800) e de Wittgenstein (Tractatus,
5.541-5.421), Carnap concebe a lógica inteiramente im dimensão
extensiva, identificando o ponto de vista sintáctico (ao qual se
reduz a lógica) com o ponto de vista extensional. Isto significa que
para ele os conceitos são classes, ou classes de classes, e não
essências, qualidades ou predicados; que, por exemplo, "homem"
significa o "conjunto dos homens" e não a propriedade de ser
homem, animal racional ou qualquer coisa semelhante. No entanto,
Carnap não nega que existam proposições intensionais e que tais
proposições tenham uma certa relevância na lógica: são aquelas que
parecem exprimir uma relação de inerência do predicado ao sujeito
(por exemplo, "os

corpos são compridos") ou as modais ("A é possível", "A é


impossível", "A é necessário", "A é contingente"). No entanto,
segundo Carnap, estas proposições podem ser consideradas "quase-
sintácticas", já que são redutíveis a enunciados sintácticos ou
extensionais se forem traduzidas do modo material de falar para o
modo formal. Assim, "os corpos são pesados" transforma-se em "o
enunciado 'os corpos são pesados' é analítico"; e os enunciados
modais

51

que referimos transformam-se em "A' é possível", "IAI é


impossível", "'A' é necessário", nos quais A representa um
enunciado (Logical Syntax, §§ 67-69). Nos escritos posteriores e
sobretudo no mais especificamente dedicado à lógica modal,
intitulado Significado e necessidade (1947), o autor confirma
substancialmente esta redução, assumindo no entanto

como base o conceito da necessidade lógica (ou analítica) e


definindo os outros significados modais relativamente a ele; então,
"p é impossível" significa "não-p é necessário"; "p é contingente"
significa "p não é nem necessário nem impossível"-, "p é possível"
significa "p não é impossível" (Meanin., and Necessity, 1956, 2 a
edição, § 39). No entanto, na última fase da sua actividade, Carnap
dirigiu cada vez mais a sua atenção para o aspecto semântico e
pragmático da linguagem que, como vimos, excluía anteriormente da
lógica, sendo esta reduzida à sintaxe; deu também uma análise
pragmática do significado intensional, considerando como "intenção
de um predicado, para o orador X a condição geral a que um objecto
deve satisfazer para que X lhe possa aplicar um predicado" (Ib., p.
246). Sublinha que com isto não se reduz a intenção a um
acontecimento mental, visto ela não poder ser tão bem determinada
por um robot como por um homem. Estas investigações de Carnap
inserem-se nas discussões entre os neo-empiristas sobre alguns
temas de lógica e de metodologia, e voltaremos a falar nelas a
propósito destes últimos (§ 818).

52

§ 815. REICHENBACH

O mundo a que Carnap dedica principalmente

a sua atenção é o da matemática; ao da física dedica-se quase


exclusivamente Hans Reichenbach. (1891-1953), expoente máximo
do neo-positivismo na Alemanha. Reichenbach foi professor de
física em Berlim de 1926 a 1933, de filosofia em istambul de
1933 a 1938 e na Universidade da Califórnia, cin Los Angeles, de
1938 até à data da sua morte. As suas obras principais são as
seguintes: Filosofia da doutrina do espaço-tempo, 1928; Átomo e
cosmos,
1930; A tarefa e as vias da moderna filosofia da natureza, 1931;
Teoria da probabilidade, 1935. Estas obras foram publicadas na
Alemanha, assim como numerosos artigos, alguns dos quais
apareceram em

"Erkenntnis", revista que ele dirigiu juntamente com

Carnap. Na América, Reichenbach. publicou: Experiência e previsão,


1938; Elementos de lógica simbólica, 1947; Teoria da probabilidade,
1949 (nova edição aumentada da obra publicada na Alemanha em
1935); O nascimento da filosofia científica, 1951; A direcção do
tempo, 1956 (póstuma). Nesta última obra Reichenbach identifica a
ordem do tempo com

a da causalidade, e entende que esta ordem é estabelecida pela


entropia. As investigações de Reichenbach são muitas vezes
enquadradas por considerações históricas que são,
simultaneamente, toscas e

fantásticas. Por outro lado, nota-se uma certa dogmatização da


ciência nas suas obras, o que contrasta singularmente com o
carácter probabilista que ele reconhece existir no conhecimento
científico.

53

As investigações de Reichenbach dirigem-se em

grande parte para uma defesa e uma justificação analítica da


estrutura probabilista da ciência. Lógica dedutiva e lógica indutiva
são, segundo Reichenbach, duas características fundamentais da
ciência; mas assim como todos os positivistas, pensa que a dedução,
enquanto procedimento puramente lógico, nunca alcança a realidade.
Os seus resultados são necessários mas ocos, porque a dedução liga
as

proposições de tal forma que as combinações resultantes são


verdadeiras independentemente da verdade das proposições
componentes. A combinação

"se nem Napoleão nem César chegaram à idade de


60 anos, então Napoleão não chegou à idade de
60 anos" é verdadeira quer Napoleão e César tenham morrido antes
dos sessenta anos quer tenham morrido depois; nada se diz sobre o
facto que a

frase refere. Por outro lado, a situação chega a

expressões que respeitam a factos e que tomam possível a sua


previsão, mas não os dá como necessários. No final da Filosofia da
doutrina do espaço-tempo, Reichenbach criticava a interpretação
rigorosamente determinista da causalidade que se exprime nas leis
naturais e insistia no carácter probabilístico da própria causalidade.
A física quântica parece-lhe ser a maior confirmação desta tese e a

ela Reichenbach. dedicou um importante ensaio de interpretação.


Partindo das relações de indeterminação de Heisenberg,
Reichenbach refere-se aos acontecimentos observáveis e aos não
observáveis: estes últimos seriam inter-fenómenos e só poderiam
ser

introduzidos por inferências de tipo muito mais'

54

complicado do que as usadas para os acontecimentos observáveis. A


introdução dos inter-,fenómenos serviria para eliminar as anomalias
causais, isto é, a relativa imprevisibilidade dos fenómenos quânticos
(Philosophic Foundations of Quantum Mechanics, §
8). Quanto às linguagens em que o mundo físico pode ser descrito, o
autor distingue a linguagem corpuscular, a ondulatória e a neutra.
As duas primeiras incluem anomalias causais e tornam impossível
uma completa descrição dos fenómenos; quanto à terceira,
apresenta ainda uma anomalia na medida em que elimina o princípio
do terceiro excluído e

introduz uma lógica a três valores na qual, além do verdadeiro e do


falso, existe o indeterminado, (Ib., § 30). De acordo com esta
concepção da ciência, a

teoria das probabilidades toma um interesse fundamental; e os


resultados que Reichenbach conseguiu neste campo serão expostos
um pouco mais à frente (§ 816).

Reichenbach partilha com todos os outros neo-empiristas a teoria


segundo a qual o significado de uma proposição consiste na sua
:verificação; mas considera que se deva apelar para uma verificação
possível e não para uma que o seja de facto. A este propósito, o
autor distingue três tipos de possibilidade: a lógica, que significa
não contraditoriedade, à física, que significa a não contraditoridade
com as leis físicas e a técnica que consiste no uso dos métodos
práticos conhecidos. A física assume normalmente como critério de
significação para os seus enunciados a possibilidade física; mas na
discussão das teorias físicas usa muitas vezes a possibilidade

55

lógica para mostrar a inconsistência de algumas delas (Verifiability


Theory of Meaning, in Proceedings of the American Academy of
Arts and Science, vol. 80, 1951, págs. 53 e segs.).

§ 816. REICHENBACH: PROBABILIDADE E INDUÇÃO

Como vimos, é um lugar-comum no neo-empirismo a afirmação de que


a ciência é constituída por duas formas diferentes de proceder:
aquela que consiste na formulação de inferência ou deduções
analíticas e a que consiste na formulação indutiva de proposições
sobre a realidade. As análises dos neo-positivistas dirigiram-se
sobretudo para a primeira destas formas de proceder e para os
problemas lógicos a que ela dá origem (cfr. § 819). Quanto à análise
da segunda, podemos encontrar alguns contributos importantes em
Carnap, Reichenbach e outros. Vamos agora falar deles.

Segundo o neo-positivismo, que repete neste ponto


a doutrina de Hume, as proposições que se referem
a factos serão possíveis ou contingentes mas nunca necessárias.
Além disso, as proposições universais ou leis são apenas (de acordo
com a doutrina comum de Wittgenstein, Sclilick e Carnap) hipóteses
dotadas de um valor provável. O neo-positivismo acabou assim por
se voltar contra a tese, própria do positivismo oitocentista, do
rigoroso determinismo causal dos fenómenos. O físico austríaco
Philipp Frank (nascido em 1884), que se encontrava entre os fun-
56

dadores do Círculo de Viena, foi um dos críticos do conceito


clássico da causalidade (O significado da moderna teoria física para
a teoria do conhecimento, 1933; O princípio causal e os seus limites,
1932;
O fim da mecânica, 1935; Entre a física e a filosofia,
1941, A ciência moderna e a sua filosofia, 1949, sendo as duas
últimas obras, publicadas na América, compostas por ensaios
escritos entre 1907 e 1947). Frank criticou o significado ontológico
ou metafísico do princípio da causalidade e considerou-o
simplesmente como uma regra de previsão. Neste sentido, a
diferença entre a física clássica e a quântica reside apenas no
facto de a primeira explicar a coincidência aproximada entre as
previsões dos acontecimentos

e os próprios acontecimentos, recorrendo ao carácter aproximado


da descrição em que se baseia a previsão, enquanto que a segunda
admite explicitamente o carácter indeterminado da relação entre
previsão e acontecimento futuro. Frank notou ainda que é ilegítimo
construir generalizações metafísicas dos princípios ou dos
resultados da ciência experimental; e viu a razão de ser das
diferenças existentes entre a

ciência e a filosofia no facto de esta se manter em fases já


superadas pela ciência.
No âmbito destas ideias, que se tornaram património comum dos
neo-empiristas, o conceito da probabilidade adquiriu grande
importância para a interpretação dos enunciados factuais da ciência
e em particular das leis científicas. E os neo-positivistas preferem
uma interpretação estatística deste conceito, admitindo que a
probabilidade consiste na frequência relativa com que se verifica
um aconte-
57

cimento; logo, ela diz respeito não a acontecimentos individuais mas


sim a conjuntos de acontecimentos. Em fins de 1919 o matemático
austríaco Richard Von Mises (nascido em 1883), membro do Círculo
de Berlim e autor, entre outras obras, de um Manual do positivismo
(1939; trad. ital, com o título Manuale di critica científica e
filosófica, 1950), defendera a

concepção estatística das probabilidades, que expôs mais tarde no


livro Probabilidade, estatística e verdade (1928; trad. inglesa,
1939). Mais precisamente, Von Mises achava que a probabilidade
consiste no

limite das frequências relativas; se em n observações o


acontecimento teve lugar m vezes, então o quociente mIn
(frequência relativa) tende para um valor limite quando o numerador
e o denominador se tornam sempre maiores e este valor limite pode
ser

considerado como a medida da probabilidade. Von Mises achava


porém que o cálculo das probabilidades não pode servir para
justificar a inferência indutiva porque a passagem das observações
para os princípios teóricos gerais não e uma conclusão lógica mas
sim uma escolha; pode-se supor que essa escolha resista a futuras
observações, mas acontece que, na realidade, ela pode variar em
qualquer momento e das formas mais imprevistas (Kleines Lehrbuch
des Positivismus, § 14).

Pelo contrário, Reichenbach considerou que a

probabilidade é um fundamento suficiente para a

indução (Theory of Probability, 1949, p. 446; Experience and


Prediction, 1938, págs. 339 e segs.); e

concordaram com esta tese o americano C. I. Lewis (Analysis of


Knowledge, 1946) e os ingleses W.

58

Kneale (Probability and Induction, 1949), 1. O. Wisdom (Foundation


of Inference, in Natural Science,
1952) e R. B. Braithwaite (Scientific Explanation,
1953). Por outro lado, nenhum destes escritores considera que o
fundamento probabilístico da indução equivalha a uma justificação
da indução, no sentido de que lhe garanta uma validade em todos os
casos. A indução é por eles considerada, por um lado, como o único
método à disposição do homem para obter aquilo de que tem
necessidade, a saber, previsões exactas; por outro lado, como um
método susceptível de auto-correcção (Kneale, op. cit., p. 235;
Reichenbach, op. cit-, págs. 446 e 475). De qualquer modo, é um
método que implica necessariamente um certo risco se bem que
sirva ao mesmo tempo para limitar ou tornar calculável o próprio
risco.

Por outro lado, Carnap (num artigo de 1945 e depois na obra


Fundamentos lógicos da probabilidade, 1950) e Russell (Human
Knowledge, 1948, V, cap. 1) defenderam o outro conceito
fundamental da probabilidade (aquele que permitiu o nascimento do
próprio cálculo das probabilidades), segundo o qual a probabilidade
consiste no "grau de credibilidade", de "racionalidade" ou de
"confirmação" da proposição ou acontecimento individuais que
exprime; e reconhecem que este segundo tipo de probabilidade é
tão legítimo quanto o outro (que considera a frequência relativa de
classes de acontecimentos) e cumpre tarefas que o outro não pode
cumprir. Carnap, particularmente, mostrou que a objecção empirista
contra a probabilidade individual - o facto de a proposição "a
probabilidade de que amanhã

59

chova é de 1 /5" não pode ser verificada empiricamente porque


amanhã ou chove ou não chove - não é válida, pois aquela proposição
não atribui uma

probabilidade de 1 /5 à possível chuva de amanhã mas a certas


relações lógicas existentes entre a previsão de chuva e as
informações metereológicas. Além disso a probabilidade individual,
segundo Carnap, não é subjectiva nem psicológica mesmo sendo
chamada de "credibilidade" ou de "racionalidade", pois depende da
existência e da natureza das provas que podem confirmar a
hipótese. Carnap construiu por isso um sistema de lógica
quantitativa indutiva, baseado no conceito de confirmação assumido
nas

suas três formas: positiva, comparativa e quantitativa. O conceito


positivo de confirmação é a relação entre os dois enunciados h
(hipótese) e p (prova), que pode ser expressa por enunciados do
tipo "h é confirmado por p", "H é apoiado por p", "p é uma prova
(positiva) de h", "p é uma prova que corrobora a afirmação de h". O
conceito comparativo ou tipológico de confirmação é normalmente
expresso por enunciados que têm a forma "h é melhor confirmado
(ou apoiado ou corroborado, etc) por p do que h' por p'".
Finalmente, o conceito qualitativo ou métrico de confirmação, isto
é, o conceito de grau de confirmação, pode ser determinado por
procedimentos análogos aos necessários para introduzir o conceito
de temperatura a fim de explicar o

que significam as expressões "mais quente" ou "menos quente", ou


ainda o conceito de quociente de inteligência para determinar o
desenvolvimento intelectual. Carnap acaba por atribuir uma
importância

60

fundamental a este conceito de probabilidade, se

bem que admita a legitimidade do outro; e os seus

passos foram seguidos pelos neo-empiristas. Até Popper, que


anteriormente defendera a probabilidade estatística (Logik der
Forschung, 1934, cap. VIII), acabou por apresentar uma
interpretação da probabilidade estatística que a assemelha à
probabilidade indIvidual, considerando-a como a disposição ou
propensão de uma certa ordem experimental. Deste ponto de vista,
pode-se admitir por exemplo que um

dado tenha uma posição definida nessa ordem, que a disposição


pode ser modificada variando a posição do dado, que as disposições
deste género podem variar continuamente e que, finalmente,
podemos trabalhar com campos de disposições ou de entidades que
determinem disposições. A probabilidade ou disposição pode ser
então representada por um vector pertencente a um espaço de
possibilidades (The Propensity Interpretation of the Calculus of
Probability, and the Quantum Theory, in Observation and
Interpretation, ed. by S. Kõmer, 1957, págs.
67-68).

Mas quer a indução se baseie na probabilidade estatística ou na


probabilidade individual, o seu risco não varia, pois tanto rum caso
como noutro ela constitui um procedimento racional, mas não
infalível, de formular previsões. "Uma decisão é racional, afirma
Carnap, quando está de acordo com a probabilidade que é calculada
partindo das provas disponíveis; e isto mesmo que depois a decisão
tomada não seja bem sucedida" (Logical Foundations of Probability,
p. 181).

61

§ 817. O PRINCíPIO DA REFUTABILIDADE: POPPER

O principal instrumento polémico usado pelo neo-empirismo para


criticar a metafísica clássica e em geral qualquer proposição que
não pertença à lógica ou às ciências empíricas, é o critério adoptado
para definir o significado de urna proposição qualquer. Uma
proposição tem sentido se for susceptível de verificação. A
possibilidade de tal verificação (leia-se: verificação empírica)
constitui o único sentido possível das proposições factuais, já que
quando uma

proposição não pode ser verificada nem refutada deixa de ter


sentido e de ser uma "proposição": torna-se uma "pseudo-
proposição". Por outras palavras, "o significado de uma proposição
consiste no método da sua verificação".

Assim entendido, o critério de significação fundamentou a posição


polémica do neo-empirismo contra todas as formas da metafísica e,
em geral, da filosofia tradicional, já que parecia reduzir a simples
"não-sensos" todas as proposições que não se referiam a factos ou
acontecimentos empíricos, isto é, a todas as proposições não
compreendidas nas ciências da natureza. No entanto o significado e
o alcance desse critério nunca deixaram de ser objectos de
discussões o de críticas, tendo sido interpretado de formas
diferentes e sofrendo restrições ou limitações cada vez maiores,
apesar de constituir sempre uma posição fundamental do neo-
criticismo.

O primeiro ataque contra esta concepção surgiu no interior do


próprio Círculo de Viena, da arte 'do

62

austríaco Karl Popper (nascido em 1902 e actual professor da


Universidade de Londres), na sua obra intitulada A lógica da
investigação, publicada em

1934 numa colecção dirigida por Frank e Schlick (a edição inglesa


desta obra, com um importante apêndice, foi publicada em 1959).
Popper considera em primeiro lugar que a divisão das proposições
em duas classes, a das proposições significantes ou

científicas e a das proposições não significantes ou

metafísicas, é dogmática, por pretender basear-se na

própria natureza das proposições, a qual lhes é atribuída


definitivamente. Trata-se antes, segundo Popper, de definir unia
linha de demarcação, isto é, de propor ou estabelecer uma
convenção oportuna para a demarcação do próprio domínio da
ciência. Em segundo lugar, defende que a experiência deva ser
compreendida não como um mundo de dados mas como um método,
precisamente o método de verificação ou de controle, dos diversos
sistemas teóricos logicamente possíveis. Partindo desta base, o

autor propõe como critério de demarcação não a

verificabilidade mas a falsificabilidade das proposições: ou seja, o


considerar como característica de um sistema científico a
possibilidade de ser refutado pela experiência. Assim, a afirmação
"amanhã choverá ou não choverá" não é empírica na medida

em que não pode ser refutada, mas já o é esta outra: "amanhã


choverá". A superioridade deste critério baseia-se, segundo Popper,
na assimetria entre a verificabilidade e a falsificabilidade: se bem
que as proposições universais não possam derivar das particulares,
elas podem ser negadas por uma destas.

63

Não basta verificar que "este homem é mortal" para dizer que
"todos os homens são mortais"; mas basta tê-lo verificado para
garantir que "todos os

homens são imortais" é uma proposição falsa. O método da


refutação consiste em sobrepor à inferência indutiva a verificação
da falsidade dos sistemas dedutivos constituídos pelas
transformações tautológicas das proposições (The Logic of
Scientific Discovery, § 6). Assim, uma teoria pode ser considerada
empírica ou falsificável se dividir sem nenhuma ambiguidade a
classe de todas as proposições fundamentais possíveis em duas
subclasses: a das proposições com as quais é incompatível e que
constituem os falsificadores potenciais da teoria e a das
proposições que não a contradizem. Mais resumidamente, "uma
teoria é falsificável se a classe dos seus falsificadores potenciais
não for uma classe vazia" (Ib., § 21).

Na obra de Popper, o carácter problemático da ciência é ainda mais


fortemente sublinhado do que na dos outros empiristas. Não hesita
em considerar a ciência como um amontoado de conjecturas ou de
"antecipações" no sentido de Bacon, se bem que esteja sob um
controle sistemático. "0 nosso método de investigação não consiste
em defender essas antecipações para provarmos que temos razão.
Pelo contrário, procuramos sempre negá-las. Usando todas as armas
do nosso arsenal lógico, matemático e técnico, tentamos provar que
as nossas antecipações são falsas, a fim de construir novas
antecipações, injustificadas e injustificáveis, novos 'juízos
arriscados e prematuros', como lhes chamou escar-
64

necedoramente Bacon" (Ib., § 85). Nas suas obras mais recentes,


Popper opôs esta doutrina à do essencialismo, segundo o qual é
possível fazer uma descrição exaustiva e completa do mundo (da
sua "essência"); e considerou a própria ciência galileu-newtoniana
como uma manifestação do essencialismo. Contrapôs igualmente a
sua teoria ao instrumentalismo (Duhem), segundo o qual as teorias
científicas são meros instrumentos de cálculo (Three Views
Concerning Human Knowledge, in Contemporany British Philosophy,
1956, págs. 357 e segs.); e estendeu a crítica do essencialismo ao
domínio das ciências históricas, considerando o historicismo, por
aceitar a história na sua totalidade, como uma manifestação desse
mesmo essencialismo (The Poverty of Historicism, 1944).
Finalmente, viu no essencialismo a base do absolutismo político, cujo
fundador teria sido, a seus olhos, Platão (The Open Society and its
Ennetnies, 1945).
§ 818. NEO-EMPIRISMO: O PRINCíPIO DE VERIFICABILIDADE

A obra de Carnap Probabilidade e significado (1936) marca o


abandono definitivo, por parte do neo-empirismo, do critério de
significação tal como tinha sido considerado pelo Círculo de V,,-n-,,..
Como vimos (§ 813), Carnap sugeria naquele ensaio que basta, para
estabelecer o significado de um enunciado empírico, a possibilidade
de reduzir os seus termos a predicados observáveis, mesmo que
esta

65

redução só seja possível através de uma longa cadeia de enunciados


intermédios. Nesta forma, que entre outros factos toma em
consideração o uso crescente que as disciplinas científicas fazem
de entidades ou

construções que nada têm a ver com as coisas percebidas, o critério


de significação foi largamente aceite pelos neo-empiristas, sendo
ainda defendido por alguns deles.

Por outro lado, e mesmo nesta sua forma, o critério foi submetido a
críticas radicais. C. G. Hempel (nascido na Alemanha em 1905), um
dos membros do Círculo de Viena que, depois de 1934, ensinou em
Universidades americanas, considerou que mesmo a exigência de
redutibilidade introduzida por Carnap é demasiado restrita para
dar conta do significado dos enunciados científicos. A tese de
Hempel é a de que nenhum enunciado particular de uma teoria
científica é redutível a enunciados de observação, e de que o
"significado" de uma expressão relativamente a dados empíricos
potenciais depende de dois factores, a saber: a estrutura
linguística a que pertence a expressão e que determina as regras de
inferência dos enunciados, e o contexto
teórico a que ela recorre, isto é, o conjunto de hipóteses
subsidiárias que se encontram disponíveis. Assim, os enunciados que
exprimem a lei da gravitação universal de Newton não têm nenhum
significado experimental em si mesmos; só quando vêm expressas
numa linguagem que permita o desenvolvimento do cálculo e
combinados com um sistema apropriado de outras hipóteses é que
adquirem uma certa importância na interpretação dos fenómenos
observá-
66

veis. Deste ponto de vista, só os enunciados que formam um sistema


teórico, ou melhor, só os sistemas na sua totalidade têm significado
cognitivo. Este significado é uma questão de grau: existem sistemas
cujo vocabulário extra-lógico consiste totalmente em termos
observáveis e outros que dificilmente têm qualquer alcance sobre
eventuais situações empíricas (The Concept of Cognitive
Significance, in Proceedings of the American Academy of Arts and
Science, vol. 80, 1951, p. 74). Partindo desta base, Hempel elucida a
formação das teorias científicas mostrando que o significado
empírico dos sistemas axiomáticos consiste na sua possibilidade de
serem interpretados a partir de fenómenos empíricos, isto é,
mediante proposições que relacionam certos termos do vocabulário
teórico com termos observáveis; e insistiu ainda no carácter parcial
desta possibilidade de interpretação (The Theoretician's Dilenuna,
1958, trad. ital. in La formazione dei conceui e delle leorie nella
scienza empirica, pá-s. 145 c, segs.).

Um ponto de vista semelhante foi defendido, de forma ainda mais


radical, pelo lógico americano Willard Van Orman Qu;ne em obras
(Lógica matemática, 1940; Métodos de lógica, 1950; De um ponto de
vista lógico, 1953; Palavra e objecto, 1960) que fornecem
importantes desenvolvimentos da lógica simbólica e que contêm
determinações igualmente importantes da relação entre lógica e
filosofia. Num ensaio de 1951, Dois dogmas do empirismo, Quine
considerou precisamente como "doama" a existência neo-empirista
de definição do significado das proposições factuais em termos de
experiência. Mes-
67

mo na forma atenuada que esta exigência reveste para Carnap, isto


é, na forma de redução dos termos de tais proposições a predicados
observáveis, ela não pode ser satisfeita por todos os enunciados
científicos e não pode assim valer como critério para avaliar o seu
"significado". Quine afirma que a menor unidade que se pode
considerar dotada de significado é a totalidade da ciência. "A
ciência total, matemática, natural e humana, afirma, é, em graus
diversos, determinada pela experiência. As margens do sistema
devem concordar com a experiência; o

resto, com todas as suas elaborações míticas ou fictícias, tem como


único objectivo simplificar as leis" (From a Logical Point of View,
116). Não há dúvida de que o esquema conceptual da experiência é
um

instrumento para a previsão das experiências futuras a partir das


experiências passadas. Mas os chamados objectos físicos são
introduzidos nas situações a título de cómodos intermédios, não
para construir definições em termos de experiência mas

apenas como posições (posits) irredutíveis não muito diferentes dos


deuses de Homero. "Os objectos físicos e os deuses só diferem por
uma questão de grau, não de espécie. Ambos estes tipos de
entidades entram nas nossas concepções como simples posições
culturais. O mito dos objectos físicos é epistemologicamente
superior aos outros porque demonstrou ser um expediente mais
cómodo para forjar uma

estrutura manejável no fluxo da experiência" (Ib.,


11, 6). Falar de "objectos físicos" ou de "acontecimentos individuais
subjectivos, sensações ou reflexões", como de entidades a que se
refere a física,

68

depende da posição ontológica que se escolhe. Quer a tese do


realismo quer a do fenomenismo são "mitos"; e a escolha de um
deles depende dos interesses e dos fins que se pretendem atingir
(Ib., págs. 16 e segs.).

Segundo Quine, o dogma da verificabilidade empírica está


estreitamente ligado ao da distinção rigorosa entre as proposições
analíticas e as sintéticas, distinção que constitui um dos pontos
mais polémicos do neo-empirismo (§ 819).

Quine representa, em certa medida, a ala esquerda das posições


neo-empiristas. Aquela a que poderemos chamar ala direita é a mais
fiel à formulação original do critério de significação, aceitando
quanto muito a forma atenuada que lhe foi dada por Carnap. Assim,
Herbert Feigl, um outro membro do Círculo de Viena que
actualmente ensina na Universidade de Minnesota, defendeu
precisamente esta formulação do critério, considerando-o no
entanto como uma "proposta" e não como uma proposição, e isto
para evitar que ele caia na sua própria jurisdição (o que o tornaria
não válido para não poder ser verificado empiricamente), e para lhe
reconhecer uma validade não teórica mas prática. Fiegl defende
ainda uma interpretação "realista" da ciência, admitindo a
existência de "entidades teóricas" que podem ser relacionadas com
termos que designem dados da observação directa (Existencial
Hypotheses, in "Philosophy of Science", 1950; Some Major Issues
and Developinents in the Philosophy of Science of Logical
Empiricism, in Minnesota Studies in Philosophy of Science, 1956,
págs. 3-37).

69

Gustav Bergmann, um outro membro do Círculo de Viena que é


actualmente professor na Universidade do Estado de lowa, exprimiu
com intenções análogas o critério de significação como sendo um
"princípio da experiência imediata" (acquaintance), no sentido de
que "todos os predicados descritivos, pertencem a, ou podem ser
explicitamente (textualmente) definidos por um conjunto de termos
que representam características imediatas e observáveis" (in
Proceedings of the American Academy of Arts and Science, vol. 80,
1951, p. 80). Por outras palavras, o princípio exige que termos como
"electrão", "peso específico", etc., possam ser definidos de tal
modo que todos os termos que entram nas respectivas definições
(excepto os relacionadores lógicos e, é, tudo, etc.) sejam nomes de
coisas imediatamente perceptíveis ou de constituintes das coisas
que possam ser imediatamente experimentadas (Philosophy of
Science, 1957, págs. 5 e segs.). No entanto, é característica de
Bergmann a tentativa para analisar de forma lógica a experiência
imediata recorrendo ao conceito de intencionalidade (deduzido por
Brentano e Husserl): o significado é o acto de consciência que se
refere ao seu conteúdo ou, mais exactamente, ao seu "referente"
(Intentionality, in "Arquivo de Filosofia", 1955, p. 184).

§ 819. NEO-EMPIRISMO: PROPOSIÇõES ANALÍTICAS E


SINTÉTICAS

O segundo princípio básico do neo-empirismo consiste na distinção


entre proposições analíticas
70

e proposições sintéticas. Encontra-se intimamente relacionado com


o primeiro, isto é, com a exigência de verificabilidade empírica das
proposições sintéticas. Estas são as que exprimem factos; a sua
validade (ou o seu "significado") consiste precisamente na sua

verificabilidade no domínio dos factos (seja como for que estes se


compreendam). As proposições analíticas são válidas
independentemente dos factos: são as tautologias de que falava
WitIgenstein. Carnap, Reichenbach e todos os neo-positivistas
defendem o carácter analítico ou tautológico das proposições da
lógica e da matemática. Num artigo de
1931 (depois reproduzido em Readings in the Philosophy of Science,
1953, págs. 122-28) Carnap dava a conhecer a diferença entre
ciências formais (lógica e matemática) e ciências factuais (física,
biologia, psicologia, sociologia, etc.) baseada precisamente na

diferença entre proposições analíticas e proposições sintéticas: as


ciências formais conteriam apenas enunciados analíticos e as
factuais enunciados sintéticos. Julius R. Weinberg, num Exame do
positivismo lógico (1936) mostrava como o reconhecimento do
carácter analítico da lógica impede a aceitação da metafísica. "Se a
ló gica não nos puder dizer nada sobre o mundo, afirma, torna-se
absolutamente impossível construir uma metafísica dedutiva. A
eliminação desta última, já realizada em certa medida por Hume e
Kant, é completada por esta demonstração" (An Experiment of
Logical Positivism, 1, cap.
11; trad. ital., p. 99). Mais tarde, no entanto, o carácter analítico ou
tautológico das matemáticas foi negado por Friedrich Waismann na
sua Introdução
71

ao pensamento matemático (1936). "A matemática não consiste em


tautologias, afirmava. Se bem que mantenha o sinal de igualdade,
observemos que a

expressão a=b é usada na matemática como uma regra que exprime


que a, onde quer que apareça, pode ser substituído por b... A
igualdade não consiste portanto numa tautologia mas antes numa
ordem e está muito mais próxima de uma proposição empírica do
que de uma tautologia. É efectivamente uma regra que dirige as
nossas acções (tal como uma regra do jogo de xadrez) e que pode
ser aceite ou

Denken, IX, Q trad. ital., págs. 164-65).

Mas a própria possibilidade de uma distinção rigorosa entre


proposições analíticas e sintéticas é posta em dúvida por Morton
White num ensaio publicado em 1950 (em Sydney Hook, ed., J.
Dewey,
1950, págs. 316-30) e por Quine. Este último mostrava que todos os
caminhos usados para esclarecer a própria noção de analiticidade a
pressupõem. Assim, a analiticidade introduzida por definição ou

pelo critério de intercambialidade (segundo o qual dois termos


serão considerados analíticos se puderem ser substituídos um pelo
outro nas expressões em

que surgem sem que estas se tornem menos verdadeiras) serve para
estabelecer a analiticidade de certos termos mas não esclarece o
significado da própria analiticidade. Também não a podem definir as
"regras semânticas", que definem a analiticidade dentro de um
sistema linguístico determinado. Em todos estes casos, a
analiticidade é simplesmente pressuposta. "Não foi delineada
nenhuma distinção entre enunciados analíticos e sintéticos, e a
afirma-
72

ção de que unia tal distinção deve ser estabelecida é um dogma não
empírico dos empiristas, um artigo metafísico de fé" (From a
Logical Point of Viw,
11, 4). Isto quer dizer, segundo Quine, que a própria distinção entre
a parte que é devida à experiência e aquela que é devida à linguagem
não pode ser feita no caso dos enunciados particulares. A
totalidade do nosso conhecimento ou das nossas crenças é uma
construção humana que só atinge a experiência nos seus confins. Um
conflito periférico com a experiência dá origem ocasionalmente a
um reacomodamento no interior do campo, o que significa que os
valores de verdade são redistribuídos por algumas das nossas
afirmações. A revalorização de algumas delas obriga à revalorização
das outras, por existirem entre si relações lógicas; mas as próprias
leis lógicas não são mais do que afirmações do sistema, isto é,
elementos do campo. Quando um

elemento do sistema cognitivo entra em conflito com a periferia


empírica do sistema, temos sempre uma

ampla possibilidade de escolha das afirmações que é necessário


reavaliar. Uma afirmação bastante próxima da periferia do sistema
pode manter-se ao ser comparada com uma experiência
recalcitrante, a qual será então considerada ilusória. Mas, por outro
lado, até as leis fundamentais para a construção do sistema, por
exemplo, as leis lógicas, podem ser submetidas a revisão ou
negadas, tal como aconteceu com o princípio do terceiro excluído ao
ser confrontado com a mecânica quântica. De qualquer modo, "é
perfeita loucura procurar uma distinção entre as asserções
sintéticas que se reflectem contin-
73

gentemente sobre a experiência e as asserções analíticas, válidas


para o que quer que aconteça" (Ib.,
11, 6). A última obra de Quine, Palavra e objecto (1960), é a defesa
e a ilustração analítica deste ponto de vista.

É óbvio que se a eliminação daquilo a que Quine chamou "os dois


dogmas do empirismo" fosse realizada mesmo a fundo, mudaria
radicalmente a estrutura do empirismo. Por outro lado, dificilmente
se poderia continuar a falar do neo-empirismo como sendo um
empirismo "lógico". Com efeito, e nesta direcção, Arthur Pap propôs
o abandono da teoria linguística da necessidade lógica e

considerou essa necessidade como "uma propriedade intrínseca das


proposições, isto é, como uma espécie de a priori intuitivo",
sugerindo ao mesmo tempo que as proposições não são "meros
enunciados linguísticos" mas sim "objectos de crença", no mesmo

sentido em que os valores são objectos de preferência ou os sons


objectos do ouvido (Smantics and Necessary Truth, 1958, p. 201).
No entanto, a renúncia aos dois "dogmas" está bem longe de ser
aceite por todos os neo-empiristas, alguns dos quais defenderam
até explicitamente a distinção entre as
proposições analíticas e sintéticas. Assim fez Feigl (no segundo dos
artigos citados), acentuando que a descoberta de uma distinção
precisa entre proposições analíticas e sintéticas e não apenas útil
como
até indispensável, e que a sua refutação é o resultado da confusão
entre a análise das linguagens artificialmente estabelecidas e a
investigação histórica das linguagens naturais.
74

§ 820. NEO-EMPIRISMO: A SEMÂNTICA

Na Sintaxe lógica da linguagem (1934), Carnap concebia a lógica (na


qual resumia toda a tarefa da filosofia) como pura sintaxe ou arte
combinatória,

à qual era estranha a consideração do significado dos termos.


Afirmava então que "uma lógica especial do significado é
supérflua"" (Logical Syntax, § 71). Mas nos anos que se seguiram
à publicação daquela obra, Carnap foi-se interessando cada vez

mais pelos problemas inerentes à teoria do significado, isto é, a


semântica num sentido restrito. As suas investigações sobre o
princípio de verificabilidade, a modalidade, a probabilidade e a
indução são

precisamente o resultado deste novo interesse pela semântica, à


qual dedicava em 1941 uma obra com o título Introdução à
semântica; estabeleceu as relações entre a semântica e a sintaxe
num outro escrito intitulado Formalização da lógica (1942).
Declarava nesta altura aceitar a divisão, proposta por Morris, da
semiótica em sintaxe, semântica e pragmática (§ 797). A semântica
contém "a teoria daquilo a

que chamamos habitualmente o significado das expressões e,


portanto, o estudo que conduz à construção de um dicionário que
traduza a linguagem-Objecto numa metalinguagem" (Introduction
to Semantics, 1959, p. 10). E contém ainda a teoria da verdade e a
da dedução lógica, pois verdade e

consequência lógica são conceitos baseados na relação de


designação e, portanto, são conceitos semânticos.

75

O desenvolvimento da semântica nesta direcção tivera um


contributo fundamental por parte da escola polaca de lógica e,
particularmente, de Alfred Tarski (nascido em 1901), professor de
filosofia da matemática em Varsóvia que, mais tarde viveu nos

Estados Unidos. Segundo Tarski, a semântica é a disciplina que


"trata de certas relações entre as expressões de uma linguagem e
os objectos (ou 'estados de facto') a que essas expressões se
referem". Como exemplos típicos dos conceitos semânticos, podem-
se mencionar os de designação, satisfação e definição, que
aparecem nos exemplos seguintes: a expressão w pai da pátria"
designa (denota) George Washington; a neve satisfaz à função
proposicional (condição) "x é branco"; a equação "2x=1" define
(determina univocamente) o número 1/2. Por outro lado a palavra
verdade é de natureza diferente: exprime a

propriedade (ou denota uma classe) de certas expressões, isto é,


dos enunciados. Partindo da teoria tradicional da verdade (teoria da
correspondência) um

enunciado só é verdadeiro se corresponder à realidade ou, como


também se pode dizer, se designa um estado de coisas existente.
Mais precisamente, pode-se dizer: o enunciado "a neve é branca" é
verdadeiro se e só se a neve é branca. A frase a neve é branca,
quando está entre aspas, pertence à linguagem-objecto, isto é, à
linguagem de que se fala: pode ser considerada como um nome
porque o objecto de que se fala é sempre representado por um

nome. Mas a mesma frase, sem estar entre aspas, pertence, à


metalinguagem, isto é, à linguagem com que falamos da primeira
linguagem e em cujos termos

76

desejaríamos construir a definição de verdade para a primeira


linguagem. Ora a metalinguagem, que permite uma definição exacta
da verdade e, em geral, dos conceitos semânticos, deve conter, para
além das expressões da linguagem-objecto, os nomes destas
expressões, isto é, uma riqueza maior. A distinção entre a
linguagem-objecto e a metalinguagem permite, segundo Tarski,
eliminar a famosa antinomia do mentiroso, pois a frase "eu minto" é
compreendida no sentido "eu minto ao dizer p", onde p é um
enunciado da linguagem-objecto e não pertence à metalinguagem em
que é expressa a frase "eu minto". Assim sendo, podemos indicar
com um X a frase a neve é branca posta entre aspas e com um

p a mesma frase sem estar entre aspas; então, "X é verdadeira se e


só se, p". Esta, como nota Tarski, não é uma definição da verdade;
mas "qualquer equivalência que se obtenha substituindo p por um

enunciado particular e X pelo nome deste enunciado pode ser


considerada como uma definição parcial da verdade, que explica em
que consiste a verdade de um enunciado particular (The Semantic
Conception of Truth, 1944, in Readings in Philosophical Analysis,
1949, p. 55).

A definição semântica da verdade foi interpretada de várias


formas, Por um lado, foi entendida como se dissesse que "a
afirmação da verdade de uma proposição equivale à afirmação da
proposição": assim aconteceu com Max Black em Language and
Philosophy (1952, trad. ital., p. 103). Por outro lado, foi entendida
como substituindo o velho conceito de correspondência pelo de
satisfação ou preenchi-
77

mento das condições: o enunciado "a neve é branca" é verdadeiro se


a neve satisfaz a função proposicional "x é branco". Assim
acontece, por exemplo, no caso

de Popper (The Logic of Scientifie Discaversy, p.


274). De qualquer modo, trata-se de uma noção introduzida para a
construção das linguagens axiomáticas ou formais mas que
dificilmente pode ser

utilizada, como pretendia Tarski, no domínio das ciências empíricas.

§ 821. NEO-EMPIRISMO: A FILOSOFIA ANALÍTICA

A outra direcção em que se manifesta o actual pensamento neo-


empirista é a da filosofia analítica, que tem o seu centro nas
Universidades inglesas de Oxford e de Cambridge e encontrou
defensores noutros países, principalmente nos escandinavos. Se o

neo-positivismo extraiu muitas das suas posições do Tractatus de


Wittgenstein, a filosofia analítica deve

a sua inspiração fundamental à reelaboração da doutrina de


Wittgenstein feita por ele próprio em Inglaterra, à influência que
este autor exerceu através da sua actividade de professor e às
obras que fez circular a título privado e que apenas foram
publicadas postumamente (§ 809). Se bem que Moore, como

vimos (§ 772), considerasse como tarefa da filosofia a defesa das


crenças do senso comum e como seu
método o exame das asserções filosóficas, não reduzindo assim a
filosofia à análise da linguagem, o procedimento que ele aplicou foi
considerado como um importante precedente da filosofia analítica
con-
78

temporânea. Mas é óbvio que o precedente fundamental ou ponto de


partida dessa corrente é a tese da segunda fase do pensamento de
Wittgenstein, na qual se consagra a multiplicidade e relatividade
das linguagens, que são caracterizadas pelo uso que delas se faz na
conservação normal dos homens.

Os temas do neo-positivismo foram introduzidos na Inglaterra por


uma obra de Ayer, Linguagem, verdade e lógica, publicada em 1936.
Mas já numa

obra de Gilbert Ryle, de 1931, era atribuída à filosofia a tarefa de


eliminar ou rectificar as expressões **l'@nÍcuíst,*Lc-.s desviadas
(Systematically Misleading Expressions, actualmente em A. G. N.
Flew, ed., Logic and Language, 1, cap. 11). E John Wisdom, num

artigo de 1938, considerava o princípio de verificação proposto


pelos neo-positivistas como "teoria. metafísica" ("Mind", 1938, p.
340). Como foi dito por um dos mais qualificados membros desta
corrente, J. O. Urmson (Philosophical Analysis, 1956, p. 179),
substituía-se o slogan do neo-positivismo "o significado de uma
asserção é o método da sua verificação", por dois outros slogans:
"não se deve procurar o significado mas sim o uso" e "toda a
afirmação tem a sua própria lógica". O primeiro destes slogans
convida a esclarecer a tarefa que uma afirmação pode desempenhar
e não o seu significado analítico; e o segundo faz notar que a
linguagem tem muitas **4tareíqs e mu-Aos 4níve:s, e que a
descrição do mundo é apenas uma das tarefas, e não a única, a que
os outros são redutíveis. Esta atitude, se bem que esteja de acordo
com a tese da segunda fase do pensamento de Wittgenstein sobre a
multiplicidade e

79

a relatividade das linguagens, constitui também o abandono do


conceito da análise como redução do mundo aos seus elementos ou
como tradução dos hábitos linguísticos numa linguagem ideal.

Deste ponto de vista, a filosofia conserva a sua função terapêutica,


isto é, de libertação das dúvidas, adivinhas, perplexidades e
confusões linguísticas que nos surgem. Mas o instrumento de
libertação deixa de ser a lógica (como o considerava o neo-
positivismo), isto é, a tradução dos modos habituais de falar numa
linguagem formalizada que lhes elimine os equívocos, para se
transformar numa consideração das utilizações efectivas das
expressões linguísticas e dos fins que com elas se pretendem
atingir. As investigações lógicas, tal como as de metodologia
científica, caiem assim fora da esfera de interesses em que se
move esta corrente da filosofia analítica.

Entre os seus vários defensores, aquele que mais se avizinha dos


interesses e dos temas do neo-positivismo é Alfred Julius Ayer
(nascido em 1910), professor em Oxford e autor de uma série de
obras (Os fundamentos do conhecimento empírico, 1940;
Pensamento e significado, 1947; Ensaios filosóficos,
1954; O problema do conhecimento, 1956). Muitos dos problemas da
filosofia foram tratados por Ayer num sentido que se avizinha mais
do empirismo inglês tradicional do que das exigências do neo-
empirismo. Assim, a sua análise do conhecimento é essencialmente
uma defesa, contra as instâncias cépticas, das crenças do senso
comum na realidade das coisas e dos outros espíritos e na
possibilidade de exprimir estas crenças numa forma comunicável de
lingua-
80

gem. "A razão pela qual as nossas experiências sensíveis oferecem


uma base para crer na existência dos objectos físicos é a de que os
enunciados que, se referem a esses objectos são usados de tal
modo que as nossas experiências nos levam a acreditar na sua
verdade" (The problem of Knowledge, págs.
147-48). No entanto, Ayer não afirma que só existem os objectos
físicos. existem ainda os estados mentais, cujo carácter privado
não nos impede de os descrever (Ib., p. 242). E, em geral, Ayer é
favorável a um uso generalizado e múltiplo da palavra existe. "Se
uma dada pessoa usa símbolos que não se aplicam a nada de
observável, poderá do mesmo modo afirmar que existe aquilo que
tenta designar por tais símbolos. Pode acontecer que, procedendo
deste modo, ele use a palavra 'existe' de uma forma não sancionada
pelo seu uso normal, mas isto só é criticável na medida em que torne
possível qualquer mal-entendido" (Philosophical Essays, p. 227).

Para a crítica dos acontecimentos mentais, entendendo estes como


um conjunto independente de acontecimentos diferentes de
quaisquer outros, deu um contributo fundamental Gilbert Ryle
(nascido em 1900), professor em Oxford e dIrector do
**"M,*l,ld>-.>. No Conceito do espírito (1949) rectificou chama "o
dogma do espectro existente na máquina", isto é, a doutrina
cartesiana sobre a existência de uma substância espiritual,
diferente e independente do mecanismo corpóreo. Na base deste
dogma está um "erro de categoria" semelhante ao cometido por
quem visitasse as salas de aula, as bibliotecas, as faculdades e os
laboratórios de uma

81
universidade e considerasse não ter ainda visto a própria
universidade. O erro de categoria consiste na substancialização da
alma ou do espírito como

realidade à parte, como se aquela não consistisse num certo


conjunto de comportamentos da pessoa.
O espírito é precisamente, tal como a universidade, o nome dado a
um conjunto de comportamentos de um certo nível. Deste ponto de
vista, a consciência não constitui uma via de acesso privilegiada a
uma esfera de certezas imediatas ou originárias, mas apenas (no
seu sentido mais estritamente filosófico) um conhecimento de
certas actividades ou operações, conhecimento esse que não pode
ser considerado como privilegiado pelo simples facto de não ser
isento de erro (The Concept of Mind, VI, 2; trad. ital., págs. 158 e
segs.). Contudo, Ryle não se inclina para uma concepção materialista
ou fisicalista. Afirma que a percepção não é nem um processo ou
estado corpóreo nem um processo ou estado incorpóreo, mas antes
o fim de um processo, isto é , a sua realização, o seu ponto final, tal
como a chegada à meta é o ponto final de uma competição
desportiva (Dilenimas, 1954, págs. 108-9). Ryle considera que o
mundo da percepção (ou melhor, o seu campo) não é contraditório
com o mundo ou campo da física, variando apenas os respectivos
modos de descrição, que são diferentes e independentes um do
outro. Aquilo que não é mencionado numa fórmula científica não
pode ser negado por ela, da mesma forma que a linguagem do bridge
não exclui a do poder, se bem que as cartas usadas num e noutro
jogo sejam as mesmas. Do mesmo modo, a lógica e a

82

filosofia não coincidem nem se opõem, já que a filosofia utiliza a


lógica da mesma forma que o cartógrafo utiliza a geometria ou o
comerciante utiliza a contabilidade. Mas "enquanto o filósofo se
ocupa de conceitos com sangue e carne, tais como os de prazer ou
de memória, o lógico formal ocupa-se apenas de conceitos
esqueléticos como os de não ou de alguns, e mesmo estes devem
limitar-se a um alcance reduzido e a uma forma que nada tenha de
natural, sob pena de o lógico nem sequer os consideram (Ib., p. 118).

Assim como Ryle nega que se possa atribuir qualquer privilégio à


experiência interior, um outro

neo-analista, John Wisdom (nascido em 1904), professor em


Oxford, afirma a posição contrária, assumindo tal experiência
interior como correspondendo ao único tipo de conhecimento que
pode ser considerado como certo e autêntico. Os outros espíritos,
deste ponto de vista, são reconstituídos partindo dos sintomas que
cada um de nós encontra na experiência de si próprio (Os outros
espíritos, 1952). Partindo desta atitude, Wis-dom foi levado a uma
interpretação filosófica da psicanálise, que lhe parece
precisamente baseada na experiência 1953). E é óbvio que, deste
ponto de vista, as limitações drásticas que o neo-empirismo impôs à
possibilidade de falar dos objectos que transcendem a experiência,
caiem automaticamente: "sintomas" de tais objectos podem ser
sempre encontrados. O próprio Wisdom, num artigo de 1955,
encontrou sintomas da existência de Deus no comportamento
religioso dos homens (Gods, in A. G. N. Flew,

83

ed., Logic and Language, 1, Cap. X). Por outro lado, pode notar-se
também uma certa abertura para uma

metafísica tradicional noutros representantes da filosofia analítica


inglesa. P. F. Strawson (nascido em
1919), professor em Oxford, conhecido por ter tentado elaborar
um estudo sobre lógica da linguagem ordinária (Introdução à teoria
lógica, 1952), defendeu o papel construtivo e inventivo da
metafísica, afirmando que esta pode esclarecer directa ou
indirectamente os aspectos fundamentais dos modos como
realmente pensamos e falamos, e fornecer instrumentos úteis ou
indispensáveis para o progresso das matemáticas e das outras
ciências (Construction and Analysis, in G. Ryle, ed., The Revolution
in Philosophy, 1956, pá,-s. 109-10). E ele próprio tentou dar um
contributo para uma metafísica, descritiva contraposta à
tradicional, considerada prescritiva, num livro intitulado Indivíduos
(1959).

Por outro lado, pode encontrar-se uma maior aderência aos cânones
clássicos do neo-empirismo analítico nas obras de John L. Austin
(1911-60; Escritos filosóficos, 1961; Como fazer coisas através das
palavras, 1962; Sentidos e dados sensíveis, 1962). Austin não aceita
que o ponto de partida da investigação filosófica deva ser a
linguagem comum; mas

não nega que ela contenha equívocos ou confusões, embora


individualizáveis, e afirma que ela não pode constituir a última
palavra para a filosofia. Na realidade, muitas das suas notações
mais originais não SãO meramente linguísticas. Assim, a frase "eu
sou" é por ele considerada não como uma descrição mas

COMO Uma posição assumida. "Quando digo 'eu sou',

84

autorizo os outros a dizerem S é N. E criticando a opinião de


Wisdom. sobre os outros espíritos, afirma: "Crer nas outras
pessoas, na autoridade e no testemunho é um aspecto essencial do
acto de comuniCar, e um acto que realizamos constantemente. É
uma parte irredutível da nossa experiência, tal como fazer
promessas, participar em jogos competitivos ou ver

uma fechadura" (Other Minds, in A. C. N. Flew, ed., Logic and


Language, 11, págs. 144 e 157).

§ 822. O NEO-EMPIRISMO ÉTICO

Em todas as suas ramificações o neo-empirismo considerou a


linguagem descritiva como privilegiada, pelo facto de as proposições
(enunciados ou asserções declarativas) que constituem tal
linguagem serem as únicas expressões (como já tinha sido
reconhecido por Aristóteles) que podem ser declaradas verdadeiras
ou falsas, constituindo por isso o património da ciência. Ora, do
ponto de vista da linguagem descritiva, as regras, as normas e os
imperativos que constituem a moral não têm o mínimo sentido. Por
isso, o neo-empirismo negou quase unanimemente à ética, enquanto
ciência da moral, o carácter de uma disciplina racional.

O domínio da moral foi assim remetido pelos neo-empiristas para o


campo das emoções. Wittgenstein afirmava que "a ética é
inexprimível" (Tractatus,
1921, 6.42). Schlick afirmava: "quando recomendo a alguém uma
acção que considero boa, exprimo o

facto de eu a desejar" (fragen der Ethik, 1930, 1,

85

§ 6), que é um ponto de vista que coincide com o


de Russell § 1041, Carnap afirmava que as proposições da ética são
pseudo-proposições que "não têm conteúdo lógico", não sendo mais
do que "expressões de sentimentos que tendem por sua vez a
suscitar sentimentos e vontades naqueles que as ouvem"

(Logical Syntax of Language, 1934, § 72). Ayer contribuiu para


difundir este ponto de vista, exprimindo-o numa forma mais crua:
"ao dizer que um

dado tipo de acção é bom ou mau, faço apenas uma

asserção factual e não uma afirmação sobre o meu estado de


espírito. Exprimo simplesmente certos sentimentos morais. E o
homem que abertamente me

contradiga exprime também os seus sentimentos morais. Assim, não


faz sentido discutir qual de nós terá razão porque nenhum de nós
afirma uma proposição genuína. A função da linguagem ética é
portanto emotiva, no sentido de estimular emoções e

de conduzir à acção, mas é impossível encontrar um critério para


determinar a validade dos juízos éticos" (Language, Truth and
Logic, 1936; ed. 1948, págs.
107-8). Mais tarde, Ayer rebatia substancialmente este ponto de
vista (Philosophical Essays, 1954, págs.
231 c seas.). Na mesma ordem de ideias Feig] declarava: "0 termo
valioso (no sentido não instrumental) é usado como uma
afirmação puramente emotiva para a orientação ou rectificação
das posições" (Logical Empiricism, in Readings in Philosophical
Analysis, 1949, p. 24). E Pap corrigia esta tese afirmando que o
valor só é objectivo quando é inter-subjectivo, isto é, quando é o
objecto de desejos comparticipados ou comparticipáveis por um
86
grande número de pessoas (Elements of Analytic Philosophy, 1949,
págs. 38 e segs.).

Contribuiu bastante para reforçar este ponto de vista comum a


todos os neo-empiristas, o livro de Charles L. Stevenson intitulado
Ética e linguagem (1945), que é uma análise detalhada da linguagem
prescritiva da moral. Aceitando uma distinção já feita por Ogden e
Richards, Stevenson estabelece a distinção entre significado
descritivo e significado emotivo das palavras, mediante o conceito
de disposição já utilizado por Carnap e outros. O significado
descritivo de um signo é "a sua disposição para modificar o
conhecimento, se bem que a disposição seja causada por um
processo elaborado de condicionamento que acompanhou o uso do
signo na comunicação, e seja fixada, pelo menos num grau
considerável, por regras linguísticas" (Ethics and Language, 1950, p.
70). Por outro lado, o significado emotivo de uma palavra é "a força
que a palavra adquire, partindo da sua utilização em situações
emocionais, para evocar ou exprimir directamente atitudes sem as
descrever ou designar" (Ib., p. 33). Os dois tipos de significado não
constituem partes mas sim aspectos diferentes de uma situação
total;

mas o significado emotivo pode ser mais ou menos independente do


descritivo. Ora os juízos éticos baseiam-se inteiramente no
significado emotivo. Se Ticiano e Caio têm duas atitudes
diferentes, se Ticiano aprova e Caio desaprova a mesma coisa x, o
desacordo não diz respeito à natureza de x, que até pode ser
descrito da mesma forma por ambos, mas sim na atitude valorativa
que assumem. Com

87
efeito, se o seu desacordo é determinado por um

conhecimento insuficiente da coisa x, pode ser eliminado de forma


puramente racional mediante uma

descrição exacta da coisa. Mas quando o desacordo diz respeito a


atitudes, o método para o eliminar não é racional mas sim
persuasivo, dependendo então do alcance emocional das palavras,
isto é, "do significado emotivo, do uso de uma retórica conveniente,
de uma metáfora adequada, de um tom de voz peremptório,
estimulante ou suplicante, de gestos dramáticos, da preocupação em
estabelecer uma

relação com quem nos ouve, etc." Qb., págs. 138 e

segs). Podem considerar-se como instrumentos fundamentais do


procedimento persuasivo as definições persuasivas, que alteram o
significado descritivo dos termos dando-lhos um maior rigor,
dentro dos limites da sua imprecisão habitual, mas não modificando
o seu significado emotivo (Ib., p. 210).

Estas teses de Stevenson são aperfeiçoa-das pelas de R. M. Hare


na obra A linguagem da moral, publicada em 1952. Hare reafirma a
distinção entre proposições imperativas e proposições descritivas e

também a inderivabilidade (já reconhecida por Hume) das primeiras


a partir das segundas. Insiste no entanto, com uma terminologia
diferente da usada por Stevenson, na existência de um conteúdo
comum aos dois tipos de frases (indicativo ou designativo), no
sentido de que as duas frases "fecha a porta" (imperativo) e "a
porta está por fechar" (indicativo) têm em comum o elemento
"fechar a porta"; e reconhece a diferença entre os dois tipos de
proposições afirmando que "o consentimento sincero numa delas
88

implica acreditar em qualquer coisa e o consentimento na outra


indica fazer qualquer coisa" (The Language of Morals, p. 20). As
proposições imperativas, não podendo ser deduzidas de qualquer
princípio indicativo, são deduzidas de princípios também
prescritivos, os quais são os geralmente aceites pela sociedade em
que se vive, mas que não são imutáveis na medida em que podem ser
repropostos, corrigidos ou modificados (Ib., p. 150). No recente
livro Liberdade e razão (1963), Hare insistiu na universalidade que
os juízos morais compartilham com

os descritivos, aceitando assim a tese de Kant (Freedom and


Reason, p. 34)-, e também na possibilidade de os pôr à prova (como
Popper aconselhou para o

caso das proposições científicas) através da tentativa de os


refutar. "Assim como a ciência, honestamente cultivada, é a procura
das hipóteses e o pô-las à prova tentando mostrar a falsidade das
suas consequências, também a moral, considera-da seriamente,
consiste na procura dos princípios e no pô-los à prova em casos
particulares. Toda a actividade racional tem a sua disciplina, que
será a disciplina do pensamento moral: pôr à prova os princípios
morais que sugere, extraindo as suas consequências e vendo

se as podemos aceitar" (Ib., p. 92). Pode dizer-se a

propósito que o carácter, considerado "emotivo", das proposições


morais, em que tanto insistiram os

neo-empiristas, foi posto de parte. É certo que, segundo Hare, o


discurso ético parte da prescrição de acções e não da descrição de
factos; mas a disciplina lógica a que está submetido -
universalização da restrição e tentativa de refutar as
consequências - é

89

idêntica à que é característica da ciência.'Isto deveria significar


que ao discurso moral corresponde a mesma validade do discurso
científico.

§ 823. O NEO-EMPIRISMO ESTÉTICO

Assim como o objecto da moral, o da estética foi geralmente


reduzido pelos neo-empiristas ao

domínio das emoções. Nos fins de 1923, num livro que teve muita
expansão, O significado do significado, estudo sobre a influência
das linguagens no

pensamento e sobre a ciência do simbolismo, C. K. Ogden e 1. A.


Richards estabeleceram a distinção que, como se viu, foi
amplamente adoptada pelos neo-empiristas no campo da moral, isto
é, a distinção entre o significado cognitivo e o significado emotivo
das palavras. A função cognitiva ou simbólica compreende "a
subordinação da referência da palavra à coisa e a sua comunicação
ao observador, isto é, o provocar neste uma referência
semelhante". A função emotiva compreende "a expansão das
emoções, das atitudes, do humor, das intenções do orador e a sua
comunicação, isto é, a sua evocação no ouvinte" (The Meaning of
Meaning, 1952, p. 149).
O próprio Richards reconhecia na linguagem poética "a suprema
forma da linguagem emotiva", isto é, daquela que tem a função de
estimular "emoções e
atitudes" (Principles of Literary Criticism, 1924; ed. de 1955, p.
273). Deste ponto de vista, nenhuma distinção em possível entre a
arte e a moral, a qual é

90

ainda contemporaneamente reduzida ao estímulo das atitudes, e na


realidade essa distinção nunca foi tentada pelos neo-empiristas.

Todavia, no próprio domínio da semântica foi realizada uma


tentativa mais eficaz para determinar a posição da arte, partindo
dos problemas concretos da crítica de arte, por Bernard C. Heyl, no
livro Novas orientações na estética e na crítica de arte (1943), o
qual teve uma importância notável no

desenvolvimento das ideias estéticas contemporâneas. Heyl


prescinde da distinção, entre significado emotivo e significa-do
descritivo, dado prescindir do próprio conceito de verdade
artística, que substitui pelo conceito de significado artístico. Este
depende do conteúdo do objecto artístico, isto é, dos inumeráveis
estados de espírito que exprime e que são totalmente diferentes
dos factores não estéticos do tema que representa ou do
argumento sobre que se debruçou. E depende ainda da forma, isto
é, da organização e

da ordem ou forma como os elementos do objecto artístico se


encontram reciprocamente relacionados.
O nível do significado artístico não é de modo algum confundido com
a "perfeição", isto é, com o modo como o artista exprimiu as suas
intenções, e isto porque obras igualmente perfeitas podem ter
significado artístico diferente (New Bearings in Esthetics and Art
Criticism, 1947, págs. 79-81). A medida do significado artístico não
é absoluta mas sim relativa, pois admite a possibilidade de
diferentes escalas de valores. "Aquilo que indubitavelmente é
necessário é uma medida que não admita valores independentes das
valorações humanas mas que, todavia, reconheça

91

a necessidade e justifique a existência de juízos bem alicerçados


de melhor e pior. No entanto, estes não podem ser considerados
absolutos visto dependerem de opiniões filosóficas e de critérios
empíricos que variam de indivíduo para indivíduo e de cultura para
cultura. Mas isto significa apenas que é inevitável e desejável a
existência na crítica de uma certa elasticidade e variedade, o que
corresponde à natureza humana (Ib., págs. 154-155).

Os outros temas a que o neo-empirismo se referiu no domínio da


estética consistem principalmente nas

polémicas que efectuou contra a estética realista ou idealista. A


impossibilidade de formular uma única definição que contenha a
"essência" da arte e que por isso valha para todas as artes e para
todas as

suas modalidades; a impossibilidade de formular juízos estéticos e


escalas de valores imutáveis e definitivas; a necessidade de ter em
conta as valorações estéticas e os princípios de tais valorações que
estejam em uso na crítica estética ou no gosto comum são alguns
dos temas que foram tratados, por exemplo, numa recolha de
textos publicada em 1954 por um grupo de escritores neo-
empiristas (W. Elton, ed., Esthetics and Language, Oxford, 1954).

§ 824. O NEO-POSITIVISMO JURÍDICO


maior expoente do neo-positivismo jurídico é Hans Kelsen, nascido
em Praga em 1881 e professor em universidades americanas. As
obras principais

92

deste autor são: Teoria geral do estado, 1925; Os princípios


filosóficos da doutrina do direito e do positivismo jurídico, 1928-,
Teoria pura do direito,
1934 (todas estas obras foram publicadas na Europa); A teoria
geral do direito e do estado, 1943; Sociedade e natureza, 1943; A
paz e o direito, 1944; A teoria política do bolchevismo, 1948
(publicada na América).

O pressuposto fundamental de Kelsen é o comum

a todos os neo-positivistas, isto é, o do carácter descritivo da


ciência e do carácter prático ou irracional dos juízos de valor. "A
ciência, afirma Kelsen, não tem capacidade para pronunciar juízos
de valor, logo isso não lhe é autorizado. Isto aplica-se igualmente à
ciência do direito, mesmo que ela seja considerada como uma
ciência dos valores. Assim como todas as outras ciências dos
valores, ela consiste no conhecimento de tais valores mas não os
pode produzir; pode compreender as normas mas não as pode criam
(General Theory of Law and State, apêndice M trad. ital., p. 448).
Deste ponto de vista, o neo-positivismo, jurídico deve precaver-se
contra qualquer especulação do tipo jus-naturalista sobre o

"direito em si" e limitar-se a uma teoria do direito positivo,


considerado como um produto humano e, logo, sem uma justificação
absoluta. Por outras palavras, reconhece-se ao direito positivo uma
validade hipotético-relativa, o que não o impede de concretizar-se
em normas válidas. O conceito fundamental da teoria do direito
será o de norma. Uma norma é válida se tiver força para disciplinar
o comportamento daqueles a que se dirige; é por isso que a

93

sua validade não depende da vontade dos indivíduos ou da vontade


do legislador. Não é o -facto de ser ou não desejada que constitui a
validade ou não validade da norma, mas sim a sua capacidade de
vincular pela força o comportamento do indivíduo.
O direito é assim uma técnica social, precisamente aquela que
consiste na organização da força (Ib., págs.21 e segs.). Todas as
normas jurídicas são expressas por uma proposição hipotética que
prevê uma sanção em condições determinadas; visto que ela obriga
um indivíduo a comportar-se de determinada forma perante um
outro indivíduo, ela garante a este último um comportamento
correspondente ao comportamento do primeiro. Dos dois aspectos
importantes de qualquer norma, o que corresponde ao dever ser que
ela estabelece e o que corresponde à sanção que recai sobre aquele
que não a respeita, deveremos considerar como fundamental o
segui-ido. "Se se considera que uma primeira norma proibindo o
roubo só é válida se existir uma outra que aplique uma sanção a este
delito, então, a primeira é certamente supérflua numa correcta
exposição do direito. Mas se existir, essa primeira norma estará
contida na segunda, a qual será a única norma jurídica genuína" (Ib.,
p. 61).

A insistência de Kelsen sobre a independência da norma, em -1ral,


de unia qualquer ordem

c,

normativa das condições de facto psicológicas ou


sociológicas, está ligada por um lado à dualidade neo-empirista do
facto e do valor e, por outro lado, à exigência 'das escolas neo-
criticistas de subtrair a validade de uma norma a todas as
condições de

94

facto. Kelsen serve-se com rigor do conceito de norma para


esclarecer os outros conceitos fundamentais da filosofia do direito,
a saber, os do estado e dos elementos do estado (território,
população).
O estado não é mais do que a própria ordem jurídica.
O conceito sociológico do estado (dado, por exemplo, por Max
Weber), entendendo este como uni conjunto de comportamentos
orientados para a ordem jurídica, pressupõe a existência dessa
mesma ordem. "0 conceito sociológico de um modelo efectivo de
comportamento, orientado para a ordem jurídica, não é um conceito
do estado mas pressupõe esse conceito, o qual será exclusivamente
jurídico" (Ib., p. 193). Deste ponto de vista, o território do estado
é a esfera espacial de validade da ordem jurídica estatal (Ib., p.
211), e o povo, o outro elemento do estado, é a esfera pessoal de
validade dessa mesma ordem (Ib., p. 238). Visto que "o direito
regula a

própria criação", o direito internacional, enquanto ordem jurídica


superior aos estados, é aquilo que torna possível a criação de
normas válidas para a

esfera de dois ou mais estados, isto é, de normas internacionais


(Ib., p. 359). A afirmação de que o direito estatal antecede e dá
origem ao direito internacional (subjectivismo ou solipsismo de
estado) ou
a de que o direito internacional antecede e dá origem ao direito
estatal (objectivismo), são apenas duas hipóteses sobre as quais
nada se pode decidir no terreno da ciência jurídica: "Na escolha de
qualquer uma destas afirmações somos tão livres como quando
escolhemos uma filosofia subjectivista ou uma objectivista" (Ib., p.
394).

95

Aquilo que é característico do neo-positivismo jurídico, na forma


como este é entendido por Kelsen, é o reconhecimento da
existência de uma esfera de validade da norma jurídica, que não se
identifica nem com a dos factos nem com a das valorações
emocionais. Kelsen. faz sua e defende a tese neo-empirista do
carácter não racional mas emotivo da valoração moral, -distinguindo
claramente a esfera do direito da de tais valorações. As normas do
direito devem ser obedecidas não por serem boas OU justas mas
sim por terem sido produzidas de uma

dada maneira, dependendo a sua validade apenas do assunto que


constitui a norma fundamental que estabelece a autoridade
criadora do direito (Ib., p. 401). Mas, por outro lado, o direito nunca
é um facto, isto é, nunca se identifica com os comportamentos
efectivos dos indivíduos que lhe estão submetidos ou

que o instituem. Uma espécie de "terceiro reino" é assim


introduzido por Kelsen na dicotomia clássica do neo-empirismo.

É a introdução deste terceiro reino que justifica a originalidade e a


força da doutrina de Kelsen, a qual se distingue assim do
posItivismo jurídico o"tocontista que considerava o direito como a
ordem ou a acção imperativa do estado ou de qualquer outra
autoridade, ou que tendia a identificá-lo com a média dos
comportamentos efectivos. Uma importante variante deste neo-
positivismo jurídico é constituída pela obra do inglês H. L. A. Hart,
professor em

Oxford, intitulada O conceito de direito (1961). Segundo Hart a


tese do positivismo jurídico segundo a qual o direito é
essencialmente a estipulação de

96

uma sanção (a norma secundária de que fala Kelsen), não só ignora a


variedade das normas de direito com o ainda reduz a uma ilusão a
noção de obrigação jurídica. O carácter obrigatório do direito
radica no facto de ele servir para resolver condições ou

situações humanas específicas, as quais não só marcam o conteúdo


das normas de direito como ainda constituem a sua justificação
(The concept of Law, p. 82). Como exemplos de tais condições e
situações poderemos citar a vulnerabilidade e a igualdade
aproximada dos seres humanos, o seu relativo altruismo por aqueles
que sofreram unia agressão ou qualquer tipo de violência, a
limitação dos recursos disponíveis

e a imperfeita capacidade de previsão dos homens, que até agora


têm preferido os seus interesses imediatos esquecendo-se de si
mesmos e dos outros. As normas morais e as jurídicas têm em
comum a

função de resolver essas situações, mas distinguem-se uma da outra


pelo facto de as primeiras exigirem uma adesão intencional ou
voluntária, de se manterem imutáveis e de tenderem a delinear um
ideal de perfeição que está para além de qualquer obrigação
jurídica. Nas ordens jurídicas modernas, existe um conjunto de
normas secundárias que tendem a
colmatar a incerteza, o carácter estático e a ineficácia que
caracterizam habitualmente as normas primárias, próprias de
grupos sociais que não têm um

sistema legislativo nem magistrados ou agentes que o possam pôr


em prática. As normas secundárias fornecem a regra de
reconhecimento que permite ajuizar da validade de uma lei e do
alcance de tal validade, as regras de modificação que autorizam

97

algumas pessoas a introduzir novas normas primárias ou a abolir as


velhas, e finalmente as regras institucionais que permitem a
formação das magistraturas, isto é, de corpos investidos da
autoridade necessária para determinar se um dado caso particular
constitui ou não uma violação das leis (Ib., págs. 89 e segs.).

Deste ponto de vista, a validade de um sistema jurídico apoia-se,


segundo Hart, nas regras de reconhecimento que inclui. Numa
monarquia absoluta, a única regra de reconhecimento é a vontade do
soberano, dado que basta uma decisão sua para dar a uma regra o
valor de lei. Nos sistemas jurídicos modernos, os critérios são
múltiplos e normalmente incluem uma constituição escrita, a
existência de poderes destinados a aprovar e a promulgar leis e,
por vezes (como no caso de Common Law inglesa), um certo número
de precedentes judiciários. Quando uma norma tem os requisitos
exigidos pelas regras de reconhecimento, ela é juridicamente válida
mesmo

que do ponto de vista moral seja má ou injusta. Hart propõe a


distinção entre a validade das leis, baseada na regra de
reconhecimento, e a sua moralidade ou justiça; e faz notar que se
deve distinguir rigorosamente entre os juízos que dizem respeito à
validade e aqueles que se referem à moralidade ou justiça de uma
lei. Deve-se portanto dizer: "a

lei x .- válida mas injusta", e não "a lei x não é lei porque não é
justa" (Ib., p. 206).

Hart continua assim fiel à exigência fundamental do positivismo


jurídico, a saber, a de considerar

98

a validade dos sistemas jurídicos independentemente das regras ou


dos critérios da moral.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 805. Sobre o neo-positivismo: H. REICHENBACH, Ziele und Wege


der h@utigen Naturphilosophie, Leipzig,
1931; L. GEYMONAT, La nuova filosofia della natura in Gern~ia,
Turim, 1934; 1d., Studi per un nuovo

razioftalimo, Turim, 1945, os quais incluem diversos


a,profundamentos originais da doutrina lógico-matemática; S. K.
LANGER, Philosophy in a New Key, Nova Yorque, 1942; J.
WEINBERG, Introduzione al positivismo lógico, Turim, 1950; V.
I--'RAFT, Der Wiener Kreis, Viena, 1950; F. BARONE, Il neo-
positivismo logico, Turim, 1953, e ainda as obras citadas no
parágrafo seguinte.

§ 806. Sobre o Círculo de Viena e as escolas corn ele relacionadas:


E. O. NEURATH, in "Erkenntnis",
1, 1930, págs. 321-39 (trad. frane., Paris, 1935); H. REiCHENBACH,
in "The Journal of Philosophy", 1936, págs. 141-60; H. "IGL, in
Twentieth Century Philohophy, ao cuidado de D. Runes, Nova
Yorque, 1947, págs. 406 e segs.; J. JOERGENSEN, The
Developrnent of Logical Empiricis?n, in "International Encyclopedia
of Unified Seience", Chicago, 1951; T. KOTARBINSKI, La Logique
en Pologne (de uma edição dq Academia polaca de ciências e letras),
Bibl. di Roma, 1959.

Da International Encyclopedia of United Science fazem parte


várias monografias, repartidas em dois volumes de Foundations of
Unity of Sciejwe. O vol. I compreende: O. NEURATH, N. BOHR, J.
DEwEY, B. RuSSELL, C. CARNAP, C. MORRIS, Encyclopedia and
Unified Science, 1938; C. MORRIS, Foundations of the Theory of
Signs, 1938; R. CARNAP, Foundations of Logie and Mathematics,
1939; L. BLOOlUFIELD, Linguistic Aspects of Sciffice, 1939; V.
LENZEN, Proce-
99

dures of Empirtical Sciences, 1938; E. NACEL, Principies of the


Theory of Probability, 1939; P. FRANK, Foundations of Physics,
1946; E, FINLAY-FREUNDLICH, COSmology, 1951; E. BRUNSWIK,
The Conceptual Framework of Psychology, 1952. O vol. II
compreende: O. NEURATH, Foundations of the Social Sciences,
1944; J. DEwEY, Theory of VaZuation, 1939; J. WOODGER, The
Technique of Theory Construction, 1949; C. HEmFEL, The
FundamentaIs of Concept Formation in Empirical Science, 1952; G.
DE SANTILLANA e E. ZILSEL, The Development of
Rationalismand Empiricism,
1941; J. JOERGENSEN, The Development of Logical Empiricism,
1941. - Consulte-se: U. SCARPELLI, in "Revista de filosofia", 1950;
A. PASQUINELLI, iVi, 1952.

§ 807. De Schlick: Fragen der Ethi7z, Viena,


1930; Gesammelte Aufsãtze (1926-36), prefácio de F.
WAISMANN, Viena, 1938; Philcsophie der Natur, Viena,
1948; Natur und Kultur, ao cuidado de J. RAUSCHER, Viena, 1952.

Sobre Schlick: H. FEIGL, in "Erkenntnis", 1937, págs. 393-419; F.


BARONE, in "Filoc@ofi--", 1952, págs.
440-71; 11 neo-positivisnio logico, Turim, 1953, págs.
170-201; P. CHIODI, in "Revista de filosofia", 1954, págs. 26-35.

§ 808. De Neurath, para além dos escritos já citados: Unified


Science as Encyclopedic integration, no vol. I da International
Encyclopedia of Unified Science, Chicago, 1938; Man in the Making,
Londres,
1939.

Sobre Neurath: F. BARONE, 11 neo-positivisrno logíco, cit., págs.


216 e segs.

§ 809. De WittgcnsteJn: Tractat," Logi,-ú-Pizí1@)scphicus, trad. !


tal. de G. C. M. COLOMBO, Milão, 1954 (Com bibliog.).

SObre a primeira fase do pensamento de Wittgenstcin: J. R.


WEINBERG, Introduzione al positivismo lOgicO, Turim, 1950; F.
BAPONE, O neO-POSitiVi.Smo

100

lógico, cit., págs. 95-122; G. E. M. ANSCOMBE, An Introduction to


W.'s Tractatus, Hutchinson's University Library, 1959; A.
MASLOW, A ;Study in W.'s Tractatus, Berkeley (Calif.), 1961; E.
STENIUS, W.'s Tractatus, Uhaca (N. Y.), 1960; G. BERGMANN, in
"Rivista di filosofia", 1961, págs. 387-406.
§ 811, Sobre a segunda fase do pensamento de Wittgenstein: E. G.
MOORE, in "Mind", 1954, págs.1-15,
289-316; ed. de 1955, págs. 1-27; P. F. STRAWSON, in "Mind",
1954, págs. 70-99; N. ABBAGNANO, Possibilidade e liberdade,
Turim, 1956, págs. 215-26; M. DUMMET in "The Philosophical
Review", 1959, págs. 324-48.

§ 812. De Carnap: Fundamentos de lógica e matemática, trad. ital.


de G. PRETI, Turim, 1956; A Mintaxe lógica da linguagem, trad. ital.
de A. PASQUINELLI, Milão, 1961. A bibliografia de Carnap até
1955 in "Rivista, critica di storia della filosofia", 1955, págs.
462-78.

§ 815. De Reichenbach: Os fundamentos filosóficas da mecânica


quântica, trad. ital. de A. CARACCIOLO, Turim, 1954; O nascimento
da filosofia científica, trad. ital., de D. PARisi e A. PASQUINELLI,
Bolonha,
1961. Bibliografia completa de Reichenbach na já citada tradução
do Nascimento da filosofia científica.

§ 817. De Popper: Miséria do historicismo, trad. ital., de C.


ROATTA, Milão, 1954.

Sobre Popper: PIETRO ROSSI, História e historicismo na filosofia


contemporânea, págs. 405-40.

§ 818. De Quine: Methods of Logic foram traduzidos em italiano


com o título Manuais de lógica, Milão, 1960.

Sobre Quine: C. A. VIANO, in "Rivista di filosofia",


1956, págs. 454-70.

De Hempel: FundamentaIs of Concept Formation in Empirical


Science, 1952, e The Theoretici~s Dilemma, 1958, foram
traduzidos em italiano com o

101

título A formação dos conceitos e das teorias na ciência empírica,


Milão, 1961.

§ 821. Traduções italianas: G. Ryle, O espírito como-


comportamento, ao cuidado de F. Rossi-LANDI, Turim, 1955; A. J.
Ayer, Linguagem, verdade e lógica, ao cuidado de G. DE TONI,
Milão, 1961; P. F. Strawson, Introdução à teoria lógica, ao cuidado
de A. VISALBERGHi, Turim, 1961.

Sobre filosofia analítica: 1. O. URMSON, Philosophical Analysis, Its


Development Between the two World Wars, Oxford, 1956; F.
Rossi-LANDI, Significado, comunicação e linguagem comum, Pádua,
1961. Traduções italiana: G. Ryle, O e&pírito como comportamento,
ao cuidado de F. Rossi-LANDi, Turim, 1955; A. J. Ayer, Linguagem,
verdade e lógica, ao cuidado de G. BE TONI, Milão, 1961; P. F.
Strawson, Introdução à teoria lógica, ao cuidado de A.
VISALBERGHi, Turim,
1961.

Sobre Wisdom: C. A. VIANO, ill <@,,Rivista di filosofia", 1954,


págs. 48-54.

§ 822. Sobre a ética neo-empirista: U. SCARPELLI, in "Rivista di


filosofia", 1953, págs. 320-37 (sobre Pap); ID., in. "Rivista di
filosorfia", 1954, págs. 170-95 (sobre Stevenson); ID. in "Jus",
1953, págs. 305-25. (sobre Hare); ID., in "Rivista di filosofia",
1963, p.@,gs. 191-208 (sobre Hare); G. MORRA, O problema moral
no neo-positivismo, Manduria-Bari, 1962. Neste último escrito
encontram-se outras indicações bibliográficas.

§ 823. Sobre a estética neo-empirista: P. RAFFA, in "Rivista di


filosofia", 1962, págs. 159-97).

§ 824. Sobre o neo--positivismo jurídico: N. Boi3ino, in. "Rivista di


filosofia", 1961, págs. 14-34; A. PASSERIN d'ENTREVES, in
"Rivista di filosofia", 1962, págs.
12-26.

Bibliografia das obras de Kelsen em Teoria generale del diritto e


dello stato, trad. ital. de S. COTTA e G. TREvEs,Milão, 1954, págs.
455-63. Outras traduções

102

italianas de Kelsen: Teoria pura del diritto, ao cuidado de R.


TREVES, Turim, 1952; Sociedade e natureza, ao cuidado de L. FuÀ,
Turim, 1953; La teoria comunista deZ diritto, ao cuidado de G.
TREVES, Milão, 1956.

Sobre Kelsen: II fundamento filosofico della dottrina pura del


diritto di A. K., Turim 1934; U. SCAPPELLI, in "Rivista
Internazionale di filosofia del diritto>, 1954, págs. 767-780; P. L.
ZAMPETTI, Metafísica e sci&nza del diritto neZ K., Milão, 1956.

Sobre Hart: N. ABBAGNANO, in "Rivista di filosofia", 1952, págs.


63-68.

103

XIV
A FENOMENOLOGIA

§ 825. CARACTERíSTICAS DA FENOMENOLOGIA

A fenomenologia-no sentido específico em que esta palavra é


empregue para designar uma corrente

da filosofia contemporânea -concebe e exerce a

filosofia como análise da consciência na sua intencionalidade. Dado


que a consciência é sempre intencionalidade, pela simples razão de
ser consciência de alguma coisa, a sua análise é a análise de todas as
possíveis formas de uma coisa ser dada à consciência (percebida,
pensada, recordada, simbolizada, amada, desejada, etc.), e portanto
de todos os tipos de sentido ou de validade que podem ser
reconhecidos aos objectos da consciência. A análise fenomenológica
da consciência só se poderá então efectuar se, em primeiro lugar, a
própria consciência não for

105

assumida como uma "realidade", ao mesmo título das outras


realidades do mundo, mas sim como fonte ou princípio, já que a
realidade é --penas uni

dos modos como o objecto pode ser dado à consciência; e, em


segundo lugar, e consequentemente,

ZD

se a consciência assume nos seus contactos com o mundo a atitude


de um espectador desinteressado, para o qual os objectos se
apresentam como fenómenos, isto é, nos modos específicos como
eles são dados, mas que não se envolve nas vicissitudes sofridas
pelos próprios objectos. Qualquer investigação autenticamente
racional será, deste ponto de vista, uma via que permite aos
objectos da conscIência revelarem-se no seu "ser verdadeiro" ou na
sua essência: o conceito da razão como manifestação ou revelação
do ser toma assim uma importância essencial na fenomenologia.

Na obra de Husserl, a filosofia enquanto indagação fenomenológica


apresenta as seguintes características:

1) É uma ciência teórica (contemplativa) e rigorosa, isto é,


"fundamentada", no sentido de ser "dotada de fundamentos
absolutos".

2) É uma consciência intuitiva porque tenta d--r as essências que se


apresentam à razão de uma forma análoga àquela em que as coisas
se apresentam à percepção sensível. Este aspecto da filosofia
mantém o carácter da razão acima descrito, isto é, como
manifestação ou revelação do ser.

3) É uma ciência não-objectiva, dado ser completamente diferente


das outras ciências parcelares,
106

consideradas ciências dos factos ou das realidades (físicas ou


psíquicas), enquanto que ela prescinde de qualquer facto ou
realidade e se preocupa apenas com as essências.

4) É uma ciência das origens e dos primeiros princípios, dado que a


consciência contém o sentido de todos os possíveis modos como as
coisas podem ser dadas ou constituídas.

5) É uma ciência da subjectividade, na medida em que a análise da


consciência se dirige para o eu

considerado como sujeito ou pólo unificador de todas as


intencionalidades constitutivas.

6) É uma ciência impessoal porque "os seus

colaboradores não têm necessidade de prudência mas de


conhecimentos teóricos".

Estes aspectos definem a filosofia lia forma como ela foi entendida
por Husserl. mas não as posições definidas no seio do movimento
fenomenológico, do qual as várias manifestações assumem
isoladamente um ou mais destes aspectos. A característica mais
comummente aceite é a segunda, isto é, a defesa

do conceito de razão segundo o qual esta é uma auto-revelação


evidente do ser e da filosofia (que é a

actividade racional por excelência) como explIcitação de todas as


formas possíveis de manifestação do ser.

Este conceito é sobretudo utilizado por Meinong e

Hartmann, que constituem a ala realista ido movimento


fenomenológico, e por Scheler, que o utilizou na ética, entendendo
esta como o campo da auto-manifestação evidente dos valores
objectivos. O próprio existencialismo compartilha, como veremos,
este

107

conceito da razão (se bem que isto se limite às suas correntes


fenomenológicas); mas o existencialismo distingue-se da filosofia
fenomenológica de Husserl por considerar o modo de ser do homem
como tal, determinando este modo de ser não como "alma" ou
"subjectividade" transcendental mas como estar

no mundo. Substitui-se deste modo a análise das estruturas


subjectivas, que constituem o tema próprio da fenomenologia de
Husserl, pela análise das estruturas que ligam o homem ao mundo e
que fazem um todo com o mundo que se manifesta ao homem.

§ 826. ANTECEDENTES DA FENOMENOLOGIA: BOLZANO,


BRENTANO

A fenomenologia de Husserl nasce, como veremos, da polémica


contra a posição empirista ou

psicologista da lógica e,,em geral, da teoria do conhecimento. Além


disso baseia-se, como se viu, no conceito de intencionalidade.

Ora a polémica anti-empirista e anti-psicologista, a d'stinção entre


os problemas de facto relativos à origem e ao desenvolvimento do
conhecimento e o problema de direito da validade do próprio
conhecimento encontram a sua origem na obra de Kant e são depois
retomados e continuados pelo neo-crIticismo contemporâneo. Esta
polémica chega a

Husserl através das obras dos lógicos matemáticos, especialmente


de Frege (§ 795) e de Bolzano, no qual se baseia explicitamente.

108

Bernhard Bolzano (1781-1848) foi matemático, metafísico e


filósofo da religião. Os seus Paradoxos
O

do infinito (1851) têm uma grande importância no

desenvolvimento do pensamento matemático do séc. _XIX e


constituem um precedente da obra de Cantor (§ 794). Os seus
escritos de filosofia religiosa foram quase todos anónimos: tinha
sido afastado em 1819 da cátedra de doutrina filosófica da reli-ião,
que ocupava desde 1805 na Universidade de Praga. A sua

metafísica (Athanasia ou provas para a imortalidade da alma, 1827)


nada tem de original, e remete sobretudo para Leibniz. A sua obra
verdadeiramente notável é a Doutrina da ciência (1837), a que
mesmo admitindo uma certa dependência da lógica relativamente à
psicologia, na medida em que a lógica deve ensinar o homem a atingir
a verdade (Wissenschc.,ftslehre, § 13), tenta elaborar a doutrina
da "proposição em si", da "representação em si" e da "verdade em
si". A proposição em si é o simples significado lógico da proposição,
na medida em que é independente de ser verdadeiro ou falso, de
estar ou não expresso em palavras e de ser ou não pensado por um
espírito (1h., § 19). A representação em si é o aspecto objectivo da
representação, que não exige nenhuma relação com o sujeito e
constitui a matéria da representação subjectiva, isto é, da
representação com

acto de um sujeito pemsante (Ib., § 48-49). A verdade em si é toda


a proposição válida, quer seja expressa ou pensada ou não seja
expressa nem pensada. As proposições em si não têm nenhuma
existência real: adquirem-na, quando são reconhecidas e portanto
pensadas, tornando-se verdades em sen-
109
tido subjectivo. Mias a matéria destas verdades subjectivas é
sempre uma verdade em si, que é válida independentemente do seu
reconhecimento (Ib., § 25). Proposições e verdades em si
constituem o domínio das matemáticas puras, enquanto que o
conhecimento verdadeiro entra já no campo do subjectivo, porque
lhe é essencial o aspecto subjectivo das representações e idos
juízos. O em si de que fala Bolzano é a

dimensão lógico-objectiva da experiência, na medida em que possuí


unia validade independente das condições subjectivas do conhecer.

O outro pressuposto fundamental da fenomenologia, a


intencionalidade da consciência, chega a Flusserl através de Franz
Brentano (1838-1917), de quem foi discípulo. Brentano, inicialmente
padre católico, afastou-se depois da, Igreja e foi professor de
filosofia em Viena; viveu muito tempo em Florença e

morreu em Zurique, para onde se tinha retirado no início da,


primeira guerra mundial. As suas obras principais são as seguintes:
Psicologia do ponto de vista empírico (1874); A origem do
conhecimento moral (1889); O futuro da filosofia (1893); As quatro
fases da filosofia e o seu momento presente (1895): Investigações
sobre a psicologia dos sentidos (1907). É também autor de estudos
aristotélicos (Sobre os muitos significados do existente em
Aristóteles,
1862; A psicologia de Aristóteles' 1867-, O creacionismo de
Ar"stóteles, 1882; Aristóteles e a sua visão do mundo, 1911; A
doutrina de Aristóteles sobre a origem do espírito humano, 1911); e
inspira-se primeiramente em Aristóteles e na Escolástica.
110

A tese fundamental de Brentano é a do carácter intencional da


consciência ou da experiência emgeral. Intentio é um termo
escolástico e foi usado na última fase da escolástica para indicar o
conceito, quando este se refere a alguma coisa diferente de si e lhe
toma o lugar. A lógica dos termos, por exemplo a de Ockham (§
316), baseia-se inteiramente no

carácter intencional do conceito, que tinha vindo a

substituir o conceito como species. Segundo Brentano, a intencional


idade é o carácter específico dos fenómenos psíquicos enquanto se
referem a um objecto imanente. Brentano baseia a classificação
dos fenómenos psíquicos nas diversas formas de intencionalidade, A
representação, o juízo e o **senflnionto, que são precisamente as
três classes fundamentais de tais fenómenos, distinguem-se entre
si pela natureza do acto intencional que os constitui. Na
representação, o objecto está simplesmente presente, no juízo, é
afirmado ou negado; no sentimento, é amado ou odiado. Todos estes
actos se referem a um (objecto imanente" e são, portanto,
intencionais; mas a sua intencionalidade, isto é, a sua referência ao
objecto, é diferente para cada um deles. O objecto do acto
intencional é imanente enquanto cai no âmbito do próprio acto, ou
seja, no âmbito da prÓpria experiência psíquIca. Brentano defende,
pois, numa

primeira fase (Psicologia, 1874), que o objecto da intencional idade


possa ser real ou irreal; e a esta fase do seu pensamento vinculam-
se Husserl e Meinong. Depois, o seu parecer sobre esta questão
**muc@@)u. Na Classificação dos fenómenos psíquicos (1911)
afirma que o objecto da intencionalidade é sempre

111

um objecto real e que a referência a um objecto irreal é sempre


uma referência indirecta, isto é, feita através de um sujeito que
afirme ou negue o próprio objecto. A referência ao objecto é
apenas a relação primária do espírito, que tem no próprio acto uma

relação secundária consigo mesmo. Isto permite-lhe que na


actividade psíquica una haja multiplicidade, de relações e de
objectos (Von der Massifikalion der I)sychischen Phünon-tene,
1911, p. 127). Brentano afirmava ainda o princípio de que, enquanto a
realidade é sempre individual ou singular, o conhecimento apreende
o real na sua generalidade.

Com tudo isto, Brentano permaneceu no âmbito da investigação


psicológica; de facto, as suas outras especulações não evidenciam
nenhuma conexão sistemática particular com o princípio da
intencionalidade da consciência. Assim, por exemplo, pensa que os
conceitos de substância e de causa derivam da experiência; que as
partículas ou os acontecimentos materiais são manifestações de
uma única substância, imóvel; que o espaço e o tempo têm carácter
substancial e constituem determinações das próprias coisas. Estas
especulações têm apenas valor como

provas de que a intencionalidade da consciência é para este autor


um princípio limitado à explicação dos fenómenos psíquicos, tal como
se revelam à Psicologia empírica, mas que não constituía de modo
algum a base de um método filosófico verdadeiro e pessoal. A
originalidade de Husserl consiste precisamente em ter adoptado
este ponto de vista. Subtraiu a intencionalidade da consciência à
esfera da experiência psíquica e atribuiu-a à esfera da simples
112

validade lógico-objectiva que lhe tinha sido revelada (como vimos)


pelo neo-criticismo e por Bolzano.

§ 827. HUSSERL: VIDA E OBRA


Edmund Husserl nasceu em Prossnitz (Morávia) a 8 de AbrI de
1859 e morreu em. Freiburg im Breisgau a 26 de Abril de 1938.
Estudou matemática com Weierstrass e foi aluno de Brentano.
Ensinou filosofia na Universidade de Goettingen e depois na

de Freiburg até 1929.

As suas obras publicadas foram as seguintes: Sobre o conceito de


número (1887); Cálculo das consequências e lógica do conteúdo
(1891); Filosofia da aritmética (1891)-, Estudos psicológicos sobre
lógica elementar (1894); Pesquisas lógicas I, Prolegóinenos à lógica
pura (1900); Pesquisas lógicas II, Estudos sobre a teoria e a
fenomenologia da consciência (1901); Relatório das obras alemãs
sobre lógica dos anos 1895-99 (in "Archiv für systematische
Philosophie", 1903); A filosofia como ciência rigorosa (in "Logos",
1910); Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia
fenomenológica (1913); Lições sobre a fenomenologia da consciência
interna do tempo (1928); Lógica formal e transcendental, ensaio de
uma crítica da razão lógica (1929); Meditações cartesianas (em
francês, 1931); A crise das ciências europeias e a fenomenologia
transcendental, parte 1 e II (in "Philosophia", Belgrado, 1936).

Já em 1928 Husserl tinha encarregado um seu

assistente, Ludwig Landgrebe, de extrair dos seus ma-


113

nuscritos um trabalho sobre lógica transcendental. Utilizando


sobretudo as lições proferidas por Russerl em Freiburg de 1919 a
1920 e outros manuscritos mais antigos, Landgrebe organizou o
livro intitulado Experiência e Juízo, publicado em Praga em 1939
numa edição limitada (estava-se em plena época nazi e Husserl era
judeu) e reimpresso em 1948. Mas Husserl foi durante toda a sua
vida um produtor incansável de esquemas, esboços, projectos, notas
e comentários, retomando sistematicamente as suas ideias. Quando
morreu deixou 45000 páginas manuscritas que foram salvas durante
a guerra pelo padre belga Van Breda e constituem hoje o património
dos Arquivos Husserl da Universidade de Lovaina. Daí foram
extraídas as seguintes obras: Meditações cartesianas (no texto
alemão) e Discursos parisienses, (1929), publicados em 1950; A
ideia da fenomenologia (cinco lições inéditas de 1907), publicadas
em 1950; Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica (texto de 1913 com notas e apêndices extraídos dos
manuscritos), publicadas em 1950; 11 parte da mesma obra
(inédita), publicada em 1952; 111 parte da mesma obra (inédita),
publicadas em 1952; A crise das ciências europeias e a
fenomenologia transcendental (escrita na sua maior parte em 1935-
36; as partes 1 e 11 foram publicadas em 1936 e a parte 111 era
inédita), publicada em 1954; Filosofia elementar (um curso

inédito de 1923-24), publicada em dois volumes em 1956. Baseia-se


nos mesmos manuscritos a exposição feita por Alois Roth sobre as
Pesquisas éticas de Husserl (1960).

114

Do material inédito publicado até agora, a única obra que


acrescenta algo de verdadeiramente novo

à imagem de Husserl já formada a partir das suas

obras anteriores, Intitula-se A crise das cIências europeias. No


entanto, podem encontrar-se diversos esclarecimentos e
desenvolvimentos ao longo de todos esses escritos inéditos.
§ 828. HUSSERL: A EPOCHÉ

As Pesquisas lógicas constituem em primeiro lugar, o abandono e a


crítica da posição empirista que Husserl assumira na Filosofia da
aritmética (1891). À tentativa de reconduzir as noções da lógica a
operações psíquicas efectuadas sobre um conteúdo dado
empiricamente, Husserl contrapunha nessa obra uma

"lógica pura", cuja função seria a de obter "uma visão evidente da


essência dos modos de conhecimento" que entram em jogo em todas
as operações lógicas e cognoscitivas (Logische Untersuchungen,
11, 1, § 1). Mas conhecer a essência dos "modos de conhecimento"
significa referir-se ao mundo da consciência, o qual é objecto da
psicologia; e Husserl opusera, neste ponto, a psicologia descritiva,
que ele chamara "fenomenologia pura", à psicologia "empírica". Só
nas Lições sobre a Ideia de fenomenologia te

(1907), e de uma forma mais sucinta na obra A filosofia como


ciência rigorosa (1910), é que Husserl caracteriza melhor a
natureza da indagação sobre a "essência dos modos de consciência"
que ele sugerira nas Pesquisas. Esta indagação é claramente

115

diferenciada da psicologia, à qual é reconhecido o

carácter de ciência natural. A psicologia considera os


acontecimentos psíquicos como pertencendo a cortas consciências
humanas ou animais que por sua

vez estão ligadas a corpos humanos ou animais, atribuindo deste


modo aos acontecimentos psíquicos o carácter de acontecimentos
naturais. Assim, a psicologia não se pode aperceber da essência da
consciência e Idos modos como são fornecidos a esta os seus dados
e objectos reais ou possíveis. Diferentemente da psicologia, a
fenomenologia pura não é uma ciência dos factos mas de essências
(é uma ciência eidéctica) e os fenómenos de que se ocupa não são
reais mais sim irreais (Ideen, 1, p. 6). Para entrarmos no campo da
fenomenologia é assim indispensável uma mudança radical na nossa
atitude, mudança essa que consiste essencialmente em evitar a
afirmação ou o reconhecimento da realidade, que está implícito em
qualquer atitude natural, com todo

o seu cortejo de interesses práticos, e em assumir a atitude de


espectador, interessado apenas em se aperceber da essência dos
actos através dos quais a

consciência se reporta à realidade ou a , significa. Esta mudança de


atitude constitui a epoché fenomenológica.

A epoché dos antigos cépticos consistia na suspensão total do juízo


afirmativo. A dúvida cartesiana não é mais do que a suspensão total
-de qualquer tipo de conhecimento. No caso da fenomenologia,
trata-se apenas de evitar o tipo de afirmações sobre a realidade
(teses) que estão implícitas em todas as atitudes e em todas as
ciências naturais. "Não uti-
116

lizamos, afirma Husserl, a tese genérica que pertence à essência da


atitude natural, colocando entre parêntesis tudo o que ela contém
sob o seu aspecto ôntico, isto é, todo o mundo natural que está
constantemente ao nosso alcance c que continuará a ser

uma realidade para a consciência mesmo que o coloquemos entre


parêntesis. Assim fazendo, eu não nego este mundo, como um
sofista, nem ponho em
dúvida a sua existência, como se fosse um céptico; limito-me a
realizar a epoché fenomenológica que me impede de considerar
como existente o mundo que se encontra perante mim,
contrariamente àquilo que faço na vida prática ou àquilo que se faz
nas ciências positivas" (Ideen, I, § 32). Suspendendo a

afirmação da realidade do mundo, este torna-se um

puro fenómeno de consciência mas não se anula, antes continuando


presente na base da investigação que é feita, com todas as suas
determinações e as

suas verdades (que se mantêm como tais); mas ao

mesmo tempo a atenção do investigador desloca-se do próprio


mundo (da sua realidade) para os fenómenos que o anunciam e que o
apresentam à consciência, isto é, à própria consciência e às suas
estruturas essenciais. Neste sentido, a consciência constitui o
resíduo fenomenológico, isto é, aquilo que se mantém depois da
epoché; ü sou ser mantém-se inalterável apesar de o mundo ser
colocado entre parêntesis e torna-se assim o campo específico de
investigação fenomenológica (Ib., § 33). Se a atitude de epoché for
considerada do ponto de vista do eu

que a pratica, poderá ser expressa da seguinte forma: "Se


considerarmos o eu que se apercebe

117

do mundo e que vive naturalmente de uma forma interessado no


mundo, ao modificarmos fenomonologicamente a sua atitude dar-se-
á uma cisão do eu acima do eu ingenuamente interessado no mundo
estabelecer-se-á o eu fenomenológico na qualidade de espectador
desinteressado (Cartesianhdhe Meditationen, § 15). Na Crise, Hus-
serl afirma: "Efectuando a epoché, tornamo-nos observadores
completamente desinteressados do mundo, no seu aspecto
subjectivo-relativo (isto é, do mundo em que se realiza a nossa vida,
acompanhada dos seus esforços, dos seus cuidados, das suas
ocupações), e

deitamos-lhe um primeiro olhar ingénuo que não pretende indagar


qual o seu ser ou o seu modo de ser (Sosein) mas apenas aperceber-
se daquilo que é sempre válido para nós pelo simples facto de
existir, e de existir de determinada forma, e considerá-lo do ponto
de vista do seu modo subjectivo de valer, dos seus vários aspectos,
etc." (Die Krisis der europüischen Wissenschaften, § 45). E nas
obras compiladas sob o título -de Filosofa elementar, depois de se
ter detido no esclarecimento da noção de "interesse", defende a
possibilidade de um "interesse puro" que se oriente para o ser
subjectivo na epoché fenomenológiCa e no âmbito do qual o

eu se subtraia ao complexo dos actos emotivos e

volitivos (que também estão presentes na actividade artística) para


tornar-se no "espectador puro e desinteressado e observador
teórico" (Erste Philosophie, 11, p. 107).

A atitude fenomenológica assim descrita tem pois duas condições


fundamentais: a redução eidética que

118

substitui a consideração dos factos ou das coisas naturais pela


intuição das essências; e a epoché que suspende ou põe entre
parêntesis a tese da existência do mundo em geral. Mas Husserl
serve-se ainda da epoché para isolar domínios específicos da
investigação fenomenológica. Assim faz, por exemplo, para efectuar
a redução da experiência transcendental à "esfera de propriedade",
isto é, à esfera daquilo que realmente pertence ao meu eu e da qual
foi eliminada toda a referência às outras subjectividades
(Cartesiartische Medítationen, § 44); na esfera assim isolada, a
experiência do OUtrO é uma

espécie de Einfühlung ou empatia pela qual o outro

se constitui por "apresentação" como sendo "um outro cu próprio"


(M., § 52). Finalmente, na Crise, Husserl serve-se ida epoché ao
debruçar-se sobre as ciências objectivas a fim de determinar o
chamado "mundo da vida" (Krisis, § 35); serve-se ainda de um outro
acto de epoché para alcançar "o eu que funciona constitutivamente
na inter-subjectividade" Qb., § 50) e de um terceiro e último a--to
de epoché para alcançar o w eu absoluto, o eu corno centro
funcional de qualquer constituição" (Krisis, § 55). Com este último
acto, atinge-se verdadeiramente o

ponto final ida epoché: para além do eu nenhuma outra redução é


possível, porque se está -ria esfera da evidência apodíctica (Ib., §
55).

§ 829. HUSSERL: A INTENCIONALIDADE

Na medida em que a consciência é sempre consciência de qualquer


coisa (todo o cogito tem o seu

119

cogitatum), a análise da consciência é análise dos actos com que a


própria consciência se relaciona com
os seus objectos; ou, o que é o mesmo, das formas como estes
objectos se dão à consciência. Os actos da consciência ou (que é o
mesmo) as formas como os objectos se entregam à consciência
constituem a intencionalidade da consciência.

A característica fundamental da intencionalidade reside no facto


de a relação que ela estabelece entre a consciência e o seu objecto
não tornar este objecto numa parte ou elemento da consciência no
sentido em que unia realidade ou coisa pode ser parte ou elemento
de uma outra coisa. Husserl afirma: "Se
o eu reduzido (isto é, o eu que efectuou uma epoché,
o eu transcendental) não é uma parte do mundo, reciprocamente, o
mundo e os objectos do mundo não são peças do meu eu, não se
podem encontrar realmente na minha vida psíquica como suas partes
reais, como complexos de dados sensíveis ou de dados psíquicos"
(Cartesianische Meditationen, § 11, cfr. Ideen, 1, § 36). O mundo e
os seus objectos permanecem igualmente transcendentes se não
for possível atribuir-lhes outro sentido para além daquele que
inferimos das nossas experiências, representações, pensamentos,
juízos de valor e acções; e também se apenas pudermos atribuir ao
mundo uma existência evidente baseada na nossa própria evidência
e na dos nossos actos. O aspecto realista da fenomenologia baseia-
se nesta essência da intencionalidade, a qual relaciona o mundo com
a consciência sem fazer da consciência uma parte do mundo ou

do mundo uma parte da consciência. Vimos, de

120

HUSSERL

facto, que a crítica que o realismo faz ao idealismo gnoseológico


(por exemplo, a de Moore, § 772) consiste precisamente em negar
que um objecto, por ser objecto de conhecimento, seja, na sua
própria existência, uma parte constitutiva da consciência.

Mas a consciência é, para Husserl, uma corrente

de experiências vividas (Erlebnisse) tendo cada uma

delas a sua essência (percepção, recordação, signo, emoção ou


vontade, etc.) e às quais o objecto transcendente se anuncia ou se
entrega de uma forma mais ou menos adequada. Na percepção, por
exemplo, a coisa percebida manifesta-se mediante aparições
parciais e mutáveis, que são as únicas possíveis e que a esboçam de
uma forma mais ou menos adequada, mas sem lhe anular a
transcendência (Ideen, 1, § 35). Husserl diz: "0 objecto é, por
assim

dizer, um pólo de identidade sempre dotado de um

sentido preconcebido e por realizar; em cada momento da


consciência, ele é o índice de uma intencionalidade não-,ética que
constitui o seu sentido e que pode ser problematizada e tornar-se
explícita" (Cartesianische Meditationen, § 19). O objecto, portanto,
não faz parte das experiências vividas. Aqui, Husserl distingue um
aspecto subjectivo constituído pelos actos que aspiram a apropriar-
se do objecto (por exemplo, o perceber, o recordar, o imaginar
etc.)--&--qüe é **ef@ãmadõ no esis, do aspecto objectivo (o
percebido, o recordado, o imaginado) que é chamado noema. O
noema e o próprio objecto: por exemplo, na percepção de uma
árvore, o objecto é a árvore mas o noema desta o conjunto dos
predicados ou dos modos como ela é dada

121
à nossa experiência: árvore verde, iluminada, não iluminada,
percebida, recordada, etc. o conceito constitui o pólo em torno do
qual se orientam -e se reagrupamos noemas da experiência vivida
(Ideen, 1, § 97). Por outro lado, nem em todos os noemas o objecto
é dado ou está presente "em pessoa".
O sentido de um noema pode permanecer vazio,

é, não realizado, no sentido de estar privado do objecto


correspondente. Quando o objecto se apresenta (por exemplo, numa
percepção), tem-se a intuição que nos dá a coisa adequadamente,
isto é, que no-la apresenta "em pessoa" (Ib., 1, § 135). A evidência
está ligada à intuição; e, segundo Ilusser], intuição, evidência e
verdade coincidem. Elas consistem na visão directa do objecto e
caracterizam-se pela presença do próprio objecto. Por outro lado, a
intuição oferece não só objectos materiais ou

coisas, mas também objectos ideais que têm uma

existência diferente. Categorias lógicas, essências materiais (como


casa, árvore, cor, ou sensações, sentimentos, etc.) são aceites por
Husserl como objectos ideais que se oferecem à experiência vivida
de forma análoga embora não idêntica àquela como as coisas
sensíveis se oferecem à percepção (Ib., 1, § 23). Husserl
identifica a própria razão com a evidência, afirmando que são
racionais todas as posições reconduzíveis a urna evidência
originária. Por outras palavras, toda a demonstração conduz à
consciência de qualquer coisa que é dada de forma evidente (Ib., 1,
§ 140).

Por outro lado, nem todas as experiências vividas, assim como nem
todos os seus elementos,
122

têm carácter intencional; por vezes contêm tos que não possuem
este carácter taIs como, por exemplo, a cor, o som e o contacto,
que não devem ser confundidos com os correspondentes elementos
das coisas (cor, dureza, etc.). Também serão elementos deste tipo
as emoções da dor, do prazer, do excitamento, etc,, e os momentos
sensuais na esfera das tendências (Ideen, 1, § 85). Por outro lado,
nem

todos os actos intencionais têm um significado puramente cognitivo:


os predicados dos valores e os

emotivos pertencem igualmente ao ser do mundo

e não se reduzem a estados puramente subjectivos. Por exemplo, o


carácter próprio de um objecto amado consiste no apresentar-se
com uma intenção de amor que é irredutível à representação
teórica. E em todo o acto de valoração está presente uni

elemento objectivo intencional e transcendente (Ideen,


1, § 117).

§ 830. HUSSERL: O EU

A interpretação da relação existente entre sujeito e objecto em


termos de intencionalidade abre, como se viu, a porta para o
realismo. Do mesmo modo que o sujeito que dá uma intenção ao
objecto não se torna dessa forma parte integrante do objecto,
também o objecto em questão não se torna, enquanto tal, parte do
sujeito. É nesta estrutura da intencionalidade que se baseiam (como
verei-nos) as correntes realistas da fenomenologia e especialmente
Meinong e Hartmann. Ela encontra-se ainda na base do mé-
123

todo fenomenológicO tal como é entendido por Sebeler, Heideger e


outros existencialistas (cfr. cap. XV).

Mas para Husserl a intencionalidade da consciência não esgota a sua


essência. A consciência é uma "corrente de experiências vividas", e
a intencionalidade constitui apenas o carácter de tais experiências.
Segue-se daqui que as experiências não são objectos intencionais
tal como as coisas da percepção, sendo antes dadas, ou melhor,
vividas de uma

forma imediata, original e indubitável, o que faz delas a esfera do


"ser absoluto". É neste privilegiamento da consciência que está o
cartesianismo de Husserl, o qual a partir das lições sobre A Ideia
da fenomenologia (1907) apresentou sempre a sua doutrina como
uma nova proposta e um aprofundamento coerente do Cogito
cartesiano. Husserl chamou percepção imanente à percepção que a
consciência tem de si mesma (das suas próprias experiências) e
opô-'Ia à percepção transcendente que a consciência tem das
coisas. No caso da percepção imanente, tanto a percepção como
aquilo que é percebido formam uma unidade imediata, a unidade de
uma concreta e única cogitatio (Ideen, 1, § 38). Na percepção
transcendente, a coisa é dada de múltiplas formas, as quais, se bem
que renovadas ou repetidas, nunca nos dão a pró pria coisa de forma
adequada, mesmo quando tal coisa está presente "em pessoa". A
realidade das coisas é assim uma realidade sempre presumida, de
que se pode duvidar ou que exige provas ou confirmações, enquanto
que a existência da experiência vivida é muitas vezes impossível de
pôr em dúvida. "Se bem

124
que a minha corrente de consciência não possa ser apreendida senão
de uma forma restrita, se bem que nos seja desconhecida nas suas
partes já desfrutadas ou que ainda estão por vir, no entanto,
deitando uma vista de olhos ao fluir da minha vida no seu efectivo
presente e considerando-me a mim mesmo como um puro sujeito
dessa vida, eu necessariamente faço afirmações: eu sou, a minha
vida é, eu vivo: cogito" (Ib., 1, § 46). E dado que, por outro lado, nós
podemos duvidar não só da realidade das coisas mas ainda da
existência das outras consciências que deduzimos daquela forma
particular da experiência que é a empatia (Einfühlun,,,), a afirmação
da existência do mundo será acidental, enquanto que a do meu eu
puro e do seu viver é necessária e indubitável (Ib., § 46). Deste
modo a epoché cria "uma curiosa solidão filosófica" na qual não
conservam a sua validade nem as distinções do eu e do tu nem o
reconhecimento de uma comunidade de sujeitos iguais. "Tanto a
humanidade como a distinção ou a ordem dos pronomes pessoais,
através da epoché, tornam-se fenómenos e são observadas de tal
modo que o eu ganha uni relevo próprio relativamente aos outros
homens" (Krisis, § 54 b). Só se pode fugir a esta solidão (como
veremos) dando um fundamento fenomenológico aos outros eu no
seio da própria experiência do eu.

Os Discursos paris' `enses, as Meditações cartesianas e o segundo


volume das Ideen contêm a exposição analítica deste ponto de
vista, ao qual Husserl chama idealismo transcendental. Este não
poderá ser confundido com o idealismo psicológico ou com

125

qualquer outra forma de idealismo que pretenda deduzir um mundo


cheio de significado a partir de dados sensíveis privados de sentido,
nem tão-pouco com o idealismo kantiano que deixa em aberto a
possibilidade de a coisa em si não ser mais do que um conceito-1
imite. É um idealismo que consiste "na auto-exposição do meu eu
enquanto sujeito de conhecimentos possíveis, exposição essa que é
conduzida na forma de uma ciência egológica sistemática que tem
em conta todos os dados existenciais possíveis para mim enquanto
ego"; e que portanto não se contrapõe ao realismo por ser "a
exposição do sentido de qualquer tipo de ser que eu, o ego, possa
pensar, e especialmente do sentido da transcendência (que a
experiência me dá realmente) da natureza, da cultura-, do mundo
em geral, isto é, e

por outros termos, por constituir a revelação sistemática da


própria intencional idade constitutiva" (Cartesianische
Meditationen, § 41; Die pariser Vortrüge, pá-s. 33-34). É claro que
deste ponto de vista a explicitação dos sentidos do ser se
identifica com a explicitação das possibilidades puras do eu.

"0 facto de a natureza e de o mundo da cultura e dos homens, com


as suas formas sociais, existirem para mim, significa que me é
possível ter as experiências que lhes correspondem, isto é, que
independentemente da minha experiência real destes objectos, ou
posso em qualquer momento realizá-los e desenvolvê-los
sintetizando as experiências alheias" (Cart Me.I., § 37). Mas só o
eu pode ser auto-suficiente por "pertencer à sua essência a
possibilidade de uma auto-apreensão, de unia auto-percepção"

126

(Ideen, 11, § 22). E Husserl não hesita em utilizar a mesma


terminologia de Fichte. "0 eu é-o nos confrontos consigo mesmo, e
constitui-se em si mesmo e para si mesmo. Pode ainda enfrentar-se
com outros, constituir um objecto para eles e ser por eles
apreendido, experimentado, etc. Mas continuará do mesmo modo a
existir para si mesmo e a ter um mundo ambiente que lhe é
próprio e que será uni

não-ou, um conjunto de puros objectos que não são em si


mesmos, como tais, constituídos do mesmo modo que o eu" (Ideen,
11, p. 318). Dado que se constitui como sujeito relativamente a um
mundo ambiente (Umwelt), o eu é pessoa no sentido em que a

essência da pessoa é a subjectividade (Ib., 11, § 50). Então, ele será


também uma individualidade espiritual, num sentido inteiramente
diferente da individualidade porque "tem em si mesmo a sua
motivareais, isto é, do conjunto da natureza real; mas o

indivíduo espiritual tem em si mesmo a sua individualidade porque


"tem em si mesmo a sua motivação" (Ih., 11, § C4). O eu é uma
mónada no sentido leibniziano; os outros eu (as outras mónadas)
constituem-se no seio do eu partindo de uma consideração por
analogia que Husserl denomina apresentação e que utilizo para,
partindo dos corpos vivos que me são dados, atribuir a esses corpos
uni modo de ser análogo ao meu eu. Do ponto de vista
fenomenológico, "o outro é uma modificação do meu eu" (Cart. Med.,
§ 52); ou é ainda o próprio ou original, que através de uma
"operação motivada e constitutiva" dá origem a que "uma
modificação intencional de si mesmo e da sua primor-
127

díalidade se torne válida sob o título de percepção do exterior,


percepção do outro, de um outro eu, que é um eu para si mesmo tal
como ou sou um eu para mim" (Krisis, § 54 b). Isto acontece da
mesma forma em que o eu, que na realidade é o eu da

presença actual, se reconhece no passado e se constitui a si próprio


como um eu que se mantém através do seu passado como "auto-
temporalidade" (Ib., § 54 b). Mas a existência de um sistema de
mónadas é justificada pela existência de um mundo objectivo que
lhes é comum. "0 meu ego, que me é dado de

forma apodíctica e que é o único ego que me surge de forma


absolutamente apodíctica, só pode ter experiência do mundo se se
encontrar em comunidade com outros egos que sejam semelhantes a
ele, isto é, se for membro de uma comunidade de mónadas que está
orientada a partir dele. A justificação consequente do mundo da
experiência objectiva implica uma justificação simultânea da
existência das outras mónadas" (Cart. Med., § 60).

§ 831. HUSSERL: O MUNDO DA VIDA

O único domínio da análise fenomenológica é o


da intencionalidade da consciência. Mas esta (e como
se viu) não esgota a essência da consciência, visto que exige um
portador que é constituído pela experiência vivida, de que é apenas
uma propriedade ou constituinte; e por sua vez a experiência vivida
exige uni sujeito (isto é, um portador) que é o eu.

128

Partindo desta base, Husserl reconheceu, tal como Descartes, a


prioridade ontológica do eu, o seu

carácter necessário ou "apodídico". Este último ponto não sofreu


modificação alguma na obra posterior de Husserl; e a Crise das
ciências europeias, assume-o como tema fundamental. Mas nesta
obra é introduzida uma importante modificação terminológica no
que diz respeito ao portador da intencionalidade: em lugar da
experiência vivida ou da "corrente de experiências vividas" aparece
o mundo da vida (Lebenswelt). Ora o mundo da vida pode ser
ainda entendido (como veremos) como uma "tota- ]idade das
experiências vividas"; mas a modificação da terminologia implica, em
primeiro lugar, a acentuação do carácter unitário e sintético dessa
totalidade e em segundo lugar, consequentemente, a

possibilidade de o considerar como o domínio das evidências


originárias, contraposto ao "mundo objectivo" das ciências.
Verifica-se que esta contraposição constitui o motivo polémico mais
importante da obra e até a sua justificação. No entanto, é possível
que esta noção tenha sido sugerida a Husserl. pela necessidade -de
recuperar a dimensão "mundana" em que tanto insistiram os
fenomenólogos d'ssidentes (especialmente, Heidegger), assumindo
o estar no

mundo como tema fundamental das suas investigações.

Considerado concretamente "na sua descuidada relatividade" e em


todos os tipos de relatividade que lhe são essencialmente inerentes,
o mundo da vida, isto é, aquele em que vivemos intuitivamente, com
todas as suas realidades que nos surgem de

129

formas mais ou menos válidas ou que são mesmo aparentes, é "uma


espécie de rio heraclitiano meramente subjectivo e aparentemente
impossível de apreendem (Die Krisi@- der europüischen
Wissenschaften, § 44). Mais precisamente, elo será "um

reino de evidências originárias"; e a tarefa da filoSofia


relativamente a ele será a de valorizar o direito **on.ário destas
evidências e de moStrar como todas as operações lógico-objectivas
de que se
servem as ciências naturais retiram a sua evidência (isto é, o seu
fundamento) das evidências pré-científicas do mundo da vida
(Krisis, § 33 d). A própria lógica deve admitir, como fundamento do
juízo predicativo que é o seu núcleo fundamental, uma evidência
pré-predicativa que será característica da forma como nos são
dados os objectos, i-ias várias modalidades do seu ser, no mundo da
vida; e deve ainda reconduzir a evidência predicativa a este outro
tipo de evidência (Erfahrung und Urteil; consultar principalmente a
tradução feita por Landgrebe, o

qual, de acordo com Husserl, tenta mostrar a relação existente


entre esta obra e a **Kris..,*s,). Para realizar uma especulação
filosófica sobre o mundo da vida, devemos adoptar não só a atitude
genérica da fenomenologia como também a ;de todas as ciências
objectivas, aceitando assim a ideia de um conhecimento objectivo
do mundo (Krisis, § 35). E depois de efectuarmos esta epoché e de
nos transformarmos em "observadores completamente
desinteressados do mundo", este terá perdido para nós toda a
parcela de objectividade. "Graças ao método da epoché, toda a
objectividade se transformou em subjectividade

130

". "0 mundo, acrescenta Husserl, que na atitude da epoché se torna


um fenómeno transcendental, é apreendido finalmente como uma
entidade correlativa das ocorrências, intenções, actos e faculdades
subjectivas que nos permitem construir uma

opinião sobre a sua unidade" (Krisis, § 53). Esta subjectividade é


primeiro entendida no seu sentido mais restrito, isto é, como
subjectividade do eu
originário, que "nunca pode renunciar à sua peculiaridade e à sua
pessoa inaLenável". Mas o eu originário pode ser alienado por si
mesmo, e é a partir disso, e nisso, que se constitui a inter-
subjectividade transcendental na qual ele reentra mais tarde como
um simples membro privilegiado, como

"o eu dos outros eu transcendentais" (Ib., § 54 b). Já vimos como


isto pode ser feito através de um procedimento analógico, (§ 830);
Husserl acrescenta agora que por esta via "se pode chegar a uma
compreensão última do facto de qualquer eu transcendental que
seja elemento 'da intersubjectividade (e durante todo o tempo em
que for necessário utilizar esta via para compreender o mundo)
dever existir necessariamente como homem no mundo e de que,
logo, qualquer homem detém em si um eu transcendental" (Krisis, §
54 b). Mas nesta passa-em da monarquia à república o eu não perde
a sua "apodicidade". A tentativa de uma indagação que queira passar
para além da evidência do eu constitui uni não-senso. "Exceptuando
a evidência fenomenológica, qualquer outra evidência passa a
constituir uni problema-tipo depois de se ter esclarecido critica-
131

mente a si mesma e de se ter apresentado como evidência última"


(Ib., § 55).

A alternativa filosófica fundamental será assim a existente entre


objectivismo e transcendentalismD.
O objectivismo move-se no âmbito do mundo, já dado como óbvio
pela experiência, e procura alcançar as verdades objectivas, isto é,
aquilo que no

mundo é incondicionalmente válido para qualquer ser racional. O


transcendentalismo considera pelo contrário que a nossa opinião
sobre o ser do mundo da vida se forma subjectivamente partindo da
nossa experiência pré-científica. Para o objectivismo a posição de
partida é o estar no mundo; para o transcendentalismo é a
subjectividade, visto ser ela que ingenuamente se apercebe do
estar no mundo e que depois o racionaliza ou (o que é o mesmo) o
objectiviza (Krisis, § 14). No entanto, o transcendentalismo é
simultaneamente um realismo, se com esta palavra designarmos o
seguinte: "Eu tenho a certeza

de ser um homem que vive -neste mundo, e esta

certeza é absoluta". O problema começa apenas quando se tenta


compreender o que é a evidência do mundo; só se pode responder a
este problema quando, depois de realizarmos a epoché a
fim de efectuarmos uma redução ao ego absoluto, interrogamos
esse mesmo ego, e acabamos por o conhecer na sua consistência, na
sistemática dos seus estractos constitutivos e nos fundamentos da
sua validade (Ib., § 55). Mas chegados a este ponto já não podemos
falar de realismo: "0 espírito e só ele tem uma essência em si
mesmo e por si mesmo; é autónomo e é apenas tendo em conta esta
autono-
132

mia que pode ser tratado de uma forma verdadeiramente racional e


de um modo radicalmente científico" (Ib., § 345).

§ 832. HUSSERL: A TAREFA DA FILOSOFIA

A filosofia foi sempre entendida por Husserl como simples


teorização ou contemplação pura. Já vimos como a atitude
fenomenológica é constantemente descrita por Husserl como sendo
a de um "espectador desinteressado" ou de um "observador
teórico". Os graus de conhecimento são considerados na obra
Experiência e Juízo como graus de contemplação: o grau inferior
consistirá numa contemplação simples e o superior numa
contemplação explicativa do objecto. Mas em todos os casos a
tarefa do conhecer consiste na "apreensão do objecto na sua
determinação particular, no esclarecimento definitivo dos
resultados a que se chega na percepção contemplativa" (Erfahrung
und Urteil, § 47). Isto acontece porque, de acordo com Husserl, a

única forma da verdade é a evidência, isto é, a revelação do objecto


no seu ser ou na sua essência.
O modelo ou a forma primordial e pré-categorial da verdade é assim
a percepção sensível, à qual a própria coisa surge em "carne e osso".
E a razão tem por tarefa a procura, o reconhecimento ou a
explicação das evidências já dadas: o seu órgão é a intuição.

Posto isto, a tarefa da filosofia só pode consistir naquilo que os


Gregos chamavam "vida teórica",

133

isto é, a vida dedicada ao conhecer puro, desinteressado ou livre de


quaisquer interesses práticos. Mas como vimos só o domínio da
subjectividade transcendente pode ser conhecido deste modo.
Enquanto não alcançar este domínio (através da epoché), o

homem está interessado na existência e na possessão das coisas,


envolvido nas vicissitudes dos factos, e será ele próprio um "facto".
Ao colocar-se como espectador desinteressado do mundo, ele fica
em
presença da própria subjectividade, que se torna o

domínio específico do seu conhecimento puro e

fonte de todas as evidências de que a razão se pode ocupar. Mas o


domínio da subjectividade é completamente descurado pelas
ciências positivas. Daí a crise das ciências e da sociedade
contemporânea.

A última obra de Husserl, A crise das ciências europeias e a


fenomenologia transcendental, mostra rio próprio título qual é o
ponto de partida e o

ponto de chegada do seu diagnóstico da crise. As ciências, enquanto


ciências de factos, não têm nada a dizer sobre o problema do
sentido ou da ausência de sentido da existência humana. Nada se
pode dizer sobre este problema até que os ideais, os valores, as
normas e as formas de vida dos homens sejam considerados como
termos de uma cadeia causal que tanto lhes pode permitir a
existência como os pode destruir. Mas a filosofia nasceu no inundo
clássico como fé na razão, numa razão que confere um sentido a
todas as coisas, valores e fins aos quais é atribuída uma verdade em
si que será a

própria manifestação do verdadeIro ser. "0 verda-


134

deiro ser é sempre um fim ideal, uma tarefa da razão, que se opõe
àquele ser que comumente se admite e se supõe óbvio" (Krisis, § 5).
É por isso que a eterna tarefa da filosofia, a tarefa de uma
philosophia perennis, é a procura do verdadeiro ser; e, dado que o
verdadeiro ser só se manifesta à razão, aquela tarefa constitui a
realização da razão. Husserl vê em tal realização o destino da
humanidade e em particular dos europeus, nos quais se exprimiria
ou realizaria a essência da humanidade inteira. Mas a humanidade
tende para realizar a razão porque a sua essência é precisamente a
razão; e deste ponto de vista a filosofia consistirá no "movimento
histórico de revelação da razão universal, inata enquanto tal na
humanidade" (Ib., § 6). Os filósofos serão assim funcionários da
humanidade responsáveis não apenas perante si mesmos mas ainda
perante a humanidade; e serão substancialmente duas as condições
que lhes tornam possível a tarefa. A primeira é a de que a razão, a
que fazem apelo, pertença à humanidade, a acompanhe no decurso
da sua história e esteja continuamente presente no mundo da vida,
isto é, na vida tal como é directamente vivida por cada um de nós. A
segunda é a de se encontrar um método para despertar a razão e
para a conduzir ao conhecimento do verdadeiro ser; tal método
consistirá na fenomenologia que, repetindo a atitude de admiração a
que os filósofos gregos faziam remontar as origens da filosofia, faz
do homem um espectador desinteressado do mundo (Ib., p. 331).
Este método, e só ele, poderá conduzir até ao fim a luta que a razão

135

sustentou durante toda a sua história (a história "interna" ou


autêntica da filosofia) a fim de despertar e de se alcançar a si
mesma, "à sua própria auto-compreensão, a uma razão que se
compreenda a si mesma como constituindo um mundo no qual se
realiza a própria verdade universal" (Ib., § 73).

A primeira condição exige o recuperar daquele mundo da vida que


foi esquecido pelo "mundo objectivo" constituído pelas ciências,
recuperação essa

que se destinaria a enfrentar as tarefas práticas da vida. Husserl


insiste no facto de o mundo da vida compreender em si mesmo o
mundo construído pelas ciências. e de não se verificar o contrário.
"0 mundo da vida é o terreno em que se fundamenta o mundo
cientificamente verdadeiro, e que o inclui no todo universal" (Krisis,
§ 34c). A bem confeccionada roupa simbólica das ciências
matemáticas e
naturais apenas serve para esconder tudo aquilo que representa o
mundo da vida; essa roupa constitui um método para aperfeiçoar,
mediante "previsões científicas", as previsões grosseiras que são as
únicas possíveis no âmbito daquilo que é realmente experimentado e
experimentável no mundo da vida (Ib., § 8 g). Mas este método
tenta apresentar-se aos nossos olhos como constituindo o que não é
mais do que uma ilusão de que é fácil ter consciência mal se deite
uma vista de olhos ao mundo da vida e se descubra a subjectividade
radical desse mesmo mundo. A análise do mundo da vida constitui o
único antídoto eficaz contra os males do objectivismo científico; e
Husserl, na Krisis, confia a execução desta análise à psicologia fe-
136

nomenológica que é a única a possuir, no método


da epoché, o instrumento necessário para alcançar a subjectividade
pura da alma. Neste sentido, a psicologia é definida como "a ciência
das almas em geral" (Ib., § 71), e terá por tema "a subjectividade
universal, que é una nas suas realidades e possibilidades" (Ib., §
58). E já vimos (§ 831) como a

tarefa correspondente a esta ciência se torna possível a partir da


epoché, o único método que torna a subjectividade verdadeiramente
transparente a si

mesma.

O conceito da razão como auto-revelação evidente e progressiva do


ser, e em primeiro lugar do ser da consciência no qual todas as
outras evidências encontram a sua possibilidade e o seu
fundamento, domina de uma ponta à outra a obra de Husserl e tem
na Krisis a sua expressão mais eloquente. Aquilo que este livro
aconselha como solução da crise da "humanidade europeia" é urna
comunidade de espectadores cuja razão, adormecida no

mundo da vida, se revele em toda a força das suas evidências


originárias.

§ 833. A TEORIA DOS OBJECTOS: MEINONG

A teoria dos objectos de Meinong pode considerar-se como um


analogon da fenomenologia de Husserl porque partilha com ela o
conceito do conhecimento como auto-manifestação do ser; enquanto

137

que a posição realista na análise dos objectos exclui a validade da


corrente fenomenológica.

Alexius Von Meinong (1853-1921), discípulo de Brentano, tal como


Husserl, e professor de psicologia em Gratz, exerceu na Áustria
uma influência paralela à exercida por Husserl na Alemanha. As suas
principais obras são: Estudos sobre Hume (1877-82); A ciência
filosófica e a sua propedêutica (1885); Investigações ético-
psicológicas sobre a teoria do valor (1894); A recepção (1902); A
teoria dos objectos, em Investigações sobre a teoria dos objectos
e sobre a psicologia (1904); O lugar da teoria dos objectos rio
sistema das ciências, (1907); Possibilidade e verosimilhança (1915);
Sobre a apresentação emotiva (1917); Sobre a prova de lei universal
de causalidade (1918); Criação de uma teoria universal dos valores
(1923, póstuma). Meimong afirma que o conhecimento é sempre
conhecimento de alguma coisa, isto é, que toda a

representação ou juízo tem necessariamente um

objecto, mas que este objecto não é parte ou elemento da


representação ou do juízo embora seja algo que, nos actos
cognitivos, remete para o próprio objecto. Este princípio não é mais
do que a expressão da intencionalidade da consciência que Meinong,
assim como Husserl, considera como característica própria das
experiências vividas. Todo o acto de conhecimento é, deste ponto
de vista, um acto de transcendência para um objecto; e na medida
em que um acto de conhecimento está implícito (como já pensava
Brentano) mesmo nos actos não **coá-mtivos (desejo, sentimento,
vontade, etc.), surge

138

a necessidade de uma ciência que considere os

objectos enquanto objectos, isto é, que tenha como finalidade a


consideração da totalidade dos objectos. Esta ciência não é a
metafísica, no sentido trad`Cional do termo, pois a metafísica tem
indubitavelmente por objecto a totalidade dos objectos existentes;
mas os objectos existentes são unicamente uma pequena parte dos
objectos do conhecimento. Há, por exemplo, os objectos ideais, que
subsistem (bestehen), de qualquer forma, mas que não existem e
portanto não podem ser considerados reais. Semelhança e
diferenciação constituem, por exemplo, objectos deste tipo:
subsistem em certas condições entre as coisas reais, mas não são
em si mesmos **parc@flas da realidade. O número é um outro
objecto deste género: não há dúvida de que se podem enumerar
coisas que não existem. O não existente deve, pois, entrar na
totalidade dos objectos do conhecimento da mesma forma que o
existente. O objecto do conhecimento não deve, enquanto tal,
existir necessariamente.

Posto isto, Meinong divide os objectos (em geral) em dois grandes


conjuntos: o dos objectos (Objekten) ou objectos reais e o dos
objectivos (Objeklive), distinção que corresponde exactamente à
que foi estabelecida por Frege entre significado e sentido (§ 795).
O objecto constitui o significador de uma palavra, e da sua
existência depende a verdade ou falsidade da proposição que se lhe
refere; o objectivo é o conteúdo ou conotação da palavra (ou o
conteúdo do juízo). Todo o juízo terá deste modo, como conteúdo,
um objectivo que, por assim

139

dizer, é interno ao próprio juízo, e um objecto que é constituído


pela entidade externa a que se refere. O objectivo é por isso o
objecto primário do juízo e o objecto só é dado indirectamente
como

sendo aquilo a que o juízo se refere (Ober Annahmen, p. 52).


Meinong divide todos os objectivos em objectivos do, ser
(Seinsobjektíve), do tipo "a neve é", e em objectivos do modo de
ser (Soseinsobjektive), do tipo ca neve é branca". Nos primeiros, o
predicado é constituído por "ser", e nos segundos por "ser deste ou
daquele modo". Todo o objectivo é o

ser ou o ser de determinado modo de uma entidade qualquer. A


principal característica dos objectivos é a sua incapacidade de
existir. Se é certo que existem os antípodas, já não será possível
dizer que existe a "existência dos antípodas", pois isto acarretaria
o início de um processo infinito no qual seria necessário admitir a
existência da existência. Mas já se pode dizer que o objectivo
subsiste quando constitui um facto: e a palavra facto designa
precisamente um objectivo que subsiste e que não pode ser
referido a objectos ou pessoas (Ib., p. 69). Se constituem factos,
os objectivos são verdadeiros: a
verdade ou falsidade é um carácter exclusivo dos objectivos e não
dos objectos da experiência (Uber Mõglichkek und
Wahrscheitdichkeit, p. 40). Mas mesmo quando dizem respeito a
factos, e segundo Meinong, os objectivos estão fora do tempo
porque são completamente indiferentes às determinações de
passado, presente ou futuro. Por outro lado, eles podem ser
negativos, como acontece quando se referem às propriedades nulas
que os objectos podem

140

ter, ou seja, a não existência da cor, etc. Um objecto só pode ter


qualidades positivas, mas um objectivo já pode ter qualidades
negativas. E até os objectos impossíveis subsistem como objectivos.
Se os antípodas não existirem' a não existência dos antípodas é um
objectivo tanto como o seria a sua existência. Os objectivos deste
tipo estão para o objecto tal como a parte está para o todo: se o
todo subsiste, também a parte deve subsistir, e é por isso
necessário reconhecer a subsistência dos próprios objectos
impossíveis. Neste sentido, Meinong afirma que "o

objecto puro está para além do ser e do não ser".


O conhecimento não tem o seu pressuposto no ser, mas encontra o
seu ponto de apoio tanto no ser

como no não ser. Tudo o que cabe no âmbito de um objecto constitui


o seu ser específico, quer esse

objecto exista quer não. Por isso, a verdade do conhecimento e, em


particular, do juízo, não depende da existência ou não existência do
seu objecto, mas antes da do seu objectivo. A existência dos cisnes
negros e a não existência de um perpetinim mobile constituem
juízos verdadeiros apesar de o primeiro se referir a um objecto
existente e o outro

a um objecto não existente. A sua verdade depende do ser do seu


objectivo que, no segundo destes casos, é o não-ser do objecto em
questão. O juízo não é verdadeiro se o seu objectivo não é
verdadeiro, e

também não o será se estiver constituído de uma forma que não


corresponda ao seu objectivo e que não concorde com os factos. A
existência de condições objectivas e de exigências subjectivas num
mesmo juízo pode ser até puramente casual; sucede

141

às vezes que de uma premissa falsa se deduzem conclusões


verdadeiras.

Se não é certo que todo o conhecimento tenha de referir-se a


objectos existentes, é no entanto verdadeiro, segundo Meinong,
que todo o conhecimento está em última análise relacionado com os
factos, sem os quais não pode valer como conhecimento. Incumbe à
psicologia do conhecimento, determinar as condições em que o
próprio conhecimento se

refere aos factos e adquire valor real. Facto, em

sentido lato, é o objectivo do juízo; e, por compreender um facto,


todo o juízo é uma evidência. A evidência pode ser a priori, isto é,
baseada na natureza do juízo e aplicável à realidade, ou empírica; e
oferece diversos graus de certeza, porque a sua

evidência é meramente suposta. A percepção é um


caso limite da evidência, e esta é máxima quando a percepção se
refere aos factos psíquicos actuais, ou seja, quando é uma
percepção interna. Se o juízo se refere a objectivos, a
representação refere-se a

objectos. O objecto origina a representação e vem

nela directa ou indirectamente intuído, ou mesmo simplesmente


mostrado ou indicado. A produção das representações é um facto
puramente empírico; o seu fundamentar-se no objecto é,
contrariamente, condicionado a priori. Há também, segundo
Meinong, um valor objectivo, que se evidencia no sentimento
estético ou intelectual quando se diz que o

objecto deste sentimento merece o próprio sentimento. Mas


paralelamente a este valor objectivo existem, os valores puramente
subjectivos, que con-
142

sistem na relação do objecto com o sujeito que se

interessa por ele.

A teoria dos objectos pode ser considerada como a expressão


realista mais conseguida da teoria da intencionalidade da
consciência. Ela subtraiu esta teoria ao contexto subjectivista em
que se encontrava na obra de Husserl; e pôde assim ser utilizada

na filosofia orientada empiricamente. Russell refere-se várias


vezes à teoria dos objectos e o ponto de partida para a sua
doutrina da denotação surgiu precisamente da noção dos objectivos
negativos de Meinong (§ 802). Nela se baseou ainda o novo realismo
americano e o próprio Santayana (§ 776).
§ 834. HARTMANN: A ONTOLOGIA

A obra de Nicolau Hartmann, nascido em Riga em 1882 e falecido


em Marburgo em 1950, inseriu na fenomenologia, interpretada num
sentido rigorosamente realista, um sistema extremamente
complexo. As principais obras de Hartmann são: A lógica platónica
do ser (1909); As questões filosóficas fundamentais da biologia
(1912); Princípios de uma metafísica do conhecimento (1921); Ética
(1926); A filosofia do idealismo alemão (1923-29); Filosofia
sistemática (1931); O problema do ser espiritual (1931); Os
fundamentos da ontologia (1935); O pensamento filosófico e a sua
história (1936); Possibilidade e realidade,(1938); A construção do
mundo real (1940);
O novo caminho (Ia ontologia (1942); Filosofia da
143

natureza (1950); Pensamento teleológico (1951); Estética (1953).

Se bem que considere a fenomenologia apenas


como o primeiro estádio da investigação filosófica (ao qual depois
se seguiria o da aporética que ilumina os problemas que emergem
dos próprios fenómenos e, finalmente, o da teoria, isto é, da solução
das aporias), Hartmann tira da fenomenologia o conceito básico da
gnoseologia: o conhecimento como transcendência. O conhecimento
não coincide com a consciência e não é, portanto, um seu fenómeno
puro: é uma relação transcendente entre um sujeito e o um objecto,
ou melhor, entre a representação que o sujeito tem do objecto e o
próprio objecto que existe independentemente dela. A
representação pode apreender ou não o objecto; se o apreende, é
verdadeira, se não, é falsa. Isto implica que o objecto do
conhecimento não se reduz a um ser objecto e
não é essencialmente determinado pela relação cognitiva. "Ser
objecto" significa etimologicamente ser objectado a um sujeito,
isto é, ser lançado contra, dado, oferecido a um sujeito. Mas isto
não muda a

natureza do objecto, que permanece independente. "Ser objecto"


não pode confundir-se com objectivação, que designa o processo
através do qual algo subjectivo se converte em objectivo: e isto
porque tem as suas raízes no ser, não no sujeito. A realidade fica
sempre para além da consciência, mesmo

quando lhe é objectada. O conhecimento dirige-se incessantemente


para a realidade independente que constitui o seu objecto. Mas isto
significa que o conhecimento nunca domina completamente o seu ob-
144

jecto; para além do que compreende dele, fica sempre um resíduo


incognoscível (trans-objectivo, na medida em que está para além do
que é objectado).
O limite de cognoscibilidade pode afastar-se indefinidamente, mas
não desaparece. Encontra-se cada vez mais perto do ser à medida
que se passa da realidade mais primária (a matéria) às realidades
mais elevadas, que são a vida orgânica e a vida espiritual e social do
homem.

No reconhecimento da existência deste resíduo trans-objectivo


está a originalidade da nova ontologia relativamente à antiga, que
pretendia ser unia

"lógica do sem e que assim identificava a esfera do pensamento com


a do ser real, não admitindo os limites que a investigação ontológica
encontrava nos
problemas insolúveis. A ontologia crítica deve, segundo Hartmann,
distinguir essas duas esferas e

admitir que a do pensamento é uma consequência da do ser; e


deverá admitir ainda a existência de uma outra esfera do ser, a do
ser ideal, que será constituída pelas estruturas dos conteúdos
cognitivos que se encontram no sujeito mas que não constituem
estruturas do próprio sujeito. A esta esfera do ser

ideal pertencem os objectos dotados de idealidade independente,


tais como as entidades da lógica e da matemática e as leis que
regulam o comportamento de tais entidades, os valores jurídicos,
vitais, éticos, etc.; e ainda os objectos dotados de idealidade
aderente, isto é, as formas ideais (essências, leis, relações
essenciais que existam nos objectos reais) (Grundzüge elner
Metaphisik der ErkennTnís, cap. LX11). As formas do ser ideal
existem independente-
145

mente do conhecimento, porque têm um ser em si, mas são


fundamentalmente irreais. As estruturas matemáticas, por
exemplo, penetram a realidade mas não mudam, por tal razão, a sua
essência. Hartmann assume, todavia, uma posição oposta à do
platonismo: o ser ideal já não é superior ao ser real mas,
contrariamente, é o ser real que é superior ao ideal.

O ser ideal, em si mesmo, é apenas a universalidade individual; "é um


ser subtil, fora de alcance, carente de substância, quase só um
meio-ser, a quem falta ainda todo o peso do ser" (Grundlegung der
Ontologie, p. 317).

Se todas as formas ideais são irreais, já não é verdade que todas as


formas irreais sejam ideais. Na Metafísica do conhecimento,
Hartmann limita-se a enumerar os "irreais puros", isto é, os irreais
que não são formas ideais e que, portanto, não têm valor cognitivo.
Entre esses, enumera (Met. d. Erk., cap.
62, d): a esfera do pensamento, da fantasia, dos sonhos, as ideias e
os ideais artísticos, mitológicos ou religiosos, os elementos
sensíveis. Mas nos Fundamentos da ontologia (1935) retoma o
exame desta questão com o fim de mostrar o carácter
transcendental dos actos emocionais ou fantásticos. Nesta obra é
evidente a influência das análises de Scheler e de Heidegger, ao
mesmo tempo que a polémica contra eles.

Os actos não cognitivos são dirigidos para um ser em si que não é o


ser da esfera ideal, mas o da realidade (Realitãt); e põem em
contacto o sujeito e aquele aspecto da realidade que suscita temor,
esperança, reacções emotivas diversas, e que

146

obriga o sujeito a ter decisão e a lutar com empenho. Os actos


emocionais transcendentes dividem-se em três categorias:
receptivos, perspectivos e espontâneos. Nos actos receptivos o
sujeito "é afectado" "por um

facto ou por um acontecimento do mundo real, ainda que não se dê


conta intelectualmente do que o impressiona. As surpresas que a
vida reserva, a experiência vivida e a dureza que frequentemente
apresenta ao

homem, a necessidade de ter que suportar as situações provocadas


pelas coisas ou pelos homens, são exemplos fundamentais de actos
receptivos. Os actos respectivos antecipam o futuro quer na forma
de uma previsão indiferente, como na expectativa, no
pressentimento, na curiosidade, etc., quer na forma de uma
previsão emocional, como no caso da esperança e

do medo ou no caso angústia, onde, contrariamente a Heide-gger,


Hartmann vê apenas uma sombra do medo. Finalmente, os actos
emocionais espontâneos são os que tendem a alcançar um objecto
transcendente real. São assim o querer, o desejar, o estimar. Estes
actos produzem a reacção do objecto cobiçado que, por sua vez,
tenta cativar quem o cobiça, incluem, pois, um testemunho vivo da
realidade transcendente dos objectos ou das pessoas para as quais
se dirigem e são o melhor desmentido do cepticismo (Grundl, d.
Ont., p. 204).

Estes diferentes actos emocionais não se apresentam isolados;


constituem muitas vezes conexões típicas, sendo básicas a do valor
que adquire a

relação entre as pessoas na sua compreensão recíproca e nas


diferentes formas de solidariedade social, e a de ordenação das
coisas a fim de serem

147

utilizadas. O trabalho é, por exemplo, uma prova da transcendência


da realidade: à força do homem contrapõe-se uma força estranha e
ambas as forças

são reais.

§ 835. HARTMANN: A NECESSIDADE DO SER

A obra mais significativa de Hartmann é a que se intitula


Mõglichkeit und Wirklichkeit (1938). O título significa exactamente
Potencialidade e actualidade, porque Hartmann atribui a
Mõglichkeit o significado aristotélico de potencialidade (e não o de
possibilidade verdadeira e própria, como aparece, por exemplo, na
"impossibilidade transcendental" de Kant), e a Wirklichkeit o
significado, igualmente aristotélico, de actualidade em geral,
diferente da realidade verdadeira e própria ou Realitãt. Mas o
título verdadeiro da obra, o que exprimiria verdadeiramente o seu
espírito e as suas conclusões, deveria ser Necessidade e realidade
(Notwendigkeit und Realitãt). Com efeito, nela Hartinann não faz
mais do que declarar incluídos na necessidade os outros modos do
ser, negando-os por isso como tais, e identificar a necessidade com
a realidade actual ou efectiva, que é, pois, a realidade de facto.
Explicitamente, Hartmann remete para Diodoro Crono (§ 37) e para
o seu argumento dito " vitorioso", segundo o qual só o que se
verifica é possível, porque se fosse possível o que não se verifica,
do possível tirar-se-ia o

impossível. Este argumento levava Diodoro Crono a admitir que tudo


o que sucede deve necessária-
148

mente suceder e que a imutabilidade que existe para os factos


passados -existe também para os factos futuros, ainda que não
pareça. E esta é também a

última convicção de Hartmann. Possível é só o que foi, é ou será


real; o possível não tem por isso um

status próprio e reduz-se inteiramente ao real. A realidade é,


contrariamente, a "existência preponderante e não anulável", a
"maneira tosca e não conciliadora -de pretender o próprio lugar"
que recorda, "traduzida em termos espaciais, a impenetrabilidade
da matéria". Hartmann. acrescenta que estas são unicamente
imagens: não obstante, "algo de tudo isto existe, sem dúvida, na
essência da realidade efectiva" (Mõgl. u. Wirkl., p. 59).

A eliminação de todo o elemento de indeterminação e


problematicidade do real é efectuada por Hartmann mediante a
chamada "lei modal fundamental": possibilidade e necessidade são
unicamente modos relativos do ser, que não teriam sentido sem

o modo fundamental, o da efectividade. Com efeito, "a


impossibilidade de A significa que A não pode ser; a sua
possibilidade significa que A pode ser; a sua necessidade que A
deve ser. Assim, o não poder, o poder e o dever referem-se a um
ser que é o seu fundamento modal e o seu núcleo fundamental. Sem
este ser, todo o poder ser ou dever ser careceria de sentido, já que
consistiria no poder ser ou no dever ser de nada" (Ib., p. 72). Mas
que é o ser ao qual dever ser e poder ser se referem como ao seu
ubi consistam? É o ser simplesmente, na sua pura efectividade ou
actualidade; o ser que, no domínio da realidade de facto, se
apresenta como um "ser

149

assim e não de outro modo", isto é, como existência análoga à


matéria. A lei modal fundamental, implicando a conexão dos
diversos modos de ser sobre a base comum do modo fundamental, a
efectividade, leva Flartinann a enunciar as seguintes seis leis
"paradoxais": 1.a O que é realmente possível é também realmente
efectivo; 2 a O que é realmente efectivo é também realmente
necessário; 3.a O que é realmente possível é também realmente
necessário, e vice-versa; 4 a Aquilo cujo não ser é realmente
possível, é também realmente não-efectivo; 5.a O que não se
pode realmente efectuar, é também realmente impossível; 6 a
Aquilo cujo não ser é realmente possível, é também realmente
impossível (Ib., p. 126). Estas seis leis não são mais do que a
tradução analítica do princípio de Diodoro Crono. Isto é claro
sobretudo no domínio da realidade verdadeira e própria, isto é, da
realidade do mundo. Por exemplo, a possibilidade de queda de uma
pedra que se encontre em equilíbrio numa montanha, só é real
quando o conjunto das condições que determinam a queda é
completo; mas é evidente que neste caso, a queda não é possível,
mas necessária e efectiva. Se esta "lei real da necessidade" parece
paradoxal e repugnante à consciência, isto sucede unicamente
porque não estão presentes na consciência todas as condições que
determinam a efectividade; e, portanto, o sentido da possibilidade,
considerada distinta da realidade e da efectividade, deriva
unicamente do facto de o conhecimento ser incompleto, isto é, da
inadequação dos modos da cons-
150

ciência (Ib., p. 173). Hartmann chama "lei real da efectividade" ao


princípio de que na realidade não

existe o possível nem o necessário, mas apenas o efectivo. "A


efectividade do efectivo consiste em ser ao mesmo tempo, possível
e necessário" (Ib., p. 147). As condições que tornam possível o real
são as que o tornam necessário e, portanto, efectivo. O que
significa que "o real efectivo nunca pode ser diferente do que é, e
se bem que possa vir a ser outra

coisa diferente do que é, só pode vir a ser aquilo em que se


transforma" (Ib., p. 205). Esta última observação demonstra que,
para Hartmann, o devir não é o realizar-se de uma possibilidade
entre muitas outras, mas antes a concretização da única
possibilidade real que a cadeia anterior das condições determina
necessariamente (Ib., p. 237). O tempo não é, pois, um desmentido
à lei da necessidade real. "0 que uma vez foi real no seu tempo - diz
Hartmann. (Ib., p. 133-134) - inclusive sob a forma da mais fluida
transitoriedade, permanece por toda a

eternidade como um ser efectivo no seu próprio tempo, sem que


interesse o facto de posteriormente não ser já efectivo; e assim,
aquele que não foi uma

vez efectivo num determinado tempo, permanece por toda a


eternidade não-efectivo nesse tempo, ainda que viesse a ser real
num tempo posterior. Neste caso, não se trata já na realidade, da
mesma coisa, mas de uma outra coisa noutra conexão real".

Hartmann adopta aqui a mesma posição de Hegel: a realidade


justifica-se por si mesma, através da sua simples presença; é
possível e necessária, porque é efectiva. Deveria, portanto, como
faz He-
151

gel, troçar do dever ser (Sollen), que pretende dar lições ao ser.
Mas Hartmann prefere interpretar o

dever ser como a necessidade de alguma coisa que é ela mesma


possível, porque encontra o seu fundamento num conjunto de
condições efectivas: deve-se continuar a realizar estas condições
até à efectivação real. Portanto, não prescreve mais do que a

realização do que pode e deve necessariamente realizar-se e


refere-se, por outras palavras, à possibilidade real que é por si
mesma efectiva, ainda que possa não o parecer ~g1. u. Wirkl., p.
266). Mas, deste modo, o dever ser ou Sollen identifica-se com o
Müssen da realidade efectiva e encontra o seu fundamento na
concatenação necessária desta realidade. O Sollen, como acto de
liberdade, é aqui praticamente negado. E a necessidade real (neste
sentido) estende-se também, segundo Hartmann, ao
domínio do conhecimento. Hartmann distingue neste campo a
consciência intuitiva e a consciência compreensiva. A primeira é a
que se abre, sem mais, ao ser efectivo, que lhe é dado como tal, sem
referência à sua possibilidade e necessidade. A segunda, que é a
consciência intelectual, procura compreender ou interpretar a
efectividade mediante a !sua possibilidade e necessidade; não
obstante, o seu ponto de partida com o seu ponto de chegada é a
própria efectividade, tal como é dada à consciência que intui.
Hartmann exemplifica este procedimento com a construção de uma
hipótese. "Esta - afirma (Ib., p. 370) - parte da consciência da
efectividade e

pergunta a si própria como ela é possível. Res-


152

NICOLAI HARTMANN

ponde com a compreensão da necessidade de uma

certa condição; mas, dado que esta condição só é possível baseando-


se numa realidade, deve haver realidade e, assim, o compreender,
através da possibilidade e da necessidade, retorna à consciência da
efectividade".

A efectividade é, pois, verdadeiramente o único modo do ser e o


único fundamento possível da compreensão intelectual. A arte, que
Hartmann não consegue reduzir à realidade efectiva, é considerada
como inferior a esta última e como provida de uma liberdade
negativa que, na realidade, é uma

simples veleidade ou tentativa de liberdade (Ib., p. 275). Para


Hegel, a superioridade da realidade efectiva era justificada pela
sua racionalidade intrínseca; para Hartmann, a realidade efectiva
não se justifica, mas aceita-se tal como é, como não pode deixar de
ser pela sua condição de facto, completa e bem determinada. Este
condicionamento não é, literalmente falando, a causalidade
necessária da física do séc. XIX, porque tal causalidade é, segundo
Hartmann, a forma que o condicionamento adquire no domínio
particular da realidade física. Todavia, toma como modelo
precisamente a causalidade necessária da física oitocentista; toda a
ontolcygia de Hartmann se modela, como ele explicitamente
reconhece, sobre o conceito de matéria próprio dessa física. Se a
fenomenologia, nas mãos de Husserl, se converteu num
espiritualismo transcendental, nas

mãos de Hartmann converte-se num materialismo transcendental.

153

§ 836. HARTMANN: OS ESTRATOS DO SER

Vimos que, para Hartmann, a realidade efectiva se caracteriza


essencialmente por uma completa, absoluta -e necessária
determinação. Descobrir as formas e as leis desta determinação é a
tarefa das análises categoriais que Hartmann leva a cabo na obra
intitulada A construção do mundo real (1940). As categorias são aí
entendidas num sentido anti- _subjectivista, como princípios
imanentes ao mundo e formas da sua determinação necessária. O
pressuposto da análise categorial é a estratificação do mundo numa
série de planos. Tal estratificação é, segundo Hartmann, um facto
evidente: é evidente, por exemplo, a cisão entre a natureza
inorgânica e a orgânica, entre a natureza orgânica e a psíquica,
entre a natureza psíquica e o ser espiritual. Contudo, a diversidade
entre as categorias não se modela -sobre a diversidade dos planos
reais. São categorias fundamentais que pertencem a todos os
planos do ser. Tais são, em primeiro lugar, as modais, cuja análise
foi feita em Possibilidade e actualidade; em segundo lugar, as que
se relacionam com pares (categorias b,,polares, como causalidade-
quantidade, contínuo-discreto, forma-matéria, lete.); -em terceiro
lugar, as que exprimem as leis fundamentais do ser real. Estas
últimas, sobretudo, são decisivas porque nelas se baseia a
determinação da realidade efectiva. Dividem-se em quatro grupos,
que obedecem respectivamente ao princípio do valor, ao prIncípio
da
154

coerência, ao principio da planificação e ao princípio da


dependência.

As leis do valor esclarecem que o valor das categorias não consiste


no seu dever ser normativo, mas é análogo ao das leis da natureza
ou das leis matemáticas, com a diferença de que é ainda mais
universal. Por outras palavras, o valor de uma categoria é uma
determinação necessária, de cunho naturalista. As leis da
planificação exprimem a relação e os graus da condicionalidade
recíproca entre os diversos planos da realidade. Hartmann crê que
as

categorias inferiores reaparecem nas superiores, mas

não o contrário (lei do retorno); que todo o plano do ser implica um


novo momento categorial não redutível aos elementos mais baixos
ou à sua síntese (lei do novum); e que não há gradação na passagem
dos planos inferiores aos superiores (lei da distância dos planos).

Hartmann distingue a propósito disto a superestrutura e a


superformação: existe superformação quando no plano superior se
conservam todas as categorias do plano inferior; existe
superestrutura quando o plano superior assume só algumas das
categorias que dominam o plano inferior, deixando de fora outras.
O plano psíquico, por exemplo, é, em relação ao plano orgânico, uma
superestrutura na qual se abandona a categoria do espaço que
domina ainda o ser orgânico. A diferença entre superformação e
superestrutura impede a concepção mecânica que queria fazer
úepender a vida psíquica dos fenómenos físicos. A estratificação do
real implica

155

pois que a determinação, na qual todos os planos do ser se


encontram justapostos, não possa ser de uma só espécie mas sim
diferente para cada plano (Aufbali der Welt, p. 314). No plano
físico a determinação é causal, no sentido da física oitocentista, e
sobre ela se modelam as outras espécies da determinação -que,
para as leis do valor, exprimem um

condicionamento de facto, sem referências normativas.

O problema da liberdade é, deste ponto de vista, um problema


ontológico: a liberdade reduz-se ao que Boutroux tinha chamado a
contingência dos planos superiores do ser relativamente aos
inferiores (§ 679). Dado que todo o plano contém um novum

relativamente ao plano inferior, é condicionado por esse plano mas


não é absolutamente determinado por ele. "A autonomia da
determinação superior diz Hartmann (1h., p. 569)-consiste no
fundamento da sua condicionalidade relativamente à parte inferior,
que não está em contraste e muito menos em luta com ela". Os
planos do ser baseiam-se, para além da sua condicionalidade
relativamente aos planos inferiores, na sua origem e absoluta
determinação interna, própria de cada plano. E, dado que esta lei
não pode faltar no plano em que actua a

vontade, também neste plano a determinação é rigorosa e absoluta


como nos outros. Hartmann fala g

da inserção de "determinantes extra-causais" no processo em que


se insere a vontade. Mas, porque "extra-causais", trata-se sempre
de "determinantes" que pertencem ainda ao mundo real (Ib., p.
561); c o

156

próprio facto de existirem e serem reconhecidos como


determinantes exclui a liberdade da vontade. E, na verdade, a
liberdade é excluída no sistema da realidade de Hartmann. Uma
realidade que não pode ser mais do que aquilo que é, que se torna
necessidade pelo próprio facto de ser e só porque é, exclui a
liberdade como um sonho impossível.

E a liberdade é excluída por Hartmann, implicitamente, da história.


Na história, Hartmann vê operar um. espírito objectivo que, não
existindo fora dos espíritos finitos, actua neles de modo impessoal
e universal. O espírito objectivo é uma

superestrutura, no sentido já exposto; superestrutura que se ergue


sobre a consciência do mesmo modo que a consciência se ergue
sobre o organismo. Assim como a consciência deixa fora de si a
espacialidade e a materialidade do mundo orgânico, do mesmo modo
o espírito objectivo deixa atrás a consciência e a personalidade e se
eleva a um horizonte impessoal, que vai para além da estreiteza do
ser psíquico (Das Problem des geistingen Seins, p. 262). O espírito
objectivo, enquanto é um
novum relativamente ao plano da consciência pessoal, não é um
agregado de indivíduos mas antes um conjunto !de formas, de
conteúdos, de princípios: é a vida espiritual na sua totalidade, tal
como surge historicamente, se desenvolve, atinge o seu máximo e
cai. Pertencem a ele todas as produções espirituais (as letras, as
artes, a técnica, as religiões e os mitos, as ciências e a filosofia,
etc.). E é também o verdadeiro protagonista da história. "Estão
sempre a de-
157

frontar-se duas leis heterogéneas do espírito: a da pessoa e a do


espírito comum. É precisamente a

penetração recíproca de ambas que constitui a plena autonomia do


espírito vivente. Ambas o determinam de uma maneira só parcial, e
por isso deixam uma à outra um certo campo de acção" (Ib., p. 259),
Há aqui um louvável esforço para assegurar uma

corta parcela de liberdade e iniciativa à pessoa individual; mas é um


esforço sem êxito. A determinação necessária é somente
transplantada do espírito objectivo para o espírito vivente, que
reúne em si o espírito objectivo e a consciência pessoal. Consiste na

penetração recíproca de ambos e constitui a "forma categorial


fundamental do ser vivente". E no âmbito desta categoria
fundamental reaparece a determinação necessária própria de cada
categoria (Ib., p. 44 1).

A especulação de Hartmann é rica em exigências, temas -e análises


que a vinculam à parte mais viva da filosofia contemporânea. A
polémica radical contra o idealismo gnoscológico, o conceito do
conhecimento e, em geral, de toda a actividade como
transcendência, a tentativa -de reivindicar para o
homem uma liberdade finita (isto é, condicionada e limitada)
constituem os aspectos mais interessantes da sua especulação, No
entanto, estas exigências já adquirem forma num sistema
complicado que se

concentre no reconhecimento maciço e preponderante da realidade


dos factos, isto é, um sistema no qual estas exigências se associam
inadequada e insatisfatoriamente.

1.58

§ 837. SCHELER: O MUNDO DOS VALORES E DA PESSOA

A análise fundamental dos aspectos emotivos e

práticos da consciência foi iniciada e desenvolvida na obra de Max


Scheler (1874-1928). Scheler foi professor em Colónia desde 1919;
a morte, que o surpreendeu aos cinquenta e três anos, interrompeu
bruscamente uma actividade intensa e fecunda. A sua obra mais
conhecida, intitulada O formalismo na ética e a ética material do
valor, apareceu pela primeira vez no "Jahrbuch" de Husserl entre
1913 e 1916. Mas a obra que constitui o seu maior contributo à
filosofia contemporânea é a que se intitula Essência e formas da
simpatia (1923). Outras obras notáveis são as seguintes: O
transcendental e o método psicológico (1901); O ressentimento e o
juízo moral dos valores (1912); O génio da guerra e a

guerra alemã (1915); Escritos e esboços (2 vols.,


1915; 2 a ed. com o título de Crise dos valores,
1919); Guerra e construção (1916); O eterno no homem (1921)-,
Escritos de sociologia e da doutrina da Weltanschauung (4 vols.,
1923-24); As formas do saber e a sociedade (1926); A posição do
homem no cosmos (1928); Intuição filosófica do mundo (1928); A
ideia da paz e o pacifismo (1931); Escritos póstumos (1933).

Scheler entende a fenomenologia como sendo "a investigação de um


saber cujos objectos não são considerados como existencialmente
relativos à vida e aos valores; vitais" (Philosophische
Weltanschauung, p. 120), isto é, de um sabor desinteressado e
directo,

159

para o qual as coisas surgem na sui essência genuína

e os objectos se apresentam, por assim dizer, "em

pessoa", sem serem mediatizados por quaisquer pressupostos ou


símbolos. Este saber é para Scheler aquilo que constitui a
experiência genuína: "A filosofia fenomenológica representa o
empirismo e o positivismo na sua forma mais radical" (Zur EWk und
Erkenntnislehre [Nachlass], 1933, p. 267). Se se considera
fenomenológicamente a experiência emotiva, os objectos que se
apresentam em pessoa a essa experiência são os valores. A ética de
Scheler é por isso a análise fenomenológica da experiência emotiva,
e o seu objectivo é o de fornecer esclarecimentos sobre os
objectos específicos desta experiência, isto é, sobre os valores.

Mas enquanto objectos da experiência fenomenológica, os valores


não constituem nem bens nem fins. O bem é a coisa que incorpora
um valor; o fim é o termo de unia aspiração e de uma tendência que
tanto pode ter valor como não o ter. Mas o estar incorporado num
valor ou o constituir o termo de urna tendência não modifica de
modo algum o
ser do valor, o qual é dado de uma forma directa e imediata à
experiência emotiva. Todavia, a experiência emotiva à qual o valor
se revela não é a simples emoção, por exemplo, uma dor ou uni
prazer sensível, mas antes a experiência intencional, que Scheler
chama também de intuição emotiva, e à qual o valor é fornecido
directamente; ela tem por isso, com esse valor, a mesma relação
que uma representação ou um conceito têm com o seu objecto (Der
Formalismus in der Ethik, 1927, p. 264). O

160

mundo dos valores apresenta-se à intuição emotiva como um mundo


objectivo, isto é, independente do facto ou do acto da apreensão
dos valores; e como

mundo objectivo tem as suas próprias leis a priori. Estas leis


determinam, em primeiro lugar, a hierarquia dos valores, ainda que
seja independente dos valores realizados ou das actividades que os
realizam.

A primeira modalidade do valor é a série do agradável ou


desagradável, aos quais corresponde a

função do sentir sensível com os seus modos de gozar e de sofrer.


A segunda modalidade é o conjunto dos valores vitais: abarca todas
as qualidades compreendidas entre o nobre e o vulgar, que
correspondem aos modos do sentimento vital (saúde, doença,
velhice e morte, ascensão e -decadência, esgotamento e
exuberância, etc.). Pertencem também a

esta modalidade o bom e o mau, no sentido da habilidade e da


eficiência (por exemplo, na frase "bom artesã o"). A terceira
modalidade dos valores compreende o campo dos valores espirituais,
que são apreendidos pelo sentir espiritual. Pertencem a esta

categoria os valores estéticos (belo e feio), os valores jurídicos que


constituem o fundamento de toda a ordenação jurídica que seja
independente de uma

lei positiva do Estado ou da comunidade; os valores do


conhecimento puro, tais como os tenta realizar a filosofia que,
contrariamente à ciência, não está guiada pelo fim -de dominar os
factos naturais. Aprovar ou desaprovar, estimar ou menosprezar,
simpatizar espiritualmente, são alguns dos actos subjectivos nos
quais se apreendem estes valores. A quarta e última modalidade dos
valores é a dos va-
161

lores religiosos, que se movem entre o sagrado

e o profano. Correspondem a estes valores os sentimentos de


beatitude e desespero, que não se devem confundir com os da
felicidade e infelicidade, e que são determinados pela proximidade
ou afastamento do sagrado na vida vivida. O acto com que se
apreendem os valores do sagrado é uma determinada espécie de
amor, na qual é essencial o dirigir-se a pessoas. Na esfera do
sagrado, o valor genuíno é essencialmente um valor pessoal. Estas
quatro modalidades do valor estão ordenadas hierarquicamente: os
valores nobre-vulgar são mais elevados do que os valores agradável
e desagradável; os valores espirituais são mais elevados do que os
vitais e os valores do sagrado mais elevados do que os espirituais
(Der Form. in der Ethik, p. 109).

Assim como todo o valor é apreendido por um

acto específico de intuição, também a hierarquia dos valores é


apreendida por um acto específico, que é o de preferir. Preferir
não é escolher, será antes este que se baseia no preferir. Devemos,
indubitavelmente, escolher o fim baseando-nos num valor superior;
mas, para fazê-lo, este valor superior deve ser dado num acto
preferencial. O preferir é, portanto, independentemente de
qualquer aspiração, eleição ou volição. Naturalmente, não se trata
aqui do preferir empírico que se refere a bens (coisas dotadas de
valor), mas do preferir a priori, que se refere aos próprios valores.
O preferir é um acto mais originário que o simples sentir os valores,
porque ** dência preferencial é superior e mais imediata que a
evidência emotiva dos valores. Faz parte essencial

162

do carácter superior de certos valores a sua maior duração, isto é,


o poder de persistir através do tempo. A duração faz parte da
essência dos valores superiores, ainda que não se realize ou se
realize imperfeitamente na experiência. Um amor ou uma amizade
baseados no valor da pessoa são essencialmente duráveis, ainda que
empiricamente possam durar menos que uma simples comunicação
de interesses materiais. Em tal caso, porém, diz-se que não se
tratava de um verdadeiro amor ou de uma verdadeira amizade; e
assim se reconhece que pertence à essência dos valores
superiores o ter uma duração maior.

Finalmente, o amor e o ódio representam o grau mais elevado da


nossa vida emotiva intencional. Estes diferenciam-se do preferir
pelo facto de que, enquanto, este se dirige intencionalmente a uma
multiplicidade de valores sentidos, àqueles pode-se-lhes atribuir um
único valor. Ao amor e ao ódio, enquanto actos espontâneos,
corresponde-lhes a função de ampliar ou restringir o reino do valor
acessível à intuição. Ampliar ou restringir não significa criar ou
destruir, já que os valores existem independentemente de todo o
ser espiritual determinado. Amor e ódio somente descobrem o
valor; mas descobrem-no mesmo antes que ele tenha sido intuído ou
preferido; e constituem, por conseguinte, um movimento em cujo
processo se irradiam e iluminam valores até então desconhecidos
(Ib., p. 268).

A ética, por ter como fundamento os -valores, é uma ética material


que Scheler contrapõe à ética formal de Kant. A objecção de Kant
contra a ética

163

material, que consiste na afirmação de que esta não é possível dado


que o bem, que deveria ser uma

consequência de um qualquer fundamento, não é mais do que um fim


desejado e que, portanto, as normas da ética assumem a forma de
imperativos hipotéticos (se desejas isto, faz aquilo), é, segundo
Scheler, uma consequência da confusão de Kant entre valores e
fins. Os valores não são dados como fins mas como objectos
absolutos que são intuídos emotivamente de acordo como uma dada
ordem preferencial. A universalidade e a autonomia da ética são
garantidas desta forma por valores, se

bem que tais valores não sejam entendidos simplesmente como fins.

A teoria dos valores, no entanto, é para Scheler apenas uma


introdução a uma teoria da pessoa, isto é, a uma compreensão
fenomenológica da personalidade humana. Tal personalidade não
pode ser interpretada como "pessoa racional já que, como simples
sujeito de actividade racional, seria idêntica em

todos os homens",(Der Form. in der Ethik, p. 385). Segundo


Scheler, a pessoa é antes uma unidade essencial, concreta, de
-actos essencialmente distintos, c

é o fundamento destes actos (Ib., p. 398). Em qualquer acto, vive e


actua a totalidade da pessoa; mas

esta não se esgota nos seus actos singulares. Dado que o seu modo
de ser é o viver estes actos, não tem qualquer sentido querer
aprisioná-la nos actos já vividos (Ib., p. 401). A pessoa não se
identifica com a consciência, isto é, com o objecto da percepção
interna, nem com o eu, enquanto se contrapõe ao tu ou ao mundo
externo. A palavra eu está estrei-
164

tamente ligada ao tu e ao mundo externo; Deus pode ser pessoa mas


não pode ser eu, porque para ele não existe nem um tu nem um
mundo externo. A pessoa age, passeia, etc.; o eu não pode fazer
estas coisas, se bem que a linguagem comum adopte
frequentemente, nestes casos, a palavra eu. Esta é anterior -e
indiferente às contraposições eu-tu, eu-mundo externo, psíquico-
físico. A pessoa tem como

seu correlativo o mundo; portanto, a cada pessoa individual


corresponde um mundo individual. É por isso que ia verdade
metafísica, que é apenas a verdade, tem um conteúdo diferente
conforme as pessoas, -e torna-se uma verdade pessoal. O facto
-disto acontecer não depende da relatividade ou da humanidade da
verdade, mas do nexo essencial entre a pessoa e o mundo. Se cada
pessoa tem um mundo que vale verdadeiramente só para ela, a ideia
de um mundo único, idêntico, real -de um macrocosmos que se
contraponha aos microcosmos das pessoas finitas-implica a ideia de
uma pessoa espiritual infinita e perfeita, cujos actos nos são dados,
na sua
essência fenomenológica, nos actos de todas as possíveis pessoas
finitas. Esta pessoa deve, para realizar a condição essencial de toda
a realidade, ser concreta. Desta maneira, diz Scheler, "a ideia de
Deus é-nos dada juntamente com a identidade e unidade do mundo,
baseando-se numa conexão essencial" (Ib., p. 411). Não se pode
afirmar a unidade do mundo real sem a ideia de uma pessoa infinita,
isto é, de Deus. Mas a conexão entre o mundo real e a ideia de Deus
é uma conexão ideal, que não implica a realidade de Deus; e,
verdadeiramente, a

165

realidade de Deus nunca pode ser fornecida pela filosofia, mas


somente por uma possível e positiva revelação de Deus numa pessoa
concreta (Ib., p. 412).

Faz parte essencial da pessoa uma relação com

o corpo orgânico pelo qual ela é imediatamente senhora do próprio


corpo. O corpo deve ser dado à pessoa como uma res, como uma
coisa que, por um lado, não seja absolutamente incapaz de
incorporar um valor e, por outro, não o incorpore essencialmente,
mas que pode incorporá-lo acidentalmente sob certas condições
(Ib., págs. 16, 499). Por outros termos, aquela coisa que é o corpo
da pessoa é propriedade sua, e isto constitui também o fundamento
da ideia de propriedade em geral. Por isso, na

antiga concepção da escravidão, o escravo não era considerado


como uma pessoa social e era dado, não apenas aos outros como
também a si mesmo, como uma simples coisa. Contudo, reconhecia-
se-lhe uma alma, uma consciência; e esta é uma prova ulterior de
que a pessoa não se define por tais determinações. Não é também
constituída pelo carácter, que é aquele x constante ao qual se apela
para explicar as acções particulares de uma determinada pessoa. Se
um homem age de modo diferente das deduções que nós tirámos da
imagem hipotética do seu carácter, limitar-nos-emos, e com razão,
a modificar esta imagem. Mas a pessoa, segundo Scheler, não fica
comprometida nestas mudanças subjectivas de carácter. Também
as enfermidades psíquicas, que mudam o carácter, não afectam
verdadeiramente a

pessoa. Tudo o que podemos dizer nos casos mais graves é que a
enfermidade tornou completamente

166

invisível a pessoa afectada por ela e que, portanto, não é já possível


um juízo sobre a mesma. Mas esta mesma afirmação implica o
reconhecimento de que a pessoa está para além das transformações
do carácter e que estas transformações não conseguem afectá-la
(Ib., p. 505). A compreensão da pessoa não é então possível através
dos seus actos ou das suas vivências; pelo contrário, a compreensão
de tais actos e experiências só é possível através da compreensão
da pessoa que lhes está na origem. Somente através da inteligência,
mediada pelo amor

à pessoa, se torna possível a intuição da sua essência válida, ideal e


individual. Este amor compreensivo (como Miguel Ângelo diz num
soneto) é o grande artista plástico que da pluralidade de dados
empíricos parciais-e às vezes de uma só acção, de uma só expressão
-consegue extrair as linhas da essência válida da pessoa, daquela
essência que o

conhecimento empírico, histórico e psicológico da sua vida nos


esconde mais do que nos revela" (Ib., p. 508).
Toda a pessoa é uma individualidade singular, diferente e distinta
das outras, mas nunca está encerrada em si mesma. Toda a pessoa
se encontra a si mesma como membro de uma comunidade de
pessoas de modo que a -ideia de uma comunidade está vinculada ao
significado da pessoa não menos do que à de um mundo externo, e
interno. A existência ou a consideração de uma comunidade em
geral não está nem ética nem gnoseologicamente vinculada à
existência ou consideração de um mundo corpóreo. Esta é a razão
fundamental de as ciências

167

sociais e históricas permanecerem autónomas relativamente às


ciências naturais. As suas formações conceptuais -tanto as de
contemporaneidade como de família, raça, povo, nação, cultura, etc.,
como as

de sucessão, idade, período, etc.-podem constituir-se em si -e por


isso nunca remetem para unidades reais cientificamente pré-
formadas, como as

geográficas (territórios) ou as biológicas e raciais (Ib., p. 541). A


pessoa finita é essencialmente membro de uma unidade social, e a
unidade social é essencialmente membro de uma mais ampla
unidade: estas conexões essenciais obrigam-nos a transcender em
espírito qualquer comunidade efectiva e terrena, isto é, a
considerá-la como membro de uma comunidade mais vasta. Que este
acto transcendente se efective depois numa experiência de factos,
é indiferente para a essência da consciência social da pessoa. O ser
da pessoa, como pessoa singular, constitui-se no interior dela e do
seu mundo, isto é, no
conjunto particular dos actos singulares; o ser da pessoa comum
constitui-se no conjunto particular dos actos sociais. O conteúdo
comum de todas as experiências do "conviver" (relativamente ao
qual o

compreender é somente uma sub-espécie) é o mundo de uma


comunidade, um mundo comum, e o seu

sujeito concreto é uma pessoa comum. Por outro lado, o conteúdo


constante de todas as experiências vividas que são actos
singularizantes, é o mundo de um indivíduo e o seu sujeito é a
pessoa singular. Por isso, a toda a pessoa finita pertencem uma
pessoa singular e uma pessoa comum que estão em relação recíproca
e cuja relação pode ser directa-
168

MAX SCHELER

mente vivida (Ib., p. 543). Ã essência desta relação pertence o


conhecimento que a pessoa finita tem de nunca poder aprisionar na
sua totalidade a pessoa comum. Por outro lado, a pessoa comum não
se

identifica com a existência das pessoas individuais, que são


variáveis e substituíveis e se separam pela morte.

A teoria de todas as possíveis unidades sociais e

essenciais é a sociologia filosófica. As unidades sociais diferenciam-


se entre si segundo a classe de valores em que se baseiam; e às
quatro categorias de valores Scheler faz corresponder,
respectivamente, a massa, a comunidade vital, a comunidade
jurídica e a comunidade do amor.
§ 838. SCHELER: A SOCIOLOGIA FILOSóFICA

Toda a obra de Scheler se pode considerar como

uma tentativa de enriquecer esta sociologia filosófica. Sob este


aspecto, a sua obra mais significativa é a que se intitula Essência e
formas da simpatia (1923), na qual a simpatia, assumida na sua
estrutura fenomenológica, é considerada como o único fundamento
autêntico da relação interpessoal, por garantir simultaneamente a
autonomia das pessoas

e a possibilidade da sua comunicação.

Em primeiro lugar Scheler distingue a simpatia do contágio emotivo


que se manifesta nas aglomerações gregárias e nas massas e que é
formado pela limitação ou repetição das mesmas emoções. O caso-
limite do contágio emotivo é a fusão emotiva, como

169

se verifica, por exemplo, nas sociedades primitivas, nas quais o


homem se identifica com os seus antepassados e crê -ser ao mesmo
tempo ele próprio e

o seu antepassado. A simpatia não é um estado, mas uma função


afectiva. Isto revela-se, por exemplo, no caso da piedade, que não
constitui modo algum um partilhar a dor alheia e que, portanto, não
multiplica a dor. " O estado afectivo de B, implícito na piedade que
eu sinto, continua a ser para mim o estado afectivo de R- não passa
para mim nem produz em mim um estado semelhante ou igual.
Compadeço-me de B, participo do seu sofrimento, sem que se
encontre reproduzida em mim a sua experiência interna, o facto
psíquico que provocou o seu sofrimento ou que o constitui" (Wesen
und Formen der Sympathie, trad. franc., p. 69). A simpatia supõe e,
ao mesmo tempo, cria a diversidade entre as pessoas. Um
sentimento considerado como conteúdo de um espírito supra-
individual ou de uma consciência universal e no qual, por isso mesmo,
as pessoas se encontrassem fundidas e formassem uma unidade, não
teria nada em comum com a simpatia. "A verdadeira função da
simpatia-diz Scheler (Ib., p. 104-105)- consiste em destruir a ilusão
e em revelar a realidade do outro enquanto outro, dotada de um
valor igual à nossa". A simpatia tem evidentemente certos limites,
porque tanto na forma de sofrimento (piedade) como na de alegria
não é um acto espontâneo, mas um estado passivo, uma reacção. É
uma forma de compreensão que -está encerrada nos limites dos
laços que nos

relacionam com as pessoas: camaradagem, amizade,

170

laços conjugais, sociais, colectivos, nacionais, etc. Somente o amor é


capaz de ultrapassar estes limites e substituir a relação periférica
por uma relação de profundidade. Mas o amor, ainda mais do que a
simpatia, exige a diversidade e a autonomia da pessoa. O seu
sentido mais profundo consiste precisamente em não considerar e
não tratar o outro como se fosse idêntico ao próprio eu. "0
verdadeiro amor consiste em compreender suficientemente outra
individualidade modalmente diferente da minha, em poder pôr-me
no seu lugar, mesmo considerando-a como distinta e diferente de
mim e inclusive enquanto afirmo, com calor emocional e sem reserva,

a sua própria realidade, o seu próprio modo de ser"

(Ib., p. 110-111). Devi-do a este carácter mais radical e mais


profundo do amor, Scheler crê que o amor é o fundamento da
simpatia e que a esfera na qual esta se move é sempre delimitada na
sua amplitude por um acto de amor. O amor dirige-se
necessariamente ao núcleo válido das coisas, ao seu valor. Tende a
realizar o valor mais elevado possível ( e isto é já um valor positivo)
e a suprimir um valor inferior (também esta intenção é um valor
moral positivo). Pode dirigir-se à natureza, à pessoa humana e a

Deus, no que têm de próprio, isto é, de distinto daquele que ama.


Pelo contrário, o amor da humanidade(, de que fala o positivismo não
é mais do que ressentimento, ou seja, ódio aos valores positivos
implícitos em "País natal, povo, pátria, Deus".

Scheler reconhece na simpatia a relação emotiva originária entre as


pessoas e o fundamento da certeza da existência de outros eu, que
está indissoci-
171

velmente unida à existência do eu. Considera quimérica a tese


idealista, segundo a qual o eu só pode pensar nos seus próprios
pensamentos e só pode sentir os seus próprios sentimentos. Na
realidade, podemos pensar do mesmo moldo os nossos pensamentos
e os dos outros, e experimentar igualmente os sentimentos alheios
e os nossos. Mais ainda, todos começamos a pensar como próprios os
pensamentos alheios, isto é, recebidos da tradição e do ambiente, e
só numa segunda etapa conseguimos distinguir o que nos é próprio
daquilo que nos é estranho. O eu não é para o próprio eu a coisa
mais fácil e óbvia, mas antes a mais difícil; e à medida que se
constitui na esfera dos pensamentos e dos sentimentos que
reconhece como próprios, reconhece também no mesmo acto os
pensamentos e os sentimentos dos outros e, portanto, a realidade
desses outros. Não subsiste qualquer diferença de princípio entre a
(percepção de si mesmo e a percepção dos outros, nem a primeira
pode apresentar qualquer título de privilégio relativamente à
segunda. A possibilidade, que é própria da simpatia, de compreender
os outros como outros, constitui pois o fundamento da certeza de
existência das outras pessoas.

Contrasta singularmente com estes fundamentos a concepção


metafísica que Scheler delineou na sua

obra sobre a Simpatia e na qual insistiu cada vez

mais nas obras posteriores. Na sua obra sobre a Simpatia fala, por
um lado, de uma "fusão emotiva do homem com o cosmos vivente",
que se verificaria no acto do amor sexual (Ib., p. 168 e segs.) e, por
outro, de urna "união mística entre a

172

essência da pessoa espiritual e a ideia desta essência que repousa


em Deus". A união mística estaria condicionada não pela identidade
essencial entre o

homem e Deus, mas pela identidade entre a essência da alma


espiritual e a essência de Deus, na medida em que esta também
compreende entre as

suas inumeráveis essências a do mundo (Ib., p. 195). Este seria o


ideal eterno ao qual o homem deveria tentar conformar-se na vida
terrena. Scheler acentuou posteriormente o conceito de
solidariedade entre todos os seres vivos e mesmo uma
solidariedade universal que compreenda simultaneamente o

mundo e Deus (Ph,'Iosophische Weltanschaulirg,


1929, p. 71). Com esta solidariedade, a história humana não seria um
puro espectáculo para um contemplador e juiz supremo, mas
inscrever-se-ia antes no próprio devir de Deus. Seria, por outras
palavras, a própria realização de Deus (Ib., p. 103). O próprio
Scheler vê o precedente desta identificação do ser

proveniente de Deus com a história do mundo ou, melhor, com o


mundo enquanto história, na doutrina de Hegel (Ib., p. 148), E neste
ponto, evidentemente, as categorias fundamentais da sua
especulação mudaram. A autonomia e a alteridade recíproca das
pessoas não são possíveis se as pessoas não são mais do que
momentos da realização ou do devir de Deus. Scheler não se
apercebeu do facto de as categorias de que tinha partido e às quais
se devem os resultados mais notáveis da sua especulação,
assinalarem o abandono e a negação da intuição romântica do mundo.
Pretendeu, contrariamente, efectuar um retorno impossível ao
romantismo, negando

173

assim ou desvalorizando implicitamente as suas conclusões.

As suas investigações sobre a sociologia do saber seguem uma


orientação análoga. O saber define-se ontologicamente como uma
relação interna do ser, relação pela qual um existente participa na
essência de outro existente sem que nesta essência nada mude (Die
Wissensformen und die Gesellschaft, 1926, p.
247). Neste sentido, o saber serve e deve servir para três fins
principais: em primeiro lugar, para um

fim formativo, isto é, para o devir da pessoa que sabe; em segundo


lugar, deve servir ao devir do mundo que através do saber humano
alcança o destino ao qual nunca teria podido chegar -de outro modo;
em terceiro lugar, deve servir para adaptar o
mundo aos fins humanos. Este último saber é o da ciência. A
concepção mecânica do, universo e o pragmatismo (ao qual são
dedicadas muitíssimas páginas críticas em Formas do saber e
sociedade) têm presente apenas o último destes fins e descurara os
outros. Sociologicamente, a concepção mecânica do mundo é
considerada por Scheler como a ideologia da sociedade burguesa,
que identifica o mundo com a esfera do trabalho; o pragmatismo
seria, pelo contrário, a ideologia oposta das novas classes do
proletariado, que faz de todo o saber um instrumento de trabalho.
Contra um e outro, Scheler preconiza para o futuro o
ressurgimento de um " espírito filosófico e metafísico".

A ética de Scheler inspirou a Ética (1926) de Hartmann e, em geral,


todas aquelas doutrinas (realistas ou pragmáticas) que reconhecem
a objectivi-
174

dade dos valores e da sua hierarquia. Mas, na análise


fenomenológica da experiência emotiva do homem, o seu exemplo
viria a ser continuado sobretudo por Heidegger.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 825. Sobre o movimento fenomenológico: H. SPIEGELBERG, The


Phenomenological Movement. A Historical Introduction, 2 vols., The
Hague, 1960. Esta obra baseia-se no entanto num conceito
demasiado lato e confuso da fenomenologia, do que resulta serem

nela incluídos não só muitos existencialistas como ainda filósofos


como Marcel que são completamente estranhos ao movimento; por
outro lado, não vêm quaisquer referências a Jaspers.
§ 826. Pode-se encontrar uma bibliografia de Bolzano em H.
BERGMANN, Das philosophische Werk B. B.s, Halle, 1909. A
Wissenschaftslehre foi editada em 4

vols., com prefácio de T. C. A. HEINROTH, Sulzbach,


1837; e foi reeditada em 2 vols. ao cuidado de A. Hofler, Leipzig,
1914-15 (esta última é a edição citada no texto).

Sobre Bolzano, e para além da obra de BERGMANN já citada: FR.


ST. SCHINDLER, B. B., sein Leben und Wirken, Praga, 1912.

De Brentano: Gesammelte Philosophische Schriften, ao cuidado de


O. KRAUS e A. KASTIL, 10 vols., Leiipzig,
1922-30. Alguns capítulos da Psychologie vom empirischen
Standpunkt foram publicados à parte pelo próprio Brentano com o
título: Von der Klassification der psijchischen Phãnomene, Leipzig,
1911; existem traduções italianas ao cuidado de M. PUGLISI,
Lanclano,

s. a.

Sobre Brentano. OSKAR KRAUS, Fr. B., Munique,


1919; A. KASTIL, Die Philosophie F. B.s, Berna, 1951;

175

LUCIE GILSON, Méthode et méthaphysique selon F. B., Paris,


1955; Id., La psychologie déscriptive selon F. B., Paris, 1955.

§ 827. Traduções italianas de Husserl: Idee per una fenomenologia


pura, 1, ao cuidado de G. ALLINEY, Turim, 1950; La filosofia come
scienza rigorosa, ao cuidado de F. COSTA, Turim, 1958;
Meditazione cartesiane e discorsi parigini, ao cuidado de F. COSTA,
Milão, 1960; Esperienza e giudizio, ao cuidado de F. COSTA, Milão,
1960; La crisi delle scienze europec, ao cuidado de E. FILIPPINI,
Milão, 1961.

Sobre Husserl: ILLEMANN, H.s vor-phaenomenologische


Philosophie, Leipzig, 1932; S. VANNI-ROVICHI, La filosofia di E.
H., Milão, 1939; M. FARBER, Editor, Philosophical Essays in Memory
of E. H., Cambridge (Mass.), 1940; M. FARBER, The Foundation of
Phenomenology, E. H. and the Quest for a Rigorous Science of
Philosophy, Cambridge (Mws.), 1943; L. LANDGREBE,
Phaenomenologie und Metaphysik, Hamburgo,
1949; De vários autores, Problèmes actueIs de Ia phénoménologie,
Bruxelas, 1951; G. BRAND, Welt, Ich und Zeit nach
Unverõffentlichen Manuskripten H., Haia,
1955 (trad. ital. de E. Filippini, Milão, 1960); G. PEDROLI, La
fenomenologia di H., Turim, 1958; E. H.,
1859-1959, Recueil commémoratif, Haia, 1959; H. et Ia pensée
moderne, Haia, 1959; Ornaggio a II., ao cuidado de E. Paci, Milão,
1960; E. PAci, Tempo e

verità nella fenomenologia di H., Bari, 1961; P. CHIODI,


Esistenzialismo e fenomenologia, Milão, 1963. Bibliografia em
"Revue Internationale de Pllilosophie", 1939, pág,s. 374-97; 1950,
págs. 469-75.

§ 829. E. LEvINAS, La théorie de Fin&titution dans Ia


phénoménologie de II., Paris, 1930; § 830 G. BERGEP, Le Cogito
chez H. et chez Descartes, Paris, 1940.

§ 833. De Meinong, Gesammelte AbhandIugen, 2 vols., Leipzig,


1913-14.

Sobre Meinong: B. RUSSELL, in "Mind", 1904; à. SPENGLER, in


"Zeitschrift für Philosophie", 1912;

176

G. CAPONE-BRAGA, in "Cultura Filos.", VIII, 1914; Meinong


Gedãnkenschrift, I, Graz, 1952; J. N. FJNDLAY, M.'& Theory of
Objects and Values, Oxford, 1963. A filosofia do pensador
argentino FRANCISCO ROMERO, relacionada com a de Meinong, é
apresentada na sua

forma mais conseguida na última obra desse autor, Teoria del


hombre, Buenos Aires, 1952; sobre ela, consultar R. FRONDIZI em
"Rivista di filosofia", 1954, págs. 201-12.

§ 834. De Hartmann, para além dos escritos citados no texto:


Kleinere Schriften 2 vols. 1955-57.

Sobre Hartmann: R. CANTONI, em "Studi filosofici", 1943;


T. BALLAUFF, N. H. Der Denker und sein Werk, Gõttingen,
1952; F. BARONE, N. H. neZIa filosofia del 900, Turim, 1957, com
uma bibliografia completa.

§ 837. A edição completa das obras de Scheler está em curso de


publicação em Berna e espera-se que venha a ter um total de 13
volumes. Ainda só foram editados os seguintes volumes: E, Der
Formalismus,
1954; IU, Vom Umsturz der Werte, 1955; V, Vom Ewigen im
Menschen, 1954.

Sobre Scheler: J. GEYSER, M. S.s Phãno.?nenologie der Religion,


Freiburg, 1924; A. LAYLER, em "Blãtter

für deutsehe Philosophie", 1928-29; J. HERING, Phénoménologie et


philosophie religieuse, Paris, 1926; G. KRÃNZLIN, M. S.s
phaenomenologische Systematik, Leipzig, 1934 (com bibliografia);
N. BOBBIO, em "Rivista di Filosofia", 1936 (págs. 227-48) e 1938
(págs.
97-126); P. L. LANDSBERG, L'acte philosophique de M. S., em
"Recherches Philosophiques", 1936-37, págs. 229-312; LuPORIM,
L'etica di M. S., em Filosofi vecchi e

nuo,vi, Florença, 1947; G. PEDROLI, S., dalla fenomenologia alla


sociologia, Turim, 1953; M. Dupuy, La philosophie de M. S., son
évolution et saunité, Paris, 1959;
1d., La philosophie de Ia religion chez M. S., Paris,
1959 (com bibliografia).

177

XV

O EXISTENCIALISMO

§ 839. CARACTERISTICAS DO EXISTENCIALISMO

Deve-se entender por existencialista qualquer filosofia que seja


concebida e se exerça como análise da existência, sendo
",existência" uma palavra que designa o modo de estar do homem no
mundo.
O existencialismo é assim caracterizado, em primeiro lugar, pelo
facto de pôr em questão o modo de ser do homem; e, dado que
entende este modo de ser como modo de ser no mundo,
caracteriza-se em segundo lugar pelo facto de pôr em questão o
próprio "mundo", sem pressupor o 'ser como já dado ou constituído.
A análise da existência não será então o simples esclarecimento ou
interpretação dos modos **$@* $11M9M0M9M9=
mundo utilizando as suas possibilidades cognitivas, emotivas e
práticas,

179

mas também, e simultaneamente, o esclarecimento

e a interpretação dos modos como o mundo se manifesta ao homem


e determina ou condiciona as suas possibilidades. A relação homem-
mundo constitui assim o tema único de toda a filosofia
existencialista. No entanto, este tema é privado, no
existencialismo, de qualquer característica idealista. O ser do
mundo não está no homem, ou na consciência, não é "posto" pelo
homem ou pela sua consciência, constituindo antes um ser
transcendente que se anuncia ou se manifesta como tal nas
estruturas que constituem o

homem. Por outro lado, estas estruturas são apenas os modos


possíveis de relacionação entre o homem e o mundo, e de actuação
ou reacção nos confrontos entre ambos, já que uma outra
característica fundamental do existencialismo é a de usar a noção
de possibilidade na análise da existência; a existência é
essencialmente possibilidade, e os seus constituintes são os modos
possíveis de relacionação ido homem com o mundo, isto é, as
possibilidades de facto, bem determinadas, de tal relacionação.

Os precedentes históricos próximos do existencialismo são a


fenomenologia de Husserl e a filosofia de Kierkegaard. Da
fenomenologia de Husserl ele aproveitou a ontologia, isto é, a
concepção de um ser (mundo) que se revela melhor ou pior ao
homem segundo estruturas que constituem os modos de ser do
próprio homem. E da filosofia de Kierkegaard aproveitou a
categoria fundamental de que se serve na análise da existência, ou
seja, a da possibilidade, entendida esta no seu carácter ameaçador
e paralisante que é devido ao facto de tornar

180

problemática a relação do homem com o mundo e de excluir de tal


relação a garantia de um sucesso infalível.

§ 840. O EXISTENCIALISMO COMO CLIMA CULTURAL

O existencialismo é, de todas as correntes filosóficas


contemporâneas, a única que se apresenta como a expressão de um
clima cultural ou que contribuiu para o formar, clima esse que
poderemos designar por a crise do optimismo romântico. Este
optimismo baseava-sé no reconhecimento de um princípio infinito
(Razão, Absoluto, Espírito, Ideia, Humanidade, etc.) que constituiria
a substância do mundo e que por isso o regeria e o dominaria assim
como rege e

domina o homem, garantindo-lhe a perenidade dos seus valores


fundamentais e determinando-lhe um progresso infalível. O
existencialismo foi levado a

considerar o homem como um ser finito, isto é, limitado nas suas


capacidades e nos seus poderes, "deitado, ao mundo", isto é,
abandonado ao determinismo desse mesmo mundo, que lhe pode
anular todas as suas possibilidades, e obrigado a manter uma luta
incessante a fim de dominar as situações em que se encontra.
Devido a estas características, o existencialismo acabou por se
relacionar com determinadas manifestações literárias que
apresentavam um maior sentido da problematicidade da vida
humana. A obra de DostoYevsky e a de Kafka são dois exemplos
desse tipo de manifestações. Com efeito, em DostoYevsky pode-se
sentir sempre a pre-
181

sença do problema do homem que continuamente escolhe as


possibilidades que se abrem à sua vida, que as realiza e que as
conduz ao seu termo arcando com todo o peso e responsabilidade de
tal realização, e que permanentemente se encontra perante o
mesmo enigma, isto é, perante outras possibilidades que é preciso
escolher e realizar. Nos Irmãos Karamazov, o projecto grandioso do
Grande Inquisidor, que pretende tornar os homens escravos e
felizes, cede perante o silêncio e o olhar do Cristo, símbolo daquela
liberdade constitutiva do homem da qual deriva todo o bem e todo o
mal possíveis. Quanto a Kafka, foi um autor que ilustrou na sua

obra o sentido negativo e paralisante das possibilidades humanas,


que Kierkegaard já pusera a descoberto. Toda a existência humana
aparece a Kafka sob o peso de uma condenação iminente, sob a

ameaça indeterminada e abstracta, mas todavia certa e


ineliminável, da insignificância e do nada, ameaça que se interrompe
e se conclui na morte (0 Processo). O tema da insegurança
fundamental da vida contra a qual nada pode qualquer defesa ou
refúgio (como no caso do animal da Tana); o do apelo incessante a
uma realidade estável, segura, luminosa, que continuamente se
promete e se anuncia ao homem mas que sempre o ilude e lhe foge
(A Mensa- ,-em do Imperador, O Castelo); e o tema da
insignificância e da banalidade quotidiana que por fim tira ao homem
o seu carácter humano (As Metamorfoses), não são mais do que a
expressão literária daquilo que o existencialismo procura esclarecer
conceptualmente nas suas análises.

182
Depois da segunda guerra mundial, o existencialismo aparece como o
reflexo mais fiel ou a expressão mais autêntica da situação de
incerteza existente na

sociedade europeia, dominada ainda pelas destruições materiais e


espirituais da guerra e preparando-se para uma reconstrução
difícil. A chamada literatura existencialista, e em primeiro lugar a
obra literária de Sartre, constitui o anel de junção entre a situação
daquela época e as formas conceptuais do existencialismo, que
tinham sido, porém, elaboradas já algum tempo antes. Com efeito,
esta literatura dedicou-se a descrever as situações humanas em
que mais se notam os traços da problematicidade radical do homem,
sublinhando assim as vicissitudes menos respeitáveis ou mais
tristes, pecaminosas ou dolorosas, a incerteza da acção humana,
quer essa

acção seja boa ou má, e a ambiguidade do próprio bem, que se


confunde com o seu contrário. Estes temas surgem ainda na obra de
Simone de Beauvoir, que além de os ilustrar na sua obra literária
dedica ainda um ensaio ao último deles: Para uma moral da
ambiguidade (1947). Também se podem encontrar, tratados com
muita originalidade, na obra de Albert Camus (1912-60). No Mito de
Sísifo (1943), este autor viu no herói mitológico o símbolo do
absurdo da existência humana, hesitante entre a infinidade das
suas aspirações e a finitude das suas possibilidades, resultando os
seus esforços sistematicamente vãos. No Homem revoltado (1951),
Camus descreveu nos seus vários aspectos a "revolta metafísica",
entendendo esta como sendo "o movimento pelo qual um homem se
revolta contra a sua

183

condição e contra toda a criação". O homem revoltado é o símbolo


de um novo individualismo à face do qual " nós estamos perante a
história e ela deve prestar contas a este nós estiamos que, por sua
vez,

se deve manter na história". O nós estamos significa a defesa da


dignidade humana que "não posso deixar aviltar em mim mesmo nem
nos outros". Mas esta defesa não necessita, antes exclui, qualquer
forma de absolutismo.

Finalmente, os hábitos existencialistas próprios de alguns jovens


constituíram no após-guerra, apesar das suas formas superficiais e
até grotescas, um

outro anel de junção que valeu sobretudo como protesto contra os


valores tradicionais da sociedade. Entretanto, amadureciam no seio
do existencialismo os elementos positivos de uma reconstrução
filosófica sob a forma de uma revisão dos próprios instrumentos
conceptuais até então utilizados pelo existencialismo; esta revisão
conduziu nos anos seguintes a uma modificação radical das
perspectivas abertas por esta corrente. Estas perspectivas
surgem-nos agora (como veremos) muito mais alargadas. O
existencialismo desenvolveu-se como uma metafísica ontológica ou
ontocosmológica, por um lado, como espiritualismo radical, por
outro, e ainda como uma forma de empirismo igualmente radical no
qual a experiência, entendida como existência, perdeu o seu

carácter de inclusividade total e se transformou em abertura para


o mundo. Em alguns destes casos

pode-se encontrar um retorno, mais ou menos total,

a uma situação pré-existencialista e a uma recuperação das teses


românticas. Noutros pode-se notar
184

uma tendência para uma filosofia que equaciona, sem optimismo e


sem desesperos, uma forma mais radical da existência humana no
mundo. Em qualquer dos casos, no entanto, o existencialismo serviu
para elaborar instrumentos conceptuais que entraram em uso e que
deram provas da sua utilidade; e tomou extremamente improvável,
dada a sua

insistência nos aspectos negativos das possibilidades humanas, o


retorno àquele optimismo indiscriminado que, num passado ainda
recente, levou os

homens às maiores catástrofes.

§ 841. EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA

A fenomenologia é, como se disse, uma componente essencial do


existencialismo. Esta componente não tem a mesma importância em
todas as manifestações do existencialismo, mas de -qualquer modo
age em todas elas sob a forma de dois conceitos-base: o do
carácter intencional da consciência e o

do carácter afirmativo da razão. O segundo destes conceitos, que


afirma que a razão é a "revelação do ser", conduziu algumas formas
do existencialismo (em -particular, a de, Heidegger) a uma viragem
radical que as modificou profundamente, dirigindo-se para
objectivos diferentes. Apenas o primeiro dos dois conceitos
indicados pode ser considerado como ligação essencial entre
existencialismo e fenomenologia.

Mas, no que diz respeito à intencional idade, viu-se que para


Husserl ela constitui a essência (ou a

185'

propriedade) de uma consciência que se apercebe de si mesma de


uma forma directa e privilegiada como " subjectividade pura" ou
"subjectividade transcendental" (§ 830). E as investigações de
Husserl dirigiram-se cada vez mais para esta subjectividade e para
as formas como ela considera qualquer realidade, isto é, como ela
atribui um sentido ou uma validade a todos os seus objectos. Mas no
existencialismo este primado da subjectividade não é considerado.
Sabemois agora que a chamada "cisão existencialista" de Scheler,
Heidegger e outros discípulos de Husserl, ocorreu precisamente a
partir da tese deste último sobre o primado da consciência (Edmund
Husserl, 1859-1959, 1959, págs. 27, 74, 50, ')06); mas naquilo que
mais directamente diz respeito ao existencialismo, pode-se dizer
que tudo ocorre de forma completamente diferente. O problema
que esta corrente enfrenta, com efeito, é em primeiro lugar o
do modo de ser do homem, que Heidegger considera que não foi
posto por Husserl nem por Scheler (Sein und Zeit,,§ 10), e em
segundo lugar o do homem no mundo, isto é, do homem que está no
mundo ou que o habita, entendendo isto no sentido da expressão
Ser-aqui (Dasein), onde o aqui (da) corresponde precisamente a
este

habitar. A análise -da existência é assim (como dissemos) a análise


das estruturas do mundo que condicionam o ser-aqui Ido homem.
Deste ponto de vista, a subjectividade não tem nada de
transcendental; com efeito, Heidegger considera transcendental
"toda a manifestação do ser no seu ser transcendente" (Ib., § 7): é
um carácter que só pertence

186
ao conhecimento na medida em que revela o mundo (que é o "ser
transcendente"). Quanto ao eu, Heidegger afirma que "ao dizer eu
exprime-se o ser-aqui como estar no mundo" (Ib., § 64), e critica o
conceito do eu como "sujeito isolado". Não é por acaso que o
conceito e o termo "consciência" (Bewusstsein) estão ausentes em
todas as análises de Heidegger.

Da diversidade destas duas orientações da investigação derivam


outras diferenças fundamentais. A primeira é a de que o
existencialismo não tem a pretensão, básica na fenomenologia, de
colocar-se no

ponto de vista de um "espectador desinteressado" e de alcançar


assim um conhecimento puramente teórico. "0 conhecer, afirma
Heidegger, é um modo de ser do estar no mundo" (Sein und Zeit, §
13). E é-o em todos os seus graus ou níveis, porque mesmo na análise
que o ser-aqui faz de si próprio, é considerado o seu ser, já que
esta análise é simultaneamente uma decisão (Ib., § 9). Por outras
palavras, o existencialismo descura completamente a

diferença entre o "teórico" e o "prático", a qual constitui, pelo


contrário, o pressuposto básico da fenomenologia.

A segunda diferença reside no carácter problemático das


possibilidades constitutivas do homem, carácter que o
existencialismo herda de Kierkegaard. Husserl servira-se
amplamente do conceito de possibilidade e afirmara mesmo a
precedência ontológica da possibilidade sobre a realidade (Ideen, 1,
§ 79). Mas a consideração do aspecto negativo da possibilidade
(que, como tal, pode ainda não existir) mantivera-se totalmente
estranho à sua consideração.
187

A fenomenologia de Husserl move-se num inundo de estabilidade e


de certeza, de "evidências apodícticas" e de manifestações
"necessárias" e "indubitáveis". A consideração dos elementos
negativos que entram na constituição de qualquer situação humana e
que se tornam particularmente evidentes em algumas delas (a
doença, a morte, o insucesso, ete.) está fora do seu alcance. E
mesmo quando denuncia, como na Krisis, uma situação insatisfatória
ou perigosa, pretende preparar com o "mundo da vida" um viveiro
inesgotável de -evidências, valores e potencialidades positivas que é
apenas necessário pôr ao

alcance do conhecimento racional. Pelo contrário, o existencialismo


referiu-se principalmente aos aspectos -negativos e destrutivos da
existência humana no mundo, e isto porque teve sempre presente
(por vezes até exclusivamente presente) o aspecto negativo das
possibilidades existenciais. E mesmo quando, como acontece com as
suas formas mais recentes, tenta chegar a uma valoração mais
serena destas possibilidades, não nega nem oculta o seu carácter
problemático e o risco que lhe é imanente.

§ 842. O RENASCIMENTO KIERKEGAARDIANO: BARTH

Nos primeiros decénios do nosso século o chamado "renascimento


kierkegaardiano" constituiu o

preceito básico da teologia do cristianismo reformado e teve a sua


melhor expressão na obra de

188

Karl Barth. Nascido em Basileia (Suíça) em 1886, ensinou teologia


primeiro em universidades alemãs e, depois do aparecimento do
nazismo, na própria Universidade de Basileia. A obra mais famosa
de Barth é o comentário à epístola de S. Paulo Carta aos Romanos
(1919), e é esta precisamente a

que mais interessa à história da filosofia; se bem que também na


Dogmática (publicada em vários volumes a partir de 1927) sejam
prolongadamente tratados muitos temas filosóficos.

A Carta aos Romanos refere-se explicitamente à especulação de


Kierkegaard e é uma tentativa para traduzir nas formas de tal
explicação um cristianismo depurado dos seus aspectos míticos e
hipócritas. "Se tenho um sistema, afirma Barth, ele consiste em ter
constantemente presente no seu significado negativo e positivo
aquilo que Kierkegaard chamou a infinita diferença qualitativa entre
tempo e eternidade". Deus está no céu e nós na terra. A relação
entre este Deus e o homem, a relação entre o

homem e este Deus é para mim o tema único da Bíblia e da filosofia"


(Rõmerbrief, p. XIII). Mas esta relação é o único tema da Bíblia e
da filosofia porque constitui a própria existência do homem. Para
que este exista, deverá compreender de qualquer maneira esta
relação; mas toda a compreensão de tal relação cai aquém dela,
dentro dos limites do humano, o que quer dizer que a compreensão é
impossível ou que a relação só é compreensível na sua

impossibilidade. Barth exclui e condena toda a forma de


imanentismo e de subjectividade, toda a tentativa " titânica" de
ultrapassar aquilo a que ele chama

189

Transcendência não pode ser atribuído ao homem, devendo antes


reconhecer aí uma obra da iniciativa divina (Dogmatik, 111, 2, 1948,
págs. 128-43).

§ 843. HEIDEGGER: SER, SER-AQUI, EXISTIR

A primeira grande figura do existencialismo contemporâneo é


Martin Heidegger, que nasceu em

Messkirch em 1889. Heidegger foi -discípulo de Rickert mas é


sobretudo influenciado por Husserl, ao

qual dedicou a sua obra Ser e tempo (1927). Professor em


Marburgo e depois em Friburgo, e por breve tempo reitor desta
Universidade, Heideger manteve-se afastado da cultura oficial no
-período do nazismo, embora num discurso pronunciado por ele como
reitor em 1933, A auto-afirmação da Universidade alemã, se tenha
pretendido ver uma adesão ao nazismo. Antes de Ser e tempo,
Heidegger tinha publicado três estudos: A doutrina do juízo no

psicologismo (1914); A doutrina das categorias e

do significado em Duns Escoto (que se baseia, porém, na Gramática


especulativa, que não é autêntica); O conceito do tempo na ciência
histórica (1916). Ser e tempo apresenta-se como uma obra
incompleta: devia ser completada com uma terceira secção, "Tempo
e ser", dedicada ao problema do sentido do ser em geral, e seguido
de uma segunda parte histórica que devia examinar a doutrina de
Kant sobre o esquematismo e o tempo, o fundamento ontológico do
cogito cartesiano e a teoria

192

aristotélica do tempo (Sein und Zeit, 4 a ed. 1935, p. 39-40).


Estes complementos apareceram, no que se refere à doutrina
kantiana, no volume Kant e o problema da metafísica (1929), ao qual
se seguiram dois outros escritos importantes: A essência do
fundamento (1929); Que é a metafísica (1929).

Nos anos que se seguiram a 1930, as investigações de Heidegger


sofrem uma mudança decisiva pois deixam do se debruçar sobre a
análise existencial para a determinação do sentido do ser em geral
e transformam-se numa busca que reconhece ao próprio ser a
iniciativa da revelação do ser. Desta segunda fase da investigação
de Heidegger destacam-se as seguintes obras: Hõlderlin e a
essência da poesia (1937); A doutrina platónica da verdade (1942)-,
A essência da verdade (1943); Carta sobre o humanismo (1947);
Holzwege (1950); Introdução à metafísica (1956); Que significa
pensar (1954); Conferências e ensaios (1954); Que é a filosofia
(1956); Sobre o ser (1956); Identidade e diferença (1957)-, O
princípio do fundamento (1957); A resignação (1959); Sobre a
linguagem (1959); Nietzsche (2 vols. 1961); O problema da coisa
(1962).

O fim declarado da filosofia de Heidegger é o

de constituir uma ontologia que, partindo de uma

compreensão vaga do ser que permita pelo menos compreendê-lo e


interrogá-lo, alcance uma determinação plena e completa do sentido
(Sinn) do ser; para isto apoia-se no facto de em qualquer por-unta
se poderem distinguir três coisas diferentes: LO, o

que se pergunta; 2.O, aquele a quem se pergunta ou que é


interrogado; 3.,>, aquele que pergunta. Na

193
frase O que é o ser?, aquele que pergunta é o próprio ser, o que se
encontra é o sentido do ser, mas quem se interroga é
necessariamente um ente, pois o ser é sempre o ser de um ente.
Deste modo, o primeiro problema da ontologia será o de determinar
qual o

ente que deve ser interrogado, isto é, a qual se deve dirigir


especificamente a pergunta sobre o ser. Ora esta pergunta, com
tudo o que ela implica (entender, compreender, etc)_é o modo de
ser de um determinado ente, o homem, que possui então um primado
ontológico sobre os outros entes visto que é nele que recai a
escolha do interrogador. "Este ente que nós somos constantemente,
diz Heidegger, e

que, entre outras, tem a possibilidade de perguntar, indicamo-lo


pelo termo ser-aqui (Dasein)" (Sein und Zeit, § 2). A análise do
modo de ser do ser-aqui é, pois, essencial e preliminar para a
ontologia, já que só interrogando-o se pode descobrir o que é o ser
e encontrar-lhe o sentido. Mas o modo de ser do ser-aqui (isto é, do
homem) é a existência: a análise desse modo de ser será uma
análise existencial e esta constitui o único meio de chegar à
determinação daquele sentido do ser que corresponde ao

problema fundamental da ontologia.

Mas com isto, é já dada uma determinação fundamental da


existência: a compreensão do ser é uma possibilidade da existência,
isto é, do ser do ser-aqui. A existência é assim a possibilidade de
nos referirmos de qualquer modo ao ser (Ib., § 4). A existência é
portanto constituída essencialmente por possibilidades, que não são
nem possibilidades puras, isto é, simplesmente lógicas, nem simples
contin-
194

gências empíricas, mas que formam o seu próprio ser. "0 ser-aqui é
sempre a sua possibilidade", diz Heidegger (Ib., § 9); por isso, ele
pode escolher-se e conquistar-se ou perder-se, isto é, não se
conquistar ou conquistar-se apenas aparentemente. Esta escolha é
todavia um problema que se põe ao homem singular e que dá lugar
àquilo que Heidegger designa por compreensão existentiva ou
ôntica, a qual se refere à existência do homem singular. Mas pode
também considerar-se o problema do aprofundamento teórico da
existência e das suas possibilidades, isto é, de procurar na
constituição do homem as estruturas fundamentais. Esta é a
compreensão existencial ou ontológica da própria existência. Mas,
dado que a existência é sempre individual e singular, ou seja, nunca
é a existência de um homem em geral ou da espécie humana, mas
sempre a minha, tua ou sua -existência, é evidente que a própria
análise existencial se -radica na condição existentiva ou ôntica do
homem (Ib., § 4).

A análise da existência deve tomar como método próprio o


fenomenológico. A fenomenologia não é uma doutrina, mas um
método: refere-se não ao objecto da investigação filosófica, mas às
modalidades desta investigação. A máxima da fenomenologia pode
exprimir-se dizendo: apontar directamente para as coisas. O
fenómeno de que ela fala não é aparência, mas manifestação ou
revelação daquilo que a coisa é no seu ser em ,d. Não se contrapõe,
portanto, a uma realidade mais profunda, que o

fenómeno ocultaria ou esconderia, mas é antes o abrir-se, o próprio


manifestar-se desta realidade.

195
O logos, por outro lado (a fenomenologia é o logos do phaenomenon),
é um discurso que manifesta ou

faz ver aquilo de que se fala; e é verdadeiro (no sentido etimológico


da palavra grega a-léthés) quando precisamente faz ver ou
descobre o que estava oculto. Isto quer dizer que a essência da
fenomenologia consiste "em fazer ver o que se manifesta
exactamente como em si mesmo se manifesta", em fazer com que o
ser da existência se revele e se mostre, ao ser analisado, nas suas
estruturas fundamentais, sem alterações, acréscimos ou
correcções. Neste sentido, Heidegger diz que a filosofia é "a
ontologia universal e fenomenológica" (Ib., § 7 c).

Qual é então a estrutura fundamental da existência? Aqui,


Heidegger faz o seu princípio básico da fenomenologia tal como
fora definido por Husserl, Hartmann e Scheler: a -existência é
essencialmente transcendência. Heidegger reelaborou este tema de
forma bastante conseguida na sua obra sobre a Essência do
fundamento. Nele define a

transcendência como superação: é transcendente o

que realiza esta ultrapassagem e se mantém habitualmente nela.


Neste sentido, a transcendência não é para o homem um
comportamento possível ao lado de tantos outros, mas antes a sua
constituição fundamental, o que forma a própria essência da sua

subjectividade. O fim para que o homem transcende é o mundo e a


transcendência pode, portanto, ser definida como um "estar-no-
mundo". Mas o mundo neste sentido, não é nem a totalidade das
coisas naturais, segundo o conceito naturalista, nem a comunidade
dos homens, segundo o conceito persona-
196

lista. Designa, pelo contrário, a estrutura relacional que caracteriza


a existência humana como transcendência. Transcender para o
mundo significa fazer do próprio mundo o projecto das possíveis
atitudes e acções do homem. Mas, definindo-o assim, o

mundo recompreende em si o homem que se encontra aprisionado


nele e submetido às suas limitações. "A transcendência significa o
projecto e o esboço de um mundo, mas de tal modo que quem
projecta é comandado pelo ente que transcende e é
antecipadamente modelado por ele". Deste modo, a transcendência
é certamente um acto de liberdade e é ainda, segundo Heidegger, a
própria liberdade; mas

é uma liberdade que, no próprio acto de manifestar-se, se


condiciona e se limita em todas as direcções possíveis. Com efeito,
fundando ou instituindo o mundo, coloca-se simultaneamente no
mundo e sofre as suas imposições; qualquer projecto, mesmo

que se baseie na liberdade, e compreende em si o

homem como um dos entes do próprio mundo. "A liberdade revela-se


como aquilo que torna possível simultaneamente a imposição e a
sujeição. Só a

liberdade pode conseguir que, para o homem, um mundo exista e se


realize como mundo". Se o homem é livre no acto de planear o seu
mundo, este mesmo projecto subordina imediatamente o homem,
tornando-o ambicioso e dependente.

O homem tem necessidade do mundo e das coisas que o constituem


e que são a realidade-útil, os instrumentos da sua vida e da sua
acção. Estar no

mundo significa para ele cuidar das coisas: mudá-las, manipulá-las,


repará-las, construí-Ias, e esta preo-
197

cupação, por ser característica do homem enquanto está no mundo,


determina também o ser das coisas no mundo.

§ 844. HEIDEGGER: O ESTAR NO MUNDO E A EXISTÊNCIA


INAUTÊNTICA

O mundo a que o homem está ligado pela própria estrutura


transcendente da sua existência é, em primeiro lugar, um mundo de
coisas. O ser destas coisas, a sua verdadeira e própria realidade,
consiste em servir de instrumentos para o homem, em ser
utilizáveis. A utilizabilidade não é, segundo Heidegger, uma
qualidade das coisas, distinta da sua

existência: é o próprio ser em si das coisas do mundo (Sein und


Zeit, § 15). O ser das coisas está, por isso, subordinado e
corresponde ao ser do homem; dado que para o homem, o
encontrar-se no mundo significa cuidar da -coisa, e para as coisas
ser significa ser utilizadas pelo homem. O fim último da
utilizabilidade é, pois, a satisfação (Ib., § 18). E a satisfação implica
a proximidade das coisas ao homem, implica que elas estejam "à
mão", que possam alcançar-se. Nesta determinação baseia-se a
espacialidade do mundo. O espaço não é uma forma abstracta, mas
sim o conjunto das determinações de proximidade ou de
afastamento das coisas baseadas na sua utilizabilidade. É por isso
que o espaço não é uma forma subjectiva mas sim

198
a estrutura objectiva das coisas cujo ser é a utilizabilidade (Ib., §
23).

Estas definições da natureza do mundo externo são


fundamentalmente idênticas às do pragmatismo instrumentalista e,
principalmente, de Dewey. Nelas baseiam-se, !segundo Heidegger,
as actividades propriamente intelectuais: o compreender, o julgar, a

ciência. Dado que existir no mundo significa para o homem planear,


e este se baseia nas possibilidades que se oferecem ao homem, a
compreensão de tais possibilidades é um modo de ser fundamental
do próprio homem (Ib., § 31). A compreensão pode, por seu lado,
dar lugar à interpretação, mediante a

qual se põe em evidência "algo como algo" na base de um plano total


(Ib., § 32). E, por sua vez, a interpretação pode dar lugar a um
juízo, no qual uma coisa existente se revela como esta determinada
coisa, ou seja, se revela na sua específica e concreta utilizabilidade
(Ib., § 33). É neste processo, que vai da compreensão até ao juízo,
que se baseia a ciência. A interpretação e o juízo fazem do que é
utilizável uma "coisa corpórea", cuja possibilidade de utilização se
insere como um possível predicado. A coisa corpórea é uma simples
presença que, convertida em

objecto de ciência, se transforma num tema possível de


investigação e de orientação. Esta tematização é a função própria
da ciência. Um caso típico será o da física matemática, cujo
carácter decisivo consiste em ser "o projecto matemático da
própria natureza". Este projecto oferece o fio condutor para a

descoberta das coisas naturais. E, neste sentido, a


199

matemática constitui um a priori, já que torna possível a descoberta


de um objecto existente dentro do quadro do projecto preliminar
do seu ser (Ib., § 69 a).

Mas como a existência é sempre um estar no

mundo, ela constitui um ser comparável a qualquer outro. Não


subsiste para Heidegger a alternativa

de um idealismo ou de um solipsismo egológico porque assim como


não existe "um sujeito sem mundo", também não existe "um eu
isolado, sem os outros". Isto acontece porque a "substância" do
homem não é "o espírito como síntese da alma e do corpo" a partir
da qual se possa chegar ao ser das coisas

e dos outros, mas sim a existência, que é constitutivamente uma


abertura para o mundo e para os

outros. Assim como a relação entre o homem e as coisas é um


apropriar-se das próprias coisas, também a relação entre o homem
e os outros é um tomar conta dos outros. Este tomar conta
constitui a estrutura fundamental de todas as possíveis relações
entre os homens. Pode assumir duas formas distintas: pode
significar, em primeiro lugar, tirar aos outros

os seus problemas; em segundo lugar, ajudá-los a

serem livres para assumirem os seus problemas. No primeiro caso, o


homem não se preocupa tanto com

os outros como com as coisas que lhes deve proporcionar; no


segundo, abre aos outros a possibilidade de se encontrarem a si
mesmos e realizarem o seu próprio ser. Por isso, a primeira é a
forma inautêntica da coexistência, é um simples "estar juntos";
enquanto que a segunda é a forma autêntica, o verdadeiro
"coexistir" (Sein und Zeit, § 26).

200

Viu-se que a transcendência existencial, baseando-se nas


possibilidades de ser do homem, é ao

mesmo tempo um acto de compreensão existencial. Para


compreender-se, o homem pode adoptar como

ponto de partida ele mesmo ou o mundo e os outros homens. No


primeiro caso tem uma compreensão autêntica, cujo alcance
veremos seguidamente; no segundo caso tem a compreensão
inautêntica, que é o fundamento da existência anónima. A existência
anónima é de todos e de nenhum: é a existência na qual o "diz-se" ou
o "faz-se" domina indiferentemente. Nela, tudo está nivelado,
tornado "oficial", convencional e insignificante. O homem é, nela,
todos e nenhum, porque é o que todos são, não no seu ser autêntico,
mas num modo de ser fictício e convencional que oculta o próprio
ser.

A linguagem, que é por natureza a revelação do ser, aquilo em que o


próprio ser se exprime e toma corpo, converte-se na existência
anónima, numa charla inconsistente. Bas&a-se exclusivamente no
"diz-se" e obedece ao axioma: "a coisa é assim porque assim se diz"
(Ib., § 35). Uma existência tão vazia procura naturalmente encher-
se e, por isso, está morbidamente inclinada para o novo: a
curiosidade é, pois, o seu outro carácter dominante: curiosidade não
pelo ser das coisas mas pela sua aparência visível, que por isso traz
consigo o equívoco.
O equívoco é o terceiro distintivo da existência anónima que,
'dominada pela charla e pela curiosidade, acaba por não saber
sequer de que fala ou a que se refere o "diz-se" (Ib., § 83).

201

Estas definições não implicam, no pensamento de Heidegger, uma


condenação da existência anónima, já que a análise existencial não
pronuncia juízos de valor. Limita-se a reconhecer que a existência
anónima faz parte da estrutura existencial do homem, é um seu
poder ser constitutivo. Na base deste poder ser está o que
Heidegger denomina a dejecção, isto é, a queda do ser do homem ao

nível das coisas do mundo. A dejecção não é um

pecado original nem um acidente que o progresso da humanidade


possa eliminar; faz parte essencial do ser do homem. É um processo
interno, uma

espécie de movimento vertiginoso (Ib., § 38) pelo qual este ser


desce ao nível de um facto e se converte efectivamente num facto.
A factualidade ou a efectividade da existência é o seu estar
lançado num mundo no meio dos outros entes, ao mesmo nível
destes. Esta condição torna-se evidente ou, melhor, vive-se
directamente na situação emotiva (Befindlichkeit) em que o homem
se sente abandonado a ser o que é de facto. A situação emotiva
diferencia-se da compreensão existencial na medida em que esta é
um contínuo projectar para o futuro

a parti-r das possibilidades da existência, enquanto aquela é antes


orientada para trás e apoia-se no facto de que o homem existe e é
um ente entre os outros. Como todas as outras determinações
existenciais, esta situação não tem nada de subjectivo ou

de íntimo; é um modo de ser originário da existência (Ib., § 29).

202

A totalidade destas determinações do ser do homem está


compreendida na única determinação do cuidado. O cuidado (no
sentido latino do vocábulo) é a estrutura fundamental da existência.
Viu-se que ser no mundo significa para o homem "cuidar das coisas"
e "cuidar dos outros". O cuidado exprime assim a condição
fundamental de um ser que, **lancaía na existência anónima
quotidiana. A esta exispossibilidades; mas estas possibilidades
devolvem-no incessantemente â sua situação de facto originária, ao
seu ser lançado no mundo. A existência é, em primeiro lugar, um ser
possível, isto é, um projectar-se para o futuro; mas este projectar-
se não faz mais do que voltar atrás para aquilo que a existência é já
de facto. Tal é a estrutura circular e, portanto, completa e acabada
do cuidado corno constituinte do ser do homem. É evidente que o

cuidado é a estrutura do ser do homem enquanto este for um ser no


mundo e enquanto, por isso, caio na existência anónima quotidiana. A
esta existência anónima, que como tal é inautêntica, Heidegger
atribui uma boa parte da existência humana. Não só o espaço e a
palavra, como também o conhecer científico e o conhecer mundano
em geral pertencem à existência quotidiana inautêntica. E
pertencem-lhe até as leis morais e as teorias que procuram o seu
fundamento (Ib., § 58). Para Heidegger, todo o campo da
normatividade e dos valores, não sendo possível nem compreensível
fora da relação do homem com o mundo, pertence à existência
quotidiana anónima e permanece fora dos limites da existência
autêntica.
203

§ 845. HEIDEGGER: A EXISTÊNCIA AUTÊNTICA E O VIVER


PARA A MORTE

O homem reclama da existência autêntica o fenómeno da


consciência (Gewissen). É totalmente estranho a Heidegger o
sentido psicológico ou metafísico da palavra consciência como
atitude de reflexão sobre si mesmo, sobre a própria interioridade
espiritual. A existência humana não é, segundo Heidegger, clausura.
na intimidade, mas antes abertura ao ser nas suas estruturas
ontológicas e nas suas

manifestações ônticas. A consciência que o homem pede à sua


existência autêntica é o fenómeno, denominado voz da consciência:
esta voz dirige-se ao

homem enquanto está imerso no mundo e dominado pelo cuidado, e


chama-o a si mesmo, ao que ele autenticamente é e não pode deixar
de ser. Qual é, pois, este núcleo sólido, certo, insuperável, para o

qual a consciência chama o homem e no qual deve basear-se a sua


existência autêntica? Na resposta a esta pergunta assenta a parte
central e decisiva do existencialismo de Heidegger.

Vimos que a existência humana é constituída por possibilidades e


que nestas possibilidades se baseia todo o seu projectar ou
transcender. Mas também vimos que todo o projectar ou
transcender lança o
homem no mundo que ele projecta ou transcende e remete-o ao
facto insuperável de que ele existe e está ao nível de todos os
outros entes. Todas as possibilidades humanas sob este aspecto se
equiparam e a escolha entre elas seria (se existisse) in-
204

diferente. Mas, na realidade, não há escolha, já que todo o acto


possível de projecção ou de transcendência não faz mais do que
lançar o homem na condição de facto em que primitivamente se
encontrava e ligá-lo a ela. Todas as possibilidades que se oferecem
ao homem e que constituem o seu ser são, pois, equivalentes.
Heidegger não condena nem rejeita os valores ou as normas morais
que se constituem no plano da existência quotidiana anónima:
regista-os como elementos desta existência, mas nega que
constituam possibilidades autênticas, isto é, próprias do ser do
homem como tal. Pertencem ao homem enquanto vive no plano do
anónimo e se deixa guiar pelo "assim. se diz e assim se faz, como
todos -dizem e fazem". Mas tudo isto -significa que, na

própria estrutura do ser-aqui, está incluída uma

"nulidade essencial". Tudo o que o ser-aqui pode planear a partir das


suas possibilidades, reincidindo sobre o que já existe, é um
projecto nulo ou um

nada enquanto projecto. Isto aplica-se tanto no caso

dos projectos conseguidos como no daqueles que não têm sucesso


algum. "A nulidade existencial, afirma Heidegger, não tem de forma
alguma o

carácter de privação ou de deficiência relativamente a um ideal que


é proclamado mas que nunca se alcança. O que acontece é que o ser
desta entidade é nulo anteriormente a tudo aquilo que pode planear
ou alcançar, e já é nulo como mero planear" (Sein und Zeit, § 58).
Posto isto, o chamamento feito pela voz da consciência ao ser
autêntico do ser-aqui é precisamente o chamamento a este nada ou
à sua forma. última e radical que é a morte.

205.

A morte não é para o homem um ponto final, a conclusão ou o fim da


sua existência; também não é um facto, pois enquanto tal nunca é a
própria morte. É, "enquanto fim do ser-aqui, a possibilidade do ser-
aqui que é mais propriamente incondicionada, certa e, como tal,
indeterminada e impensável" (Ib., § 52). É a possibilidade pró
priamente dita, porque diz respeito ao próprio ser do homem. É uma
possibilidade incondicionada, porque pertence ao homem enquanto
individualmente isolado. Todas as outras possibilidades põem o
homem no meio das coisas ou entre os outros homens; a
possibilidade da morte isola o homem consigo mesmo. É uma
possibilidade insuperável, enquanto que a extrema possibilidade da
existência. é a sua renúncia a si mesma. É, enfim, uma possibilidade
certa: de uma

certeza que não tem a evidência apodíctica das verdades em que se


revela o ser das coisas do mundo, mas que se relaciona de uma
maneira essencial com o aspecto autêntico da existência humana
(Ib., § 50). É apenas no reconhecer a possibilidade da morte, no
assumi-Ia como decisão antecipadora, que o homem encontra o seu
ser autêntico.

A existência anónima quotidiana é uma fuga à morte. Considera-a.


como um caso entre os muitos da vida de cada dia, oculta o seu
carácter de possibilidade imanente, a sua natureza incondicionada e
insuperável, e procura esquecê-la, não pensar nela, entregando-se
às preocupações quotidianas do viver. A voz da consciência, ao
arrancar o homem à existência anónima, chama-o para a morte. Fá-
lo sentir em dívida para com a sua verdadeira natureza
206

e encaminha-o para uma decisão antecipadora que projecta a


existência autêntica como um viver para a morte. Mas o viver para a
morte não é, em absoluto, unia tentativa de realizá-la (suicídio). A
morte é uma possibilidade e não pode ser entendida e realizada
senão como pura ameaça suspensa sobre o

homem. Nem é sequer uma espera, porque mesmo


a espera não pretende mais do que a realização, e
a realização nega ou -destrói a possibilidade como tal. Viver para a
morte significa compreender a

impossibilidade da existência enquanto tal. "A morte -diz Heidegger


(Ib., § 35)-enquanto, possibilidade, não deixa nada ao homem para
realizam. É a possibilidade da impossibilidade de todo o
comportamento, de toda a existência (Ib., § 53). A possibilidade da
impossibilidade da existência seria uma

contradição nos seus termos, se aqui possibilidade não significasse


compreensão. A existência é essencialmente, radicalmente,
impossível; o que é possível é a compreensão desta impossibilidade.
O viver para a morte é precisamente tal compreensão. Mas, dado
que toda a compreensão é acompanhada por um estado emotivo que
põe o homem imediatamente perante o seu ser de facto, também a
compreensão da morte é acompanhada por urna tonalidade emotiva,
que é a angústia. "A angústia -salienta Heidegger (Ib., § 53)-é a
situação emotiva capaz de manter aberta a contínua e radical
ameaça que sai do ser mais íntimo e isolado do homem". Com a
angústia, o homem "sente-se em presença do nada, da
impossibilidade possível da sua existência". Ela coloca o homem
fundamentalmente ante o nada.
207

E com isto faz com que este compreenda verdadeiramente na sua


finitude, já que esta só é compreensível se o homem se instala e se
mantém no nada. Na angústia, a totalidade da existência converte-
se em algo transitório, acidental e fugidio, no qual o

próprio nada se apresenta no seu poder de aniquilação. Mas, assim, a


angústia revela também o significado autêntico da presença do
homem no mundo: esta presença significa manter-se firme no
interior do nada (Was ist Met., trad. ital., p. 92). A revelação do
nada é, por isso, originária: o nada não é a negação do mundo; toda a
negação possível se baseia antes na presença e na revelação do
nada. O nada está, certamente, escondido ou velado na existência
trivial quotidiana, mas mesmo aí actua através da negação, da
renúncia, da limitação, da proibição; e actua, sobretudo, como
condição oculta, mas inclimnável, do próprio revelar-se da realidade
existente como tal. Este revelar-se tem lugar, com efeito, no

acto da transcendência, e a transcendência é a superação do ser na


sua totalidade, é um salto sobre o ser, que do nada chega a nada.

A existência autêntica é, assim, segundo Heidegger, a única que


compreende claramente e realiza emotivamente a nulidade radical
da existência. A existência é transcendência: continua-se para além
da realidade existente, antecipando e projectando, e é só neste
proceder, neste antecipar e projectar, que a realidade existente se
apresenta como tal e se torna compreensível. Mas transcender,
antecipar e projectar apenas levam o homem a cair na realidade de
facto que queria transcender e a prendê-lo

208
HEIDEGGER

a ela. É assim que o transcender, e tudo o que no

transcender se revela (incluindo a realidade de facto), é uma


impossibilidade radical, é uni nada aniquilador. Não resta, pois,
senão antecipar e projectar este nada aniquilador. Tal é a
existência autêntica, segundo Heidegger.

§ 846. HEIDEGGER: O TEMPO E A HISTÓRIA

As análises da estrutura do tempo e da história são as mais


profundas e significativas de todas as

que Heidegger levou a cabo. Abandona completamente as habituais


questões sobre a subjectividade ou objectividade, a transcendência
ou a imanência do tempo. A sua tese fundamental é a de que entre
as três determinações do tempo, passado, presente e futuro, a
originária e fundamental é o futuro (Sein und Zeit, § 65). Esta
teoria relaciona-se, evidentemente, com toda a análise existencial
de Heidegger. Se a existência é possibilidade, transcendência,
projecção, antecipação, ela está constitutivamente orientada e
dirigida para o futuro. Mas o futuro supõe necessariamente o
passado, e o presente está necessariamente envolvido na relação
entre futuro e passado. Cada uma destas determinações do tempo
não tem significado se não estiver em relação à outra, isto é, em
relação a um "fora de si" que, contudo, a constitui verdadeiramente.
Por isso, Heidegger diz que a temporalidade é "o originário fora de
si em si mesmo e por si mesmo"e designa-a

209

com o nome grego de ekstatikón (Ib., § 65). Dado isto, os


caracteres dos três momentos do tempo variam conforme se trate
do tempo autêntico ou do tempo inautêntico, isto é, conforme se
trate do tempo como estrutura da existência anónima quotidiana ou
do tempo como estrutura da existência angustiada. Deste modo o
futuro adquire, antes de mais e em geral, a forma de um
prolongamento cheio de cuidado com tudo o que nos preocupa, com o
que se faz, se manipula e se nos oferece. Em tal caso, o futuro
significa o êxito de, pelo menos, aquilo que absorve ou preocupa o
homem, numa palavra, do que constitui a sua atenção comprometida.
O futuro inautêntico tem, por consequência, o carácter da atenção.
Por outro lado, na existência autêntica, que assume essencialmente
a única possibilidade própria e certa, a morte, o futuro adquire a
forma de decisão antecipadora, do viver para a morte, e o homem
permanece estranho a todas as seduções das possibilidades
mundanas "b., § 66). Pelo que se refere ao passado, que se vincula
estreitamente à situação emotiva (isto é, aos estados emocionais),
já que esta põe o homem em presença do que ele foi de facto,
apresenta-se na existência inautêntica como medo. É de facto
verdade que o

medo parece estar dirigido para um mal futuro; mas trata-se


sempre de um mal que está vinculado à situação de facto do homem,
à sua relação com o

mundo, ao que ele foi. O medo é uma angústia desvirtuada e


precipitada do mundo: colocar o homem perante o seu ser lançado
no mundo e mantém-no encravado nele, fazendo-lhe esquecer a sua

210

possibilidade própria e autêntica. O passado da existência autêntica


é evidentemente a angústia, que impede toda a relação do homem
com o mundo e precipita o mundo na insignificância (Ib., § 68 b).
Finalmente, o presente é, na existência inautêntica, a

própria apresentação das coisas do mundo: é a unidade de


-esquecimento e de esperança, na qual se

baseia a existência quotidiana como rotina insignificante de dias


que se sucedem uns aos outros até ao infinito. Ao presente
inautêntico do agora contrapõe-se o presente autêntico do instante.
Heidegger modifica a noção de instante de Kierkegaard, que lhe
tinha servido para designar a irrupção paradoxal da -eternidade no
tempo (§ 603). Para Heidegger, o

instante é a aniquilação do agora, o repúdio daquela presencialidade


das coisas que constitui o presente inautêntico. É o retomo da
existência ao seu poder ser e, assim, a repetição do seu passado
mais característico e privilegiado (Ib., § 68 a).

É evidente que, com esta análise, ficam confinados no inautêntico


todos os significados do tempo de que se serve habitualmente o
pensamento comum

o a ciência. A medida comum do tempo ou, como diz Heidegger, a


databilidade, a medida científica do tempo, o próprio conceito da
eternidade, referem-se todos ao tempo inautêntico, isto é, são
determinações essencialmente vinculadas à existência, que é
lançada e imersa nas coisas do mundo (Sein und Zeit, § 82). Mas,
deste modo, o tempo não se une

à existência, isto é, ao ser do homem, mesmo que seja como


determinação fundamental. O ser é o tempo. O título da obra
principal de Heidegger

211
sugere que o tempo é o sentido do ser, isto é, aquele significado
último que a pergunta sobre o ser tende a descobrir.

Pareceria muito difícil, deste ponto de vista, entender o horizonte


e a estrutura da história. Esta, certamente, não pode ter lugar na
existência inautêntica: a trivialidade quotidiana, pela sua
insignificância, não tem história. Por outro lado, a existência
autêntica reassume-se no instante tácito e passional da angústia e,
neste instante, o homem está absolutamente só perante a única
certeza insuperável do seu destino: a morte. Não obstante,
Heidegger tenta basear precisamente na angústia a historicidade
da existência humana. O fundamento deste intento é que a
existência autêntica, mesmo projectando-se como nulidade radical
do mundo e de si mesma, não elimina o mundo; mais ainda,
pressupõe-no na sua realidade de facto. A compreensão da
impossibilidade radical da existência, da sua

nulidade essencial, não a impede de existir como impossibilidade e


nulidade; torna-nos livres de aceitar a existência tal como ela é. A
angústia não proporciona ao homem um fim diferente daquele que
lhe propõe a sua existência quotidiana: faz-lhe ver

somente a insignificância e a nulidade destes fins e oferece-lhe,


assim, a possibilidade de permanecer fiel aos fins inerentes à
situação em que se encontra. Dado que esta situação é um coexistir
com os outros homens entre as coisas do mundo, a existência
autêntica confere ao homem a possibilidade de permanecer fiel ao
destino da comunidade ou do povo a

que pertence. Por outras palavras, a liberdade do

212
homem, em que se baseia a sua historicidade, consiste em fazer da
necessidade virtude; em escolher e aceitar como própria a situação
de facto em que estamos já lançados e -em permanecer-lhe fiéis.
Mas isto só é possível pela convicção de que todas as

situações de facto são equivalentes, que é impossível subtrair-se a


elas e que é impossível que elas sejam mais do que aquilo que são:
impossibilidade e nada. Por isso, Heidegger diz,(Ib., § 74) que "só
um ente

que no seu ser seja essencialmente futuro, isto é, que se deixe


rejeitar pela presença que realiza de facto, poderá transmitir a si
mesmo a possibilidade que herda, assumir a sua própria fuga para o
futuro e, nesse instante, estar no seu !tempo".

O destino em que consiste a historicidade do homem, é


precisamente este herdar as próprias possibilidades, querer ser
aquilo que já alguém foi, repetir a situação a que alguém se ligou.
Esta repetição é o destino (Schicksal).

Heidegger aceita de Nietzsche o conceito do destino como


-vontade daquilo que já aconteceu e que inevitavelmente acontecerá
(§ 667). O destino é a

hereditariedade da tradição, o retorno às possibilidades cuja


existência já é uni facto, o querer ser no futuro aquilo que já
alguém foi no passado. A decisão, em que consiste o destino, é a
escolha da escolha, mas não a escolha entre diferentes
possibilidades tais que uma delas possa ainda constituir uma rotura
com o passado ou uma conquista nova.

Só se pode escolher o querer ou não ser aquilo que já se foi e que


necessariamente se voltará a ser.

213

Isto acontece ainda porque o destino do indivíduo particular é


sempre e ainda um destino comum (Geschick). "0 destino comum, diz
Heidegger, não é a

soma dos destinos singulares assim como o estar

em conjunto -não se reduz à simples adição dos sujeitos singulares.


No estar em conjunto num mesmo

mundo e na decisão sobre determinadas possibilidades, os destinos


já estão delineados" (Ib., § 74).
O facto de o homem escolher os seus heróis mostra que a sua
fidelidade histórica consiste no retomar

e no fazer próprias as possibilidades que se herdam do passado. A


repetição das possibilidades não é, porém, uma destituição do
passado, mas antes uma

réplica à possibilidade da existência que já foi um

facto. Não tende todavia para um progresso. "Para a existência


autêntica, diz Heidegger, o passado e o progresso são, em qualquer
instante, indiferentes" (Ib., § 74). A historicidade da existência
humana implica a historicidade do mundo e, portanto, uma

história universal na qualidade de história cósmica. As coisas do


mundo, na sua utilizabilidade e instrumentalidade, fazem parte
desta história. Utensílios e trabalhos, os livros, por exemplo, têm o
seu destino; edifícios e instituições têm a sua história. A própria
natureza é histórica não no sentido em que se

fala de uma "história natural" mas antes corno paisagem, como


domínio de colonização ou de desfrute, como campo de batalha ou
corno lugar de culto. A historicidade das coisas do mundo não se
junta a elas corno um atributo exterior: faz parte do seu ser.

214

Na historicidade fundamental da existência humana e do mundo


baseia-se a ciência da história, a historiografia. O tema da
historiografia não é o

acontecimento único da sua singularidade nem um

universal (uma lei ou um tipo) suspenso sobre este acontecimento: é


a possibilidade que efectivamente existiu no passado. Enquanto esta
não é repetida como tal, isto é, enquadrada numa compreensão
histórica autêntica, fica como um tipo supra-temporal e abstracto,
mas nada -histórico. Por isso, só a atitude -existencial autêntica,
decidida, a repetir as possibilidades que já foram suas de facto,
pode revelar o sentido do passado na sua autenticidade
historiográfica. Heidegger faz sua a distinção proposta por
Nietzsche entre história monumental, história arqueológica e
história crítica. Com efeito, com a repetição, a existência autêntica
abre-se às possibilidades representadas pelos monumentos do seu
passado; e a própria repetição delineia a possibilidade de uma
conservação respeitosa da existência passada e abre, portanto, o
caminho a uma história arqueológica. Finalmente, dado que o
presente autêntico é um futuro que repete o passado, a história
implica uma desactualização do hoje; e é por isso necessariamente
uma "crítica, do presente".
Neste ponto, verdadeiramente, Heidegger não acoita totalmente a
posição de Nietzsche que, com

pouca coerência mas com muita verdade, reconhecera na história


crítica a tarefa de romper não só com o presente mas ainda com o
passado e de dar ao homem a possibilidade de se renovar (§ 667).

215

§ 847. HEIDEGGER: O SER

As análises existenciais referidas nas páginas anteriores


constituem o maior contributo de Heidegger para a filosofia
contemporânea e ainda uma das manifestações mais originais e
-interessantes dessa mesma filosofia. O instrumento fundamental
utilizado por Heidegger nestas análises é a noção de possibilidade
que, por obra sua, foi colocada em

primeiro plano não só na filosofia como ainda em muitos campos da


cultura contemporânea. Como quer que se entenda esta noção, está-
lhe sempre ligado o sentido da indeterminação, da instabilidade, do
risco ou, numa palavra, da não-necessidade. Infelizmente,
Heidegger não se preocupou em ilustrá-la, talvez porque a
considerasse "óbvia"; mas, precisamente por isto, o uso que dela faz
equivale, em muitos casos, à sua negação. A transcendência, o
planeamento, a antecipação, que -são os modos auto-compreensivos
da existência, baseiam-se todos no poder ser dessa mesma
existência, isto é, constituem modos e formas de possibilidade. Mas
para Heidegger todos estes modos o formas servem apenas para
obrigar a existência às situações em que ela já se encontra, isto é,
para a reduzir ao facto ou, do ponto de vista do tempo, ao passado.
Deste modo, a factualidade da existência torna-se o seu carácter
fundamental, a existência só pode consistir na repetição daquilo que
já fez ou daquilo que já foi. Mas assim as suas possibilidades
constitutivas revelam-se como impossibilidades. O transcender-se e
o

planear-se transformam-se na negação da transcen-


216

dência e do planeamento porque, na realidade, nada podem


transcender ou planear. Apesar das afirmações explícitas de
Heidegger, a realidade vinga-se, na sua obra, da possibilidade, o
facto vinga-se do projecto, o passado vinga-se do futuro. E as
possibilidades que fariam parte do ser-aqui revelam-se,

uma vez compreendidas, como autênticas impossibilidades.

Se se comparar este ponto de chegada da análise existencial de


Heidegger com o seu ponto de partida -a auto-compreensão da
existência em termos de possibilidade- verifica-se necessariamente
que um desses pontos deve ser abandonado. Não admira pois que
Heidegger tenha abandonado o ponto de partida da análise
existencial e que tenha defendido o ponto de chegada. A tarefa
dessa análise consistia em conduzir a uma ontologia, isto é, à
determinação do sentido do ser. Ela actuou interrogando o ente

para o qual se põe precisamente o problema do ser, isto é, o ser-


aqui ou o homem; e a esta interrogação o ser-aqui respondeu
manifestando o nada do seu ser, isto é, não respondeu. A conclusão
que se deve extrair dos resultados da análise existencial é assim a
de que o sentido do ser não pode ser obtido interrogando um ente,
quer este seja primário ou

privilegiado; ou, melhor dizendo, que por tal interrogação o sentido


só é esclarecido de forma exclusivamente negativa, a saber, que o
ser cujo sentido se procura não é um ser mas -sim um ente. Este
facto, que as conclusões da análise existencial consideram uma
ontologia autêntica, é claramente ilustrado por Heidegger na
Introdução à metafísica.

217

Mas esta obra é ainda, e simultaneamente, unia crítica e uma


dissolução da metafísica clássica, pois esta fez, segundo Heidegger,
precisamente aquilo que a análise existencial demonstrou que não se

podia fazer: procurou descobrir o sentido do ser a partir do ser


dos entes. A metafísica é, por isso, e

em última análise, uma "física". Perde-se entre os entes e esquece o


ser; é um esquecimento do ser que obriga a esquecer esse mesmo
esquecimento. Ã física pertencem apenas, segundo Heidegger, a
doutrina de Aristóteles do ser como acto puro, a de Hegel sobre o
conceito de absoluto, e a de Nietzsche sobre o eterno retorno
(Einführung in die Metaphysik, p. 14). Quanto a Platão, terá sido o
primeiro responsável por esta degradação da metafísica, porque
enquanto os primeiros filósofos tinham concebido a verdade como
revelação do ser (no sentido etimológico da palavra grega a-letheia,
que significa revelação), ele inverteu a relação entre verdade e

ser, baseando o ser na verdade. Assim, a verdade deixa de


constituir o revelar-se do ser e torna-se a normatividade ou
objectividade (o valor) do pensamento humano. A ideia de que fala
Platão é uni

olhar sobre o ente; a verdade é a justeza deste olhar (Platons


Lehre von der Wahrheit mit einem Brief über den Humanismus, p.
35), Desta doutrina platónica até à afirmação de Nietzsche de que
a verdade é "uma espécie de erro", há uma passagem gradual e
necessária, que é constituída pela própria história da filosofia, que
substituiu o pensamento do ser pelo pensamento do valor. Com a sua
pretensão de derrubar os valores tradicionais, Nietzsclic

218

pensa ainda por valores e, como tal, move-se no

âmbito da metafísica. Mas o pensar por valores é um autêntico


niilismo porque traduz o esquecimento do ser (Holzwege, p. 242).

Considerando assim a ontologia, a revelação da essência do ser não


pode resultar da análise do ser

de um ente qualquer nem da iniciativa de um ente. Só pode ser o


produto da iniciativa do ser; e o homem só se pode colocar nas
condições de se sujeitar a esta iniciativa. Heidegger assume por
isso como conceito fundamental do seu filosofar o da verdade como
não ocultação ou revelação do ser, que já desenvolvera nas
primeiras páginas de Ser e tempo. A revelação do ser pressupõe
que o homem se abra ao ser. O homem pode medir a verdade da sua
consciência através da sua concordância com as coisas (segundo o
conceito tradicional da adaequatio intellectus et rei) apenas porque
o ser se revela nas coisas existentes. Mas esta revelação implica
que ele esteja livre; pressupõe a liberdade e é precisamente o
significado original da libeli-dade e da verdade. "A liberdade
perante aquilo que se revela nesta abertura permite ao ser que ele
seja aquilo que é. A liberdade define-se assim como aquilo que deixa
ser o ente" (Vom Wesen der Wahrheit, p. 15). A verdade e a
liberdade identificam-se na medida -em que para o homem ser livre
significa "abandonar-se à revelação do ente como tal". Graças a
esta revelação, o próprio homem é o ente que é; ou seja, está
compreendido na verdade do ser. Mas, neste sentido, a liberdade
não tem nada que ver com a iniciativa humana: é uma dádiva

219

preliminar (Vorgabe) do ser ao homem (Ib., p. 13). É uma iniciativa


do ser, não uma iniciativa do homem.

Todavia, a revelação do ser nunca é total nem directa. Não ser total
significa que o ser se oculta ao mesmo tempo que se revela; -isto é,
tal como ilumina o ente, desvia-o e fá-lo errar. Os erros do ente
constituem a história, que é determinada pela epoché, ou melhor,
pelas revelações parciais (ou ocultações parciais) do ser. "A época
do ser pertence ao, próprio ser, afirma Heidegger, e é concebida
partindo da concepção do esquecimento do ser.

É da época do ser que deriva a essência contemporânea do seu


destino, do qual faz parte a verdadeira história universal"
"Holzwege, p. 311). Por outras palavras, é apenas a ordem
necessária da revelação do ser, como já afirmara Hegel. Acontece
ainda que a revelação do ser não é directa, por se efectuar através
das coisas e estas não serem, de tal ponto de vista, os utilizáveis de
que se falava em Ser e tempo, mas sim as unidades em que se
manifestam os quatro aspectos do ser, isto é, a teoria, o céu, o
divino e o mortal, e para os quais "habitar perto das coisas"
significa "encontrar aquilo que anuncia a

divindade, isto é, o ser (Unterwegs zur Sprache, p. 22).

Toda a numerosa série de obras que Heidegger veio publicando nos


últimos anos e que no seu conjunto constituem a segunda fase da
sua filosofia, na qual já não se encontra traço algum de
existencialismo, (a não ser no sentido da resposta negativa que o
existencialismo forneceu à constituição de

220

uma ontologia), ilustram os conceitos fundamentais da filosofia que


foi agora delineada. A existência será o " estar perante o sem
(Maions Lehre, p. 66). "0 homem é lançado pelo próprio ser na
verdade do ser, pelo que, estando protegido pela verdade do ser, e
por isso mesmo, o ente surge ao ser exactamente como o ente que
é" (Ib., p. 75). O homem não é o do-no do ente mas o pastor do ser.
"Ele atinge assim a total pobreza do pastor, cuja dignidade consiste
no ser chamado -pelo próprio ser para guardar a sua verdade"
(Briefe über den "Humanismiís", in Platons Lehre, p. 91). O
pensamento é sempre pensamento do ser, no sentido objectivo e

subjectivo, isto é, no sentido de que é o ser que pensa e que o


pensamento só pode pensar o ser

(Ib., p. 54). Ele não conduz portanto a qualquer saber, como por
vezes acontece com as ciências, não fornece à acção qualquer
impulso ou sabedoria nem resolve enigmas. Pertence ao ser, não ao
homem; e o homem, enquanto pensa, só pode "deixar que o ser seja"
(Was heisst Denken? p. 161, Platons Lehre, p. 111). O abandono
(Gelassenheit) ao ser é a única atitude a que o pensamento pode
conduzir. E é precisamente esta atitude que devemos assumir
perante o mundo da técnica, cujos perigos, segundo Heidegger,
nenhum poder humano pode remediar. "Nós permitimos, afirma, que
os objectos da técnica existam dentro do nosso mundo quotidiano e,
simultaneamente, deixamo-los fora dele, isto é, deixamo-los
repousar em si mesmos como coisas que nada têm de absoluto mas
que, pelo contrário, reenviam a qualquer coisa mais elevada.

221
Poderemos indicar a atitude contemporânea perante o mundo -da
técnica com uma única expressão: a

resignação às coisas" (Gelassenheit, p. 25). Este passivo abandono


às coisas é a única forma de manter o sentido do ser oculto do
mundo da técnica, e é uma autêntica "abertura ao mistério" (Ib., p.
26).

A única manifestação do ser autêntica e directa é, segundo


Heidegger, a linguagem. Já na conferência sobre Hõlderlin e a
essência da poesia (1937), que foi o primeiro documento da nova
fase da sua filosofia, Heidegger reconhecia na linguagem e em
particular na linguagem poética o "fundamento do ser". A poesia é a
língua primitiva que, dando nome às coisas, fundamenta o ser. Este
fundamento não é uma criação mas sim um dom: é um dom livre,
embora não caprichoso, obedecendo a uma necessidade superior que
os poetas julgam provir dos deuses e

que, na realidade, vem do ser. Estes conceitos tornaram-se


fundamento da especulação posterior de Heidegger e da forma
característica que ela assumiu, como investigação incessante de
novos significados das palavras, de novas palavras ou de etimologias
(por vezes arbitrárias) que deveriam revelar novos

significados. Nesta sua forma, a filosofia, segundo Heidegger,


chega a coincidir com a poesia visto que uma e outra revelam,
através da palavra, o significado do ser. Nesta revelação, no
entanto, o que conta não é a obra do homem. Não é ele que fala mas
sim a própria linguagem, e na linguagem, o

ser. O homem só pode falar enquanto escuta: a sua essência


consiste precisamente em escutar a linguagem do ser, no obedecer-
lho e no confiar nele (Un-
222

terwegs zur Sprache, p. 254). Heidegger crê que uma nova época,
uma nova manifestação do ser, se prepara através da que agora se
está a exaurir e é caracterizada pela metafísica. Esta nova
manifestação, ocorrerá através da linguagem, e por sua obra, dado
que "na essência e no âmbito da linguagem se decide sempre o
destino" (Vortrãge und Aufsãtze, p. 54). O destino é o fatum, a
palavra do ser: só compete ao homem esperá-la e escutá-la.

Este acento profético da última parte da filosofia de Heidegger


não tem todavia significado religioso. Se bem que Heidegger parta
de deuses ou de divindades e que recuse a qualificação de ateu
(Identitãt iin,d Differenz, 1957, p. 51), o ser de que fala
recusa constantemente as características essenciais da
divindade: não é nem a Causa nem o Bem.
O mundo será "a luz do sem ffilatons Lehre, p. 100); e as coisas do
mundo são deuses sob os quais devemos ficar e esperar. Mas o
próprio mundo, tal como as coisas, depende da revelação do ser em

cada época.

§ 848. JASPERS: EXISTÊNCIA E RAZÃO

Heidegger tira da fenomenologia a existência ontológica que acaba


mais tarde por prevalecer na segunda fase da sua filosofia. A obra
de Jaspers liga-se mais estreitamente à de Kierkegaard, nela o

homem individual é considerado como o tema único da filosofia, cuja


tarefa será portanto a do esclarecimento racional da existência
individual.
223

Karl Jaspers nasceu em Oldoriburg a 23 de Fevereiro de 1883.


Formou-se em medicina e estudou Espinosa e Husserl. Em 1909
conhece Max Weber, que considera seu mestre ao qual dedica
seguidamente um livro. Em 1916 começa a ensinar filosofia na
Universidade de Heidelberga onde, em 1921, se torna professor.
Mantém a cátedra até 1937, ano em que a perde por se opôr ao
nazismo. Esta oposição, com tudo aquilo que implica no plano
filosófico, foi sempre uma das directrizes do pensamento de
Jaspers que, num livro intitulado O problema da culpa (1946),
analisa a culpa da Alemanha na iniciativa e na condução da guerra, e
que num outro livro recente, Liberdade e unificação (1960), a
propósito do problema da unificação das duas Alemanhas, disse que
o considera um problema ultrapassado e que a única questão
importante é a da **defm e da realização da liberdade.

Jaspers iniciou a sua actividade científica no campo da psicologia e


em 1913 publicava a Psicopatologia geral. A obra de transição deste
género de estudos para a filosofia foi a Psicologia das intuições do
mundo (1919), que se pode considerar como sendo a primeira obra
de filosofia existencialista (anterior a Ser e tempo, que Heidegger
só publicou em 1927), dado que na realidade contém todos os temas
principais que Jaspers desenvolveu nas

suas obras posteriores. Entre estas obras, a mais importante é a


chamada Filosofia (1932), publicada em três volumes intitulados
respectivamente Orientação filosófica no mundo, Definição da
existência e Metafísica. Os seus outros escritos são: A situação

224

espiritual do nosso tempo (1931); Max Weber (19')2); Razão e


existência (1935); Nietzsche (193); Descartes e a filosofia (1937);
Filosofia da existência (1938),
O espírito v.'vo da Universidade (1946); Sobre a verdade (1947); A
fé filosófica (1948); A origem e o

fim da história (1950); Guia de filosofia (1950); Razão e anti-razão


do nosso tempo (1950); Balanço e perspectivas (Discursos e ensaios,
1951)-, Schelling (1955); Os grandes filósofos (1957); A bomba
atómica e o futuro dos homens (1958); Filosofia e mundo (Discursos
e ensaios, 1958); Razão e liberdade (1959); A ideia da Universidade
(1961); As fés filosóficas na revelação (1962).

Jaspers partilha com a fenomenologia o conceito da


intencionalidade da consciência e o da revelação da razão. Mas este
carácter revelador da razão consiste essencialmente, segundo
Jaspers, na

sua capacidade para esclarecer a própria existência, isto é, de a


trazer à consciência o à comunicação com as outras existências. A
existência é o ponto de partida e simultaneamente o limite da
compreensão racional. Dela saiem e para ela voltam todos os
esforços e tentativas, iniciativas e empreendimentos de que o
homem é capaz, incluindo aqui a procura do ser, que é o tema
próprio da filosofia. A existência é sempre a minha existência, isto
é, uma existência historicamente individualizada, singular,
inconfundível e dotada do carácter de excepcionalidade que já fora
referido por Kierkegaard e por Nietzsche. O esforço de auto-
compreensão racional, de universalização e de comunicação faz
parte integrante dela e mantém-se necessariamente nos seus

225

limites. Como poderá então esse esforço valer como


autêntico esclarecimento e abrir a existência à comunicação
universal? É este o problema fundamental que Jaspers abordou na
sua filosofia.

Existência e razão constituem, segundo Jaspers, os pólos do nosso


ser. A razão está presente como intelecto na consciência em geral,
como vida ou

totalidade de ideias no espírito e, enfim, como

razão esclarecedora na própria existência. Em nenhum caso a razão


pode existir por sua conta: ela é um do pólos e pressupõe sempre o
pólo oposto. Na existência, a razão constitui a própria acção da
existência possível. Uma razão privada de existência seria um
processo de pensamento arbitrário e cairia numa universalidade
abstracta. Uma existência privada de razão cairia na violência cega
e portanto naquela universalidade empírica que é típica dos impulsos
sentimentais ou vividos sem especulação racional (Vernunft und
Existenz, p. 42). A existência e a razão devem pois reunir-se para
constituir a

razão autêntica ou a existência autêntica; e só através da sua


penetração recíproca é que a existência se abre à verdade, isto é, à
comunicação com os outros.

Mas a verdade que é própria da existência não consiste nem na


verificação pragmática que vale no

domínio da realidade empírica, nem na evidência necessária que vale


no domínio da consciência em geral, nem tão-pouco na persuasão que
é válida no
domínio do espírito. Estas três formas da verdade constituem Lima
ordem gradual em que cada das formas é superior a precedente;
mas nenhuma, delas, nem sequer a sua totalidade, esgota a
existência

226

de uma comunicação absoluta e total. Esta só se pode realizar


através de um movimento infinito no qual a verdade se manifesta
cada vez mais. E neste movimento coincidem o ser si próprio, isto é,
o manter-se na sua unicidade e excepcionalidade, e

o ser verdadeiro, ou seja, o revelar-se aos outros e

o comunicar com eles. "A existência, afirma Jaspers (Ib., p. 62),


torna-se manifesta a si mesma e, portanto, real, se com uma outra
existência, através dela e com ela, se alcança a si própria". Este
movimento, que nunca se conclui porque nunca alcança o seu fim
último, constitui a verdade da existência, que é também a da fé.
Tem-se fé quando se chegou ao limite da transcendência, isto é,
quando se provou que toda a forma de comunicação se dirige para o
insucesso e que por isso a comunicação é

impossível. E com efeito, se a comunicação alcançasse a sua própria


realização, destruir-se-ia a justificação do homem na medida em
que este se torna

ele próprio sempre e apenas na comunicação. Por outro lado, o facto


de a comunicação nunca ser

completa e a gravidade do seu insucesso revelam uma profundidade


que só pode ser preenchida pela transcendência. Se Deus -é eterno,
ele torna-se verdade para os homens apenas enquanto devém
verdade e, mais precisamente, só enquanto devém verdade na
qualidade de comunicação" (Ib., p. 73). Os limites dentro dos quais a
transcendência cumpre e aperfeiçoa a verdade e a comunicação são
limites impensáveis, dado que o pensá-los nada mais faz do que
reconduzi-los às formas da verdade e da comunicação já
conhecidas, isto é, a formas incom-
227

pletas. Os limites do pensamento e da comunicação, portanto (e se


bem que actuem na existência humana), só são conhecidos na forma
de silêncio (Ib., p. 74).

§ 849. JASPERS: EXISTÊNCIA E SITUAÇÃO

Do mesmo modo que para Heidegger, também para Jaspers o


aspecto característico da existência é o ser sempre uma existência
no mundo: isto é, ligada a uma s;tuação de facto que a delimita e
caracteriza de uma maneira específica. A existência é busca do ser;
e o primeiro modo desta busca é o

de considerar-se a si mesmo como um ser-aqui (Dasein), como um


elemento ou coisa do mundo juntamente com outros elementos ou
coisas inumeráveis. Deste ponto de vista, a investigação do ser é
orientação no mundo. É uma investigação que não tem fim, que passa
de uma coisa a outra, de termo a termo, até ao infinito, mas -que
não encontra nem

pode encontrar mais do que coisas no mundo (Phil.


1, p. 28-29). Uma investigação objectiva deste tipo é a própria de
todas as ciências naturais, que, descobrindo leis universalmente
válidas, superam os

confins do indivíduo empírico e dirigem-se a um


intelecto anónimo, isto é, comum a todos. A orientação no mundo é
uma posição legítima, mas não pode ser considerada como
conhecimento definitivo. Não é nem pode valer como conhecimento
do mundo.
O que **@atinae é um ser determinado, este ou aquele

228

objecto no mundo: o próprio mundo permanece como o horizonte


transcendente ou inalcançável deste tipo de procura. Certamente,
eu posso construir a imagem total do mundo e considerá-la como o
próprio mundo. Mas, na verdade, esta imagem não será o mundo:
será antes um cosmos, um singular e particular ponto de vista entre
os muitos que há no

inundo; e o mundo ficará como o horizonte transcendente deste


mesmo cosmos e do ponto de vista que o sugeriu (Ib., 1, p. 68-71).
Jaspers identifica este horizonte com o periécon de que falava
Anaximandro: um horizonte conglobante que se estende à medida
que aumenta o nosso conhecimento mas que se desloca e permanece
inalcançável. O horizonte conglobante determina o fracasso da
orientação no mundo. O que eu procuro é o mundo, como totalidade
absoluta e que contém tudo; o que alcanço é um cosmos vinculado a
um ponto de vista particular, que se insere no interior do horizonte
conglobante. Mas este fracasso assinala, ao mesmo tempo, a
ruptura do mundo como unidade e totalidade.
O mundo rompe-se na multiplicidade das perspectivas, tendo cada
uma delas a pretensão de valer absolutamente, mas dependendo
todas do seu ponto de vista.

Só se pode sair desta prisão desvinculando-nos da consideração


objectivante, para a qual eu mesmo sou uma realidade objectiva no
mundo, e colocando-nos no plano da consideração existencial, para a
qual eu nunca sou objecto para mim mesmo. Neste plano, a imagem
que eu formo do mundo -não é acidental ou casual, não posso mudá-
la arbitrariamente:

229

eu sou a minha própria intuição do mundo. neste sentido, a minha


intuição do mundo não é já um

possível objecto de investigação no meio de tantos outros: é a


minha própria situação no inundo, isto é, a origem do meu filosofar
(Phil., 1, p. 246). Como parte de mim mesmo, a minha situação não
pode ser objectivada ou considerada a partir do exterior; é
idêntica a mim mesmo. Esta identidade é o ponto central da
filosofia de Jaspers.

À primeira vista, esta filosofia é uma filosofia da liberdade. O


homem é o que escolhe ser: a sua

-escolha é constitutiva do seu ser e ele não é senão enquanto


escolhe. A escolha de mim mesmo é a

liberdade originária, aquela liberdade sem a qual eu não sou eu


mesmo (Ib., 11, p. 180). Jaspers fala do risco inerente à escolha de
si mesmo, da decisão existencial que não sai do eu como de uma
fonte escondida, mas constitui o próprio eu; e descobre na vontade
a clareza da escolha originária (Ib., 11, p. 152). Mas (este é o ponto
decisivo) o eu que escolhe é a sua própria situação no mundo,
situação historicamente determinada, objectiva, particular; e

a sua escolha auto-constítutiva não é mais do que a auto-constituir-


se desta situação. Isto significa que a escolha, radicando-se numa
situação determinada, não pode escolher senão o que já foi
escolhido constituído numa situação de facto. "Eu-diz Jaspers Qb.,
11, p. 182)-não posso refazer-me radicalmente e escolher entre ser
eu mesmo e não ser eu mesmo, como se a liberdade estivesse diante
de mira como um instrumento. Mas enquanto escolho sou; se não sou
não escolho". O que quer

230

dizer que perante a escolha nunca se oferecem alternativas


diferentes (Ib., III, p. 114), que ela nunca é um comparar, um
extrair, um escolher, irias sempre e unicamente o reconhecimento e
a aceitação daquela única possibilidade que está implícita na
situação de facto que constitui o meu eu. "Eu estou numa situação
histórica se me identifico com uma realidade e com, a sua tarefa
imensa... Eu somente posso pertencer a um único povo, posso ter
apenas estes pais e não outros, posso amar somente uma única
mulher; mas eu posso, em todo o caso, trair". Admitir que podemos
pertencer a outro povo, se aquele ao qual pertencemos de facto nos
aparece como estranho; que podemos desconhecer os nossos

próprios pais porque não temos culpa daquilo que eles são; que
podemos amar outra mulher e que, em

geral, podemos recorrer àquelas possibilidades sempre novas de que


a vida está repleta, significa, para Jaspers, trairmo-nos a nós
mesmos. O único modo de ser, a única escolha autêntica é a que
aceita incondicionalmente a situação de, facto à qual se pertence.
"0 meu eu é idêntico ao lugar da realidade em que mo encontro"
(Ib., !I, p. 245). E, dado que a escolha é originariamente
comunicativa e a escolha de si é sempre, ao mesmo tempo, escolha
dos outros, também a escolha dos outros não é um escolher, irias
apenas a decisão originária de uma comunicação incondicionada quer
com aqueles que encontro quer comigo mesmo,(Ib., 11, p. 183).

A identidade do eu e da situação, o facto intransponível de que o eu


se encontra Ligado e identificado com um determInado "lugar" -da
realidade,

231

aparece a Jaspers como a culpa originária e inevitável, que -é o


fundamento de toda a culpa particular.
O reconhecimento e a aceitação da situação elimina da realidade as
culpas evitáveis, a traição para consigo mesmo, mas permite
reconhecer na sua verdadeira natureza a culpa originária e
inevitável (Ib., p. 249). A culpa inevitável é a limitação necessária
do eu na situação; a culpa evitável é o desconhecimento, a**
mexisteme ou débil aceitação da própria situação e, por
conseguinte, a renúncia de, ser-se o próprio. -No fundo, esta
renúncia não tem consequências decisivas, porque a identidade
entre o eu e a situação actua mesmo quando não seja reconhecida e
aceite: o não actuar, como o não decidir e o não escolher, não nos
tira da situação em que estamos e daquilo que, por essa razão
somos; e assim deixa inalterada a necessidade e a culpa desta
situação. A escolha só oferece, ao homem a alternativa do
reconhecimento e da aceitação apaixonada da situação originária,
de maneira que é possível "chegar a ser ü que se é" (Ib., 1, p. 270).
O que; Nietzsche, chamava o amor fati, que Heidegger chama o
destino é, também para Jaspers, a única atitude, a única escolha
possível do homem. E a liberdade? A liberdade coincide com a
necessidade da situação.

Jaspers fala de "existência possível" e, ao longo de toda a sua


filosofia, serve-se incessantemente da categoria da possibilidade.
Mas na sua filosofia, como na de Heidegger, possibilidade significa
impossibilidade. Eu só posso ser o que sou; só posso vir a ser o que
sou; não posso querer senão o que SOU: e o que sou é a situação em
que me encontro

232

e sobre a qual nada posso. Jaspers diz que as expressões "eu.


escolho", "eu quero" significam, na

real-idade, eu devo (Ich muss, no sentido da necessidade de facto


[1b., 11, p. 1861). A possibilidade de ser, de agir, de querer, de
escolher é, na realidade, a impossibilidade de agir, querer e
escolher de maneira diferente de como se é, ou seja, opondo-se às
condições implícitas na situação -que nos constitui. O predomínio
romântico da presencialidade, da necessidade, -do facto, domina a
doutrina de Jaspers, para quem a própria história se converte em
unidade de liberdade e de necessidade no sentido de ser uma
necessidade que se torna consciente e é aceite como tal (Ib., 11,
págs. 117 e segs.). Poderia supor-se que pelo menos a traição, o
desconhecimento de si, a renúncia cega ou culpável à própria
realização, fossem actos de liberdade: e assim seriam, se fossem
possíveis. Mas, na realidade, para Jaspers, não são possíveis. O
homem não pode subtrair-se a si mesmo porque não pode subtrair-
se à sua própria situação: é esta situação. O desconhecê-la ou o
ser-lhe infiel não significa abandoná-la ou prescindir dela: significa
somente suportá-la sem

dar-se conta dela, vivê-Ia sem ter dela consciência ou clareza


racional. De modo que a única diferença que a filosofia, como
esclarecimento racional, introduz na -existência do homem, consiste
em fazer-lhe ver claramente e em persuadi-lo a aceitar aquela
necessidade que, mesmo sem a filosofia, continuaria actuando no
seu ser mais oculto. Para Jaspers, como
para Heidegger, a possibilidade existencial transformou-se numa
impossibilidade radical; e a liber-
233

dade, que ela prometia, transformou-se na aceitação da


necessidade.

§ 850. JASPERS: TRANSCENDÊNCIA EFRACASSO

Radicada na necessidade da situação de facto, lançada na busca do


ser, que se pode sempre aprisionar na forma deste ou daquele ser
mas que sempre se escapa na forma de totalidade e de horizonte
intransponível, a existência aparece a Jaspers como uma
impossibilidade radical de existência. No terceiro volume da
Filosofia, A metafísica, esta impossibilidade radical converte-se no
tema dominante. A existência é investigação do ser; mas o ser não é
uma possibilidade da existência. Aqueles aspectos ou partes do ser
que a existência alcança ou encerra

em si mesma não são já o ser, que permanece como o horizonte


transcendente de tudo o que pode ser e é alcançado. Isto implica
que o ser, como transcendência, só pode ter na investigação humana
urna manifestação ou característica: precisamente a

da impossibilidade de o alcançar. Nunca estando compreendido


dentro dos seus limites, o ser não se revela à existência senão como
uma radical e absoluta impossibilidade de !ser: portanto (dado que
toda a impossibilidade é necessidade), corno

necessidade absoluta e radical.

Há realmente uma forma pela qual a transcendência pode ser


experimentada como presente na existência humana, e é a cifra, o
símbolo. Uma coisa,

234

uma pessoa, unia doutrina, uma poesia, podem valer como símbolos
ou cifras da transcendência; mas dado que não valem como ta-Is se
eu não os interpretar desse modo, e dado que não posso interpretá-
los senão partindo daquilo que eu mesmo sou, toda a cifra ou
símbolo interpretado pela existência é uma confirmação de que a
existência não pode ser

senão o que é .(Phil., III, p. 206). Mas, sobretudo, a

transcendência revela-se no que Jaspers denomina situações-


limites, isto é, em situações imutáveis, definitivas,
incompreensíveis, nas quais o homem se ,encontra como se estivesse
em frente de UM MUTO, contra o qual pode apenas chocar sem
esperança. Frente a tais situações, toda a rebelião é insensata: só
podemos ter consciência delas. A necessidade que nelas se
manifesta e que é incompreensível, enquanto não é redutível a
motivos ou elementos do nosso saber, mostra precisamente que aí
se experimenta, ainda que na forma negativa do choque, a própria
necessidade do ser. Encontrar-se numa situação-limite significa não
poder não: não poder não sofrer, não poder não morrer, não poder
não pecar. A situação-limite revela por isso, da maneira mais clara,
a impossibilidade constitutiva da existência. O estar sempre numa
situação determinada, o não poder viver sem luta e dor, o dever
tomar sobre si a culpa, o estar destinado à morte, são situações-
limite, nas

quais, indubitavelmente, a transcendência está presente sob a


forma da impossibilidade em que o homem se encontra para superá-
las. O sinal mais evidente da transcendência é o fracasso que o
homem vi

sofre na tentativa de superá-las ou de compreendê-


235

-Ias de alguma maneira: neste fracasso, a transcendência faz


sentir a sua presença. É a cifra suprema, a que melhor simboliza e
descreve a necessidade do ser. Certamente, no naufrágio total de
todas as suas possibilidades, o homem não pode encontrar mais do
que resignação e silêncio; mas resignação e silêncio constituem uma
paz que não é já ilusória porque se baseia na certeza do ser que se
revelou na sua necessidade (Ib., 111, p. 234). O nosso saber da
divindade aparece agora como superstição; mas

a verdade está onde a existência, no seu naufrágio, pode traduzir a


linguagem equívoca da transcendência na mais simples certeza do
que respeita ao ser.

É a certeza de uma necessidade incompreensível, frente à qual não


se pode fazer outra coisa que inclinar silenciosamente a cabeça e
resignar-se.

§ 851. JASPERS: LÓGICA E COMUNICAÇÃO

Como dissemos, o problema da filosofia é essencialmente, para


Jaspers, o problema da comunicação: isto é, o problema de uma
verdade que, ainda que indissoluvelmente dirigida à existência
singular como seu auto-esclarecimento, seja universalmente
comunicável. Ora a verdade filosófica não é uma verdade objectiva
como a da ciência, que é anónima e, portanto, pode ser igualmente
aceite por todos. É verdade existencial, ligada à mais profunda e
íntima raiz da existência singular. Então, de que maneira esta
verdade é comunicável, isto é,

236

pode valer para os outros. Donde tira esta verdade o seu valor para
a existência individual que esclarece? Já em Razão e existência
(1935) tinha surgido, este problema e tinha, de certo modo,
respondido. Nesta obra (p. 46) reconhecia Jaspers a exigência de
uma lógica filosófica que fosse "auto-esclarecimento da razão",
assim como a filosofia é "o auto-esclarecimento da existência". E
tal lógica filosófica distinguia-se da "lógica da consciência em

geral", isto é, da lógica entendida no seu sentido tradicional,


kantiano ou idealista, como lógica das categorias do intelecto ou das
ideias em Deus antes da criação. Ã exigência desta lógica responde
a obra Sobre a verdade (1947). Aqui, a lógica filosófica é
entendida, de acordo com oque tinha sido afirmado em Razão e
existência, como o auto--esclarecimento da razão. No instituir e no
levar por diante o processo deste auto-esclarecimento (que nunca
se pode terminar e encerrar num sistema), residem e** manlêm-se
os princípios fundamentais que Jaspers expusera na Filosofia.

O problema fundamental da lógica filosófica é sempre o da relação


entre a unidade e a multiplicidade da verdade. A verdade é única
porque está em conexão com a singularidade e excepcionalidade da
existência e constitui, por isso, a própria existência; mas é também
múltiplo, porque a existência singular não está só, antes existindo
juntamente outras existências, cada uma das quais tem a sua
verdade. Pode-se insistir unilateralmente num e outro destes dois
aspectos da verdade, e têm-se então desvios ou perversões de que
é rica a história da filo-
237
sofia. Quando se reconhece que a verdade é una, passa-se à
afirmação de que a verdade é única para todos, e entra-se no campo
do dogmatismo e do fanatismo já que se identifica esta única
verdade com a nossa verdade, que é sempre uma verdade individual
e histórica. A verdade deste modo, torna--se estática e fixa; mas
-o que se torna -estático e fixo é uma verdade histórica particular
que se pretende impôr com a força da autoridade (Von der
Wahrheit, p. 834). Jaspers denomina esta posição ."o ponto de vista
do catolicismo". Nele, a verdade pretende excluir todas as outras
porque pretende incluí-Ias todas, tende a submetê-la -à sua
autoridade e a fazer dela um instrumento de domínio. Exemplos
disto

não apenas a Igreja Católica como ainda o Cristianismo, em geral e o


idealismo alemão,(Ib., p. 856,
842-44, 851). Perante este ponto de vista, a filosofia nega a rigidez
estática da verdade e, sem menosprezar a autoridade, limita o valor
e a função às suas condições históricas. No fundo, a pretendida
unicidade da verdade, afirmada pelo catolicismo em

,geral, é a queda da verdade existencial na objectiva: considera-se


única a verdade porque é tida como

válida objectivamente, independentemente da sua relação vital com


a existência.

Se, por outro lado, se insiste unilateralmente na conexão da


verdade com a existência, chega-se ao

relativismo e ao cepticismo: haverá tantas verdades como


existências. Mas também este ponto de vista assinala a descida da
verdade ao nível do intelecto objectivante. Reconhecer que há
muitas verdades e
que todas se equivalem significa, com efeito, olhar

238

a verdade a partir -do exterior; mas a verdade não pode ser olhada
do exterior porque é a própria existência. Não se pode dizer que
haja muitas verdades, porque as verdades nunca se encontram uma
ao lado da outra, desenvolvendo-se juntamente através da
comunicação existencial e, portanto, nunca

se somam num todo completo (Ib., p. 742). Uma filosofia autêntica


nunca pode ser considerada como "um ponto -de vista" entre tantos
outros, porque supera todos os pontos de vista e não é, por seu
turno, um ponto de vista. A totalidade para a qual se deve dirigir a
filosofia não !é a totalidade acabada e estática de pontos de vista
co-presentes, mas uma totalidade aberta, isto é, que tome possível
à existência escolher e ser a própria verdade (Ib., p. 182, 708).

O dogmatismo e o cepticismo só podem evitar-se se se referir a


verdade ao âmbito da comunicação e da sua possibilidade. Dado que
a existência não exclui as outras existências, e que, pelo contrário,
existe juntamente com elas, o reconhecImento da verdade da
minha existência deve levar-me ao reconhecimento da verdade das
outras existências. Na comunicação crescem juntas não só as
existências diferentes mas também as diversas verdades; e
nenhuma delas é uma totalidade completa, pois estão todas -em
movimento e é precisamente neste movimento que existem e
comunicam entre si. A verdade alheia não é para mim uma verdade
diferente e oposta à minha: é a verdade de uma outra existência
que procura comigo a verdade única. Naturalmente, essa verdade
única nunca se alcança: está sempre para além, num horizonte
transcendente,
239

que é o horizonte no qual se movem e vivem todas as verdades. Mas


está presente precisamente como este " estar para além", ao qual a
própria investigação no tempo está subordinada e para a qual se
dirige. O carácter absoluto e incondicionado de que a verdade me
aparece revestida existe no movimento complexo da investigação
enquanto é coexistência ou

comunicação. Por isso Jaspers diz que o filósofo "não cai no erro da
verdade total e completa". Realiza o sentido da verdade em todos
os tipos da verdade. Está sempre em comunicação profunda (Ib., p.
961). Avança por -um caminho difícil sem garantias e sem apoios;
chama a atenção, indica os

limites, fornece a consciência, escreve e revela cifras,

mas nunca pode apresentar a verdade definitiva (Ib., p. 966). Por


outras palavras, o fim último da lógica filosófica não é o de dar um
sistema completo da verdade, nem o de determinar as condições em

que a verdade é possível e proporcionar, por conseguinte, um


critério para a descobrir; consiste somente em manter aberta a
possibilidade da comunicação entre as existências singulares, cada
uma das quais está vinculada à sua própria verdade. A verdade é
assim pressuposta pela lógica de Jaspers no seu duplo carácter de
verdade singular c de verdade una. E, efectivamente, deve ser
pressuposta, porque não é mais do que o auto-esclarecimento da
existência singular e identifica-se com o próprio desenvolvimento
desta existência que, esclarecendo-se a si mesma, aceita ou escolhe
conscientemente a situação de facto a que está ligada. A verdade
240

JASPERS

coincide com a escolha auto-esclarecedora do eu, assim como o eu


coincide com a própria situação.

§ 852. JASPERS: FÉ E REVELAÇÃO

Depois da obra A fé filosófica (1948), Jaspers começa a insistir


cada vez mais nos aspectos positivos da sua filosofia, partindo das
conclusões a que chegara em escritos anteriores e realçando agora
o

valor da fé como revelação e manifestação imediata do ser


transcendente. O conceito fundamental de que se serviu para esta
reinterpretação positiva do seu pensamento é o de horizonte
conglobante, ou

tudo-compreendente (Umgreifende). Este conceito é utilizado como


compreendendo todos os modos possíveis de manifestação do ser
do homem; e em cada um desses modos é diferenciado em dois
pólos, o

de sujeito e o de objecto. Se eu sou enquanto ser aqui, o -tudo


compreendente apresenta-se dividido em mundo interno e mundo
circundante; se eu

sou como consciência, em geral, encontra-se dividido em consciência


e objecto; se eu sou como espírito, divide-se na ideia em mim e na
ideia objectiva proveniente das coisas; se sou como existência,
encontra-se dividido em existência e transcendência. Considerado
como o ser, o tudo compreendente é o
mundo que nos três primeiros pólos é, respectivamente, mundo
circundante, objectividade do cognoscível e ideia. No quarto pólo, o
ser é a transcendência. Deste modo, a fé consiste simplesmente no

241

estar presentes nestes pólos. Ela é qualquer coisa de radicalmente


diferente do conhecimento objectivo, que apenas conserva o seu
valor no âmbito de um daqueles pólos. É a própria vida na medida em
que retorna ao tudo compreendente e se deixa guiar e

preencher por ele (Der philosophische Glaube, p. 20). É um retorno


à origem misteriosa da vida, um retorno em virtude do -qual as
coisas perdem o seu

carácter absoluto e o ser se manifesta numa experiência


inexprimível, que os místicos provaram e

descreveram metaforicamente.

Deste ponto de vista, tudo quanto Jaspers disse a propósito das


situações-limite, da transcendência, do -insucesso e da cifra
conserva a sua validade. Mas, simultaneamente, aponta na fé a via
para subtrair-se ao mundo, e pôr-se em contacto com o ser que está
para além dele. A negação deixa de ser

a única via da afirmação na medida em que o é apenas ao nível do


pensamento raciocinante, não ao

do pensamento que, estimulado na negação, retorna à origem


misteriosa a !que ele próprio, assim como
toda a vida do homem, pertence. Enquanto que, com

Sartre, o existencialismo seguia, ainda mais decididamente, a via da


mundanização do homem e refutava qualquer integração metafísica
ou teológica, Jaspers, contemporaneamente, acentuava em aberta
polémica os aspectos metafísicos e teológicos da sua

especulação. Numa advertência (1955) prévia à terceira edição da


sua Filosofia fazia notar o facto das três partes da obra
corresponderem às três ideias da metafísica clássica, o mundo, a
alma e Deus (Philosophie, 1956, 1, p. XXIII); e considerando

242

esta metafísica como uma espécie de cifra ou de símbolo da


transcendência continuou seguidamente a insistir na semelhança,
para além das diferenças, do seu ponto de vista com o da metafísica
clássica. Simultaneamente, insistindo na indemonstrabilidade, na
longinquidade e no carácter misterioso de Deus, evidenciou o -papel
de guia da teologia tradicional como "consciencialização racional da
fé". E insistiu ainda na exigência de "incondicionalidade" a que a fé
corresponde. A fé é o auto-esclarecimento da existência na sua
"profundidade ultraconceptual", auto-esclarecimento que é
simultaneamente a decisão de identificar-se com essa
profundidade. A incondicionalidade dada. através da fé é
intemporal:

a sua revelação histórica são as situações-limite. Mas também


nestas situações, e em toda a parte, o mundo é qualquer coisa de
"esvanecente". Deus e a existência-a existência autêntica que é
**fésão a única palavra "eterna".

Como podemos ver estes últimos desenvolvimentos da especulação


de Jaspers fazem dela a

defesa de uma religiosidade que, ao mesmo tempo que nega


identificar-se com uma das religiões históricas, pretende ser a
origem e o fundamento de tudo. A visão da história que Jaspers deu
no livro

A origem e o fim da história, de 1949, é também substancialmente


uma teologia da história. A idade axial, que constitui o eixo da
história universal, é colocada por Jaspers entre o VIII e o 11
século antes de Cristo. Esta é a idade em que nasceram as grandes
religiões e filosofias do Oriente, Con-
243

fúcio e Lao-tsé, Upanhishad e Buda, Zaratustra e os grandes


profetas de Israel, Omero na Grécia e a idade clássica da filosofia,
além de Tucidides e Arquimedes. Nesta idade, o homem toma-se
pela primeira vez consciente do ser em geral, de si mesmo

e dos seus limites. A idade em que agora vivemos, que é a da ciência


e da técnica, é uma espécie de segundo início ida história da
humanidade. Talvez que, através do desenvolvimento de
organizações gigantescas, se vá ao encontro de uma nova idade
axial, que é o autêntico destino do homem, mas um destino longínquo
e não imaginável. Entretanto, o

fim imanente ou regulador da história, aquele para que a todo o


momento esta deve encaminhar-se ou no qual se deve inspirar, é a
unidade da humanidade, realizável através da comunicação ilimitada
das verdades historicamente diferentes, comunicações por sua vez
baseadas no diálogo e na competição amigável. Todavia, a história
não é para Jaspers o
juízo de Deus que justifica aquilo que nela acaba por prevalecer. O
naufrágio histórico de uma verdade não constitui uma prova contra
essa verdade, pois pode acontecer que ela se encontre ancorada não
na história mas na -eternidade; e ainda uma vez mais se retoma da
história à fé, a qual constitui o

único acesso à eternidade.

E assim, se Heidegger se tornou, na sua segunda fase, o profeta


mundano de uma nova "época do sem, Jaspers nas suas últimas
obras, tornou-se o profeta religioso de Deus e da sua revelação
vindoura.

21,14

§ 853. EXISTENCIALISMO E DESMITIFICAÇÃO. BULTMANN

Falou-se de existencialismo "religioso" ou "teológico" a propósito


dos pensadores franceses relacionados com a chamada "filosofia do
espírito", na qual se podem encontrar algumas das questões
dominantes do existencialismo. Mas a própria situação teórica
desta filosofia, que tem como tema único a consciência e como ú
nico instrumento de indagação a introspecção, constituindo
portanto uma

zona intermédia entre espiritualismo e existencialismo, leva-a a


compreender a história do âmbito desse mesmo espiritualismo
(§684). A utilização de uma autêntica forma de existencialismo
para uma

apologética encontra-se na chamada teologia da desmitificação de


Rudolf Bultmann. Nascido em 1884, Bultmann foi durante muitos
anos professor de teologia na Universidade de Marburg e escreveu
várias obras de crítica ao Novo Testamento. Os escritos que mais
directamente se relacionam com o problema da desmitificação são
os seguintes: Fé e

compreensão, ensaios, 3 vols. 1933, 1952, 1960; Revelação e


acontecimento salutar, 1941; O Evangelho segundo S. João, 1941,
História da salvação e História, 1948; Teologia do Novo
Testamento,
1948, 1953; O problema da desmitificação, 1954; História e
escatologia, 1958; O problema da desmitificação, ensaio, 1961.

A teologia de Barth é, como vimos, uma teoria da salvação que


utiliza alguns dos conceitos da filo-
245

sofia, existencial de Kierkegaard apesar de não pretender ser uma


análise da existência. Nestas condições, Barth retoma o tema
Kierkegaardiano da inserção da eternidade na existência temporal,
sem

que considere indispensável esclarecer primeiramente a natureza


desta existência. Bultmann, pelo contrário, considera indispensável
fazê-lo dado que, para a teologia, é necessária uma reinterpretação
da mensagem cristã a fim de a libertar da forma mítica de que se

reveste e de a reconduzir à realidade antropológica ou existencial


que constitui o seu núcleo. Não há dúvidas, na opinião de Bultmann,
de que a imagem do mundo dada pelo Novo Testamento tenha um

carácter mítico, por derivar do Apocalipse e do mito gnóstico; assim


como também não há dúvidas de que a profecia (kerygma) que nele
existe é verdadeira independentemente da cosmologia mítica. A
pregação cristã moderna não pode, assim, ao

mesmo tempo que pede aos homens que tenham fé, exigir deles que
reconheçam a verdade do velho mito cosmológico; e sendo isto
impossível, vê-se obrigada a desmitificar (entmythologisieren) a
profecia cristã (Kerygma und Mythos, 1, p. 16).

Esta desmitificação só poderá consistir, deste modo, no libertar a


mensagem de quaisquer representações cosmológicas ou
obj,ectivantes e no reinterpretá-la em termos de realidade
existencial. Ora no mito o homem é colocado perante a experiência
da sua incapacidade de dominar o mundo e de compreender a vida; e
é assim induzido a reconhecer que o mundo e a vida têm o seu
fundamento último numa força transcendente que está para além de

246

todas as forças que o homem pode enfrentar e, seja em que medida


for, dominar. O pensamento mítico objectiva esta força e
representa-a como uma força mundana, interpretando, por exemplo,
a transcendência como um grande afastamento no espaço; oferece
assim imagens e símbolos à poesia religiosa, à liturgia e ao culto.
Mas se se prescinde desta objectivação, resta-nos apenas um
diagnóstico da existência humana no mundo, isto é, do homem,
enquanto existindo historicamente nos seus cuidados, na angústia,
no momento da decisão entre o passado e o futuro, na alternativa
de se perder no

mundo anónimo do presente ou de alcançar uma

autenticidade pessoal abandonando a sua segurança e


encaminhando-se sem reservas para o futuro (Ib.,
1, p. 33). Dir-se-ia então que o existencialismo, e particularmente o
de Heidegger, se limita a exprimir conceptualmente aquilo que o
mito tentou comunicar de uma forma simbólica adaptada à cultura
do tempo em que surgiu. Com efeito, permite considerar a
existência como um modo de ser completamente diferente do das
outras coisas do mundo, que se realiza no tempo através de opções
ou de decisões responsáveis que lhe abrem o caminho para
a futuro, e entender a própria história como sendo
o domínio das possibilidades humanas e da compreensão de tais
possibilidades a partir do futuro. Finalmente, permite distinguir a
existência autêntica que se abre para o futuro e se assume a si
própria nesta abertura, da existência inautêntica que se afasta
inconscientemente do homem dirigindo-se para o seu passado. É
certo que a análise existencial que

247

esclarece estas estruturas não se apercebe da relação entre a


existência e Deus; no entanto, permite-nos alcançar essa relação.
"Se a revelação de Deus só pode ocorrer esporadicamente e sempre
no agora da existência (como acontecimento escatológico), e

se a análise existencial reintegra -o homem na sua temporalidade,


esta põe em relevo uma característica da existência que a fé - e
somente ela - interpreta no sentido de o homem estar numa relação
de dependência com Deus. Esta interpretação não é impossibilitada
por uma análise formal da existência, mas sim posta em relevo por
ela" (Ib., 11, p. 194). Na existência que se dirige verdadeiramente
para o

futuro torna-se então possível a ocorrência do acontecimento


salutar (Heilsgeschehen), isto é, a inserção do processo de salvação
na história. O elemento característico da fé cristã é a identificação
de um
acontecimento histórico -a figura de Cristo -com a intervenção
reveladora de Deus que chama o

homem para a fé. É -devido a esta identificação que o


acontecimento histórico se torna, paradoxalmente, Uni
acontecimento escatológico, isto é, um acontecimento através do
qual Deus põe fim ao mundo e à sua história. Mas um acontecimento
escatológico não pode pertencer ao passado, mas sim constituir-se
como possibilidade para o futuro; e é assim que efectivamente ele
nos surge na fé e na pregação cristã de todos os dias. Deste modo,
e através da fé, o acontecimento escatológico insere-se na
existência autenticamente aberta para o futuro e torna-se uma
possibilidade para o homem (Ib., 1, p. 38).

248

A teologia da desmitificação de Bultmann pode considerar-se


baseada em dois princípios fundamentais:

1) a historicidade própria da existência pertence ao acontecimento


escatológico no sentido de que este apenas pode ser considerado
como um acontecimento do passado por conter a possibilidade de
um acontecimento futuro;

2) para esta sua historicidade, o acontecimento escatológico é uma


possibilidade da existência autêntica enquanto existência aberta
para o futuro.

Qualquer destes princípios utiliza conceitos próprios do


existencialismo, mas o segundo deles não pode ser atribuído a
Heidegger. Para Heidegger, a existência autêntica projecta o seu
próprio passado como futuro e é caracterizado pelo amor fati (§
846). Para Bultmann, a existência inautêntica é a ligada ao passado,
ao facto, ao mundo, enquanto que a existência autêntica se abre ao
futuro, ao não-facto, ao não-mundo: isto é, ao fim do mundo e a
Deus. E, deste ponto de vista, a existência autêntica já não é, como
a inautêntica, a auto-projecção do homem no mundo, mas a auto-
projecção do homem no amor e na obediência a Deus. Mas esta
auto-projecção deixa de ser obra da liberdade humana. "0 homem
que compreende a

sua historicidade radical, isto é, que se compreende radicalmente a


si mesmo como futuro, deve saber que o seu próprio si mesmo lhe
pode apenas ser

oferecido como uma dádiva do futuro" (Geschichte und


Eschatologie, 1958, p. 179). No instante da fé, a decisão passa :do
homem para Deus.

249

§ 854. SARTRE: EU, EMOÇÃO, IMAGINAÇÃO

O existencialismo de Heidegger e de Jaspers é um fenómeno que


pertence ao período entre as

duas guerras. Nem a ontologia de Heidegger nem

a filosofia da fé de Jaspers, que aparecem nos escritos publicados


depois da segunda guerra mundial, podem ser reconduzidas ao
campo do existencialismo. Constituem posições especulativas que
pressupõem ou utilizam, numa certa medida, alguns dos motivos ou
das conclusões da análise existencial; mas pretendem situar-se para
além desta, orientando-se para um saber absoluto de que aquela
análise não pode constituir nem a origem nem o fundamento.
O fenómeno típico do período posterior à segunda guerra mundial é
o existencialismo de Sartre, o qual se orientou por sua vez, nos
últimos tempos, para a

exigência de um saber absoluto.

Jean-Paul Sartre, nascido em Paris a 21 de Junho de 1905, é um


polígrafo, genial que se encontra à vontade nos mais diversos
géneros literários: do ensaio psicológico ao literário, do romance ;(A
nálísea, 1938; A idade da razão, 1945, Sursis, 1945; A morte na
alma, 1949) ao teatro (As moscas, 1943; A porta fechada, 1945-, A
p... respeitosa, 1946; As mãos sujas, 1948; O diabo e o bom Deus,
1951; Nekras,<,,.gv, 1956; Os sequestrados de Altona, 1960) ao
escrito político (0 antisemitismo, 1946; Os comunistas e a paz,
1952) às grandes obras de carácter abertamente filosófico. A
nenhum destes escritos falta o conteúdo filosófico, tendo estes
muitas vezes

250

por tarefa apresentá-lo em personagens e acontecimentos nos quais


toma corpo e palavra. Mas as

principais obras às quais uma exposição da sua filosofia deve


referir-se, são as seguintes: A transcendência do Ego, esboço de
descrição fenomenológica,
1936; A imaginação, 1936; Esboço de uma teoria das emoções, 1939;
O imaginário. Psicologia fenomenológica da imaginação, 1940; O
ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica, 1943; O
existencialismo é um humanismo, 1946; Crítica da razão dialéctica
(precedida por Questões, de método), tomo
1, Teoria dos conjuntos práticos, 1960.
Sartre iniciou a sua actividade de escritor com investigações sobre
psicologia "fenomenológica" tendo por objecto o eu, a imaginação e
as emoções.
O ponto de partida, destas pesquisas era a noção de
intencionalidade da consciência, mas Sartre opõe-se a Husserl. pela
sua interpretação existencialista desta noção. O ensaio sobre A
transcendência do eu

começa pela afirmação de que "o eu não é uni habitante da


consciência"; que ele "não está na

consciência nem formalmente nem materialmente, mas sim fora, no


mundo: é um ente do mundo como o eu de um outro". E conclui,
opondo-se à tese de Husserl sobre a apodicticidade do eu, que o
meu eu

não é mais evidente para a consciência do que o

eu de um outro, e que o eu e o mundo são dois objectos de uma


consciência absoluta e impessoal que é simplesmente "a primeira
condição e a fonte absoluta da existência". Com esta posição Sartre
situava-se já fora do subjectivismo, ou idealismo transcendente de
Husserl. No ensaio sobre a teoria

251

das emoções a consciência é compreendida corno

"ser no mundo" e a emoção, como modo de ser

da consciência, é interpretada como unia modificação mágica do


inundo, -isto é, uma modificação destinada a combater os perigos e
os obstáculos do mundo sem instrumentos ou -utensílios, resultando
daí uma modificação maciça ou total do próprio mundo. A emoção
surge quando "o mundo dos utensílios desaparece de improviso e o
mundo trágico comparece no seu posto"-, ela, por isso, "não é um
acidente mas um modo de existência da consciência, uma das
modalidades em que compreende , (no sentido heideggerjano de
Verstehen) o seu ser no mundo".,Analogamente, a análise
fenomenológica da imaginação conduz Sartre a reconhecer as
seguintes condições que tornam possível a imaginação: "Para formar
imagens a consciência deve confrontar livremente todas as
realidades . particulares e esta liberdade deve poder definir-se
como um ser no

mundo que é simultaneamente formação e aniquilamento do mundo; a


situação concreta da consciência no mundo deve, em cada instante,
servir de motivação singular à construção do -irreal. Assim, o irreal
deve sempre ser construído sobre a destruição- do mundo que nega,
ficando bem assente, por outro lado, que o mundo não' se presta
apenas a uma intuição representativa e que esta destruição
necessita simplesmente de ser vivida como situação" (Eimaginaire,
trad. ital., págs. 273-74).

A consciência como ser no mundo, a consciência nas situações, o


mundo como mundo de utensílios, são os principais conceitos que
Sartre utiliza

252

nas suas análises fenomenológicas; mas são conceitos que, nesta


forma, deixam de pertencer à fenomenologia para pertencerem à
análise existencial, que é precisamente aquela que se relaciona com
o ser no

mundo. Sartre, depois das suas primeiras obras, deixou de ser um


fenomenólogo para ser um existencialista.

§ 855. SARTRE: O "EM SI" E O "POR SI"

A ontologia da consciência entendida como ser

no mundo é o fim nítido da principal obra de Sartre O ser e o nada


(1943). A consciência é em primeiro lugar consciência de
qualquer coisa e de qualquer coisa que não é consciência. Sartre
chama a este qualquer coisa ser em si. O ser em si só pode
descrever-se analiticamente como "o ser que é aquilo que é",
expressão que torna clara a sua opacidade, o seu carácter maciço e
estático devido ao qual não é nem possível nem necessário, é puro
positivismo, é simplesmente (L'être et le néant, p. 33).
Relativamente ao ser em si a consciência é o ser por si, isto é,
presente a si mesmo (Ib., p. 119). A presença a

si mesmo implica uma cisão, uma separação interior, no ser da


consciência. Uma crença, por exemplo, é como tal a consciência da
crença; mas, para a

atingir como crença, ocorre-nos sempre fixá-la enquanto tal,


separá-la da consciência a que se apresenta. Separá-la através de
quê? De nada. Nada existe que possa separar o sujeito de si mesmo.
A dis-
253

tância ideal, o lapso de tempo, a diferença psicológica implicam


certamente determinados elementos positivos; mas a sua função é
sempre negativa. "A fissura interior à consciência não é nada fora
daquilo que nega e só pode ter um ser quando não existe. Este
negativo, que é um na-da enquanto ser mas que constitui um poder
anulante, é o nada.
Em nenhum lugar o poderemos encontrar em toda a

sua pureza; é sempre necessário que lhe atribuamos uni ser


enquanto nada. Mas o nada que surge no coração da consciência não
é, mas sim foi" (Ib., p. 120). Condicionando a estrutura da
consciência, o nada condiciona a totalidade do ser, que o é apenas
para a consciência e na consciência. Sartre realça o

significado negativo dos, termos aparentemente positivos com os


quais Heidegger descreve ou caracteriza a existência que o Dasein
esteja "fora de si, rio mundo" que seja "um ser da distância", que
seja "cuidado", que seja "a sua própria possibilidade", etc., equivale
a dizer, segundo Sartre, que ele não é em si, que não está para si
mesmo numa

proximidade imediata e que ultrapassa o mundo na medida em que


se coloca a si mesmo como não existente em si e como não existente
no mundo (Ib., p. 34). Estas características referem-se todas ao
ser

por si, isto é, ao ser da consciência. Daqui deriva a

tese fundamental de Sartre: "o ser devido ao qual o nada surge no


mundo deve ser o seu próprio nada" (Ib., p. 59). A consciência é o
seu próprio nada na medida em que se determina perpetuamente a
não ser o em si. Ela cria-se a si mesma enquanto nega um seu
determinado ser -ou uma certa ma-
254

neira de ser. Em primeiro lugar, nega o ser em si;

e em segundo lugar nega ou anula o seu por si e


constitui-se precisamente neste anulamento e através da presença
nela daquilo que anula, a título de coisa anulada.,, O se enquanto
falha do ser em si

constitui o sentido da realidade huniana (L'être et le néant, p. 132).


O facto de a realidade humana ser anulamento, falta do ser, é
suficientemente demonstrado pelo desejo: este só pode ser
explicado precisamente como falta do ser que deseja, isto é, como

uma necessidade de se completar. Ao ser referida à consciência, a


realidade objectiva (o ser em si) é afectada por aquela falta e
anula-se a si mesma. Por outro lado, o ser em si está sempre
completo, sempre cheio. A um círculo incompleto, a um quarto de
lua, não falia verdadeiramente nada: são aquilo que são. Só a
consciência lhes atribui uma falta na medida em que espera ou
pretende o seu completamento, aquilo que não é. Todos os aspectos
da realidade humana são interpretados por Sartre de forma
análoga. O facto de a realidade humana ser constituída por
possíveis significa apenas que é constituída pela falta de qualquer
coisa que a completaria. "0 possível é aquilo a que falta o por si para
que constitua um si" (L'être et le néant, p. 147), isto é, é aquilo que
falta ao sujeito para que seja um objecto e que só existe, portanto,
a título de falta ou de deficiência. O mesmo acontece com o valor,
que o é enquanto não é; isto porque, mesmo quando é atribuído a um
objecto ou intuído em certos actos, está sempre para além deles e
constitui o limite

255

para que eles tendem. Como valor, o valor nunca e, visto estar
sempre para além daquilo que é; o
seu ser consiste em ser o fundamento do seu próprio nada, isto é, o
fundamento daqueles actos ou

situações que tendem para ele mas em que ele, como valor, não é
(Ib., págs. 136-38). O conhecimento, no qual o objecto (o em si) se
apresenta à consciência (por si), é do mesmo modo uma relação de
anulamento: o objecto só se pode apresentar à consciência como
sendo aquilo que não é consciência (Ib., p. 224). Ainda de forma
análoga, a

outra existência só o é na medida em que não é a

minha: esta negação é "a estrutura constitutiva do ser outro" (Ib.,


p. 285). Neste caso, a negação é recíproca. É não apenas necessário
que eu negue o outro em relação a mim mesmo, a fim de que o

outro exista, mas é ainda necessário que o outro

me negue relativamente a ele próprio, e isto simultaneamente à


minha negação (Ib., p. 362).

Mas com esta dupla negação a existência dos outros torna-se coisa,
ao mesmo título de todas as outras coisas do mundo: nega-se e
anula-se corno existência. O aparecimento da existência de outrem
torna-se coisa entre as coisas do mundo: nega-se e

anula-se como existência. Deste modo, o aparecimento da


existência de outrem completa, por assim dizer, o processo da
anulação que é a própria estrutura da consciência. A consciência não
é apenas o

ser que surge como anulação do em si que ele é e


como negação interna do em si que ela não é; é também a
petrificação do seu próprio em si sob o

256

olhar do outro. É aqui que se revela o significado profundo do mito


de Medusa (Ib., p. 502).

A filosofia de Sartre acaba por situar-se no

mesmo horizonte da de Heidegger: não tanto porque o processo de


que se serve para pôr a claro o nada da existência seja análogo ao
seguido por Heidegger na sua obra O que é a metafísica? mas
também, e sobretudo, porque o nada da existência, para ele como
para Heidegger, é aquilo a que nos confrontos da realidade ou de
facto Sartre chama o em si. A nulidade da consciência (que para
Sartre se identifica com a existência) consiste no facto de ela não
ser o seu objecto e não ser um objecto, e

de introduzir no próprio objecto a imperfeição ou a

deficiência que lhe é característica. As possibilidades que


constituem a vida vivida da consciência são

nada porque não são realidade, não são factos nem objectos; e o
mesmo para os valores.

Mas a analogia entre Heidegger e Sartre detém-se aqui. Perante a


realidade de facto -Sugerem duas atitudes simetricamente
opostas. Para Heidegger, a

existência como transcendência projectora é rejeitada na própria


realidade de facto que ela transcende e é aí mantida fixa e
impotente. Para Sartre, a existência destrói e anula a realidade de
facto e afirma-se sobro ela como poder absoluto. A filosofia de
Heidegger é a filosofia de uma necessidade absoluta que se torna
liberdade apenas como aceitação consciente da necessidade. A
filosofia de Sartre é uma filosofia da liberdade absoluta que
pretende dissolver e

anular toda a necessidade.

257

§ 856. SARTRE: A LIBERDADE COMO DESTINO

A liberdade, segundo Sartre, é a possibilidade permanente da


rotura ou anulação do inundo que é a própria estrutura da
existência. "Eu estou condenado, diz Sartre (L'être et le néant, p.
515), a

existir para sempre para além da minha essência, para além ;dos
móbiles e dos motivos do meu acto: eu estou condenado a ser livre.
Isto significa que

não se podem encontrar para a minha liberdade outros limites além


da própria liberdade; ou, se se

preferir, que não somos livres de deixar de ser livres". A liberdade


não é o arbítrio ou o capricho momentâneo do indivíduo: radica-se
na mais íntima estrutura da existência, é a própria existência. "Um
existente que, como consciência, está necessariamente separado de
todos os outros, já que estes se

encontram em relação com ele apenas na medida em que existem


para ele, um existente que decide do seu passado, sob forma de
tradição, à luz do seu futuro, em vez de deixá-lo pura e
simplesmente determinar o seu presente, um existente que
perspectiva algo distinto de si, isto é, um fim que não tem
existência e que ele projecta no outro lado do mundo, eis aquilo a
que chamamos um existente livre" (Ib., P. 530). É evidente que a
liberdade não se refere tanto aos actos e às volições particulares

como ao projecto fundamental em que se encontram compreendidos


e que constitui a possibilidade última da realidade humana, a sua
escolha originária. O projecto fundamental deixa som dúvida uma
certa

258

margem de contingência às volições e aos actos particulares, mas a


liberdade originária é a inerente à escolha do próprio projecto. E é
uma liberdade incondicionada. A modificação do projecto inicial é
em cada momento possível. "A angústia que, quando revelada,
manifesta à nossa consciência a nossa liberdade, testemunha a
modificabilidade perpétua do nosso projecto inicial" (Ib., p. 542).
Nós estamos perpetuamente ameaçados pela anulação da nossa
escolha actual, perpetuamente ameaçados de escolhermos ser e,
portanto, tornarmo-nos diferentes do que ;somos. "A nossa opção é
frágil pelo simples facto de ser absoluta: assentando sobre ela a
nossa liberdade colocamos simultaneamente a sua perpétua
possibilidade de tornar-se um aquém ultrapassado pelo além que eu
serei" (L'être et le néant, p. 543). Certamente, a liberdade do
projecto inicial não é a possibilidade de fugir ao mundo e anular o
próprio mundo. Se a liberdade significa fugir ao dado ou ao facto,
ela é o facto do fugir ao facto. A liberdade permanece no limite dos
factos, isto é, do mundo. Mas aqueles são indeterminados: a
liberdade concretIza-os com a sua escolha. Por isso o homem é
responsável pelo mundo e por si mesmo
enquanto maneira de ser. Tudo o que acontece no

mundo reporta-se à liberdade e à responsabilidade da escolha


originária; por isso, nada daquilo que acontece no mundo pode ser
dito inumano. "A situação mais atroz da guerra, a pior tortura, não

criam de facto um estado de coisas inumano. Não **Kste aí uma


situação inumana: somente pelo medo, pela fuga ou pela recorrência
a comportamentos

259

mágicos, eu decidirei sobre aquilo que é inumano; mas esta decisão é


humana e dela terei inteira responsabilidade" (Ib., p. 639). Sou eu
que decido do coeficiente de adversidade das coisas e até da sua
imprevisibilidade, decidindo de mim próprio. Não existem casos
acidentais: um acontecimento social que se me -depara subitamente
e que me arrasta não é exterior a mim; se sou mobilizado para uma

,guerra, esta será a minha guerra, a minha própria imagem, e eu


mereço-a: "Mereço-a em primeiro lugar porque poderia subtrair-me
a ela suicidando-me ou desertando; devemos ter sempre presentes
estas possibilidades últimas quando temos de enfrentar uma
situação. Se não tive nenhuma dessas duas atitudes, então eu terei
optado pela guerra: talvez que o tenha feito apenas por fraqueza
perante a opinião pública, dado que prefiro certos valores à recusa
de entrar na guerra. Mas de qualquer modo, trata-se sempre de
uma opção" (Ib., págs. 639-40).

Os actos, decisões e escolhas particulares repõem


sistematIcamente em questão a escolha originária, o
projecto fundamental, que por sua vez determina dentro de certos
limites as opções, vontades e actos particulares. Sartre pensa que a
estrutura ontológica do projecto fundamental deva ser atingida
através de uma psicanálise existencial, diferente da psicanálise de
Freud na medida em que a sua justificação última consiste em
reconhecer a existência não de uma forca instintiva que actua
mecanicamente, mas

sim de uma escolha livre. Para a psicanálise existencial, o projecto


do ser, a possibilidade, o valor,

260

são termos equivalentes que exprimem todo o facto fundamental de


o homem ser desejo de ser. Mas desejo de qual ser? Evidentemente
do ser em si já que o por si (o ser da consciência) é um puro nada
(Ib., p. 653). Mas como desejo do ser em si (isto é, do ser
objectivo, de facto) a consciência tende para o ideal de uma
consciência que seja, pela simples consciência de si mesma, o
fundamento do seu próprio ser em si. Ora este ideal é aquilo a que
se pode chamar Deus. "Pode-se dizer então que aquilo que torna
mais concebível o projecto fundamental da realidade humana é o
facto de que o homem é o ser que projecta ser Deus. Quaisquer que
sejam os mitos e os rituais da religião considerada, Deus é em
primeiro lugar 'sensível ao coração' do homem como sendo aquilo
que o anuncia e o define no seu projecto último e fundamental" (Ib.,
p. 653).

Ser homem significa tender para Deus; o homem é


fundamentalmente desejo de ser Deus. No entanto, o homem é um
Deus falhado. Tudo parece indicar que o em si do mundo e o por si
da consciência se apresentam num estado de desintegração
relativamente a uma síntese ideal que nunca teve lugar mas que é
sempre indicada e -sempre impossível.
O seu falhanço perpétuo explica simultaneamente a
indissolubilidade do em si e do por si e a sua

relativa independência. A passagem do por si para o

em si é de facto impossível; no entanto, é uma passagem para que


tende incessantemente a acção humana. "0 problema da acção
pressupõe a dilucidação da eficácia transcendente da consciência e
tenta alcançar a sua verdadeira relação com o ser" (Ib.,

261

p. 720). A ética apresenta-se assim como o complemento necessário


da ontologia. Sartre limita-se a

dizer que esta moral deverá prescindir do "espírito de seriedade",


isto é, da tendência para considerar as coisas já providas dos
respectivos valores e o

valor como um dado transcendente, independente da subjectividade


humana. Realizar o princípio de que só o homem é "o ser para quem
os valores existem" não é possível, segundo Sartre, a não ser que se
tenha em conta o facto de "todas as actividades humanas serem
equivalentes, dado que todas tendem a sacrificar o homem para
fazer surgir a sua

causa, e que todas estão votadas, em princípio, ao

insucesso. É a mesma coisa, em princípio, o embebedar-se sozinho


ou o conduzir os povos. Se uma

destas actividades é superior à outra, não o será devido à sua


tarefa específica, mas sim devido à consciência que possui da sua
tarefa ideal; e neste caso a imobilidade do bêbado solitário é
superior à vã agitação do condutor de povos" (Ib., págs.
721-22).

§ 857. SARTRE: A RAZÃO DIALÉCTICA

Em O existencialismo é um humanismo (1946), Sartre apresentava


estas teses de uma forma popular, atenuando ou não referindo os
seus caracteres negativos. O existencialismo é aí definido como a
doutrina para a qual "a existência precede a essência, no sentido de
que o homem, em primeiro lugar, existe,

262

isto é, encontra-se no mundo, e só depois se define naquilo que é e


quer ser. Deste ponto de vista, o

homem não terá portanto uma "natureza" determinante: ele é


aquele em que torna a partir do seu projecto fundamental e é
plenamente responsável pelo seu ser. É ainda responsável por todos
os outros homens na medida em que a sua opção é ainda a

opção de todos os outros e dos valores que devem penetrar no


mundo e tornar-se realidade. Deste ponto de vista, a angústia é
apenas "o sentimento da nossa completa e profunda
responsabilidade", não conduzindo portanto à inércia mas sim à
acção. Quanto ao "desespero", significa apenas "ter em conta aquilo
que depende da nossa vontade ou o conjunto de probabilidades que
tornam possível a nossa acção"; como tal, também não conduz à
inércia apesar de nos dissuadir de crer na realização infalível
daquilo em que estamos empenhados. Em conclusão, o
existencialismo é "uma doutrina optimista" porque afirma que o
destino do homem está nele próprio e que o homem só pode confiar
na sua acção e só pode viver através dela. Como vemos, já em 1946
Sartre insistia rios aspectos positivos do existencialismo, pondo
entre parêntesis os caracteres negativos ou paralisantes que
tinham sido expressos em O ser e o nada. De acordo com este
pequeno escrito, que contribuiu grandemente para a difusão das
ideias de Sartre, o existencialismo é definido como um pessimismo
teórico e um optimismo na

acção. O homem pode fazer-se, isto é, pode fazer de si aquilo que


quiser: não existem essências, valores- ou normas que predisponham
ou guiem o seu

263

fazer-se, não existindo também para ele nenhum limite, um não-


possível que delimite aprioristicamente as suas possibilidades. Essa
obra tentava essencialmente constituir o existencialismo como uma
teoria da acção e da história. Esta teoria foi dada por Sartre
alguns anos mais tarde, na Crítica da razão dialéctica (1960). Mas
se bem que conserve

o esquema geral do existencialismo e alguns dos seus conceitos, ela


é apresentada coimo uma reinterpretação do marxismo, que Sartre
entretanto defendia e ilustrava nos seus ensaios políticos (cfr.
especialmente os artigos Les comunistes et Ia paix, in "Les temps
modernes", 1952-54).

E com efeito, a fim de que o existencialismo sartriano se tornasse


capaz de constituir uma teoria da acção e da história, era
necessária uma revisão radical das suas posições fundamentais. As
teses deste existencialismo, expostas por O ser e o nada, podem
ser recapituladas deste modo: 1) A filosofia é uma psicanálise
existencial por ser análise do projecto fundamental em que consiste
a existência.
2) O projecto fundamental é fruto de uma escolha absolutamente
livre, isto é, não vinculada ou limitada por qualquer condição ideal ou
de facto. Esta liberdade é o destino do homem. 3) O projecto
fundamental é um projecto totalitário: não só define o ser de quem
o escolhe mas também o ser dos outros o da totalidade do mundo; é
por isso que atribui, a quem o escolhe, a responsabilidade de tudo o
que é ou acontece no mundo. 4) O projecto fundamental pode ser
alterado ou destruído em qualquer momento e, devido ao seu
carácter totalitário, está ine-
264

SARTRE

vitàvelmente destinado ao insucesso, dado que o

,,ornem não é Deus, isto é, não dispõe de um poder finito para o


conseguir realizar. 5) Todos os projectos fundamentais são
equivalentes porque não
existe nenhuma condição de facto ou de valor que possa de
qualquer modo orientar a escolha ou **serv]]' para a julgar.
Uma filosofia que defenda estes princípios básicos é óbviamente
uma filosofia contemplativa: nada dá ao homem para fazer,
tornando-o apenas consciente (como faz qualquer tipo de
psicanálise) das suas próprias estruturas constitutivas. Mas que o
homem seja consciente ou não de tais estruturas, é coisa que não
influi no seu destino, que continua a ser a liberdade absoluta de
escolha, isto é, a equivalência fundamental dos projectos do inundo
em que a opção se concretiza.

Na Crítica da razão dialéctica (1960), Sartre empreende uma


revisão destas teses para as adaptar às exigências de unia teoria
da acção. Em primeiro lugar modifica completamente a noção de
projecto. Em O ser e o nada, o projecto não tem, como se

disse, qualquer limitação: não parte de dados mas origina-os na


medida em que é a manifestação de uma

liberdade incondicionada. Na Crítica da razão dialéctica, o projecto


é a ultrapassagem de uma situação dada, que define os limites ou
condições de possibilidade desse mesmo projecto. Sartre afirma:
"Dizer de um homem aquilo que ele é significa dizer aquilo que ele
pode, e reciprocamente: as condições materiais da sua existência
circunscrevem o campo das suas possibilidades. Assim, o campo dos
possíveis é o fim em vista do qual o agente ultrapassa

265

a sua situação objectiva. E este campo, por sua vez,

depende estritamente da realidade social e histórica" (Critique de


Ia raison d;alectique, p. 64). Neste sentido, o projecto é "a unidade
dialéctica do subjectivo e do objectivo": tal projecto, "corno
ultrapassagem subjectiva de uma objectividade para outra,
obrigado às condições objectivas do ambiente, por um lado, e às
estruturas objectivas do campo dos possíveis por outro, representa
em si mesmo a unidade móvel da subjectividade e da objectividade,
isto é, das determinações fundamentais da actividade" (Ib., p. 64).
Com esta noção de projecto expressa em termos de
condicionamento, a liberdade absoluta do projecto fundamental de
que Sartre falava em O ser e o nada é radicalmente eliminada.
Tomam-se então possíveis outras determinações do projecto, a
saber: 1) O projecto tem um dado que é constituído pelas condições
materiais da nossa existência e da nossa própria infância (Ib., p.
68). 2) O projecto deve necessariamente atravessar "o campo das
possibilidades instrumentais" porque os caracteres particulares dos
instrumentos condicionam a objectivação, isto é, tanto a situação
de que se parte como aquela para que se

tende (Ib., p. 74). 3) O projecto define o ser do homem como opção


ou liberdade, mas é opção ou

liberdade apenas enquanto a obra, o acto ou a atitude em que


consiste não se reduzem aos factores que os condicionam e não
possam ser reduzidos a tais factores através de uma explicação
puramente mecânica (Critique, p. 95). Concebido deste modo, o
projecto pouco se parece com aquilo que Sartre definia, com o
mesmo nome, em O ser e o nada, apro-
266

ximando-se bastante mais da antropologia de Marx exposta nas


suas obras de juventude (§ 607). Todavia, e diferentemente desta
antropologia, o projecto de Sartre continua a ser (tal como o era
em
O sei, e o nada) privativo do homem singular: esgota-se no
movimento subjectividade-objectividade que constitui a existência
singular. Diz ainda respeito aos outros e ao mundo, isto é, abarca os
outros e o mundo no seu próprio domínio, mas enquanto projecto é
apenas a escolha do indivíduo singular e constitui a sua existência.
Para corrigir este solipsismo do projecto, Sartre recorre à noção
de razão dialéctica.

Sartre declara a propósito que aceita sem reservas o materialismo


histórico de Marx. A razão dialéctica deve ser concebida,
acrescenta, no interior da experiência directa e quotidiana e como
sendo dotada de uma universalidade e necessidade que estão
contidas em qualquer experiência e que simultaneamente a
ultrapassam. No interior desta experiência, o homem, por um lado,
sujeita-se à dialéctica como uma força inimiga e, por outro, aplica-a;
e se

a razão dialéctica deve ser a razão da história, esta contradição


deve ser dialecticamente vivida e é necessário dizer que o homem
se sujeita à dialéctica enquanto a aplica e aplica-a enquanto se
sujeita a

ela (Ib., págs. 130-31). Mas, situada no interior da experiência


vivida, a dialéctica é uma "ló-;ca viva da acção" e não pode ser
reduzida às leis formuladas por Engels. O carácter fundamental da
dialéctica, neste sentido, é o de ser uma totalização sempre em vias
de se efectuar. Já não é uma totalidade

267

como a de uma sinfonia ou a de um quadro: é antes o resíduo


prático-inerte da totalização, pelo que a análise da razão dialéctica,
que é portanto a

transparência que tal razão tem para si mesma, é a análise das


formas, dos modos, das vitórias parciais e dos objectivos que a
totalização concretiza. "A dialéctica, diz Sartre, é actividade
totalizadora; não tem nenhuma lei para além das regras produzidas
pela totalização em curso, e estas -dizem evidentemente respeito
às relações entre a unificação e

o unificado, isto é, entre os modos da presença eficaz do devir


totalizante nas partes totalizadas" (II)., págs. 139-40). As partes
totalizadas são os homens, os indivíduos, pelo que o processo da
totalização dialéctica se pode definir como a necessidade da
totalização enquanto é atingida e vivida pelos indivíduos na sua
própria espontaneidade prática. "Se a minha vida, ao desenvolver-
se, se torna história, ela deve apresentar-se, no fundo do seu
desenvolvimento livre, como necessitando do processo histórico
para reencontrar-se, ainda mais profundamente, como a liberdade
desta necessidade e como a necessidade da liberdade" (Ih., p. 157).
Em primeiro lugar, e

segundo Sartre, a necessidade toma corpo naquilo a que ele chama o


domínio prático-inerte, no qual o homem sofre a acção das coisas
que produz. "A necessidade, diz Sartre, não se manifesta nem na
acção do organismo isolado nem na sucessão dos factos físico-
químicos: o reino da necessidade é o domínio - real, mas ainda
abstracto da história no qual a materialidade inorgânica encerra a
multiplicidade humana e transforma os produtores no

268

seu produto. A necessidade, como limitação no seio da liberdade,


como evidência deslumbrante e momento da conversão da praxis em
actividade prático-inerte torna-se, depois de o homem se encontrar
na sociedade serial, a própria estrutura de todos os processos de
serialidade, isto é, a modalidade da sua ausência na presença e da
sua evidência vazia" (Ib., págs. 375-76). A necessidade deste campo
prático-inerte não é dialéctica mas "anti-dialéctica" por ser
constituída pelas "forças monstruosas do inorgânico e da
exterioridade" (Ib., p. 359). Relativamente a ela, o grupo é uma
"ressurreição brusca da liberdade" (Ib., p. 425). "Não que esta,
acrescenta Sartre, tenha deixado de ser a própria condição do acto
e a máscara que dissimula a alienação; mas, no

campo prático-inerte, ela tornou-se o modo como o homem alienado


deve viver perpetuamente no seu

cárcere e, finalmente, a única maneira que ele tem de descobrir a


necessidade das suas alienações e

das suas impotências" (Ib., p. 425).

Sartre insere neste ponto uma análise do grupo como totalidade


integrada no qual cada um vê no

outro o mesmo que ele próprio e na liberdade de outrem a sua


própria liberdade. A praxis individual constitui-se no grupo,
livremente, em praxis comum,

e isto não a partir de um contrato social mas sim do trabalho e da


luta (Ib., p. 443). "0 acto criador do grupo é o juramento pelo qual
nós somos os nossos próprios filhos, a nossa invenção comum"

(Ib., p. 453). Por outro lado, os comportamentos internos dos


indivíduos do grupo (a fraternIdade, o

amor, a amizade, assim como a cólera ou o ódio de

269

morte) extraiem o seu terrível poder do terror que o grupo inventa


para fazer face à intensidade das ameaças externas e que é ao
mesmo tempo utilizado no interior do grupo para a sua
recomposição (Ib., p. 455). A soberania no grupo é a relação de
reciprocidade ou de consoberania entre os indivíduos, cada um dos
quais é soberano. Ela não deriva de uma escolha, sendo antes o
resultado de um processo no qual a soberania do chefe se constitui
como quase soberania, isto é, soberania limitada pela reciprocidade
e baseada na própria interioridade daqueles sobre que se exerce
(Ib., p. 589).A alienação à soberania é uma condição para evitar uma
alienação às coisas. "Para evitar a recaída no campo prático-inerte,
cada um se torna objecto passivo ou

actualização inessencial para a liberdade do outro. Através da


soberania, o grupo aliena-se a um só homem para evitar alienar-se
ao conjunto material V e humano. Cada um experimenta, na
realidade, a

sua alienação como vida (como vida de um outro através da sua


própria vida) em vez de a experimentar como morte (como
reificação de todas as

suas relações)" (Critique, p. 603). Deste ponto de vista, a soberania


popular que seria encarnada pelo soberano é uma mistificação,
porque não existe uma

"soberania prolixa" (Ib., p. 609); e "a única manifestação possível


de uma actividade nas massas é o seu reagrupamento revolucionário
contra a inércia das instituições e contra a soberania que se
constrói sobre a sua importância" (Ib., p. 624, nota). A formação do
grupo é, noutros termos, considerada por Sartre da mesma forma
como Rousseau considerou

270

a formação do estado: como alienação total do indivíduo, através da


qual o próprio indivíduo adquire a sua liberdade. "0 grupo, afirma
Sartre, define-se e produz-se não apenas como instrumento mas
como

modo de existência; constitui-se por si mesmo-na

rigorosa determinação da sua tarefa transcendental como livre


ambiente das livres instituições humanas. A partir do juramento,
produz o homem como livre indivíduo comum, conferindo ao outro o
seu renascimento; assim, o grupo é simultaneamente o meio mais
eficaz para governar a materialidade circundante no âmbito da
raridade e o fim absoluto como simples liberdade que liberta os
homens da alteridade" (Ib., p. 639). Mas esta liberdade é agora "a

liberdade como necessidade" (Ib., p. 638).

As análises que acabámos de expor são consideradas por Sartre


como preparatórias para a compreensão da história como
totalização de todas as totalizações ou como "totalização inteligível
e sem

apelo" (Ib., p. 754). Mas então torna-se evidente que o sentido ou


"a verdade única" da história, para que aponta, é a necessidade
absoluta da totalidade histórica e a coincidência de tal necessidade
com a liberdade interior dos indivíduos humanos. É por isso que
Sartre dirige a tais indivíduos aquela prece de Cleanto (§ 95) que
eles tantas vezes foram convIdados a recitar: "Conduz-me, ó
JúpIter, -e tu, Destino, para onde quer que me haveis destinado e
servir-vos-ei sem hesitação; já que, mesmo que o não quisesse, vos
deveria seguir igualmente como um tolo".

,71

§ 858. MERLEAU-PONTY

O existencialismo da obra de Maurice Merleau-Ponty (1908-61), que


foi professor no Colégio de França e uma das maiores
personalidades do pós-guerra filosófico, é dirigido para um
resultado positivo, isto é, que pretende evitar a negação da
possibilidade da existência e da sua liberdade finita. Merleau-Ponty
escreveu duas obras fundamentais: A estrutura do comportamento
(1942) e A fenomenologia da percepção (1945), depois das quais
publicou as seguintes recolhas de ensaios filosóficos, literários e
políticos: Humanismo e terror, 1947; Senso e não senso, 1948; As
aventuras da dialéctica, 1955; Signos, 1960.

O tema fundamental para que se dirigiram as investigações de


Merleau-Ponty é o da relação entre o homem -e o mundo, entendido
como relação entre consciência e natureza. Na primeira das suas
obras Merleau-Ponty, através da análise dos resultados que as
investigações psicológicas experimentais têm conseguido obter nos
últimos decénios -e que permitem se,-u, eliminar a interpretação
causal da relação entre alma e corpo, consegue ver nesta relação
uma dualidade dialéctica de comportamentos. Uzer que a alma actua
sobre o corpo significa supor que o corpo seja uma

totalidade fechada e, por isso, invocar uma força externa


responsável pelo significado espiritual de a],-,uns dos seus
comportamentos. Dizer que o corpo actua sobre a alma significa
imaginar a alma como sendo uma força constantemente presente no
corpo, Podendo ser contrariada pela força mais potente do

272

corpo. Na realidade, estas expressões indicam apenas certos níveis


de comportamento. No primeiro caso, as funções corpóreas estão
integradas num

nível superior ao da vida: o corpo torna-se verdadeiramente corpo


humano. No segundo caso, o comportamento -desorganiza-se dando
origem a estruturas menos integradas. A pretendida acção
recíproca entre as duas supostas substâncias revela-se, na
realidade, como a alternativa entre dois níveis de comportamento,
isto é, entre dois tipos de comportamento dotados de significados
diferentes. A estrutura do comportamento completa-se
exactamente

com a distinção entre estrutura e significado. A estrutura de um


comportamento é visível tanto do exterior como do interior, pelo
que através dela a

outra pessoa me é tão acessível como o meu próprio eu. Mas como
posso enganar-me sobre o outro, se não conseguir decifrar o
sentido do seu comportamento, posso também enganar-me sobre
mim próprio e captar apenas o significado aparente do meu com.

portamento (La structure du comportement, trad. ital., p. 354).

A Fenomenologia da percepção inspira-se mais directamente na


fenomenologia de Husserl e corrige-a no sentido do existencialismo.
A consciência não é, para Merleau-Ponty, o olhar lançado sobre o
mundo por um espectador desinteressado, mas é sempre a

consciência de um eu "consagrado ao mundo" (Phénoménologie de la


perception, p. V). O ponto de partida da filosofia fenomenológica é
porém o cogito, mas sob a condição de entender este no sentido do
que "eu pertenço a mim mesmo enquanto pertenço

273

ao mundo" (Ib., P. 466). "A verdadeira reflexão, diz Merleau-Ponty,


dá-me a mim mesmo não como subjectividade ociosa e inacessível
mas identificado com a minha presença no mundo e perante os
outros, tal como eu agora a realizo: eu sou tudo aquilo que vejo, sou
um campo intersubjectivo, não independentemente do meu corpo e
da minha situação histórica mas, pelo contrário, tendo em conta
este corpo, esta situação e tudo o resto através deles" (Phénom., p.
515). Deste ponto de vista, o problema da percepção é o problema
da relação entre a consciência e o mundo; por isso, Merleau-Ponty
examina, partindo dele, todos os problemas clássicos da filosofia; a
sensação, o conhecimento das coisas, o

corpo, a comunicação com os outros, o espaço, o tempo, a liberdade.


O conceito central é, todavia, o de corpo, dado que este constitui a
inscrição da consciência no mundo. "0 corpo é aquilo que nos

permite alcançar o mundo, diz Merleau-Ponty; por vezes, ele limita-


se aos gestos necessários à conservação da vida e,
correlativamente, coloca à nossa volta o mundo biológico; outras
vezes, utilizando estes primeiros gestos e passando do seu sentido
próprio para um sentido figurado, manifesta através deles um
núcleo de significado novo: é o caso dos hábitos motores tais como
a dança. Outras ainda, o significado procurado não se pode alcançar
através dos meios naturais do corpo, e é então necessário que ele
construa um instrumento e crie à sua volta um mundo cultural" (Ib.,
p. 171). Este instrumento é a linguagem que, se é um instrumento
enquanto sistema particular de vocabulário e de sin-
274

taxe, enquanto palavra em geral é uma revelação do ser, ou melhor,


da nossa ligação com o ser (Ib., p. 229).

Deste ponto de vista, a percepção já não é um

facto isolado ou isolável, antes reenviando para o mundo em que se


insere o corpo que é a sua condição. "Toda a percepção de uma
coisa, de uma forma ou de uma grandeza como sendo real, toda a
constância perceptiva, reenvia às posições de um

mundo e de um sistema da experiência ao qual o


meu corpo e os fenómenos estão rigorosamente ligados" (Ib., p.
350). Quer o mundo quer as coisas são, por isso, abertos: reenviam
sempre para além das suas manifestações determinadas e
prometem sempre "qualquer coisa para vem (Ib., p. 384). Este
significado incompleto das coisas que se apresentam **nGmundo e
do próprio mundo é chamado por Merleau-Ponty de ambiguidade e
considerado, não já como uma imperfeição da consciência ou

da existência, mas como a sua definição. Portanto, o mundo não


pode ser concebido como uma soma de coisas nem o tempo como
uma soma de instantes, segundo o modelo cartesiano: as coisas e os
instantes podem articular-se juntamente e formar o mundo apenas
por intermédio daquele ser ambíguo que se chama subjectividade, e
isto porque só se podem apresentar juntos de um certo ponto de
vista e segundo uma dada intenção (Ib., págs. 383-84).

Na medida em que a consciência é sempre abertura ao mundo, não


existe para ela a alternativa solipsista. "0 fenómeno central que
constitui simultaneamente a base da minha subjectividade e da

275

minha transcendência para os outros consiste no facto de eu ser


dado a mim mesmo. Eu sou dado significa que me encontro já
situado e impregnado num mundo físico e social, eu sou dado a
mim mesmo significa que esta situação já não me é ocultada, já não
me surge como -uma necessidade estranha, e que eu já não estou
efectivamente encerrado nela tal como um objecto numa caixa"
(Ib., p. 413). Em polémica com Husserl (do qual conhecera a Krisis e
outros escritos antes de serem publicados), Merleau-Ponty aceita o
facto de o "transcendental" não ser a subjectividade mas sim a
ambiguidade originária da transcendência. "A partir do mundo
natural e do mundo social descobrimos o verdadeiro transcendental,
que não é o conjunto das operações constitutivas pelas quais o
mundo transparente, sem sombra e sem opacidade, surgiria

a um espectador imparcial, mas sim o caminho ambíguo em que


ocorre o Ursprung das transcendências que, por uma contradição
fundamental, me põe em comunicação com ele e, nesta base, torna
possível o conhecimento" (Ib., págs. 418-19).

Contrariamente à liberdade absoluta de Sartre, Merleau-Ponty


defende a liberdade finita ou condicionada do homem. As
considerações de probabilidade não são puras ficções, antes
pertencendo necessariamente a um ser que está situado no mundo e
que sente a ambiguidade dos acontecimentos desse mesmo mundo.
A alternativa racionalista segundo a qual o acto, do homem é uma
consequência do eu e é livre, ou então é uma consequência do mundo
e não é livre, é considerada como sem sentido a

276

partir das relações do homem com o mundo e com

o seu passado. "A nossa liberdade não destrói a nossa situação, mas
engrena-se nela: a nossa situação, enquanto a vive-mos, é aberta, o
que implica que ela faça apelo a modos de resolução privilegiados e
que seja em si mesma impotente para arranjar um" (Ib., p. 505). A
partir da situação em que me encontro, não posso inferir o que
serei ou o que farei; a consciência não é por isso o mero reflexo da
situação social, segundo o esquema explicativo do materialismo
histórico. A economia ou a sociedade, considerados como sistemas
de forças impessoais, não me qualificam nem como proletário nem

como burguês; mas a sociedade ou a economia, tal como se


relacionam comigo, tal como as vivo, obrigam-me a escolher -ser
proletário ou burguês (Ib., págs. 506 e segs.). Não se pode retirar à
escolha histórica o elemento de racionalidade, mas também não se
lhe pode retirar a audácia ou o risco de insucesso. É reconhecida
igualmente na história a contingência, sem a -qual não haveria
culpados em politica, e a racionalidade, sem a qual só haveria doidos
(Humanisme et terreur, p. 44). A história é dominada por uma
dialéctica cujo decurso não é inteiramente previsível e que pode
transformar as intenções do homem no seu contrário; mas, por
outro lado, em certos momentos, ela é indecisa nos seus factos e a
nossa intervenção ou abstenção pode conduzi-la numa ou noutra
direcção. Isto não significa que possamos fazer uma -qualquer
coisa, porque existem graus de verosimilhança que se não podem
descurar; mas significa que, quaisquer que sejam os

277

nossos actos, sujeitar-nos-emos a uni risco (Hum. el ter., p. 70). "0


mundo humano, afirma Merleau-Ponty, é um sistema aberto e
incompleto, e é a própria contingência fundamental que o ameaça de
discordância, que o subtrai à fatalidade da desordem e que nos
impede de deixar de confiar nele; isto com a única condição de nos
recordarmos de que os seus instrumentos são os homens e de que
se

mantêm e multiplicam as relações de, homem para homem (Ib., p.


206). Foi a partir desta base que Merleau-Ponty criticou a
dialéctica marxista, a qual de uma forma ou de outra prevê o fim da
história. Em geral, o marxismo perdeu o tipo de verdade que
atribuía a si mesmo. Marx tornou-se um "clássico" no sentido de que
contém verdades que vão além da letra dos enunciados que as
exprimem. E neste sentido as teses de Marx podem continuar
verdadeiras do mesmo modo que continuam as da geometria
euclidiana no seio de uma geometria mais geral, que contém outras
geometrias contraditórias com ela (Signes, págs. 16-17). Em
particular, a dialéctica mantém-se verdadeira na medida em que
afirma "que ninguém é verdadeiramente escravo ou

livre, que as liberdades se contrapõem e se exigem reciprocamente,


que a história é a história da luta entre essas liberdades, que isto
-se inscreve e é visível no seio das instituições e da cultura das
grandes acções históricas"; e que tudo isto pode ser

compreendido no âmbito de "uma sociedade verdadeira, homogénea,


última". Mas já não se pode admitir a pretensão de terminar a
dialéctica através de um final da história, de uma revolução perma-
278

nente ou de um regime que, sendo a contestação de si próprio, não


pode ser contestado de fora. (Les aventures de la dialectique, p.
276).

§ 859. EXISTENCIALISMO, MARXISMO, HEGELIANISMO

Como dissemos (§ 840), a posição fundamental do existencialis-mo


é anti-romântica e anti-idealista. Enquanto movimento cultural, o
existencialismo constitui a crise do optimismo romântico em todos
os seus aspectos, e sobretudo naquele que vê na estrutura do
homem e no movimento da história a presença e a acção de um
princípio que lhe garante o equilíbrio, a vitalidade c o progresso.
Mas simultaneamente o existencialismo chamou a atenção para
certos temas românticos que não estão, ou que estão de uma, forma
menos estrita, relacionados com o aspecto a que nos referimos; e
tornou possível uma

releitura de Hegel, principalmente da Fenomenologia do espírito,


que consiste essencialmente na investigação e na ilustração destes
temas, independentemente de qualquer preocupação de crítica
histórica. Assim numa Introdução à leitura de Hegel (1947),
Alexandre Kojève interpretava de forma existencialista as figuras
da Fenomenologia hegeliana, partindo do pressuposto de que o
Absoluto de que fala Hegel não é senão o homem, ou melhor, o
homem no mundo. Hegel, afirma Kojève, está de acordo com o
cristianismo quando diz que o absoluto ou a totalidade daquilo que é,
é não Identidade, Ser-dado, Subs-
279

tância ou Natureza, mas sim Espírito: Ser-revelado pela.'palavra ou


pela razão discursiva. Mas enquanto para o crIstão este Espírito
absoluto é um Deus transcendente, para Hegel é o homem no mundo
(A dialéctica e a ideia da morte em Hegel, trad. parcial da obra
citada, p. 201). Deste ponto de vista, o carácter dialéctico pertence
ao homem na medida em que este nega o dado ou se nega a si
mesmo como dado, não se deixa dominar pelo passado ou pela
recordação e vive no futuro ou no projecto (M., p. 95); e a morte é
"a finitude radical do ser e da realidade", isto é, do próprio homem
que, nesta finitude, é ainda historicidade (Ib., p. 121).

O ponto de vista de Kojève é em certa medida o inverso do de Jean


Hyppolite, segundo o qual o

sentido da especulação hegeliana não é o de reduzir o homem ao


absoluto mas antes o de mostrar no homem a presença e a acção do
absoluto. Na filosofia de Hegel "o homem não se conquista a si
mesmo enquanto homem, mas torna-se a morada do universal, do
Logos do ser e torna-se capaz da Verdade. Nesta abertura, que
permite o esclarecimento daquilo que existe na natureza e na
própria história, o ser é compreendido como constituindo esta
mesma generalização eterna de si próprio; é esta a lógica no sentido
de Hegel, o saber absoluto.
O homem existe então como o ser-aqui natural em

que se manifesta a consciência de si, universal, do ser. Ele é o


vestígio desta consciência de si, mas é um vestígio indispensável
sem o qual essa consciência não existiria" (Logique et Existence,
1953, págs.
244-45). Neste mesmo conceito hegeliano da histó-
280

ria Hyppolite viu uma conclusão existencialista: "0 homem esforça-


se por vencer ou assumir as determinações; nega-as, tal como a
morte nega um determinado ser vivo, mas conserva-as ainda com um
sentido novo. Assim, a existência humana gera uma história, a sua
história, cujos momentos parciais são sempre negados mas
simultaneamente retomados para que se possam superar" (Études.
sur Marx et Hegel, 1955, trad. ital., p. 38). O existencialismo, por
outro lado, centra-se precisamente no problema que é fundamental
na filosofia de Hegel, isto é, o da relação entre a verdade e o ser:
como é que uma verdade pode ser obra dos homens, aplicada ao

próprio coração da existência, através da sua mediação, e


simultaneamente superar essa mesma existência (Ib., págs. 203-4).

Estas tentativas de interpretação hegelianizante do existencialismo


ífectuam-se através do confronto e da redução recíproca das
respectivas teses, sem ter em conta os processos através dos quais
elas foram estabelecidas e muitas vezes sem sequer considerar a
diversidade de contextos. No entanto, podemos considerar como
uma referência mais legítima do existencialismo ao hegelianismo a
que se encontra em autores que, como Sartre e Merleau-Ponty,
utilizam o conceito de dialéctica num sentido genericamente
hegeliano. Este conceito, com todo o seu carácter equívoco,
constitui hoje o núcleo da discussão entre as duas correntes que de
qualquer forma o utilizam: o existencialismo e o marxismo. E é ainda
o único conceito que estas correntes têm em comum com o
hegeliaffismo.

281

No que diz respeito ao marxismo, as suas manifestações que


assumem um significado filosófico ou seja, quando se diferenciam
daquela escolástica de partido (§ 781) que foi até há alguns anos o
instrumento ideológico dos partidos comunistas - tiram a sua
inspiração de um considerável retorno ao hegelianismo e ao seu
conceito de dialéctica. Os escritos que António Gramsci (1891-
1937) compôs entre
1929 e 1935 constituem precisamente uma tentativa de retorno ao
hegelianismo através da mediação de Croce. Grarrisci defendia
nestas obras a função e o

significado da dialéctica que, segundo dizia, "só podem ser


concebidos em toda a sua fundamentalidade se a filosofia da praxis
for concebida como unia filosofia integral que inicia uma nova fase
na história e no desenvolvimento mundial do pensamento enquanto
supera (e ao superar inclui em si novos elementos vitais) tanto o
idealismo como o materialismo, expressões tradicionais das velhas
sociedades" (0 materialismo histórico e a filosofia de Benedette
Croce, 1948, p. 132). Grarrisci considera que a "filosofia da praxis"
é superior às outras ideologias, "inorgânicas porque contraditórias",
na medida em que "não tenta resolver pacificamente as

contradições existentes na história e na sociedade, sendo antes a


própria teoria de tais contradições"; e

neste sentido não é o instrumento de governo dos grupos


dominantes sobre as classes dominadas mas

sim "a expressão destas classes dominadas que pretendem educar-


se a si mesmas na arte de governar" Ub., p. 237). Mas Grainsci
duvida de que Croce tenha efectivamente conseguido "repor o
homem

282

sobre as suas pernas", isto é, fornecendo uma dialéctica da


realidade histórica. "Croce afirma-se dialéctico (mas introduz na
dialéctica uma dialéctica dos instintos, diferente da dos opostos,
que até agora não conseguiu demonstrar que seja dialéctica ou

outra coisa qualquer) e o ponto que é necessário esclarecer é este:


será que ele vê no devir o próprio devir ou o seu conceito?" (Ib.,
págs. 215-16).

Mas a manifestação mais original do retorno do marxismo a Hegel


encontra-se na obra de Gyõrgy Lukács (nascido em Budapeste em
1885), intitulada História e consciência de classe (1923). A tese
fundamental desta obra é a expressa no título; o sujeito da
história, o princípio ou a força que faz a história, é a consciência de
classe. A consciência de classe age primeiro de uma forma obscura
e pouco aprofundada até que determina de uma forma clara os
acontecimentos da história quando, na sociedade capitalista, o
proletariado toma consciência de si como classe e assume a tarefa
de transformar a sociedade capitalista numa sociedade sem classes.
A consciência de classe não se identifica propriamente nem com um
partido nem com um grupo ou uma comunidade de indivíduos, por ser
uma entidade supra-individual, infinita e absoluta, exactamente
como a Ideia ou o Espírito do mundo de que falava Hegel. Segundo
Lukács, só o proletariado tem uma consciência de
classe, enquanto que a burguesia não a pode ter ou

tem-na "falsa". Com efeito, a burguesia pode tornar-se consciente


da contradição irresolúvel da sociedade capitalista (que é
constituída precisamente pela luta de classes) mas nada pode fazer
para elimi-
283

nar a contradição e atingir a sociedade sem classes que constituiria


a sua própria eliminação. Assim, a

burguesia vê-se obrigada a negar a contradição, a

camuflá-la, a mistificá-la com ideologias oportunistas e a sua


consciência de classe, se lhe podemos chamar assim, é abstracta na
medida em que se baseia numa cisão entre teoria e prática. Pelo
contrário, "a consciência que o proletariado tem da realidade social,
da sua própria posição de classe, e a vocação histórica que daí lhe
nasce-o método da concepção materialista da história-são
produzidos no processo de evolução histórica cuja realidade é
conhecida adequadamente pelo materialismo histórico, e isto pela
primeira vez na história" (Geschichte und Klassenbeiviísstsein,
trad. franc., p. 42). Portanto, se com o

nascimento do proletariado se determinou a possibilidade formal de


uma compreensão total da história que é ao mesmo tempo o
primeiro passo para a resolução dos seus conflitos, com a evolução
do proletariado esta possibilidade tornou-se uma possibilidade real
no sentido de que conduziu ao conhecimento da realidade do facto
de que a classe operária não tem que "realizar ideais mas sim
libertar os elementos de uma sociedade nova" (Ib., págs.
42-43). Neste sentido, Lukács afirma que "a teoria objectiva da
consciência de classe é a teoria da sua possibilidade objectiva" (Ib.,
p. 105); mas isto significa que a realização da verdadeira
consciência de classe do proletariado é a supressão do proletariado.
"0 proletariado só cumpre a sua tarefa suprimindo-se, levando até
ao fim a sua luta de classe e instaurando uma sociedade sem
classes" (M., p.

284

106). É óbvio que este autor, negando que a burguesia tenha uma
consciência de classe, nega igualmente que ela possa determinar o
curso da história, cujo único sujeito é a consciência de classe; e,
portanto, coloca o proletariado, ou quem o representa, como sujeito
da história. Mas é claro que se a realização total da consciência de
classe é o fim do proletariado, e portanto da própria consciência de
classe, ela é também o fim da história. E se é assim, o proletariado
fica na mesma situação da burguesia: não pode ter uma consciência
de classe porque a

realização desta consciência anulá-lo-ia como proletariado, anulando


o motor da história. Se bem que Lukács, após a condenação do seu
livro por parte do comunismo oficial, tenha abandonado esta tese, o
retorno a Hegel manteve-se constante nas suas interpretações do
marxismo. Na obra O jovem Hegel

e os problemas da sociedade capitalista, escrito nos anos 30 e


publicado em 1948, Lukács, combatendo de um modo bem
fundamentado a interpretação do jovem Hegel como sendo um
"teólogo e místico" e mostrando a continuidade do pensamento de
Hegel, sublinha a importância decisiva da sua obra. "A sua forma de
dialéctica, afirma, é um estádio decisivo na história universal da
filosofia: é a forma superior da dialéctica idealista, e com isto da
filosofia burguesa em geral, o anel intermédio ao qual se pode
reenviar directamente a formação do materialismo dialéctico" (Der
junge Hegel, trad. ital., p. 778).

Na realidade, o interesse que o marxismo, como ideologia política


dominante, tem pela dialéctica deriva do facto de ela ser
considerada- como o ins-
285

trumento da previsão infalível do advento de uma

sociedade sem classes, formada a partir das contradições da


sociedade capitalista. Isto acontece porque ela apresenta as
seguintes características: 1) é objectiva, isto é, constitui não um
simples instrumento de interpretação mas sim a própria estrutura
da realidade, mesmo da realidade natural; 2) inclui como exigência
constitutiva própria a necessidade da síntese, isto é, da superação
da contradição; 3) está, por consequência, relacionada como a
modalidade da necessidade. Ora esta concepção é contraditória
com

a de Merleau-Ponty, segundo o qual ela exprime simplesmente a


exigência de unia conexão problemática entre os acontecimentos da
história e entre estes acontecimentos e o homem. "Só pode existir
história, escreveu, para um sujeito que seja histórico; uma história
universal já acabada e contemplada do exterior não tem sentido,
assim como não têm sentido tanto a referência a este balanço
definitivo como a hipótese de uma necessidade rigorosa que
revestiria as nossas decisões. A 'única decisão possível' só pode
significar uma coisa: a decisão que, num campo de acção aberto para
o futuro e com a incerteza que isto implica, orienta provavelmente
as coisas no sentido por nós pretendido e consentido por elas" (Les
aventures de Ia dialectique, p. 180, nota). Por outro lado, Sartre,
após a Crítica -da razão dialéctica, está em posição de aceitar as
três características da dialéctica como instrumento ideológico
acima citadas. A única reserva parcial que põe diz respeito à
primeira dessas características e precisamente à possibilidade de
uma dialéctica da na-
286

tureza. No entanto, reconhece o carácter objectivo da dialéctica;


mas uma dialéctica da natureza parece contrapor-se à exigência de
interiorização da dialéctica no homem e na sua praxis. A
possibilidade de uma dialéctica da natureza foi com efeito o único
ponto de discordância que houve numa "controvérsia sobre a
dialéctica" entre Sartre e três interlocutores marxistas (Marxisme
et existencialisme,
1962). Mas uma necessidade interiorizada só se torna "liberdade"
no sentido da afirmação de Espinosa de que mesmo uma pedra se
sentiria livre se estivesse consciente de cair; e é de duvidar que as
complexas e tormentosas análises com que Sartre pretendeu
esclarecer a "razão dialéctica" tenham qualquer superioridade
conceptual em relação às inúmeras ilustrações que o conceito da
dialéctica como necessidade teve dentro e fora do marxismo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 839. L. STEFANINI, ii momento dezi, educazione. Giudizio


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§ 840. Sobre Dostoicwsky: L. CHESTOV, La phil, de Ia tragédie.


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Sobre Kafka: M. BROD, Franz Kafka, Nova Yorque, 1946;


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Sobre a literatura posterior à segunda guerra mundial: FI. E.
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§ 841. Sobre as relações entre existencialismo e fenomenologia:


Husserl et Ia pensée moderne, La Haye, 1959; Edmund Husserl
1859-1959, La Haye,
1959; P. CHIODI, in "Rivista di filosofia", 1961, págs.
192-211; Id., Esistenzialismo e fenomenologia, Milão,
1963.

288

§ 842. De BART11, L'Epistola ai Romani foi traduzida por G.


MIEGGE, Milão, 1962.

Sobre Barth: G. MIEGGE, in "La riforma letteraria", 1938, págs.


217-39; Id, in "Studi filosofich>,
1949; 1d., in "Protestantesimo", 1953, págs. 88-94; L. PAREYSON,
Studi sull'esistenzialismo, Florença, 1943; J. I-IAmi,:P,, K. B., Paris,
1949.

§ 843. Trad. ital. de Heidegger: Che cos'è Ia metafísica?, trad.


CARTANI, in Il mito der realismo, Florença 1936; trad. PAci, Milão,
1942; Hõlderlin e

Vessenza della poesia, trad. ANTONI, in "Studi germanici", 1937;


Dell'essenza della veritó, trad. CARLINI, Milão, 1952; Dell'essenza
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CHIODI, Milão, 1953.

Sobre Heidegger: J. WAIM, Études kierkegaardiennes, Paris, 1938;


A. DE WAELHENS, La philosophie de M. H., Lovaina, 1942; P.
CHIODI, L'esistenzialismo di H., Turim, 1917, 2.1 edição, 1955; W.
BIEMEL, Le concept du monde chez H,, Lovaina, 1950.

Para bibliografia: R. H. BROWN, Existenfialísm. A Bibliography in


"Modern Schooimann", 1953-54, págs. 19-33; e especialmente a
obra citada de Chiodi.

§ 847. Sobre a última fase: P. CHIODI, L'ultimo H., Turim, 1952;


2.1 edição, 1960; J. WAIM, Vers Ia fin de Vontologie, Paris, 1956;
DE WAELHENS, PAUMEN, e outros, in "Revue internationale de
philosop@,hie",
1960, 2.

§ 848. Trad. ital. de Jaspers: Ragione e esistenza; Milão, 1942;


Filosofia dellIesistenza, Milão, 1940; La mia filosofia (Antologia),
Turini, 1946; Psicologia delle visioni del mondo, Roma, 1950;
Introduzione alla filosofia, Milão, 1959; La Germania tra libertà e
riunificazione, Milão, 1961.

Lista completa das obras de Jaspers em K. J., Werk und Wirkung


(por ocasião dos seus oitenta anos), Munique 1963, págs. 175-211.

Sobre Jaspers: L. PAREYSON: La filosofia dell'esis-


289

tenza e Carlo Jaspers, Nápoles, 1940; J. HERSCH, L'illusione della


filosofia, trad. ital., Turim, 1942; M. DUFRENNE e P. RICOEUR, K.
Jaspers et Ia phil. de Ilexistence, Paris, 1947; P. RiCOEUR, Gabriel
Marcel et Karl Jaspers, Paris, 1947; J. WAHL, La pensée de
Ilexistence, Paris, 1951; A. LICHTIGFELD, J.'8 Metaphysics,
Londres, 1954.

§ 852. Sobre a segunda fase do pensamento de Jaspers: L.


PAREYSON, Esistenza e persona, 1962, págs.
47-89.

§ 853. De Bultmann, Storia ed escatologia, trad. ital., Milão, 1962.

Sobre o problema da desmitificação: Kerygma und Mythos, recolha


de ensaios ao cuidado de H. W. BARTSCH, 5 vols., 1948-55; Il
problema della demitizzazione, recolha de, ensaios, "Archivio -d@i
filosofia", 1961, 1.

Sobre Bultmann: G. MIEGGE, L'Evangelo e il mito nel pensiero di R.


B., Milão, 1956; R. "-klARLÉ, R. et Pinterprétation du Nouveau
Testament, Paris, 1956; F. TilEUNIS, Offenbarung und Glaube bei
R. B., Hamburgo, 1960; F. BIANCO, Distruzione e riconquista del
mito, Milão, 1962. A bibliografla pode-se encontrar nestas últimas
obras.

§ 854. Traduções italJanas de Sartre: Immagi'né e cosc4enza


(L'imagiwire), Turim, 1948; L'essere e il nulla, Milão, 1958;
L'immaginazione. Idee per una

teoria delle emozioni, Milão, 1962; L'esistenzíalismo é un umanismo,


Milão, 1963.

Sobre Sartre: F. JEANSON, Le p@,oblè7ne morale et Ia pensée de


S., Paris, 1947; G. VARET, L'ontologie de S., Paris, 1948; V.
FATONE, El existencialismo y Ia libertad creadora, una critica al
existencialismo de J-P. S., Buenos, Aires, 1948; P. DEMPSEY, The
Psychology of S., Oxford, 1950; M. NATHANSON, A Critique of
J.-P. 8.'s Ontology, LincoIn, Nebrasca, 1951; H. H. HOLZ, J.-P. S.,
Meisenheim am Glan, 1951; P. TnÉVÉNAZ, on "Revile de Théologie
et de Philosophie",

290
1952; A. STERN, S.: His Philosophy and Psychoanalysis, Nova
Yorque, 1953; W. DESAN, The Tragic Fínale: an Essay on the
Philosophy of J-P. S., Cambridge, Mas., 1954; R. J. CHAMPIGNY,
StageS on

S.'s Way 1938-52, Bloomington, 1959; R. M. ALBÉRÉS, J.-P. S.,


Paris, 1960.

§ 857. A. SABETTI, in "Società", 1959; F. FERGNANI, in "II


pensiero critico", 1959, págs. 46-79; A. PATRI, in "Preuves", 1960,
págs. 63-69.

§ 858. De Merleau-Ponty: Elogio della filosofia, trad. ital., Turim,


1957; Senso e non-senso, trad. ital., Milão, 1962; La strutura del
comportamento, trad. ital., Milão, 1963.

Sobre Merleau-Ponty: F. ALQUIÉ, Une philosophie de Vambiguité,


Paris, 1947; A. DE WAELHENS, Une philos4ophie de Vambiguité,
Lovaina, 1951; R. BAYER, M. P.Is Existentialism, Buffalo, 1951; C. A,
VIANO, in "Rivista, di filosofia", 1953, págs. 39-60.

§ 859. Sobre as controvérsias referidas neste parágra£o: P.


CHIODI, Esistenzialismo e marxismo (contribuição para um debate
sobre a dialéctica), in "Rivista di filosofia", 1963, pâgs. 164-90.

291

XVI

A MAIS RECENTE EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

§ 860. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: TENDÊNCIAS GERAIS


A mais recente evolução do pensamento filosófico pode ser
reportada a ttendências já presentes no quadro da filosofia
contemporânea apresentado nas páginas que antecedem. Essas
tendências, porém, ampliaram-se e reforçaram-se, por um lado em
virtude do influxo de métodos e resultados que se

firmaram no campo das disciplinas científicas e das investigações


interdisciplinares e por outro, com o objectivo de irem ao encontro
de exigências e problemas da sociedade contemporânea.

Nas linhas de força das tendências identificáveis subsiste o


-conflito entre aquelas duas posições que já nos decénios
anteriores se afrontaram, às vezes no âmbito da mesma mensagem
filosófica. Tais posições !podem ser classificadas respectivamente a
partir

293

das categorias modais de que explícita ou implicitamente, se


servem, ou seja: 1) -a categoria da possibilidade, a qual permite
reconhecer em todos os domínios da realidade natural e humana o
papel do acaso e fala apenas de ordens plúrimas, relativas e
variáveis, de esquemas operativos e de modelos, planos ou projectos
nos quais as opções do homem se possam inserir com alguma
probabilidade de êxito;
2)-a categoria da necessidade que exclui o acaso, reconhece a
necessidade da ordem ou das ordens que se sucedem no movimento
do universo e consente apenas que se fale em nome ou por conta da
Totalidade absoluta, da Razão, do Ser, do Mundo, reduzindo a um
grau mínimo ou a zero a possibilidade de interferência do homem
em qualquer sector da realidade.
A primeira posição, que encontrou a sua expressão filosófica no
pragmatismo e nalgumas das formas do existencialismo e do neo-
empirismo, domina agora todas as ciências contemporâneas e tornou
possível a formação de doutrinas metodológicas interdisciplinares
como a teoria da informação e o estruturalismo; tende, além disso,
a penetrar no domínio da filosofia religiosa com. certos aspectos da
"nova teodiceia" e no domínio do marxismo clássico com o

"neo-humanismo". A segunda posição admite, de uma maneira ou


doutra, o determinismo do Todo (como quer que seja concebido)
sobre a parte, especialmente sobre aquela parte que é constituída
pelo homem, e fala em termos de totalidade e absoluto.

294

§ 861. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A TEORIA DA INFORMAÇÃO

A teoria da informação, nascida no campo da engenharia das


comunicações, é hoje utilizada, não só na construção de máquinas de
calcular mas também no domínio da biologia, da psicologia, da
antropologia, da linguística e da estética. Está estreitamente ligada
à teoria das probabilidades que predominou na mecânica quantística
(§ 792) da física e

que alcançou para esta ciência os maiores êxitos teóricos e


tecnológicos.

A teoria da informação surgiu de um teorema

proposto por C. E. Shannon num artigo datado de


1948 (e mais tarde incluído na obra de Sharmon e Weaver, The
Alathematical Theory of Cominunication, 1949), o quail, a propósito
das comunicações telegráficas e telefónicas, observava que uma
mensagem enviada através de -um qualquer canal sofre, no

decurso da transmissão, várias deformações, por via das quais, à


chegada, parte das informações que continha, se apresenta perdida.
Nesse mesmo ano

Norbort Wiener (1894-1964) introduzia numa sua

obra o termo cibernética (ou seja, mais exactamente, a arte de


pilotar) para designar o estudo das mensagens, especialmente
daquelas que **pMotara (quer dizer, que comandam ou controlam)
uma operação qualquer nas máquinas, nos animais ou no homem A
introdução de considerações probabilísticas neste campo fez-se
pelo recurso à analogia com o tratamento probabilístico, do segundo
princípio da termodinâmica e especialmente :através do conceito de
entropia que é a função matemática que exprime a

295

degradação de energia que se verifica inevitavelmente em todas as


transformações do trabalho mecânico em calor, ao passo que a
transformação inversa (do **cador em trabalho mecânico) nunca é
completa e só uma parte do calor pode ser retransformada em
energia utilizável. Shannon, Wiener e

Brillouin compararam as perdas de informação ocorridas na


transmissão de mensagens, em virtude da interferência de
condições casuais e imprevisíveis, à degradação de energia exposta
pelo segundo princípio da termodinâmica e por conseguinte
definiram a quantidade de informação efectivamente transmitida,
como entropia negativa; na transmissão de mensagens como na
transformação de energia, a entropia negativa decresce
continuamente, uma vez que a positiva (perdas de informação ou
degradação de energia) aumenta também continuamente.

Considerada nestes termos, a informação torna-se um modelo do


qual são excluídos todos os elementos humanos e se pode portanto
aplicar aos campos mais diversos do sabeÊ, O tratamento
matemático da quantidade de informação torna-se uma questão de
cálculo de probabilidades que tom sido objecto de vários estudos
dos especialistas. Toma-se vulgarmente como base do cálculo uma
situação que comporta inicialmente um número determinado de
casos distintos, igualmente prováveis "a priori"; mede-se a
informação pela limitação que ela própria determina no número dos
casos possíveis.

Para suprir as perdas de informação que se verificam na


transmissão de mensagens podem juntar-se (como já Shannon
sustentava) à mensagem símbolos

296

ditos redundantes que prevêem e corrigem os erros @Z'

d,,- transmissão antes que venham a introduzir-se. Deste modo o


funcionamento imperfeito da transmissão pode ser previsto e, em
virtude desta previsão, corrigido por um processo que se chama
retroacção (feedback).

O significado filosófico destas considerações (a que os


matemáticos deram diversas formas em complexos sistemas
simbólicos) é muito importante. Em primeiro lugar admite-se em
princípio a interferência do acaso na transmissão de mensagens,
quer dizer, exclui-se a hipótese de neste campo -que como veremos
se pode estender aos mais diversos aspectos da realidade-se
reconhecer a existência de uma ordem necessária. Em segundo
lugar, exclui-se a possibilidade de -um saber absoluto, ou seja, de
uma informação infinita. Uma informação infinita é, como escreveu
Brililouin (Ciência e teoria da

informação, 1959), impensável e impossível. Tudo o

que se pode saber através de um qualquer processo cognoscitivo,


por exemplo, efectuando uma certa

experiência, é uma certa medida provável da quantidade de


informações alcançável por meio dela. Para se alcançar esta medida
é necessário saber-se qual era o campo de incerteza relativamente
à quantidade a medir antes da experiência e qual é o erro resíduo, a
incerteza que persiste após a realização da medida. A teoria da
informação baseia-se portanto na situação, considerada típica ou
fundamental, na qual se

misturam a desordem devida ao acaso e uma certa ordem ou


regularidade. Uma sucessão casual de símbolos não contém qualquer
informação; esta deve

297

constituir sempre a medida ida regularidade de ui-ii

modelo e especialmente dos tipos de -modelos conhecidos como


séries cronológicas cujos componentes se

desenvolvem no tempo. Afirma-se que ia regUlaridade é um facto


insólito e que o irregular é sempre mais comum que o regular.
"Consequentemente", escreve Wiener (The Human Use of Human
Being, trad. it. com o th. Intr. à cibernética, 1953, p. 21), "qualquer
definição de informação ou da -sua medida que se queira enunciar,
deverá sempre ser relativa a algo que aumente enquanto diminui a
probabilidade a priori de um modelo ou de uma série cronológica".

É claro que desde os seus alicerces, a teoria da informação se


baseia em módolos que pertencem mais ao mundo animal e humano
do que ao mundo físico. No funcionamento, mais simples, dum ser

humano, podem discernir-se os elementos da teoria: a transmissão,


o erro possível das mensagens e a

retroacção correctiva. Se, ao ver um objecto numa

certa direcção (quer dizer, ao receber dele unia mensagem visual),


eu estender o braço para o agarrar e ***er -istâ : ,
rar na direcção ou na d ncia logo a informa ção deste erro
rectifica o movimento do meu braço, permitindo-me dirigi-lo
correctamente para o objecto. Todas as operações do organismo, a
sua adaptação ao ambiente, o seu desenvolvimento, a sua
comunicação com os outros organismos ou com as coisas,

são hoje interpretadas, por meio de tentativas mais ou menos


conseguidas mas sempre baseadas em considerações probabilísticas
em termos de teoria da informação. Trata-se, como já se disse, de
unia

298

teoria quase sempre expressa em termos objectivos, quer dizer,


não antropológicos; resta toda-via a questão de saber se a
informação continuaria a ter uni sentido qualquer sem a presença de
uma "consciência" entendida desta ou daquela maneira. Rayfiiiond
Ruyer, por exemplo, afirmou que "sem consciência não há
informação". Um aparelho de rádio que continue a funcionar sem
que ninguém esteja a

ouvi-lo, não transmite informações e não é mais do que uma máquina


em funcionamento. "Se o mundo físico e o mundo das máquinas
fossem abandonados a si próprios tudo se tornaria
espontaneamente numa

desordem o que (provaria que jamais existiu uma

verdadeira ordem, uma ordem consistente ou, por outras palavras,


que jamais existiu informação". Ruyer fala por conseguinte num
"enquadramento axiológico" da informação que conduz ao
reconhecimento da "homogeneidade da consciência e da inteligência
no âmbito da vida" (La génese des formes vivantes, 1958). Mas por
outro lado e com mais frequência, não se faz apelo a factores
conscientes, ao construir a teoria da informação. Basta (como
costuma dizer-se) um receptor. Não há receptor no

caso do aparelho de rádio que ninguém está a ouvir; um tal receptor


pode porém consistir numa simples fita magnética.

Uma das aplicações mais importantes da teoria da informação é a


utilização que dela se faz para explicar a transmissão dos
caracteres hereditários. Os portadores de caracteres hereditários
são os chamados genes e após as investigações de Morgan e

seus sequazes, levadas a cabo entre 1910 e 1935, os

299

genes foram considerados como matéria constituinte dos


cromossomas. Ora os cromossomas de todos os organismos, desde
os monocelulares até ao homem, têm uma composição química
semelhante, a qual é essencialmente constituída de substâncias
chamadas ácidos desoxirribonueleicos (ADN). Em 1953, Walson e
Crick propuseram um modelo hipotético da estrutura molecular do
ADN, considerando-o um par de espirais complementares, = tais
propriedades que, ao separarem-se, cada uma delas pode reunir em

seu redor os resíduos moleculares necessários à reconstrução do


primitivo par do espirais. Ora o ADN é composto por quatro bases
nueleotídicas habitualmente designadas sob as letras A, G, C e T e
que se podem considerar como constituindo o alfabeto genético. E
assim como as vinte e uma letras do nosso alfabeto se podem
combinar em inúmeras formas das quais só algumas constituem
palavras e

frases com sentido (como por exemplo as que servem para


comunicar uma informação), também os elementos do alfabete,
genético se podem combinar em numerosíssimas formas (calculadas
pelos geneticistas mediante diversos processos), das quais, todavia,
apenas algumas transmitem uma mensagem efectiva, isto é,
determinam com certa dose de probabilidade a transmissão de -um
carácter hereditário. Com base nesta hipótese, poderia concluir-se
ser o

material genético semelhante a uma mensagem escrita que, uma vez


recebida pelo organismo, dirigiria e

controlaria o seu desenvolvimento.

É porém óbvio que as aplicações mais importantes da teoria da


informação tiveram e continuam a

300
ter lugar no campo da construção de autómatos, ou seja, na
cibernética. As relações entre a teoria da informação e a
cibernética constituem um problema. Umas vezes afirma-se que a
teoria da informação faz parte da cibernética, outras que é a
cibernética que faz parte da teoria da informação, Esta última
parece ser a solução mais adequada, pois enquanto que a teoria da
informação tem por objecto principalmente as quantidades e graus
de certeza e faz por conseguinte parte da matemática, a
cibernética pode ser considerada como fazendo parte da lógica ou
da metamatemática, e cabem ainda no seu âmbito a teoria dos
autómatos e as técnicas para a sua construção.

Em qualquer caso, o certo é que o campo da cibernética se alarga


cada vez mais. Para além das aplicações cada vez mais numerosas
que as máquinas vêm tendo no âmbito da tecnologia industrial, há já
presentemente máquinas que podem fazer a

demonstração de um teorema de lógica e resolver equações de


trigonometria ou de cálculo diferencial e integral. Existe já uma
máquina que joga as damas, sendo capaz -de corrigir a estratégia do
próprio jogo e de ganhar, durante algum tempo, ao seu próprio
construtor. Há máquinas de ensinar que instruem sobre um
determinado tema e controlam em seguida as respostas do aluno,
criticando-lhe, os erros. Foi mesmo concebida uma máquina que
simula o interrogatório a que um psiquiatra submete um paciente.

e,

Prevê-se ainda que num futuro mais ou menos próximo as máquinas


possam recordar, aprender e discernir modelos constantes em
dados desordenados, descobrir novas combinações de velhas
informações e efectuar verdadeiras e autênticas **~es. Não se
sabe por enquanto se uma máquina poderá formular uma hipótese
científica como a de Newton, e compor uma sinfonia ou um poema
como o de Dante, não faltam porém esperanças (ou profecias) a
esse respeito. Wiener e Von Neumann (que se

contam entre as maiores autoridades no assunto)

afirmam mesmo que as máquinas poderão reproduzir-se a si


próprias nesse caso toda e qualquer diferença entre a máquina e o
organismo vivo (que se
caracteriza precisamente pela auto-reprodução) acabaria por
desaparecer.

Não é pois de espantar que a propósito das máquinas, tenham sido


formuladas ias profecias mais audazes entre as quais a que admite
que lhes venham a ser confiadas, no futuro, as decisões
fundamentais de natureza política, económica, social, etc. que digam
respeito ao destino dos homens.

Por outro lado, observa-se que um autómato não é melhor do que o


sou programa, que a qualidade das suas decisões é determinada
pelas informações que lhe são fornecidas e que relativamente a
estas é o homem quem decide. Se se fornecerem à máquina
informações erradas, se se escolherem problemas errados ou se se
formular de maneira errada um problema verdadeiro, a máquina
fornecerá por sua vez soluções insatisfatórias, por outras palavras,
o homem obterá das máquinas as respostas que merece. Do ponto
de vista teórico, o

teorema de Gõdel (§ 794) parece excluir a possibi-


302

li-dade de construir uma máquina que resolva todo e qualquer


problema. Há por conseguinte hoje a
tendência para se falar numa "simbiose" entre o homem e a
máquina, afirmando Wiener num seu

livro que o homem está para a máquina como, na

antiga concepção teológica, Deus estava para o homem.

Do ponto de vista filosófico, o que transparece claramente dos


conceitos básicos da teoria da informação, da cibernética e dos
problemas e polémicas que aqueles fizeram nascer, é, em primeiro
lugar, o esvaziamento de sentido sofrido pelas tradicionais
antíteses metafísicas entre materialismo e espiritualismo, entre
determinismo e indeterminismo e, num plano positivo, a descoberta
e entrada em funcionamento de meios de investigação (cállculos,
modelos, estruturas) que exprimem a situação fundamental em que
o homem se encontra: atirado para um mundo em que operam, às
vezes de modo hostil e imprevisível, as forças do acaso, luta contra
estas forças, por uma ordem ou um complexo de ordens que nunca
chega a ser total nem definitivo.

§ 862. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: ESTRUTURALISMO

O estruturalismo não é uma doutrina científica, como a teoria da


informação, nem uma doutrina filosófica como a fenomenologia ou o
existencialismo. É antes urna tendência metodológica que se

manifesta actualmente em muitos campos do saber e que pode


manter relações mais ou menos estreitas

303

com diversas tendências filosóficas. As suas bases filosóficas são,


salvo algumas excepções, as mesmas

em que se apoiam a teoria da informação e a cibernética, o que


representa também uma submissão à exigência de encontrar uma
mediação entre a ordem e a desordem, ou seja, de reduzir a
casualidade dos fenómenos que surgem num certo campo (ou em
vários campos) de investigação ou experiência a uma

ordem relativamente constante que mostre as suas

relações recíprocas e torne possível a sua explicação e provável


previsão.

A palavra "estrutura" é vulgarmente -usada -ia linguagem comum e


nas ciências para indicar o

conjunto formado por aquelas partes dum complexo que têm por fim
garantir a permanência, e o funcionamento do próprio complexo. A
estrutura de uni

edifício é constituída pelas partes que lhe garantem a estabilidade


e consentem a sua utilização para )s

fins a que se destina. Por estrutura de um organismo entende-se o


conjunto de órgãos que permitem a

esse mesmo organismo o desempenho das suas funções e por


conseguinte a sobrevivência e o desenvolvimento. Em qualquer
organização a estrutura constitui o plano da actividade ou dos
órgãos, que mantêm em pé a própria organização, permitindo-lhe
funcionar -em atenção aos seus fins. O termo tem sido
frequentemente empregado neste sentido, na
filosofia moderna e contemporânea (Marx, Dilthey, a
fenomenologia, o existencialismo) e até usado pela psicologia da
forma ou gestaltismo (§ 796) a qual demonstrou que os actos
psíquicos não se explicam através da agregação de elementos
simples preexis-
304

tentes mas antes constituem formas ou estruturas que determinam


a natureza dos seus próprios elementos.

Todavia, no sentido de uma orientação metodológica definida, o


estruturalismo, contemporâneo nasceu na linguística por obra de
Fernando de Saussure (1857-1913). O seu Curso de linguística
geral, obra póstuma publicada pela primeira vez em 1916, só depois
de 1930 começou a exercer a sua influência. As bases da concepção
de Saussure são as

seguintes: 1)-distinção entre língua e linguagem, considerada esta


corno faculdade genérica, usada em

muitos campos (físico, fisiológico, psíquico, social), e entre aquela e


a palavra, que é o acto do sujeito falante; 2) -concepção da língua
como "uma totalidade e um. princípio de classificação", como "um

sistema que apenas conhece a ordem que lhe é própria", comparável


ao jogo de xadrez no qual o sistema total das regras permanece
imutável, quer as

peças, individualmente consideradas, sejam de madeira ou de


marfim mas muda completamente se

diminuir ou aumentar o número de peças, ou seja, a "gramática" do


jogo (Cours de linguistique générale, 1922 2@ p. 43).
A concepção da (língua como "sistema" ou, como se dirá mais tarde,
"estrutura", permitiu a Saussure distinguir a dimensão sincrónica
da dimensão diacrónica da própria língua. A dimensão sincrónica
consiste na simples ordem existente entre os elementos lexicais,
gramaticais e fonológicos próprios de urna língua e que no seu
conjunto constituem não um simples agregado mais um "sistema" de
ele-
305

mentos ligados entre si por relações recíprocas. A g

dimensão diacrónica é o conjunto das variações sofridas por um


sistema linguístico sob a acção de acontecimentos que não só lhe
são estranhos como

não formam qualquer sistema entre si. O próprio Saussure insistiu


no carácter não necessitante da estrutura sincrónica: "Na língua",
escreveu, "não há força que garanta a conservação da regularidade
que eventualmente reine neste ou naquele sector" (Cours, p. 131). E
em vários outros passos no decurso da obra, pôs em evidência os
elementos casuais que interferem em qualquer sistema linguístico.

Uma concepção semelhante da língua, com o

emprego do termo estrutura, apareceu expressa nas

teses anónimas apresentadas ao --primeiro congresso de filologia


eslava que teve lugar em Praga em 1919, inaugurando a actividade
do Círculo Linguístico de Praga. Três linguistas russos, R. Jakobson,
S. Karcevsky e N. Trubetzkoy, referindo-se precisamente a
Saussure, apresentaram mais tarde, no primeiro congresso
internacional de linguística, reunido na
Haia em 1928, uma proposta para que a língua fosse estudada
através das combinações estruturais dos seus elementos, chamados
fonemas. "Definir um fonema", escrevia Trubetzkoy num artigo, em
1933, "é indicar o seu lugar no sistema fonológico o que só será
possível se se tiver em conta a estrutura do próprio sistema... A
fonologia parte do sistema como de um todo orgânico do qual estuda
a estrutura".

Deste ponto de vista, cada língua escolhe os seus fonemas, esta


escolha não é porém casual, quer

306

dizer, arbitrária, nem natural ou necessária, porque cada escolha


condiciona ou limita as outras e cada grupo ou série de escolhas é
condicionado pela exigência da eficácia comunicativa da linguagem.
Os fonemas podem portanto reduzir-se a tipos que a ciência da
linguagem se propõe determinar.

Um passo ulterior nessa via foi dado por Noam Chomsky (Aspects
of the Theory of Sintax, 1965), que veio revigorar de novo a velha
teoria de uma gramática universal, ou seja, de uma gramática que
estuda aquilo que todas as línguas têm necessariamente em comum
e determina por isso a estrutura universal de todas as línguas.
Chomsky revalorizou os precedentes históricos desta gramática e,
principalmente a gramática geral raciocinada de Portoreale
(Linguistica cartesiana, 1966); falou ainda de uma gramática
generativa, encarada como um "sistema de regras que de algum
modo explícito e bem definido confere descrições estruturais às
frases", considerando-a, não já como um modelo presente aos que
falam ou escutam uma dada língua mas como "a descrição estrutural
das frases que ocorrem nessa
língua" (Aspects of the Theory Sintax, p. 8 e segs.). Chomsky
procurou, por outras palavras, responder à questão de saber quais
são as estruturas gramaticais que tornam possível a enunciação de
previsões válidas e verificáveis relativamente às várias línguas em
particular. Para responder a esta questão, é necessário encontrar
primeiro os modelos estruturais de cada língua em particular para
;alcançar em seguida previsões verificáveis relativamente às
estruturas comuns a todas as línguas.

307

A obra de Chomsky, pela sua importância, tem sido por vezes


comparada à revolução de Copérnico ou à de Kant!(IE. Bach em Os
problemas actuais da linguística, 1968, p. 151). Em todo o caso, o
método estruturalista da linguística apresenta analogias
substanciais com o método de axiomatização adoptado pelas
ciências matemático-naturais. Trata-se ainda aqui de construir um
modelo que em vez de objectos fornecidos por caracteres intuitivos
se sirva de símbolos apropriados cujas regras de combinação sejam
enunciadas por meio de axiomas. Trata-se em segundo lugar de
"interpretam o modelo, pondo-o à prova num campo específico (que
neste caso é uma língua determinada) e determinando quais os

axiomas que devem ser modificados e mudados para que o modelo


se aproxime o mais possível do campo & experiência que deve
descrever.

Não há dúvida que o método estruturalista favorece a dimensão


sincrónica relativamente à diacrónica. Os conceitos de
desenvolvimento, de história, de progresso, permanecem-lhe
estranhos. Tende a
reduzir as variações diacrónicas de uma estrutura **ofu ao
funcionamento das regras próprias dessa mesma

estrutura ou às possibilidades compreendidas numa

estrutura mais geral (estrutura de grupo) que compreende


conjuntamente a estrutura original e as suas

variações. Não pretende porém negar o carácter "criador" da


linguagem nem limitar arbitrariamente as escolhas dos indivíduos
falantes. Todavia, o carácter de modelo teórico ou formal que a
estrutura assume nas doutrinas de certos linguistas, levou outros a
acentuarem a concepção funcionalista da lin-
308

guagem. André Martinet, por exemplo, afirma que "na linguagem


apenas se pode encontrar uma estrutura, por assim dizer, no seu
funcionamento" e que "a

função é o critério da realidade dinguística" (A Functional View of


Language, 1962, cap. 1). A consideração da função permite-nos
penetrar mais para o

interior da realidade ida língua, definida como "um

instrumento de continuação segundo o qual a experiência humana se


analisa, de maneira diferente em cada comunidade, em unidades ou
mon"as de conteúdo semântico e forma fóni-ca" e evitar a redução
arbitrária da realidade dinguística a esquemas pre-estabelecidos
que poderiam levar a descurar os factos observáveis.

Na realidade não existe nenhuma oposição de principio entre


estruturalistas e funcionalistas. Os primeiros acentuam a
importância do modelo teórico e os segundos a da sua
interpretabilidade em termos de factos empíricos. É porém claro
que um modelo teórico, se não for um simples esquema formal caso
em que, para a sua validade, bastará a ausência de contradições
internas -deve possuir a sua

funcionalidade, que é como quem diz a sua teleologia intrínseca, uma


vez que deve descrever (ou seja, explicar e prever) o modo pelo
qual a realidade a que se reporta, se mantém nos seus traços
fundamentais e no quadro das suas possíveis variações. O modelo de
um edifício, arquitectónico que não garanta a estabilidade do
edifício e a satisfação pelo mesmo dos fins para que foi construído
não poderá valer como "estrutura" desse edifício. Considerações
semelhantes se podem fazer quanto à

309

estrutura dos organismos 'vivos- que não Pode ser entendida, se


abstrairMOS das funções destes-e quanto a qualquer tipo ou
qualquer que espécie de estrutura,
**
seja O campo a que Se refira. A funCIOnalidade de unia estrutura
fim intrín é Por Conseguinte o
**
SI, da Própria estru,tura suavalidade, e a medida da
'Estas COnsiderações sã, Campos (nurnerOsissirnos)
aosváqluidaaiss seara todos os
**
estendeu ou tenta estender-se a metodologia estruiturajista. Entre
estes campos Pode Considerar-se campeã a antropologia cultural na
qual esta orientação fora já, por volta de 1930, Perfilhada pelo
etnólogo inglês A. R. Radeliffe-Brown, 'tendo POrénI encontrado o
seu mais brilhante defensor na pessoa do francês Claude Levi-
Strauss. Já na sua obra sobre as estruturas elementares do
parentesco (1947), Lévi-Strauss, para explicar essas estruturas e
construir-lhes a niatriz comum, se baseava na analogia com a
linguística. Considerando a Proibição do incesto, comum a todas as
sociedades, ainda que em formas e limites Muito diversos, realçava
a relação existente entre o acaso e a Ordem, que é pressuposto de
toda e qualquer consideração estruturalista. "0 facto da regra",
dizia, "cOnsiderado, independentemente das suas modalidades,
Constitui a Própria essência da Proibição do incesto, uma vez que se
a natureza abandona o conúbio ao acaso e ao arbítrio, é iMPOSSível
à cultura não introduzir uma ordem de qualquer natureza, já Que
ela não existe. A principal tarefa da cultura é a de garantir a
existência do grupo como grupo e Portanto de substituir, neste
domínio como nos

310

outros, a organização ao acaso". (Les structures élémentaires de Ia


parenté, 19672, p. 37).

Porém a ordem de que aqui se fala é de natureza objectiva e


pertence à própria realidade social. Noutras obras, Lévi-Strauss
considerou a ordem estrutural como um modelo não redutível às
relações sociais observáveis em determinada sociedade. Um modelo
estrutural, diz-nos, deve satisfazer quatro condições. Em primeiro
lugar, deve ser sistemático, quer dizer, consistir em elementos tais
que a modificação de um qualquer deles, arraste a modificação de
todos os outros. Em segundo lugar, deve pertencer a um grupo de
transformações, cada uma das quais corresponda a um modelo da
mesma família, de modo que o conjunto destas transformações
constitua um grupo de modelos. Em terceiro lugar, as

propriedades indicadas devem permitir prever de que maneira


reagirá o -modelo em caso de modificação de um dos seus
elementos. E, por fim, o modelo deve apresentar-se construído de
tal maneira que o

seu funcionamento possa dar conta de todos os factos observados


(Anthropologie structurale, 1958, p. 306). Com estas regras, Lévi-
Strauss reconduz a

noção de estrutura à de modelo formal e cita expressamente


determinado passo da obra de Von Neumann e Morgenstern, Teoria
dos jogos e comportamento económico (1944). Este ponto de vista
não é todavia mantido com coerência por Lévi-Strauss, o qual
procura uma garantia da objectividade do modelo estrutural
elaborado pelos etnólogos e vai encontrá-la na actividade
inconsciente que domina não apenas os factos sociais, mas também
o estudo

311

e consideração de tais factos e por conseguinte a

construção dos modelos estruturais; reconhece assim a


correspondência necessária entre estes modelos e

as estruturas objectivas da sociedade para cuja compreensão


servem. A "antropologia", escreveu ele a

propósito disto, "não faz outra coisa senão demonstrar uma


homologia de estrutura entre o pensamento humano = exercício e o
objecto humano a que se aplica". (Le totémisme aujourd'hui, 1962,
trad. ital., p. 129).

Deste ponto de vista, o estruturalismo transforma-se de posição


metodológica em metafísica de tipo antigo. A estrutura não seria
um instrumento conceptual, um modelo teórico destinado a
enquadrar os factos observáveis, a determinar-lhes as regras de
combinação e a tornar possível a previsão, mas sim o Ser ou a
Substância, a qual encontra igualmente expressão na realidade das
coisas e ão conhecimento desta realidade, garantindo a
correspondência ou, como diz Lévi-Strauss, a homologia entre
realidade e conhecimento. Nesta base, o estruturalismo aparece-
nos às vezes ligado à metafísica do Ser que inspira a última fase do
pensamento de Heidegger (§ 847). Nas obras de um psicanalista
francês, Jacques Lacan, as estruturas verificáveis nas mais
diversas ;actividades do homem e acima de tudo na que é simbólica
(a dinguística) e dominante, são atribuídas ao Inconsciente que,
precisamente porque
o é, é o outro do homem, outro esse que é também
o Logos, ou seja, a revelação do Ser na linguagem. E é justamente
através de uma análise estruturalista das chamadas "ciências
humanas" (biologia, filolo-
312

gia, economia) que Midhel Foucault formula a sua

profecia sobre o fim próximo do homem (As palavras e as coisas,


1966). Segundo Foucault, o homem é uma !invenção linguística; o
reconhecimento do mesmo como sujeito capaz de iniciativa, de
escolha, etc., deve-se ao desaparecimento do conceito tradicional
da linguagem como pura representação das coisas na sua ordem
mutável, desaparecimento esse que faz do homem um ente limitado,
opaco e impenetrável. Como tal, o homem torna-se um enigma
insolúvel: não se identifica com a vida que está continuamente a
fugir-lhe e lhe prescreve a morte; não se identifica com o seu
trabalho, que lhe foge não apenas quando já acabou mas também e
fr.-quentemente quando nem chegou a começar; e não se identifica
com a linguagem que encontra já expressa e articulada em leis que
lhe são anteriores. Mas se a linguagem, como está a acontecer,
retorna à sua natureza de manifestação do Ser, o homem
"regressará à inexistência serena em que foi mantido durante certo
tempo pela unidade imperiosa do Discurso" (Les mots et les choses,
trad. Ital. p. 413). Trata-se aqui, como se vê, do anúncio profético
duma nova "era do Sem de que já Heidegger falava.

É claro que o estruturalismo, sendo um instrumento metodológico


válido para a sistematização e previsão dos factos observáveis em
vários campos, não se presta de modo algum a ser utilizado por
profecias apocalípticas e totalitárias deste género. Encontra-se
todavia uma rigidez metafísica da noção

313

de estrutura, até mesmo nas interpretações estruturalistas do


marxismo. Louis Althusser, por exemplo, embora proponha uma
interpretação do conceito marxista de "estrutura" em termos de
estruturalismo moderno, insiste no carácter "real" da estrutura, rio
sentido de que o real é independente de todo o

conhecimento ainda que só através do conhecimento possa ser


definido. "0 real", escreveu, "e os meios do seu conheci-mento
formam um todo único; o real é a sua estrutura conhecida ou a
conhecem e neste sentido é um "campo teórico imenso e vivo,
desenvolvendo-se continuamente, no qual os acontecimentos da
história humana podem agora ser dominados pela experiência do
homem, pois estão sujeitos à sua captura conceptual, ao seu
conhecimento" (Pour Marx, 1965, trad. ital., 1967, p. 221). Deste
ponto de vista, a distinção estabelecida por Marx entre estrutura e
superestrutura aparece menos e é substituída pela distinção entre
uma estrutura global que é o modo de produção, o qual inclui todos
os elementos, até mesmo ideológicos, que o condicionam, e uma
estrutura regional que dá a certos fenómenos o carácter de
objectos económicos e que se encontra situada num ponto definido
da estrutura global (Althusser-Balibar, Lire le Capital, 1965, trad.
ital., 1968, p. 191-92). O conhecimento global toma-se então a
condição indispensável da praxe política.

Como se vê, o estruturalismo oscila, e às vezes na obra dum mesmo


autor (como no caso de LéviStrauss), entre uma interpretação
realista e uma Interpretação metodológica da estrutura. Segundo a

314

interpretação realista, a estrutura é a "realidade" que constitui o


Homem, ou o Ser ou o Mundo social. Segundo a interpretação
metodológica, cada estrutura é um modelo hipotético que torna
possível o

reconhecimento de relações verificáveis entre factos ou conjuntos


de factos e o fornecimento do quadro geral destas relações o qual
por sua vez permite a previsão estatística das suas transformações.
Em todo o caso, porém, o estruturalismo opõe-se a toda e qualquer
forma de subjectivismo idealista (do qual é a liquidação, até mesmo
no domínio das ciências humanas) e de historicismo. Não é anti-
histórico e sim a-histórico. A individualidade histórica, dos eventos,
baseados nos parâmetros cronológicos e geográficos destes está
fora da sua consideração. A dimensão diacrónica dum modelo
estrutural nada tem a ver com um "processo histórico" que é
sempre progresso ou regresso, involução ou desenvolvimento,
nascimento ou declínio. A estrutura é antes um grupo de
transformações, no sentido especificamente matemático do termo
"grupo" que indica simplesmente um modelo constituído por
quaisquer elementos entre os quais ocorrem relações de natureza
reversívell como são as existentes entre números inteiros positivos
e negativos. Pondo de lado a sua rigidez metafísica e atendendo ao
uso profícuo que dele fazem as ciências, o estruturalismo aparece-
nos como uma confirmação do carácter finito da razão, em

-luta com o acaso e que do acaso extrai, através do cálculo de


-probabilidades, o fundamento da validade dos seus conhecimentos.

315

§ 863. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A NOVA BIOLOGIA

O conceito de evolução forneceu, a partir da segunda metade do


século XIX, o esquema geral da concepção do mundo tal como ora
aceite pelas mais diversas filosofias. O positivismo, o
espiritualismo, o pragmatismo e o naturalismo recorreram
igualmente a este esquema que vamos encontrar ainda, implícita ou
expressamente defendido, tanto por Nietzsche como por Peirce,
por Bergson como por Santay"a. Segundo este conceito, a evolução
é o progresso natural e necessário de todo o universo, progresso
esse que começa na nebulosa cósmica e, através do desenvolvimento
ininterrupto, do mundo inorgânico e orgânico, continua com o
desenvolvimento "superoirgânico" do mundo humano e histórico. As
características deste processo são por conseguinte: 1) - a sua
universalidade, pela qual nenhum aspecto da realidade lhe escapa; 2)
-as suas

unicidade e continuidade, pelas quais todos os aspectos da realidade


encontram nele o seu lugar determinado; 3) -a sua necessidade, pela
qual é infalivelmente progressivo e deixa prever o seu
desenvolvimento ulterior e o aparecimento de novas formas
superiores da vida humana e social.
As interpretações espiritualistas deste conceito, que procuraram
subtraí-'o ao determinismo materialista, não lhe modificaram os
caracteres essenciais. Berg-son, que reconhecera à evolução vital o
carácter de criação livre e imprevisível, considerando-a o

:produto de uma força espiritual, apontava-lhe como

fim a realização de uma humanidade unificada pelo

316

misticismo. Mais recentemente, o padre jesuíta francês Pierre


Teilhard de Chardin (1881-1955) afirmava que a evolução é um
postulado geral ao qual todas as teorias, todas as hipóteses, todos
os sistemas deverão adequar-se e ao qual deverão satisfazer para
serem pensáveis e verdadeiros. Afirmava consequentemente a
unidade da vida como um plano ou projecto geral do e-urso
evolutivo. "A substância vivente espalhada pela terra mostra-nos,
desde os primeiros períodos da evolução, os lineamentos de um
único e gigantesco organismo". O termo da evolução seria assim um
"Ponto omega" constituído por uma "Superconsciência" de
dimensões planetárias, formada por uma pluralidade unificada de
pensamentos individuais, combinando-se e reforçando-se uns aos

outros no acto singular de um Pensamento unânime (0 fenómeno


humano, 1955).

O modelo evolucionista para a explicação do universo na sua


totalidade foi quase completamente posto de parte nos últimos
decénios. Por um lado, as filosofias neo-empíricas e em geral
aquelas que têm em conta os dados da ciência e o desvio crítico
sofrido por esta em virtude ida sua posição ;probabilística, tendem
a relegá-lo para o domínio da ",metafísica" do tipo antigo ou então a
ignorá-lo praticamente. Por outro lado, as filosofias de inspiração
metafísica declarada, como a fenomenologia de certas formas de
existencialismo, rejeitam aquele modelo pelo seu evidente carácter
"rialuralista". No domínio das ciências físicas, salvo numa ou noutra
arriscada especulação cosmológica, em que se- compraz este ou
aquele astrónomo, aquele mo-
317

delo foi já totalmente abandonado. O único campo onde permanece


válido e no qual é constantemente utilizado, é o das ciências
biológicas. Mas mesmo

neste campo, perdeu os traços que caracterizavam a sua formulação


oitocentista. A evolução de que falam presentemente os biólogos,
não é única, nem

contínua, nem necessária, nem necessariamente progressiva. Numa


obra famosa sobre o Significado da evolução (1949), George
GayQord Simpson, ao exipor numa bem elaborada síntese os
resultados de estudos feitos sobre o assunto, fala-nos do
oportunismo da evolução em contraste com o carácter necessitante
que lhe era tradicionalmente atribuído. Na história da vida
acontece o que pode acontecer e não o que deve acontecer. A vida
tira proveito das possibilidades que lhe são oferecidas pelo
ambiente ou pelas outras formas viventes, possibilidades estas que
nunca são infinitas mas antes e sempre limitadas, e com

frequência muito estreitamente limitadas. As mudanças acontecera


como podem e não como seria hipo melhor que acontecessem. Cada
mutação abre muitas possibilidades mas elimina outras; acontece às
vezes que certas oportunidades abertas pelo desenvolvimento da
vida não são aproveitadas por organismos aptos. A evolução,
encarada sob este ponto de vista, não é, diz-nos Simpson, nem
completamente ordenada nem completamente desordenada, não
mostra um plano único e uniforme nem um progresso firme e
gradual em direcção a um

objectivo discernível: "a história da v"da é uma estranha mistura do


controlado e do casual, do sistemático e do assistemático" (The
Meaning of Evo-
318

lution, 1951 1, p. 185). O carácter necessariamente progressivo da


evolução não é portanto admitido. Seja qual for o critério escolhido
para definir o

"progresso", a história da vida apresentará exemplos não apenas de


progresso mas também de regresso ou de degeneração.

Sob este ponto de vista não se exclui mesmo a reversibilidade da


evolução, quer dizer, que certas espécies ou formas vivas possam
regressar, através de mutações evolutivas a níveis inferiores. A
própria evolução da espécIe humana não se desenvolveu numa linha
única e ininterrupta e sim em linhas diferentes cuja origem comum
é difícil de encontrar. Tal como hoje se apresenta, a humanidade é
o produto do desenvolvimento paralelo de diversas linhas.
(Theodosius Dobzhansky, Mankind Evolving, 1962).

As ciências biológicas atravessam presentemente um período de


ajustamento conceptual análogo ao sofrido pelas ciências físicas nos
primeiros decénios do -nosso século. Já no parágrafo anterior se
fez referência à descoberta do ADN, ou seja, da estrutura da
substância genética e do código mediante o qual o ADN transmite
os caracteres genéticos. A consequente possibilidade de influenciar
a transmissão dos caracteres hereditários, de produzir seres
híbridos ou de regular o sexo dos nascituros, a técnica das
transplantações e a descoberta de drogas, especialmente de
alucinogéneos, que estimulam estados psicóticos e podem
eventualmente ser utilizadas na sua correcção, são outros tantos
factos e perspectivas que nos levam a falar em " revolução
biológica"

b e dão às vezes aos próprios cientistas a oportuni-


319

dade de arriscarem as mais audazes profecias sobre a capacidade


do homem de controlar à sua vontade o desenvolvimento biológico.
Todavia os problemas morais e sociais que emergem de tais
perspectivas bem como as reacções que a sua realização poderá
provocar na vida humana em geral, não foram ainda encarados com a
necessária seriedade.

§ 864. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A NOVA TEOLOGIA

,O pensamento teológico de Karl Barth (§ 842) e o de Rudolf


Budtmann (§ 853) prenunciavam uma mudança de rumo na teologia
contemporânea. Tal mudança foi iniciada com a obra de Dietrich Bo-
nhoeff,er (1906-1945), pastor luterano e animador da chamada
"Igreja confitente", que se opunha ao

nazismo em nome do -Evangelho; preso pela Gestapo em 1943 foi


assassinado pelos -nazis em Flossemburo, pouco antes da libertação.
As principais obras de Bonhoeffer são as seguintes: Acto e ser
(1931), Criação e queda (1933), A imitação (1937), Vida em

comum (1938), Ética (póstumo, 1949), Resistência e rendição


(póstumo, 1951) e Tentação (póstumo,
1953).
Com a obra de Bonh9effer é a primeira vez que se tenta uma
interpretação não-religiosa da fé; chega-se mesmo a contrapor fé e
religião. Baxth e

Bultmann, na esteira de Kierkegaard, tinham concebido a fé como a


inserção da Eternidade no tempo, da Transcendência na existência,
e tinham procurado (especialmente Bultmann) libErtá-la de todo e
qualquer elemento cosmológico ou mítico. Todavia, nem

320

um nem outro, na opinião de Bonhoeifer, alcançou a "interpretação


não-religiosa dos conceitos teológicos" e ambos pressupuseram a
religião como condição da fé (Resistência e rendição, p. 248-49).
Este pressuposto é negado por Bonhoeffer. O mundo tornou-se
adulto e mostrou ser capaz de viver sem

religião. A tentativa, frequentemente empreendida pela apologética


religiosa, de o reconduzir à dependência de crenças das quais já se
libertou, parece-se com a tentativa de reconduzir à puberdade um
indivíduo que é já um homem (Ib., p. 246). Quer isto dizer que o
espaço a atribuir a Deus não está nos confins do conhecimento ou
da existência humanos, nem para além dos limites da fraqueza, da
morte e da culpa do homem, mas sim no centro do homem e do seu
mundo (Ib., p. 216). Sob este ponto de vista mudam radicalmente as
relações entre Deus e o mundo, assim como muda radicalmente o
problema da fé. Deus não pertence à esfera do transcendente ou do
sobrenatural mas sim à esfera da natureza, entendida, para além
das alternativas do vitalismo e do mecanicismo, como "uma forma de
vida que Deus conservou no mundo caído, dirigindo-a para a
justificação, a redenção e a renovação por meio de Cristo" (Ethik,
tr4d. ingl., p. 103). Do ponto de vista formal, o "natural" define-se
pela vontade de Deus em conservá-lo dirigido para Cristo. Do ponto
de vista do conteúdo, o "natural" é a

forma de vida que se mantém, a forma que compreende a


humanidade inteira. A razão não é um princípio divino de
conhecimento nem a ordem à qual o homem se eleva, por sobre o
natural, mas

321

é ela própria uma parte da forma conservada de vida e


precisamente aquela que se apresenta apta para a função de torná-
la consciente, de "entender como unidade tudo quanto há de integro
e de geral no real" (Ib., p. 103). Sob este ponto de vista, Deus não é
senão a própria vontade de viver que é imanente à vida, pois só Deus
dá à Nida a forma na qual ela pode viver e sem a qual caminharia
para

a sua própria destruição (Ib., p. 106). O mundo e

Deus não constituem duas mas sim uma única realidade, a realidade
de Deus que "se tornou patente em Cristo como a realidade do
mundo". A esfera da realidade é a da realização de Cristo na qual se

unem a realidade de Deus e a do mundo (Ib., p. 64).

Sob este ponto de vista, a fé identifica-se com uma moral natural e


humana, adjectivos estes que implicam, no contexto de Bonhoeffer,
a unidade do mundo com Deus e da humanidade com Cristo. Esta
unidade conduz à aceitação integral e sem

condenação, do que é natural e humano. "Tal como em Cristo a


realidade de Deus se introduziu na realidade do mundo, assim o que
é cristão só se deve encontrar no que é mundano, o "sobrenatural"
só no ;natural, o sacro só no profano e o revelado só no racional"
(Ib., p. 65). Ser cristão não significa ser religioso de um modo
especial nem cultivar qualquer forma de ascetismo mas apenas ser
homem. Não é o acto religioso que faz do cristão aquilo que é e sim
a participação no sofrimento de Deus na

vida do mundo (Resistência e rendição, p. 266).

Podem facilmente reconhecer-se, nesta teologia de Bonhoeffer,


certos traços do panteísmo, clássico,

322

como a unidade de Deus e do mundo, e a identificação da vontade


divina com a vontade de viver. Trata-se porém, sem dúvida, de um
panteísmo não naturalista, uma vez que quando Bonhoeffer fala do
"mundo", da "realidade", da "natureza" e da "vida", não faz qualquer
referência ao mundo ou à natureza físicos mas unicamente ao
mundo dos homens e à sua vida associada, na qual a "razão", que é
ela própria uma forma de vida querida ou conservada por Deus,
desempenha a tarefa de determinar direitos e deveres. E nesta
determinação mostra-se ele notavelmente desabusado: reconhece e
defende na verdade o direito ao uso livre do próprio corpo, ao

exercício da actividade sexual e à limitação dos nascimentos e


acima de tudo insiste na Ética na exigência ido amor como a única
reconciliação possível do homem com Deus em Jesus Cristo. Por
meio do amor cessa a desunião dos homens com Deus, com os outros
homens e consigo mesmos e a origem do homem é novamente posta
nas suas mãos (Ethik, p. 175).

Os temas fundamentais da teologia de Bonhoeffer foram


vulgarizados num pequeno livro do bispo anglicano inglês John A. T.
Robinson, Diante de Deus (Honest to God, 1963), o quâ teve grande
êxito junto do público.

Robinson dirige a sua polémica em primeiro lugar contra o


sobrenaturalismo, entendido como separação entre o ser de Deus e
o ser do homem. Se uma tal separação existisse, o próprio conceito
fundamental para o cristianismo-de um Deus-homem. seria
impossível. Mas se não existe, a afirma-
323

ção de Deus como realidade transcendente ou como ser pessoal


toma-se por sua vez impossível. O problema de Deus é simplesmente
o do reconhecimento daquilo que de mais verdadeiro e de mais
autêntico existe na experiência humana. Robinson aceita neste
ponto (não sem hesitações, muitas vezes incoerentes) a tese de
Feuerbach (§ 595) segundo a qual a consciência que o homem tem
de Deus é na realidade a consciência que o homem tem de si
próprio. Robinson acrescenta a esta tese que a última realidade que
forma a unidade -do mundo com Deus é o amor. Jesus não é outra
coisa senão a perfeita realização do amor de Deus. Jesus
"despojou-se" inteiramente
- segundo a palavra de S. Paulo (A d Phil., 11, 6- i 1) -não da sua
divindade, mas de si próprio, de todo o desejo de atrair sobre si as
atenções, de toda a

pretensão de estar em pé de igualdade com Deus e foi assim que se


revelou Deus. Com o seu reduzir-se a nada, o seu entregar-se aos
outros no amor, demonstrou e tornou patente que o Fundamento do
homem é o amor.

No livro de Robinson, como na obra de Bonhoeffer, a polémica


contra o teísmo atingiu já um ponto limite. Fala-se em Deus apenas
em relação a Jesus e aos homens e da transcendência unicamente
como relação entre um homem e outro homem. Porém, já em 1961 o
anúncio de Nietzsche "Deus morreu" (A ciência jovial, 1882, § 108,
125, 343) se tinha tornado no estandarte de uma "nova teologia"
que, embora declarando-se cristã e falando em nome da Bíblia,
procurava abstrair do próprio problema de Deus. Um sociólogo
americano, Gabriel Vahanian,

324

publicava nesse ano um livro intitulado A morte de Deus cuja tese


em que a imagem de Deus formada pela tradição cristã é um
compromisso entre o cristianismo e a cultura grega e por
conseguinte uni

"ídolo" sem qualquer significado para a nossa cultura. Nesse mesmo


ano de 1961, o teólogo americano William Hamilton num livro
intitulado A nova essência do cristianismo, afirmava: "Quando
falamos da morte de Deus, não falamos apenas da morte dos íldolos
ou do ser falsamente objectivado nos céus; falamos também da
morte em nós de toda a capacidade de afirmar qualquer das
imagens tradicionais de Deus. Entendemos que o mundo não é Deus
nem para Deus se dirige" (The New Essence of Christianity, p. 58-
59). Em 1963 o teólogo Thomas Altizer, da Universidade ide
Atlanta, afirmava que a primeira condição de um novo conhecimento
religioso é a admissão da morte do Deus do cristianismo. "Temos de
reconhecer", dizia, "que a

morte de Deus é um facto histórico; Deus morreu no nosso tempo,


na nossa história e na nossa existência" (Mircea Eliade and the
Dialectic of the Sacred, 1963, p. 13).

Nesse mesmo ano de 1963 a linguagem teológica foi submetida à


crítica doutro teólogo, Paul Van Buren, na obra O significado
secular do Evangelho e do ponto de vista do neo-empirismo lógico. A
crítica de Van Buren é a mais radical, pois tende a

demonstrar que a própria palavra "Deus" não tem qualquer


significado, quer dizer, não pode referir-se nem a uma realidade
objectiva nem a uma realidade subjectiva, como qualquer
experiência humana.

325

"0 empirista que em nós existe", escreveu Van Buren, "acha o cerne
da dificuldade, não no que w

diz em volta de Deus mas propriamente no falar em Deus. Não


sabemos o que é Deus nem como se emprega a palavra "Deus".
Parece que esta funciona como um nome e todavia os teólogos
dizem-nos que não podemos empregá-la como os outros nomes,
referindo-a a algo de específico". O problema não se resolve,
portanto, substituindo a palavra Deus por outras palavras: ainda que
substituamos a letra X o problema mantém-se, pois a dificuldade
diz então respeito ao modo como X funciona (The Secular Meaning
of the Gospel, 1966 1, p. 84). Sob este ponto de vista, a linguagem
cristã é simplesmente uma linguagem emotiva ou exortativa, uma
linguagem que deve esclarecer os homens sobre as atitudes que
deverão tomar ou sobre as maneiras especiais de agir baseadas na
razão inexpressa de que as coisas podem existir de um modo
especial. Assim a afirmação "Está próximo o reino de Deus" não
pode ser

verificada empiricamente mas a atitude que exprime está aberta à


verificação mediante a consideração do comportamento de quem
faz essa mesma afirmação. (Ib., p. 131).
O aspecto social e político ida nova teologia predomina na obra de
Harvey Cox, professor em Harvard, A cidade secular (1965). A
secularização é, segundo Cox, a libertação do homem da tutela
religiosa e metafísica, o desviar da sua atenção de outros mundos e
o voltá-la só para este mundo. É essa a característica própria de
uma nova espécie de comunidade humana, a tecnópole, que sucedeu
à

326

tribo e à cidade. Se, na tribo, Deus aparecia ao homem como um dos


"deuses" e na cidade como uma parte da estrutura cósmica, na
teonópole a

palavra Deus em ambos estes sentidos (que ainda persistem)


-perdeu todo o significado. Na twnópole, a política substitui a
metafísica como linguagem da teologia. "Falamos em Deus de um
modo seculam diz Cox, "ao reconhecermos o homem como seu sócio,
como aquele que está encarregado da tarefa de conferir sentido e
ordem à história humana" (A cidade secular, trad. ital., 1968, p.
257). Introduzindo-se na disputa sobre a " morte de Deus", Cox
observou que a palavra "Deus" não perdeu todo o

significado para o homem moderno (como afirma Van Buren) mas,


pelo contrário, adquiriu tantos que impede, mais do que facilita, a
comunicação entre os homens. Sabemos hoje que todas as
doutrinas, ideais, instituições e formulações, sejam religiosas,
sejam seculares, nascem na história e devem ser entendidas em
termos do seu contexto histórico. Como se poderá então manter
uma afirmação de transcendência no contexto de uma cultura
radicalmente imanentista? Só falando, não de um Deus que é mas de
um Deus que será e de Jesus como o primeiro anunciante desse
advento. A fé -em Deus será reconhecida pelo nosso tempo como
esperança num futuro "Reinado da Paz" que torne os homens 'livres
do sofrimento e de sacrifícios significativos. A nova teologia vai
assim novamente inserir-se i-ia

tradição profética do cristianismo primitivo e deverá desempenhar


o papel de guia da comunidade de fé como uma espécie de
vanguarda da humanidade,

327

abrindo caminho à hunanização da cidade e do cosmos e mantendo


viva a esperança num reinado de igualdade racial, de paz entre as
nações e de pão para todos (New Theology n.o 4, pp. 243-53).

Foi principalmente em torno destas obras que se polarizou a


discussão teológica nos últimos anos. Esta discussão envolve
óbviamente não só conceitos filosóficos mas também orientações e
interesses religiosos, sociais e políticos. As confusões entre estes
vários pontos de vista são frequentes nas polémicas em curso que,
precisamente por isso, atraem a atenção de um número crescente
de pessoas. Podem todavia identificar-se os fulcros de tais
discussões e polémicas, nas posições conceptuais que a seguir
rapidamente se resumem.

1) - A nova teologia tende a separar a fé da religião e a contrapó-las


reciprocamente. Neste aspecto inspira-se principalmente na obra
de Bultmann e de Bonhoeffer. A religião é considerada como
expressão mítica ou contingente da fé, condicionada pelo ambiente
histórico no passado e tornada inaceitável na época contemporânea,
dominada pelo racionalismo, pela ciência e pela tecnologia. Esta
recusa da religião é , entre outras coisas, a recusa de todo o
aspecto cultural ou ritual da mesma. Ainda que quase todos os novos
teólogos sejam pastores ou ministros do culto e (tanto quanto se
sabe) prossigam na sua actividade, tendem eles porém a negar ao
culto todo e qualquer valor em confronto com a fé autêntica.
O ensinamento kantiano parece ter sido plenamente aceite neste
ponto. Ter fé não significa executar

328

certos actos ou ritos nem cultivar uma certa forma de ascetismo e


de misticismo, mas apenas (como diz Bonhoeffer) "ser homem",
quer dizer, participar na

vida do mundo, no sofrimento e nas dores dos outros e trabalhar


para um mundo melhor. Sem dúvida, a renúncia à importância do
aspecto cultural da fé tende a diminuir ou a anular a distância, não
só entre as várias confissões religiosas cristãs mas

até mesmo entre religiões diferentes e sobretudo entre o


cristianismo e as religiões orienta-is, sendo esta última tendência
reforçada pelo panteísmo declarado de muitos novos teólogos. Sob
este ponto de vista, a função da Igreja torna-se extremamente
problemática. Segundo Van Buren, esta desapareceu, pura e
simplesmente (The Secular Meaning of the Gospel, p. 191). Segundo
o bispo Robinson (The New Reforination, 1965) a Igreja deveria
escolher o caminho da **kenosis, isto é, deveria "despojar-se" de
tudo quanto lhe confere privilégios e prestígio aos olhos do mundo.
Segundo Cox, é a "vanguarda, de Deus" na cidade secular, a qual
porém não se identifica com nenhuma das organizações existentes
(A cidade secular, cap. VI).

2) - A fé pode e deve prescindir de todo e qualquer elemento


sobrenatural. O sobrenaturalismo é precisamente o resíduo da
religião mítica tradicional. Ouer isto dizer que não existe um mundo
diferente daquele em que o homem vive -e age, um sobremundo do
qual o mundo humano constituiria apenas a aparência ou o vestíbulo.
Neste aspecto a nova

teologia não é senão a aceitação pura e simples do

329

racionalismo moderno tal como foi afirmado pelo iluminismo. Já não


há pois lugar para o mistério. Deus não está para além dos limites
do conhecimento ou dos poderes humanos, no inacessível ou no
inexprimível: reside na própria natureza do homem como tal. É este
o sentido da afirmação de Bonhooffer segundo a qual Deus se
encontra no centro do homem e do seu mundo.

3) - Deus não é transcendente no sentido de ser uma substância ou


uma realidade qualquer, separada da natureza e do mundo e dotada
de causa- ]idade própria, podendo intervir nos acontecimentos

do mundo e modificá-los. A causalidade de Deus identifica-se com a


causalidade natural e histórica e até mesmo a iniciativa divina da
graça opera por meio da livre escolha dos homens. Nesta matéria,
se Bultmann afirmava que o homem deve esperar a sua vida
autêntica, como dádiva do futuro, proveniente de Deus (§ 853),
Bonhoeffer afirma expressamente que o homem deve mergulhar na
vida de

um mundo "sem Dous" e evitar a tentativa de camuflar desta ou


daquela maneira o ser-em-Deus do mundo (Resistência e rendição, p.
246). É neste ponto que insistem os teólogos mais radicais. E trata-
se indubitavelmente do panteísmo clássico, expresso na fórmula
Deus sive natura que identifica a causalidade divina com a mundana
e histórica, com a única restrição (como adiante veremos) de que o
"mundo" aqui -referido é somente o da vida e da sociedade
humanas.

330

4) -A transcendência, negada a Deus, constitui, pelo contrário, a


índole da realidade humana. Nesta matéria foi decisiva a lição do
existencialismo. O ser

do homem é transcendente na medida em que a

existência do homem indivíduo se encontra sempre em relação com


a existência dos outros. Existir, diz Bonhoeffer, quer dizer existir
para os outros. "0 transcendente não é um dever ser infinito e
inatingível mas sim o próximo, determinado de vez em quando e
atingível" (Resistência e rendição, p. 278).

5)-Nesta transcendência consiste o significado da figura de Cristo.


Para Bonhoeffer, Jesus é aquele que viveu para os outros no amor e
por essa razão é no amor que se identificam Deus, Cristo e o

homem (Ethics, p. 176). Para Hamilton, a figura de Cristo encarnou


o "estilo" da vida autêntica que por isso deve ser definida como
imitatio Christi (The New Essence of Christianity, p. 121). Segundo
Van Buren, Cristo é o protótipo do amor humano e a sua história
constitui a norma daquilo que deve ser

a história humana no mundo (The Secular Meaning of the Gospel, p.


149). A "divindade de Cristo" é, sob este ponto de vista,
interpretada corno o modelo, a antecipação ou o anúncio daquilo que
o homem é ou deverá ser no decurso da sua história no mundo. Deus
vive em Cristo porque o modo de vida de Cristo' o seu "ser-para-os-
outros", o amor, é o modo autêntico da existência humana. Altizer
inverteu completamente a fórmula tradicional "Jesus é Deus"
naqueloutra "Deus é Jesus", o que quer dizer que Deus se negou a si
mesmo, ao tornar-se carne e

331

deixou de existir como espírito transcendente ou

desencarnado (The Gospel of Christian Atheisni,


1967, p. 69).

6)-A nova teologia compartilha das esperanças escatológicas dos


primeiros cristãos mas tende a dar à escatologia um sentido novo e
puramente mundano, O "Fim do Muftdo" e o "Reinado da Graça"
constituem assim a anulação ou a superação do mundo humano nas
suas estruturas actuais mas apenas na medida em que representam
o advento dum mundo novo e melhor. É necessário substituir--
dizem--a afirmação "Deus é" pela de "Deus será"; este será não tem
já, porém, o mesmo significado do é. Significa apenas que Leus se
realizará como amor numa comunidade humana que siga o exemplo
de Cristo. Sob este ponto de vista, o "nada" do mundo de que falam
as filosofias orientais é o ser, ainda desconhecido e imprevisível,
deste mundo novo. Altizer insistiu especialmente na conexão que,
neste sentido, se pode -encontrar entre cristianismo e filosofias
orientais, conexão essa, aliás, já estabelecida (como se viu) pelo
panteísmo abertamente aceite pelos novos teólogos. Disse ele que o
movimento da negação radical do mundo, própria das religiões
orientais, é na

realidade a recuperação de uma Totalidade sacra ou primordial,


simbolicamente conhecida como Brahman-Atman, Nirvana, Tão ou
Sunyata, a qual por conseguinte se resolve numa -afirmação total do
Sagrado que está na base do próprio cristianismo ou de que o
cristianismo constitui uma forma (The Gospel of Christian Atheism,
pp. 31-40). Como re-
332

sultado da nova teologia formula-se assim um ecumenismo não


apenas cristão mas universal, o qual compreende todas as religiões
do mundo distinguindo embora de certo modo o cristianismo; esse
resultado é facilitado pela negação da importância do culto, do rito
e das formas mítico-simbólicas nas quais se exprimem as várias
religiões bem como pela função bastante problemática atribuída à
igreja.

7) - Com a negação do valor da religião e de todas as formas de


culto, a nova teologia tende a

identificar-se com a ética ou com a política. Não é sem motivo que a


obra fundamental de Bonhoeffer é uma Ética dedicada
principalmente ao estudo dos problemas morais e políticos do mundo
contemporâneo. Mas a ética de que falam Bonhoeffer e os novos

teólogos é, de modo coerente com os seus pressupostos, uma ética


humana e mundana que não implica renúncia, resignação ou
sacrifício, exaltando até, frequentemente na esteira de Nietzsche,
os valores naturais e humanos: a saúde, a alegria de viver o bem-
estar corpóreo, a sexualidade. Hamilton vê no sexo o símbolo da
relação do homem com o mundo (The New Essence of Christiamity,
p. 155); um outro teólogo põe o problema da sexualidade de Jesus:
se Jesus era homem como poderia o sexo estar ausente da sua
humanidade? (Tom F. Driver, em New Theology n.' 3, 1965. pp. 118-
32). A nova

teologia insiste sobretudo nas modificações sociais e políticas que a


fé autêntica deveria trazer, dentro do espírito do amor cristão, a
toda a comunidade humana. Hamilton escreveu: "A morte de Deus é

333

o acontecimento menos abstracto que se pode imaginar. Conduz


imediata e plenamente a modificações políticas revolucionárias e
conduz também às tragédias e delícias deste mundo" (em "Deus
morreu", Milão, 1967, p. 190). Sob este aspecto a nova

teologia passa a fazer parte daquela procura de uma nova utopia de


que falaremos no parágrafo seguinte.

Os temas atrás esboçados constituem os pontos-chave ou


conceitos-base aos quais se referem os

teólogos, escritores e políticos que participam na

discussão em curso. Outros teólogos protestantes, anglicanos e


católicos submetem estes temas a crítica, ou reconduzem-nos (o
que é bastante fácil) a

posições da filosofia ou da teologia tradicionais, ou então


demonstram (frequentemente não sem razão)

as suas incongruidade e incoerência. É porém uni facto que as


discussões em torno destes temas constituem uma parte
importante do debate filosófico contemporâneo e suscitam um
interesse crescente.
§ 865. MAIS RECENTE EVOLUÇÃO: A UTOPIA NEGATIVA

Já na interpretação que da escatologia cristã deram alguns dos


novos teólogos se vislumbra um renascer da utopia. Trata-se aqui de
uma utopia cujo carácter é mais negativo que positivo pois,
diversamente da utopia clássica (Platão, Tomás Moro, Campanella,
Fourier) que prescrevia, às vezes

pormenorizadamente, a forma da cidade ideal. coti-


334

centra-se sobretudo na crítica dissolvente da sociedade real.

O carácter negativo da nova utopia é evidente no movimento


conhecido por "escola de Francoforte". iniciou-se este na Alemanha,
em Francoforte do Meno, quando, em 1931, o "Instituto de
Investigação Social" passou a ser dirigido por Max Horkheimer
(nascido em 1895) e tem os seus maiores representantes nas
pessoas de Theodor W. Adorno (Francoforte, 1903-1969) e
Herbert Mareuse (nascido em 1898 em Berlim). Afastados da
Alemanha após o advento do nazismo, estes pensadores ensinaram e
trabalharam em seguida nos Estados Unidos da América.
Horkheimer e Adorno regressaram depois da guerra a Francoforte;
Marcuse ficou na América.

Todos três ligam estreitamente a investigação filosófica à


sociológica e à psicológica e declaram inspirar-se em Hegel, Marx e
Freud. Com Hegol, insistem no carácter absoluto da razão e no
carácter negativo ou dialéctico dessa mesma razão, ignorando
porém ou desconhecendo a identidade positiva entre realidade e
racionalidade que é a tese fundamental de Hegel. A Marx vão
buscar sobretudo a crítica da sociedade capitalista e a prognose do
seu fim iminente, ignorando todavia ou descurando, quer o
desenvolvimento da estrutura económica que deveria, seguindo
Marx, determinar a passagem à sociedade socialista, quer o
conceito marxista de que ) homem é essencialmente constituído
pelas necessidades e pelas relações de produção e trabalho que as
satisfazem. A Freud vão buscar o conceito de ins-
335

tinto, entendido como tendência para o regresso a uma situação


originária e o de repressão que é a sofrida pelo instinto na
civilização, ignorando embora ou descurando a função positiva que,
segundo Freud, essa repressão exerce, através do Superego, quer
na formação da civilização quer na da personalidade humana normal.

Horkheimer publicou as primeiras obras na "Zeitsehrifte, für


Sozialforschung" (presentemente coligidas sob o título Teoria
crítica, (1969); publicou seguidamente e por forma esparsa outras
obras, coligidas sob o título Para uma crítica da razão instrumental,
(1967). Um ensaio de 1947, publicado na

América, Eclipse da razão, contém o tema hegeliano em volta do


qual giram as suas reflexões: a distinção entre razão objectiva e
razão subjectiva. A razão objectiva é a dos grandes sistemas
filosóficos (Platão, Aristóteles, a Escolástica e o Idealismo alemão),
a qual tende a estabelecer uma hierarquia de todos os seres e o fim
supremo para que todos devem ser

encaminhados. A razão subjectiva é aquela que se recusa a


estabelecer tal hierarquia bem como a reconhecer um fim último ou,
em geral, a avaliar os fins, limitando-se apenas a determinar a
eficiência dos meios relativamente ao fim, seja este qual for. A
razão subjectiva é o instrumento usado no domínio do homem. Com
efeito, os esquemas a que obedece a visão que o homem tem da
natureza, reflectem-se na imagem que o homem tem dos outros
homens e transformam as relações inter-humanas numa forma de
sujeição do homem por parte da sociedade em que vive. Horkheimer
afirma
336

todavia que o dualismo de razão objectiva e razão subjectiva como


o de espírito e natureza "é só aparente embora exprima uma real
antinomia" (Eclipse da razão, p. 150). A tarefa da filosofia não é a
de regressar à tradição objectivista do passado mas

antes a da destruição do presente por meio de um "progresso na


direcção da utopia" o qual consiste na negação de ou na renúncia a
tudo quanto é inútil ao homem e impede o seu livre desenvolvimento.
Num livro escrito em colaboração por Horkheimer e Adorno e
intitulado Dialéctica do iluminismo (1944), o qual -nunca passou do
estado fragmentário, estas ideias aparecem substancialmente
reforçadas pela identificação da razão subjectiva ou instrumental
com o iluminismo. "0 iluminismo, refere-se às coisas como o ditador
aos homens: só os conhece na medida em que se encontra em
posição de os

manejar. O cientista conhece as coisas na medida em que se


encontra em posição de as criar. É assim que o seu em-si se
transforma em por-ele. Nessa transformação, a essência das coisas
revela-se sempre a mesma, ou seja, como substracto do domínio" (A
dialéctica do iluminismo, p. 17). Esta obra pretende ser uma crítica
radical da sociedade contemporânea. mas apresenta-se antes como
uma colecção desordenada de lugares comuns erigidos em juízos
inapeláveis. Da condenação só se **salrvam Nietzsche (na sua
feição adulterada) e o Marquês de Sade porque "ao proclamarem a
identidade entre razão e domínio, as doutrinas impiedosas são mais
piedosas do que as dos lacaios da burguesia" (Ib.,

129). Os Mínima moralia (1951) do mesmo

337
Adorno, dirigem-se expressamente à defesa do indivíduo ou da
"experiência subjectiva" (Minima moralia, trad. ital., p. 8). Nada se
diz porém sobre a

relação eventualmente existente entre o indivíduo e a experiência


subjectiva e a "razão subjectiva" ou "razão objectiva" a que se
fazia referência nas obras anteriores. influenciado pela lição do
anarquismo e principalmente de Stimer (§ 596), Adorno afirma por
um lado que o indivíduo é a única realidade última, a suprema
essência, mas por outro, afirma que essa realidade se apresenta na
sociedade contemporânea reduzida à aparência ou não-essência,
uma vez que a sociedade é um "sistema" que não só "oprime e
deforma os indivíduos" como "penetra mesmo até àquela
humanidade que em tempos os determinava como indivíduos"
(Minima moralia, trad. ital. pp. 104, 143). Mas em que sociedade
eram os indivíduos "determinados" como indivíduos? Como pode o
indivíduo ser isso mesmo se estiver "determinado" a sê-lo? Como
poderá uma

qualquer organização social abolir ou anular a essência e o que é


uma essência que pode ser reduzida a uma "aparência"? Perguntas
estas que não encontram resposta na obra de Adorno que parece
jogar

com as palavras sem se dar conta do seu significado, com o fim de


se mover entre a nostalgia dum passado que não sabe qual seja a
esperança de um

futuro do qual nada sabe dizer.

A primeira obra de Mareuse foi um ensaio intitulado "Contribuições


para a compreensão de uma
fenomenologia do materialismo histórico" (1928) o

qual é, como o próprio, título indica, uma tentativa

338

de conciliação entre a fenomenologia husserliana e

o marxismo. Esta tentativa responde à exigência a que obedeceram,


entre o terceiro e o quarto decénios do nosso século, outros
pensadores marxistas como Grarasci e Lukács-de subtrair o
marxismo à interpretação engelsiana-positivista contida no
"materialismo dialéctico", ou seja, na doutrina oficial dos países
comunistas. Pela sua obscuridade e confusão de conceitos, aquela
obra não abria grandes perspectivas. Porém, muitos anos volvidos
(1964), voltando ao tema, Marcuse dá-nos um juízo muito mais
concludente sobre a fenomenologia. Husserl afirmara justamente
que a Razão tem uma validade superfáctica e supertemporal e que
por ásso a realidade descoberta e definida pela Razão é racional na
medida em que é contra o facto, que consiste num dado imediato.
Reconhecera justamente "o feiticismo da universalidade e da
racionalidade científicas, ao descobrir os fundamentos histórico-
práticos específicos da ciência", ou seja, que a ciência não é mais do
que uma simples estrutura tecnológica. Reconhecera enfim
justamente que a ideia de Razão é a do telos do homem como tal,
quer dizer, a

realização da humanitas. Isto não significa porém que o humanismo


se tenha rebaixado ao nível de uma mera ideologia nem sequer que,
ao tomar-se uma ideologia, se tenha rebaixado. "Permanece o facto
de que o humanismo é ainda hoje uma ideologia, um valor mais alto
que pouco influi no carácter inumano da realidade. E permanece
também a

dúvida sobre se a filosofia será inteiramente inocente deste estado


de coisas, sobre se ela própria

339

não será culpada por faltar ao seu dever de Theoria, de Razão, ou


seja, de promover a realização da Humanitas" ("On Science and
Phenomenology" em

Boston Studies in the Philosophy of Science, New York, 1965, pp.


279-90). E na verdade as obras de Marcuse têm por objectivo
fundamental a demonstração de como a filosofia terá falhado na
sua tarefa de realizar, por intermédio da Razão, a humanitas de
como esta tarefa deve hoje ser confiada à prática, em sentido
marxista, ou seja, a forças político-sociais revolucionárias. As
principais obras de Marcuse são as seguintes: A ontologia de Hegel
e as

bases de uma teoria da historicidade, 1932; Razão e

revolução: Hegel e o nascimento da teoria social,


1941; Eros e civilização, 1955; O marxismo soviético, 1958; O
homem unidimensional: estudos sobre a ideologia de uma sociedade
industrial avançada,
1964; O fim da utopia, 1967; Ensaio sobre a libertação, 1969.

Aquilo que na obra de Marcuse permanece constante é a crítica


radical e a condenação sem a-pelo de Ioda a sociedade
contemporânea, mesmo naqueles aspectos que considera como
<progressos" relativamente a estádios anteriores desta sociedade.
Porém, sob o ponto de vista filosófico, as oscilações do seu
pensamento são desconcertantes. Umas vezes reconhece na Razão a
existência do princípio da realidade, outras vezes reconhece essa
mesma existência no Instinto. Umas vezes considera a razão como o
momento crítico e negativo da realidade e outras, hegdlianamente,
como a própria realidade. Umas vezes considera-a corno o dever-
ser que se

340

contrapõe ao ser, a ideologia destinada a sustentar a realidade e a


estimular as forças de renovação da sociedade; outras vezes,
considera-a, pelo contrário, como compreensiva tanto do bem como
do mal, do humano como do inumano, da sociedade ideal como da
real. O mesmo acontece com o Instinto. PoT um lado o Instinto é,
para Marcuse, a força primordial e criadora da vida que impele ao
prazer e à alegria e que não deveria portanto tolerar repressão nem
limites-, por outro, admite uma corta forma de repressão e até
mesmo uma transformação biológica radical do próprio instinto.
Desta hesitação quanto aos princípios deriva uma outra, sobre os
conceitos básicos utilizados por Marcuse e, em primeiro lugar,
sobre a liberdade. A liberdade é, por um lado, identificada com a
necessidade da Razão e por outro com a escolha. Mareuse fala-nos,
utilizando os conceitos do existencialismo contemporâneo, de
possibilidade, de escolha, de projecto; por outro lado, -porém,
admite um determinismo necessitante que a sociedade como um
todo exerceria sobre os indivíduos, anulando as suas individualidade
e humanidade e por conseguinte toda a sua capacidade de escolha e
de planeamento autónomos.

Razão e revolução, que é** sub5tanoialmente uma

defesa da doutrina de Hegel contra a acusação de servir de


fundamento às teorias absolutistas do Estado e sobretudo ao
nazismo, acaba por reforçar esta acusação. Hegel "não é culpado de
servilismo mas

de traição no confronto das suas ideias filosóficas mais elevadas. A


sua doutrina política admite a submissão da sociedade à natureza,
da liberdade à

341

necessidade e da razão ao arbítrio" (Razão e revolução, trad. ital.,


p. 247). Nessa mesma obra a doutrina de Marx é interpretada no
sentido de que "a abolição do proletariado implica a abolição do
trabalho como tal" e que portanto "a ideia marxista de uma

sociedade racional implica a existência de uma ordem na qual não já


a universalidade do trabalho, mas antes a realização universal de
todas as potencialidades dos indivíduos constitua o fundamento da
organização social" (Ibidem, pp. 326-27). Vice-versa, em Eros e
civilização, Mareuse sustenta que "a correlação freudiana repressão
do instinto -trabalho socialmente útil -civilização pode, som se
tornar

absurda, ser transformada na correlação libertação do instinto-


trabalho socialmente útil--civilização" (Eros e civilização, trad. ital.,
p. 125). Pareceria portanto que a libertação do homem não
implicaria a abolição do trabalho. A "Grande Recusa" (designação
inspirada no Manifesto do Surrealismo proclamado em 1924 por
André Breton) consistiria no

"protesto contra a repressão supérflua, na luta pela forma


definitiva de liberdade-um viver sem angústia" (Ibidem, p. 121). E a
obra inteira tem como objectivo a demonstração de que a "auto-
sublimação da sexualidade" destrói o primado da função genital,
transforma todo o corpo em órgão erótico e o trabalho em jogo,
divertimento ou espectáculo. Com o advento do puro Eros, ficaria
destruída "a ordem repressiva da sexualidade procriadora" (Ib., p.
137). Mas não ficaria também destruída a capacidade humana de
reprodução?

342

Em O **lwnzem unidimensional, no qual reaparecem todos os


motivos de crítica da sociedade tecnológica e da ciência, dispersos
pelas anteriores obras de Marcuse e pelas de Adorno, o homem
unidimensional, ou seja, alienado na sociedade tecnológica, é aquele
para o qual a razão se identifica com a realidade e que por isso não
distingue já a

separação existente entre o que é e o que deve ser, uma vez que
para ele, não há, para além do sistema em que vive, outros modos
possíveis de existência. Para o homem unidimensional, a Razão é
incapaz de transcender a realidade em acto e de ,projectar novas
formas de vida social e histórica.
O resultado é "a progressiva servidão do homem por meio de um
aparelho produtivo, que perpetua a luta pela existência e a
generaliza numa iluta total e internacional que destrói as vidas dos
que constroem ou utilizam esse aparelho" (One Dimensional Man, p.
144). Em face desta situação, a tarefa da filosofia consiste em
restituir à Razão a sua liberdade de planeamento e em exercer
uma função ideológica e portanto terapêutica por meio da
elaboração de um "plano transcendente", ou seja, de um

plano da existência humana no mundo em bases radicalmente


diferentes das actuais. Este plano deveria, em primeiro lugar, estar
de acordo com as possibilidades reais que se abrem a um
determinado nível da cultura material e intelectual. Em segundo
lugar, deveria revelar a mais alta racionalidade, num triplo sentido:
ao oferecer a perspectiva de conservar e melhorar os resultados
produtivos já obtidos pela civilização, ao definir a civilização actual
nas

343

suas tendências básicas e nas suas estruturas, e finalmente, ao dar


uma maior oportunidade à pacificação da existência por intermédio
de **Áristi-tuições que ofereçam maiores oportunidades para um
livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas (Ib.,
p. 220). Um tal plano deve, segundo Marcuse, utilizar as
possibilidades reais, inerentes à civilização instrumental ou
tecnólógica mas, ao mesmo

tempo, deve transcendê-las mediante a força transformadora da


Razão. "A Razão", acrescenta Marcuse, "pode desempenhar esta
função apenas como racionalidade pós-tecnológica em que a técnica
constitua ela própria o instrumental da pacificação, o

órgão da "arte da vida". A função da Razão e a

função da Arte serão então convergentes". (Ib., p.


238). Com tudo isto, a teoria crítica da sociedade permanece
negativa pois não possui conceitos capazes de superar o abismo
entre o presente e o futuro, não faz qualquer promessa nem mostra
qualquer êxito; porém, deste modo, "pretende conservar--,e

fiel àqueles que deram c dão a sua vida pela Grande Recusa" (Ib., p.
257). A conclusão da obra é pois negativa. Quais sejam as
"possibilidades reais" que a sociedade actual apresenta de um
futuro melhor, não no-lo diz Marcuse e, acima de tudo, não nos diz
como tais possibilidades, inerentes à realidade em acto, fazendo
parte dela e por ela substancialmente determinadas, poderão de
algum modo transcendê-la, não nos diz igualmente como se poderão
utilizar e desenvolver, negando ao mesmo tempo na sua totalidade o
sistema ao qual são inerentes.

3 4; @,1

Nos ensaios posteriores, Marcuse acentuou o

carácter político da sua filosofia, ao apontar nas

classes deserdadas a existência de forças capazes de promover a


renovação da sociedade e o começo de realização no <,o plano
transcendental". Continuou a insistir no carácter abstracto ou
negativo da sua utopia. " As possibilidades da nova sociedade",
escreveu recentemente, "são de tal maneira "abstractas" e por
conseguinte tão longínquas e incongruentes, relativamente ao
universo actual que desafiam toda e qualquer tentativa de
identificação em termos deste mesmo universo" (Ensaio sobre a
libertação, trad. ital., pp. 101-02). Como falar nelas, então? Marcuse
admite porém que o "antigo não é pura e simplesmente ruim, pois
produz bens nos quais as pessoas encontram real satisfação. Podem
existir sociedades muito piores e aliás existem, hoje em

dia. O sistema capitalista tem o direito de pretender que aqueles


que se empenham em substituí-lo justifiquem a sua acção" (Ib.).
Mas como poderão justificá-la se na-da sabem dizer sobre o que
deveria substituí-lo?

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 861. H. WOODGER, Biology and Language, Cambridge, 1952; W.


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BACH, SAUMJAN, SCHAFF, LEROY, S0MMERFELT, PANDE, Os
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G. SCHiwy, Der franzosische Stmkturalismus, Rowohlt, 1969
(selecção de textos com Introdução).

Para uma crítica da rigidez metafísica da noção de estrutura: U.


Eco, A estrutura ausente, Milão, 1968.

§ 863. T. DOBMANSKY, Genetics and the Origin of Specie8, 1937;


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1968 e segs.; E. MAYR, Animal Species in Evolution, Cambridge,
Mass., 1963; DOIM-TANSKY, A evolução da espécie humana, Turim,
1965; The Biology of Ultim-at Concern, Nova Iorque, 1967, trad.
ital., Bari, 1969.

§ 864. BONHOEFFER, Gesammelt Schriften, 4 vols., Munique,


1958-61; Ethics, trad. ingl., Londres, 1955; Ética, trad. ital., Milão,
1969; Resisténcia e rendição, trad. ital., Milão, 1969.

Sobre Bonhoef`fer: F- BETHGE, D. B., Theologe, Christ,


Zeiigenosse, Munique, 1967; A. DUNIAS, Une tlèéologie de la
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J, ROBINSON, Deus não é assim, trad. ital. da Honest to God,


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347

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Filadélfia, 1966; M. E. MARTY e G. PEERMAN, New Theology n. 1,
Nova Iorque, 1964; n. 2, Nova Iorque, 1965; n. 3, Nova Iorque,
1966; n. 4, Nova Iorque, 1967; Deus morreu?, volume colectivo,
Milão, 1967; R. ADOLFS, O túmulo de Deus, Milão, 1968.

E. L. MASCALL, The Secularizalion of Christianity, An Analysis and


a Critique, Nova Iorque, 1965; K. HAMILTON, God is Dead, The
Anatomy of a Slogan, Grand Rapids, Mich., 1966; H. Cõx, A cidade
seculm-, trad. ital., Florença, 1968.

§ 865. Notas sobre I-lorkheimer, Adorno e Marcuse, sobretudo no


seu período de Francoforte, em
G. E. Rusconi, A teoria crítica da sociedade, B-olonha,
1968, 111 parte.

M. HORICHEIMER, Eclipse da razão, trad. ital., Turim, 1969.

T. W. ADORNO, Mínima moralia, trad. ital., Milão,


1954; Filosofia da música moderna, trad. ital., Turim,
1959; M. HORKHEIMER-T. W. ADORNO, Dialéctica do iluminismo,
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H. MARCUSE, Eros e civilização, trad. ital., Turim,


1968; Razão e revolução, trad. ital., Bolonha, 1965,
1967; O homem unidimensional, trad. ital., Turim,
1967; O fim da utopia, trad. ital., Bari, 1968; Ensaio sobre a
libertação, trad. ital., Turim, 1969.

Sobre Mareuse: C. A. VIANO, Marcuse ou os remorsos do


hegelianismo perdido, em "Revista de filosofia", LIX, n. 2, 1968,
págs. 149-183; Colletti, Hegel e o marxismo, Bari, 1969.

348

íNDICE

XIII- O NEO-EMPLR1SMO ... ... 7

§ 805. Características, do neo-empirismo 7 § 806.


Escolas nco-empiristas ... ... 9 § 807. Schlick .. ... ... ...
... ... 12 § 808. Neurath .. ... ... ... ... ... 16 § 809.
Wittgensteiii: linguagem e factos is

§ 810. Wittgenstem: as tautologias ... 24 § 811.


Wittgenstein: a pluralidade das

linguagens ... ... ... ... ... 30 § 812. Carnap: relações e


experiências 36 § 813. Carnap: dado, protocolo, predicados
o_bserváveis ... ... ... ... 42 § 814. Carnap: a sintaxe lógica
... ... 46 § 815. Reichenbach ... ... ... ... ... 53 § 816.
Probabilidade e indução ... ... 56 § 817. O principio da
refutabilidade:

Papper ... ... ... ... ... ... 62 § 818. O princí.oio de


verificabilidade 65 § 819. Propoisições analíticas e sintéticas
70

349

§ 820. A semântica ... ... ... ... ... 75 § 821. A filosofia


analítica ... ... ... 78 § 822. O neo-empirisino ético ...
... 85 § 823. O neo-emoirismo estético ... ... 90 § 824.
O neo-ipositivismo jurídico ... ... 92

NGta, bibliográfica ... ... ... ... 99

XIV -A FENOMENOLOGIA .. ... ... ... 105

§825. Características de fenomenologia 105 §826.


Antecedentes da fenomenologia:

Bolzano, Brentano ... ... - ios §827. Husserl: Vida e obra


... ... ... 113 §828. A Epoiché ... ... ... ... ... 115 §829. A
intencionalidade ... ... ... 119 §830. O Eu ... ... ... ... ...
... 123 §831. O mundo da vida ... ... ... ... 128 §832. A
tarefa da filosofia ... ... ... 133 §833. A teoria dos
objectos: Meinong 137
350

§ 834. Hartmann: a antologia ... ... 143 § 835. Hartmann:


a neceissidade do ser 148 § 836. Hartmann os estratos do
ser ... 154 § 837. Scheler: o mundo dos valores e

da pessoa ... ... ... ... ... 159 § 838. Scheler: a sociologia
filosófica 169

Nota bibliográfica ... ... ... ... 175

XV-0 EXISTENCIAJISMO ... ... ... ... 179

§ 839. Características do existencialismo 179 § 840. O


existencialismo como clima cultural ... ... ... ... ... ... ... 181

§ 841. Existencialismo e fenomenologia 185 § 842. O


renascimento kierkegaardiano:

Barth ... ... ... ... ... ... 188 § 843. Heidegger: ser, ser-aqui,
existir 192 § 844. Heidegger: o estar no mundo e

a existência inautêntica ... ... 198

351

§845. Heidegger: a existência autêntica e o viver para a morte


... ... 204 §846. Heidegger: o tempo e a história 209
§847- Heidegger: o ser ... ... ... ... 216 §848. Jaspers:
existência e razão ... 223 §S49. Jaspers: existência e
situação ... 228 §850. Jaspers: transcendência e fracasso
234 §851. Jaspers: lógica e comunicação 236 §852.
Jaspers: fé e revelação ... ... 241 §853. Existencialismo e
desmitificação.

BuItmann ... ... ... ... ... 245 §854. Sartre: u, emoção,
imaginação 250 §855- Sartre: o "em si" e o "por si"
253 §856. Sartre: a liberdade como destino 258 §857.
Sartre: a razão dialéetica ... ... 262 §858. Merleau-Ponty
... ... ... ... 272 §859. Existencialismo, marxismo, hegelianismo
... ... ... ... ...... 279 Nota bibliográfica ... ... ... ... 287

352

XVI - A MAIS RECENTE EVOLUÇÃO ... ... 293

§ 960. Tendências gerais ... ... ... ... 293 § 861. A teoria da
informação ... ... 295 § 862. Estruturalismo ... ... ... ...
303 § 863. A nova biologia ... ... ... ... 316 § 864. A nova
teologia ... ... ... ... 320 § 865. A utopia negativa ... ... ... ...
334

Nota bibli,3gráfica ... ... ... ... 345

353

Composto e impresso

para a

bMITORIAL PRESENÇA

na

Tipografia Nunes
Porto

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