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Rio de Janeiro
2009
Salomão Rovedo 2
Rio de Janeiro
2009
Índice 3
1. Amor por Anita, pg. 4
4. Greve, pg. 24
Era sua mãe que dizia andando pela casa toda, arrumando-se e
dando ordens à empregada. No quarto, viu Lúcia, sua irmã, deitada
com os cabelos louros esparsos no travesseiro.
Mããêê!
Caminhava pendurado no braço da sua querida mãe bonita que
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todo mundo olhava com admiração. Gostava de ter uma mãe assim.
Mascava chicles e uma bola verde de quando em quando flutuava sob
seu nariz para depois estourar. Olhava vitrines, mas não podia parar
para vê-las melhor porque sua mãe estava com pressa. Viu-a parar
depois continuar andando a meios passos. Foi aí que viu aqueles pés
grandes ao lado dela. Olhou.
Mãe! Vamos.
Cuspiu o chicle que tinha na boca. Não queria mais chicles. Sua
cabeça ficou quente e sentiu um amargor na garganta. Ficou com raiva
daquele homem que estava fazendo sua mãe ficar zangada. Morderia o
braço dele, que agora estava segurando o braço da mãe, e estaria livre
daquele bigodudo feio que veio atrapalhar o passeio pela cidade.
Alegrou-se, pois viu que sua mãe ainda gostava dele. Não estava
mais com aquela cara irritada e já falava naturalmente. Quis mostrar a
língua aquele homem de grandes bigodes numa careta que
demonstrasse que sua mãe estava livre dele. E fora ele, Anjo, que a
salvara com a sua insistência em ir pra casa, lugar que não queria ir
mesmo. Mas, o sacrifício pela mãe, que ele tanto adorava, que se
sentia alegre quando a chamavam de linda, com aquele bonito garoto
ao lado. Era ele.
Às oito.
DEZ PARA AS NOVE
(Em ritmo da Confissão)
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Não se deve abominar a guerra, ela é tão necessária quanto à
paz. É o próprio prenúncio à paz. O mundo todo hoje guerreia em
busca da paz. Que a guerra tenha, pelo menos, esse caminho
honroso.
- César, levanta!
- Vamos ao cinema?
Por que certas horas deixo de falar com você? Por que em
muitos momentos procuro o exílio voluntário para demonstrar
minha mágoa? Parece contraditório tudo isso, a pessoa que diz e
confessa amar de verdade simplesmente se afasta do convívio do
ente querido! Como, porém, resistir permanecer ao seu lado
sentindo um calor abrasante que transmite o seu corpo com todas
as intimidades. Ter você, sua boca, lábios, ali bem próximos ao
menos aceno das mãos sem nada poder fazer? Como agir se desejo
loucamente gozar tudo isso o maior dos gozos, fazê-la sentir o
mesmo, gozar de todas as maneiras e artes que sei fazer? Você tão
perto e tão longe, tão acessível e tão impossível, se for pensar
continuamente nisso é para ficar louco mesmo!
- César, levanta.
- Vamos ao cinema?
Isabel é a praia.
- César.
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César, a cara enfiada entre os braços, não responde. As costas
voltadas ao sol queimam-se e estão excessivamente vermelhas.
Dormita. Apenas o murmúrio das águas, contínuo, penetra-lhe os
ouvidos. Vê, na imaginação, as ondas em seu sobe-e-desce, às
vezes estrondando, às vezes deslizando sobre a areia.
- Hum.
Dá-me a língua, chega esses seios pra cá, abre um pouco mais
a boca, as pernas, vira, fecha os olhos, levanta um pouco, assim, oh
que coisa linda ver o corpo em decúbito, humhum, estou bebendo,
engolindo o sumo da vida, alma, sem morder, não morde, devagar
com muito carinho, oh isso! Levemente, tomara que nunca acabe!
Não tente fazer isso na minha cara, meu rosto, louca, maluca! Está
pensando que sou o quê? Oh que bunda, não, não aperta minha
língua, veja bem sinta bem o que faço, gosta? Quero ouvir, quero
escutar bem alto: diz que gosta muito, dos seus lábios cheios, algo
além de murmúrios de prazer, suspiros, alguém já beijou aqui?
Assim? Nunca? Pois é assim eu gostaria de ser sempre: o primeiro
– não é egoísmo, ou é? – gosta da minha loucura? E assim? Mais?
Realmente acho que ninguém jamais imaginou beijar e enfiar a
língua aí! Mas dizem que nada é novo no mor. nem sei mais o que20
fazer e não canso jamais de passar m seu corpo, você me devolve o
prazer! Que coisa! Não faz, não pára, mais, cada vez mais, ficaria a
vida toda assim, amando sem palavras como deve ser o amor, sem
pensar em comida e bebida, antes, definitivamente comendo e
bebendo o seu corpo, seu gozo, seu suor, sua saliva, beijando os
seios e se machucam irritados contra meu corpo, vem, vamos
recomeçar tudo outra vez e continuar o que dá no mesmo, me dá a
língua, quero senti-la na garganta como se fosse a minha, chega
esses seios pra cá um e outro, quero abocanhá-la totalmente e à
flor rósea plantada entre as pernas, morder os bicos irritados dos
peitos que ao se acanham nunca, veja como um deles está
sangrando um pouco, acho que mordi forte demais, mas apenas
goza, vou passear com a boca colada em seu corpo, nas axilas enfio
meu rosto e aspiro o suor, o cheiro de suor e do amor eu reascendi
no ambiente, depois caminho pro umbigo desmaiado e lambendo
o ventre úmido a caminho do além obedecendo somente ao ritmo
de suas contorções como um trem veloz, suas coxas me atraem
como um barco eu atraca no porto, os pelos envolvendo macios o
meu rosto, minha boca, oh abre um pouco mais as pernas que me
sufoco. Bebendo o sumo, engolindo a alma, a própria vida, nada
me escapa nem quero deixar perder uma gota sequer do seu gozo,
não morde, aperta devagar, com mais carinho, oh isso! Agora vira,
levanta bem as nádegas assim, não vai acabar jamais, cuidado com
o meu rosto, não faz isso! Louca mulher, aperta com carinho a
minha língua, quero ouvir dos seus lábios que está gostando e eu
sou o primeiro a passear nesse vai e vem por esses caminhos, está
adorando? Alguém já chupou aqui? Como gostaria de ser o
primeiro, o único, o egoísmo me diz que sou o único que ama de
verdade, agora deita seu rosto suado no meu peito e dorme.
- César, deita-te.
É Esmeralda quem pede, com a voz terna, a César que anda22
entre a cama e a janela indeciso e vago. Tenta obedecer à voz que
pede sem o conseguir. Quer abraçar o corpo esguio de Esmeralda,
enterrar o rosto entre os seios e sentir o pulsar do coração: Tum-
tum, Tum-tum, Tum-tum. Sentir a aceleração irregular
conseqüente da aproximação do amor. Quer penetrar na janela da
frente onde alguma mulher se veste, quer sair dali e beber alguma
coisa num botequim onde tenha gente estranha, quer saber das
dificuldades alheias.
Como as máquinas, os homens que vão para São Luis não têm
como voltar. Vão ficando por falta de retorno, esperando melhorar,
com pouco mais arranjam família, os filhos vão sujando os pés de
barro e a raiz tá criada. Antes disso tudo, agüentar aquela calorama
toda só encarando as bocas do mato, a zona, o Buraco do tatu ou os
randevu lá pras bandas do Tirirical.
Isso no tempo em que se deu o Caso João, hoje não sei nem
quero saber – pra mim São Luis é terra boa, ela lá e eu aqui.
Um dia, fugiram.
Ele tinha sempre que responder: uma, duas, três e até quatro
vezes. quanta perguntasse o delegado.
Sedo assim, Maria das Dores tinha quase tudo o que desejava:
meias, sapatos, vestidos e jóias. Ia até no salão de beleza e saía toda
jeitosa. Carlos admirava-se toda vez que ela aparecia na porta do
salão. E perguntava brincando: É tu mesmo, Maria, ou eu estou
sonhando? Mas, taí onde Carlos ficava embrutecido. Era quando
Maria das Dores pedia para ele a deixarela esticar os cabelos. Largava
o braço dela, afastava-se um pouco e dizia irado: Negra que estiva os
cabelos não tem vergonha na cara. E se tu, um dia, esticar os teus eu te
meto uma faca na barriga. Maria das Dores disfarçava sorrindo e
dizendo toda alegre:
Era a resposta que ele dava. Olhou pro corpo e viu que estava
agora todo molhado. O calor, os pensamentos e aquele tabaco
horrível, traziam-lhe à realidade. Ainda continuava naquele cárcere
imundo e fedorento. Onde aquele delegado, sempre pedindo um copo
d’água, continuava suado. O delegado estava agora com a camisa toda
aberta pondo à mostra o seu peito cabeludo e ensopado. Sempre
escrevendo, sempre perguntando. Sempre chamando Jesus Carlos de
preto (ou negro, o que dá na mesma). E Jesus Carlos não gostava
daquilo.
Jesus Carlos saiu desolado e surpreso. Que diabo, não a viu sair.
Mas não tirou os olhos da porta. Acabou deduzindo que foi quando ele
se virou para olhar uma morena bem feita. Bem feito – diria ela – para
não olhar mulher dos outros. Resolveu ir para casa. À noite veria
Maria das Dores e mostraria as alianças. Mas, quando chegou a casa –
aí estava a verdadeira surpresa da sua vida. Sentiu um pulo em seu
pescoço, sentiu duas mãos tapando-lhe a vista e escutou a voz de
Maria das Dores.
Talvez fosse melhor para ele ter que sair daquele lugar. As
lembranças desapareceriam mais depressa.
- Jesus Carlos, vem cá. Mete aqui nesta cachola por que iria um
preto decente como tu matar uma garota bonita como a tua noiva. Por
quê? Por que negro? Eu não vejo uma razão sequer. Tu não gostavas
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dela? Ela não gostava de ti? – perguntou o delegado. – Vocês não iam
se casar?
Estupefacto general!
A voz:
Dona Liza há de repetir estas palavras toda vez que notar uma
nova qualidade na interiorana. Depois o doutor senador. Velho, quer
saber muitas coisas do convento e eu conto. Coisas que não sei, pois
convento eu nunca vi. Mas a sabedoria me trouxe ao mundo e eu
conto coisas que o ilustrado senador não sabe, nunca viu um convento
também. Conversamos, conversa vai, e dona Liza tem de sair. Fazer
compras, fingir. Estando sós, o seu doutor já se achega a mim. Eu não
sou uma freira, mas seus olhos não dizem isto. È uma noiva de Cristo
que ele acaricia. É sob as vestes espessas de uma candidata a santa que
sua mão trêmula passeia. Minha natural inocência a tudo que acontece
de repente, trazida do mato, só me aumenta a febre. As roupas
transtornadas em louco desalinho e eu sentindo estranhos tremores a
percorrer as linhas dos meus nervos. Nem consigo ver direito o
senador, embaraçado entre panos e saias. o crucifixo jogado
displicente para cima de mim, tudo sumindo da minha visão. Do lado
de cá só eu e Cristo mesmo.
Tempo depois:
Ainda depois:
Não, não era a mesma Juana que contava histórias mal passadas,
os olhos úmidos de brilho e alegria, a que hoje vinha de farda azul-e-
branco, livros ajeitadamente abandonados, pupilas distendidas
(incontroladas) exaltando a ânsia estudantil de conhecer mil segredos.
O hipnótico farfalhar da saia curta, meias brancas arriadas até o
calcanhar, o sapato negro, o sorriso. O sorriso de uma pressuposta
gazeta, uma fuga conivente, tudo improvisado.
Primeiras confissões:
Daí encontrei dona Liza. Alma boa a dona Liza, mas sabe bem
aproveitar nossas necessidades. Alegrou-me um doutor senador muito
importante que – sabe – era louco por virgindade, essas coisas. Dá um
bom dinheiro, afinal, e quando os patrões pagam mal e porcamente o
jeito é aceitar essas ofertas descaradas. A cidade grande tem o que
mostrar é uma prisão de liberdade, padre.
O padre sabe – tenho mais que certeza – como essa vida é difícil.
O doutor senador quer saber muitas coisas do convento que imagina
eu estar internada. Coisas que não sei, pois convento nunca vi. Eu não
sou freira, mas seus olhos não dizem isto. É uma noviça que ele
acaricia e beija, as roupas transtornadas em louco desalinho sob as
quais suas mãos passeiam em carícias. Nem consigo ver mais o
senador ora embaraçado entre panos e saias. Do lado de cá só eu e
Cristo mesmo.
Aquela, padre, não era a mesma Juana do interior. Mas, oh, não
adianta admirar as coisa, as flores, quando se é puta. A vida resumida
num apartamento, não num lugar qualquer pulguento e fétido, um
lindo apartamento de luzes coloridas, cortinas aveludadas, música ao
fundo. Uma prisão em cores, de viver à noite e morrer de dia. Tudo,
padre, um sonho real mal contado. Entreacordado o sonho trazia o
japonês que só queria ir atrás, louco e beijar todas as minhas partes. O
senhor sério, que falava de voz embargada tipo um candidato, porém
igual a todos os anormais – pedia para meter o dedo não sei aonde até
gozar. Aquele outro que não teve nem tempo de ter relações e foi
embora apressadamente, para não perder o avião. Mas deixou o
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dinheiro. Quantos tipos tiveram posse de meu corpo, padre, milhares e
milhares, de acordo com o seu temperamento e vontade momentânea.
Mas, oh, não adianta falar tudo isso para quem não escuta, o bom
ainda é admirar a natureza, as flores, quando se é uma Juana qualquer.
Padre Abel, nu, não tinha mais ouvidos. Juana displicente coçou
o bico do seio onde uma gotícula de suor tinha se acomodado. O sutiã
balançava ao vento pendurado na janela. O padre acompanhava-o no
vai e vem ritmado.
Carta
Amor ou amizade,
pergunta o coração à saudade
vendo céleres os dias (ante) passados,
a verdade confundida.
Amor fosse
Fixos sempre em lembranças róseos,
Ternos dias de ânsia sufocante.
Os murmúrios intraduzíveis, os beijos.
Sendo amor, resta sólido sentimento
- respeito à alma puríssima,
Embora, ó mundo! De criatura vilipendiada,
de irmanado afeto – idem.
Se amor.
temporariamente retornará mental
a plural vontade de ressentir:
(o meigo rosto, carícias, hálito quente,
beijos, corpos em nó, gozo)
e saudade, saudade.
Amizade. as formas, fumaça simplesmente
E volatizados seremos, frios
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(gélidos)
Coloridos como postal de cidade.
3ª poesia: Tintas
6ª poesia: O Robô
A Fábula do Cidadão
Finge que não me vê, não me escuta. Cada vez mais grito, cada
vez mais pioramos.
- Plante, replica. A terra que nos coube é árida, seca. Não temos
adubo, trator ou arado, qualquer equipamento. Plante, insiste o
monstro.
Em triunfo!
O EVANGELHO SEGUNDO 73
E Jesus gerou a Davi e Davi a Salomão da que foi mulher de
Urias. E Jacó gerou a José marido de Maria da qual nasceu Jesus que
se chama Cristo. Aquele que seria o Nazareno Rei dos Judeus e de
toda a humanidade.
Fernando não desistia jamais. Deixava passar um, dois, três dias
e tornava à carga com maior veemência. Ora por telefone, ora
pessoalmente, quando presente na vila. vezes por cartas, vezes por
telegrama se ausente da localidade. jamais desistindo, jamais. As
pessoas amigas da família preocupadas, não podendo recusar, por 80
motivos sociais, intercessão junto a Lucy que permanecia irredutível.
Não cedia milímetro.
- Não.
Ontem Hélio veio fazer visita mais uma vez. Como era praxe,
estava completamente alcoolizado, cheirando a bebida. Discutiram
sobre assuntos diversos aloucadamente, debate sem nexo que provoca
a ira rapidamente. A situação irregular de ambos veio à tona, como
seria inevitável. Maria Graciosa sempre alegava em seu favor ser a
última das mulheres do mundo por manter essa situação desastrosa.
- Nem uma puta! Vive com eu, pois tem liberdade de escolha.
Relembrava as vãs promessas, as mentiras alimentadas por ambos, as
tentações oferecida pelo militar para conseguir o que finalmente
conseguiu: seduzir e abandonar (com seduziu) (como abandonou). A
sobra naquela ridícula posição social.
Tudo era um mar de rosas até o dia em que Hélio decidiu pela
separação. Maria Graciosa viu ali não só a sua libertação, mas a de
todas as mulheres, cinderelas anônimas que ninguém mais acredita
existir, enganadas por homens atores de primeira página, cafajestes de
piores resquícios humanos.
NO LIMIAR DO 4º SEXO
Não é atrasada e vive a sua vida sem dar satisfação a quem quer
que seja. A não ser pela denúncia de ruídos durante a noite e ao uso de
excitantes e psicotrópicos (este realmente perdoável), não vê crime
algum no modo de vida adotado por ela e seus amigos. Aos 21 anos,
sofrida, já se considera experiente nos trejeitos e segredos mais
profundos do sexo. Até a tragédia, era separada do amante do qual
sofria maus tratos que só os homens sabem dar. Após vários anos de
vida semi conjugal sabe muito bem o que significa a dedicação a um
ente que só fez esgotar suas reservas femininas. Aturar beberragens e
posteriores pancadas, discussões eternas e sem rumo – só até se tornar
independente. A tragédia veio acelerar a sua libertação e a
oportunidade bem que não seria desperdiçada.
Para onde irá Maria Graciosa? Fará parte de uma nova jovem
humanidade minoritária? Qual será o caminho dado por nós e pelos
responsáveis com opção?
(Uma reportagem curta e estarrecedora. O Diário de Vila
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Felicidade foi citado e mencionado a prêmio pelo forte e sincero apelo
a um novo rumo, pelo oferecimento de um novo e independente
mundo aos nossos camaradas: os jovens).
UNS NATAIS 88
Meu Papai Noel de todo mundo eu tive quando era criança. Na
casa onde morávamos, eu e meus irmãos, havia sempre uma alegria
sem fim quando de manhã bem cedinho dávamos um pulo da rede pro
chão. Era um pulo. Zás, agarrávamos os nossos pacotes e, casa um, de
per si, abria-os para deslumbrar o seu presente. Alguns tinham uma
tristeza momentânea ao verificar que o brinquedo pedido na cartinha
não estava ali e sim outro às vezes mais feio ou mais barato. É que
geralmente pedíamos o que o sonho imaginativo mandava. Trens
elétricos, bicicletas, automóveis e outros brinquedos que o nosso
Papai Noel não podia dar. E nós não sabíamos que ele não podia nos
presentear coisas tão caras.
Esse meu Papai Noel era o Papai Noel universal. Tinha barbas,
tão brancas, o rosto corado e gorducho, usava roupas grandes e
vermelhas, um cinto preto com um bruta fivela dourada, botas de cano
longo e um sorriso eterno nos lábios. Andava geralmente num trenó.
Deslizando por sobre a neve alva como a sua barba. Mas lá onde
morávamos não tinha daquelas neves branquinhas. Onde andaria ele
então? Depois, olhando cartões de Natal verifiquei que ele andava
também pelos ares. Flutuando. Aqui no Norte – pensei – ele por certo
vem assim, flutuando.
- Papai Noel fica trabalhando o ano todo em sua oficina para dar
os presentes para vocês e vocês vão quebrar. Ano que vem ele não
dará nada, nada mesmo!
Foi assim que perdi o meu Papai Noel de infância. A gente tem
que perdê-lo um dia e eu o perdi com 12 anos e fui convidado a ajudar
a por os presentes para meus irmãos. Perdi aquela alegria e ganhei a
alegria de conservar a tradição em meus irmãos até que eles viessem a
compreender a luta de Papai Noel.
Eu devo casar? Sim, mas não é assim, assim. A gente deve sentir
quando a mulher é assim. Mesmo que não sinta amor. Talvez eu
encontre, quem sabe?
Mas isso não interessa. Eu estou com uma vontade louca de sair
pelo mundo sem um tostão no bolso. Liso. Sofrer tudo sem se
preocupar. Mas isso é covardia, e eu ao sou covarde. Devo lutar. Não
por mim, que eu tenho a impressão que não estou vivendo um sonho.
Estou acordado.
Espera aí, rapaz, será cedo. Não, escuta mais. Não já te disse que
nós vamos sair juntos? Não faz isso. Eu pago, pago. Se tenho
dinheiro? Tenho sim. Como eu consegui? Ora, não te preocupa com
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isso. É dinheiro e pronto! Basta. Não se deve querer saber de onde
saiu o dinheiro, basta que tenha. É vontade louca querer saber isso.
Dinheiro é como a vida: querer saber de onde veio e para onde vai é
sacrilégio! Sacrilégio mesmo.
- Toma esta capa. Eu só ia te dar dia 25, mas como vais viajar,
leva, pois pode estar chovendo. Este é o presente da Mamãe Noel.
Vamos ver se o Papai Noel vai ser melhor.
Sim, vamos dar a nossa volta. Talvez seja uma volta proveitosa.
Mas, enquanto nós andamos, eu vou continuar falando. Se não
quiseres escutar eu falo só, mas hoje eu tenho que falar.
Era nesse ponto que queria chegar, meu amigo. Papai sofreu
muito. Não queria incomodar ninguém. Acabou me incomodando pra
o resto da vida. Nunca prejudicou a alguém. Se no emprego dele abria
uma vaga superior e o chefe dissesse: João, eu tenho um sobrinho que
está desempregado, tu não estás precisando dessa vaga, estás? Então
deixa que eu o ponha lá que quando aparecer outra tu entras. Bastava
dizer essa e outras mentiras para que ele cedesse. Nunca subiu na vida.
Mas foi feliz. E ser feliz nesse mundo desgraçado, é muita arte. É ser
alguma coisa na vida!
Foi assim que perdi o meu Papai Noel de grande. Eu só sei que
não sou covarde. Tenho que agüentar o rojão até o fim. E vai ser um
fardo pesado. muito pesado mesmo. Sabe que eu me orgulho do modo
que papai morreu? Morreu em pé. Eu acho que quero morrer assim
também. Em pé. Andando.
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Mas eu sei que ele não queria morrer. Quem quer morrer, afinal?
Todo mundo sabe que vai morrer um dia, mas quando chega esse dia.
Outro dia. Manhã cheia de sol. As crianças saem todas à rua para
mostrar seus brinquedos ganhos durante a miraculosa noite. Aquela
fusão de coisas lindas com outras não tão belas confundia-me. O
vizinho, por exemplo, achava meu carro tanque de madeira bastante
feio (horrível, em seu dizer). De fato, contrastando com seu reluzente
Cadilac colorido, luzes acendendo e apagando, freio a ar e buzina,
meu caminhão não passava de um poeirento pau-de-arara. A pistola
plástica de meu irmão foi humilhada severamente por um lustroso
revólver-38 tipo far-west, o cabo de madrepérola com uma cabeça de
touro incrustada fielmente desenhada. O estrondo do seu tiro de
espoleta artificial abafava o clic-clic diminuto da arma negra de meu
irmão. A boneca loura da maninha nos deixava a todos orgulhosos cm
seu choro inhééé e seus olhos azuis. Sua cabeleira, entretanto, não
chegava à metade da outra ganha pela colega, a maior do bairro. Além
de tudo andava e falava papá e mamã. Nem por isso ficávamos tristes.
Não se pode chamar a esse sentimento menor tristeza. Apenas um
pouco diminuídos, porém contentes porque tínhamos ganho o que
realmente pedimos e satisfazia os nossos desejos. Afinal de contas, ao
fim do dia os brinquedos todos já haviam cumprido a sua missão e
tanto o Cadilac quanto a choradeira de cabelos louros e olhos azuis,
tanto o revólver-3 niquelado quanto meu caminhão-tanque de
madeira, tanto a pistolinha plástica quanto a boneca falante de cabelos
longos já estavam saturando com se4uas presenças. Era bom sentir-se
esvaziar toda aquela sensação criada na noite anterior, quando até o ar
encheu-se de expectativa. Existem certas noites não-comuns: a noite
de Natal é uma delas.
- Sozinha?
- Vera Lúcia.
- E você, está só? Mas como você pode deixar a família em casa
e vir para a rua só? Não posso. Não, infelizmente não posso passar o
Natal com você. Vá pra casa. Que idéia! Passar o Natal na praia,
vendo macumba, aí, não posso acreditar.
- Feliz natal.
- Feliz Natal.
- Meu amor vai me perdoar, mas eu tenho que ir. Acontece que
eu disse em casa que ia ver a macumba. E a macumba já acabou. Não
tenho telefone. Não tenho endereço. Esquece.
Poesias: Abertura Poética (Antologia), Walmir Ayala/César de Araújo, 1975; Tributo, 1980;
12 Poetas Alternativos (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi, 1981; Chuva Fina (Antologia), Leila
Míccolis/Tanussi Cardoso, 1982; Folguedos, c/Xilos de Marcelo Soares,1983; Erótica (Poesia),
c/Xilos de Marcelo Soares, 1984; Livro das Sete Canções (Poesia), 1987.
Em e-Books:
Poesia: Porca elegia, 7 canções, Sentimental, Amaricanto, bluesia, Mel, Espelho de Venus, 4
Quartetos para a amada cidade de São Luis, 6 Rocks Matutos, Amor a São Luis e ódio,
Sonetos de Abgar Renault (antologia), Glosas Escabrosas (c/Xilos de Marcelo Soares).
Contos: O sonhador, Sonja Sonrisal, A apaixonada de Beethoven, Arte de criar periquitos, A
estrela ambulante, O breve reinado das donzelas.
Outros: Cervantes e Quixote (artigos), Gardênia (romance), Stefan Zweig (Antologia), Ilha,
romance, Meu caderno de Sylvia Plath (Antologia), Viagem em torno de Dom Quixote
(Pesquisa), 3 x Gullar (Ficção), Literatura de Cordel (Ensaio), que estão disponíveis grátis na
Internet e em: http://www.dominiopublico.gov.br
Foto: Priscila Rovedo
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