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INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
MESTRADO EM GEOGRAFIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
Belo Horizonte
2005
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Belo Horizonte
2005
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Agradecimentos
Devolvo-lhes, nestas poucas linhas, todo o carinho e a atenção que me dispensaram neste
caminho. Jornada feita de vitórias e de crescimento intelectual, mas, também, de cansaço e desânimo.
Foi nestas últimas horas que seu apoio me foi mais caro!
Ao Professor e amigo Cássio, que confiou em meu potencial e que, através de nossa trajetória
de mais de quatro anos juntos, reconheceu qualidades necessárias para que pudéssemos realizar um
belíssimo trabalho. Obrigado pelo carinho, pela cumplicidade e pelo amor filial e, também, por dividir
sua casa e sua família comigo. Sempre será minha referência amiga, um norte para mim. Assim, receba
o muitíssimo obrigado do Izé!
À Mara, minha revisora, que esteve sempre atenta ao meu texto, permitindo que o leitor
tivesse uma leitura mais clara e precisa, mantendo minhas referências de acordo com as normas. Além
disso, mais que revisora, tornou-se uma amiga, transformando meus momentos de angústia em
momentos de esperança. Obrigado pela compreensão, desculpe-me pelo trabalho dado.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo
investimento à pesquisa e pelo apoio aos pesquisadores através do Programa de Fomento à Pós-
graduação – PROF.
Ao Colegiado de Pós-Graduação de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade
Federal de Minas Gerais, através dos Coordenadores Heloísa Soares de Moura Costa e Geraldo Magela
Costa, e, também, à sua Secretaria eficiente, através da Paula, da Noeli e das estagiárias, que sempre
compreenderam a falta de tempo e a urgência do pós-graduando. Sem vocês para organizar-nos, ficaria
muito mais difícil.
Ao Giovani, que com seu carinho e atenção, foi peça importante para que eu pudesse realizar
o mestrado. Se fôssemos questionar a validade de nossas discussões e broncas, a pesquisa pronta já
pode ser compreendida como resposta. Muitíssimo obrigado. À Giani, companheira de aldeia, que
segurou grandes e difíceis barras, devolvo-lhe todo o sacrifício em forma de uma pesquisa pronta.
Porém, se o espírito necessita de energia trazida pela presença do Jô, da determinação da Giani, o
corpo necessita de alimento preparado, com carinho, devoção e embalado ao som das rezas, pela Dona
Gregória, que, muitas vezes no papel de mãe, cuidava de minhas gripes e resfriados trazendo-me os
seus carinhos na forma de chás. Obrigado a vocês! Que Deus lhes abençoe e lhes proteja! Vocês são
muito caros para mim! Enfim, termina-se a tal “tese”.
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Às minhas queridas irmãs Cida, Gorete, Márcia e Marilene, aos meus sobrinhos e cunhados,
segue este meu trabalho. Que mais esta etapa vencida possa servir de incentivo aos sonhos e projetos
que esperam por um caminho a ser trilhado. Com trabalho, tudo é possível!
Aos amigos e companheiros da turma de 2003. Às vezes torna-se imprescindível conversar
com os vivem as mesmas angústias. Embora seja igualmente importante mudar o rumo da prosa para
que possamos nos distanciar dos trabalhos. Muitos foram os companheiros e companheiras com os
quais pude contar nesses momentos. Em especial:
À querida Mônica Campolina Diniz Peixoto, que me proporcionou conversas deliciosas em
nossos encontros e passeios. À Fabiana Bernardes e seu marido Renato que, além da cumplicidade,
carinhosamente me ofereceram um delicioso banquete. Ao Vero, com quem pude compreender um
pouco mais sobre os atingidos, sobre sociologia e sobre a vida. À companheira de orientação Janete
Regina de Oliveira e seu marido Carlinhos, que me abrigaram em sua casa em Belo Horizonte nos
momentos em que estava em trânsito, além, é claro, dos momentos em que se precisava ouvir e ser
ouvido. À querida Mariana Lacerda que, mesmo na correria, tinha um sorriso a oferecer a todos. Saiba
que seus sorrisos contagiaram os meus dias com uma ótima energia. O desencontro é inevitável,
entretanto, a imagem que perdura é a da amizade que se fortalece a cada reencontro. O meu carinho e
respeito a todos aqueles com quem tive a feliz oportunidade de ser companheiro na fase de conclusão
de créditos e que, de vez em quando, conversávamos durante os intervalos regados a café e a pãozinho
de queijo mineiro.
À companheira de sala Maria Luiza Grossi Araújo e aos professores e professoras Heloísa
Soares de Moura Costa, Márcia Maria Duarte dos Santos, Roberto Célio Valadão, Alexandre Diniz,
José Antônio de Souza Deus, pelos momentos de aprendizagem descontraídos nas salas de aula do
IGC.
Um agradecimento especial aos estudantes e professores Kadiwéu da Escola Municipal
Indígena “Ejiwajegi” – Pólo, que me cativaram e, também, permitiram-me aprender com seus
percalços. Aos Kadiwéu, que “me desasnaram” e com quem pude compreender que os índios podem
contribuir com a sociedade não-índia, muito mais do que eles imaginam.
Algumas instituições, também, merecem destaque por considerá-las parceiras nesta idéia: a
Prefeitura Municipal de Porto Murtinho, através da Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer,
e à Fundação Nacional do Índio que permitiu minha permanência na Reserva Indígena Kadiwéu, por
acreditar na seriedade do trabalho ali desenvolvido.
À Professora Vânia Rubia Farias Vlach que, mesmo à distância e, também, nos encontros
científicos, sempre me incentivou, sem cobranças, só com palavras carinhosas dizendo para que eu não
esmorecesse.
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RESUMO
ABSTRACT
The process of geography insertion among the Kadiwéu Indians, who live in the Kadiwéu
Indian Reserve, in Porto Murtinho town, in Mato Grosso do Sul State, has motivated a set
of questionings. In a situation of different cultures in contact – among different knowledge
–, the science which is taught aims to organize itself in the schools, in order to approximate
the distinct knowledge. The Kadiwéu society can also be understood, for several reasons,
as the one that permitted itself to be dominated to guarantee its survival, however, it also
changed, in some way, the inner foreign culture. After considering the scientific
knowledge and myth nature – here it is represented by the Indian knowing –, it was
analyzed the possibilities of suitability and unsuitability between the science and the Indian
knowledge. It is presented a brief history of the traditional school insertion imposed to the
Indian communities and a reflection about the integration process, which involves these
communities. It is analyzed the definition of geography in the National Curricular
Referential to the Indian Schools (Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas – RCNEI). It is intended to understand, based on the studies developed by the
anthropology, the concepts of acculturation, assimilation and ethnic transfiguration, with
the purpose of discussing current situation of Kadiwéu Indians facing the insertion of the
scientific knowledge, foreign in the Indian Kadiwéu place. It is called into question the
existence of an Indian geography that is originated from the Kadiwéu society, as it is
affirmed by RCNEI. It is presented some testimonies of Kadiwéu Indians in order to
evaluate their comprehension about the geography and the absorption of this science in
their lives. It is also discussed the transformation of the science, through more libertarian
references, so that the wished changes between the geographic and Indian knowledge can
be developed, under the transdiciplinarity reference.
Key words Kadiwéu Indians; geography; National Curricular Referential to the Indian
Schools; scientific knowledge; transdiciplinarity.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO
1 Na presente pesquisa adotou-se o uso do termo não-índio em substituição à expressão homem branco. A
substituição reflete o caráter que se pretende imprimir à diferenciação dos conceitos. Nas sociedades
indígenas, existem uniões matrimoniais entre índios e não-índios. Diante disso, não é mais possível afirmar
que um índio seja mesmo índio devido suas características físicas, ou seja, o fenótipo, visto que já não é base
segura para se compreender, de acordo com a antropologia, como se caracterizaria um indivíduo índio. Se o
fator cor da pele não satisfaz, então, faz-se necessária a diferenciação através de termos/conceitos que, na
tentativa de uma adequação na atualidade, “classificaria”, embora não resolveria a questão, os que pertencem
a uma sociedade indígena como índios e, por outro lado, os que pertencem à outra sociedade como não-
índios.
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Uma das maneiras utilizadas para integrar o índio à sociedade foi através da
religião. A prática desse “acrescentamento” foi aceita. A partir de trabalhos que serviram
às várias instituições que tinham como objetivo a profissão da fé, tanto católica como
protestante, muitas sociedades se perderam ou observaram profundas alterações em sua
tradição, principalmente no que se refere à língua indígena. Não se pode negar a existência
de instituições que, mesmo de caráter religioso, ao serem expulsas de áreas indígenas,
legaram ao idioma, antes com características exclusivamente orais, sua versão escrita.
Hoje, as sociedades indígenas que passaram por esse processo de estudos lingüísticos
procuram aproveitar a língua escrita para produzirem livros que apresentam vários
aspectos de suas tradições.
Posteriormente, outra maneira encontrada para integrar os índios foi através da
instituição escolar e, com ela, prossegue-se o desmantelamento da tradição original. Em
um processo exógeno, a escola procurou se enraizar, ainda nos moldes e estruturas
construídos desde a chegada dos padres catequizadores. As mudanças sofridas pela
sociedade moderna chegam às aldeias através da escola. Em direção contrária a essa escola
para os índios, surgiram, nesse contexto de imposição de valores culturais, os movimentos
das organizações indígenas alegando que a única contribuição dessa escola é acelerar o
processo de ratificação do desmantelamento das tradições da cultura indígena.
Diante disso, uma nova proposta de escola surge: a Educação Escolar Indígena —
superando os modelos de escola que foram/são transportados para as aldeias. O novo desta
escola estaria na forma como o conhecimento científico aborda os temas relativos ao
conhecimento indígena. No entanto, mesmo que ainda incipiente em seus projetos
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2 Cidadão urbano, originário do ABC paulista, fui convidado a realizar um trabalho de capacitação de
professores indígenas no município de Porto Murtinho, Estado de Mato Grosso do Sul. O que seria,
inicialmente, um trabalho de consultoria apenas aos professores indígenas, passou a ser realizado através de
aulas, diretamente com os filhos e filhas destes, pois, posteriormente, ocorreu a instalação da 5a a 8a séries
do Ensino Fundamental, no início de 2000.
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3 O Censo Kadiwéu 1998 foi realizado pela Prefeitura de Porto Murtinho, com o objetivo de conhecer,
estatisticamente, os índios que habitam a Reserva Indígena que está situado nesse município. Foram
elaborados questionários e os professores indígenas providenciaram a realização das entrevistas com índios
Kadiwéu, Kinikinau e Terena que ali habitam. De posse desses dados, a Prefeitura planejou sua atuação
frente à situação educacional precária que se encontrava na população indígena Kadiwéu.
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4 A estrada que liga a cidade de Bodoquena à aldeia de mesmo nome não é asfaltada, ficando intransitável
nos períodos de chuva. A manutenção é precária e muitas vezes realizada pelos próprios indígenas.
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5 Lévi-Strauss (2001, p. 147) registrou, em 1935, o mito de criação dos Kadiwéu: “[...] quando o ser
supremo, Gonoenhodi, decidiu criar os homens, tirou primeiro da terra os Guaná, depois as outras tribos; aos
primeiros, deu a agricultura como quinhão, e a caça aos segundos. O enganador, que é a outra divindade do
panteão indígena, percebeu então que os Mbaiá haviam sido esquecidos no fundo do buraco e os fez sair dali;
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questões são feitas a presente pesquisa. Elas serão abordadas — direta e indiretamente —
no contexto do tratamento a ser encaminhado às questões centrais do trabalho.
mas como não sobrava nada para eles, tiveram direito à única função ainda disponível, a de oprimir e
explorar os outros. Já houve contrato social mais profundo do que este?”.
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que maneira ele é traduzido? Como discutir tais questões? Emergiria, daí, um novo saber,
distinto do que foi edificado pela cultura que assimila?
O significado de geografia para os Kadiwéu vem sempre carregado de um
utilitarismo com que percebem a ciência e a disciplina. De um modo geral, quando
interrogados sobre o significado de geografia, muitas vezes informalmente, os Kadiwéu
encaminham respostas básicas sobre a utilidade do conhecimento que recebem. Tudo isso
merece ser questionado.
Uma única problematização pode ser ressaltada por este estudo: como a geografia
está inserida na sociedade Kadiwéu. Entretanto, apresentam-se três questionamentos
principais que norteiam o desenvolvimento desta pesquisa. O primeiro deles refere-se ao
fato de o ensino da geografia para os indígenas ter sido rotulado como geografia indígena,
pressupondo, assim, que existiria uma diferenciação entre essa geografia (a dos índios) e a
geografia que se ensina nas escolas das sociedades não-indígenas. Tal expressão pode ser
encontrada no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas — RCNEI
(BRASIL, 1998). Imagina-se, diante da expressão, a existência de uma geografia feita de
uma outra natureza. Além disso, a expressão parece sugerir, ainda, a possibilidade de
existência de uma geografia que se refira a cada uma das sociedades indígenas. Questiona-
se, portanto: a partir da existência de dois conhecimentos, um indígena e um científico,
seria possível pressupor a existência de duas geografias, uma geografia indígena e uma
geografia científica? Se a geografia indígena é fruto do conhecimento indígena, qual seria
a natureza do seu objeto de pesquisa? De que esse objeto — cuja natureza não se ousa
sequer imaginar — consistiria? Em que ele se distinguiria do objeto da geografia
sistematizada pelos europeus, a partir do século XIX?
A geografia já realiza, há décadas, um investimento teórico sobre a natureza do seu
objeto de pesquisa. Trata-se de um campo do conhecimento sobre o qual ainda se
debruçam estudiosos, pesquisadores, pensadores. Métodos de pesquisa são freqüentemente
aperfeiçoados. Do mesmo modo, técnicas de pesquisa continuam sendo amadurecidas. A
geografia, avança, também, do ponto de vista epistemológico, no contexto das
transformações experimentadas pela ciência moderna. Como imaginar a existência de uma
geografia indígena, originária do conhecimento indígena? Afinal, não é a geografia, tal
como concebida desde o século XIX, dita científica, a ser ensinada nas escolas indígenas?
No segundo questionamento, abordado no conjunto da pesquisa, discute-se a
ciência geográfica inserida entre os Kadiwéu como mais um instrumento de integração,
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que acaba por forçar essa sociedade a adaptar seu modo de vida e de estar no mundo,
diante da influência dos valores exógenos. A integração implica perdas de diversas
naturezas. Por mais que algumas sociedades indígenas sobreviventes possam reservar na
memória algumas de suas experiências, alguns de seus mitos, lendas e hábitos, a integração
significou, em vários casos, a perda da relativa espontaneidade da cultura original. A
integração significa, em termos gerais, adaptação a uma nova vida. Isso não se realiza em
pouco tempo. São algumas gerações que separam a tradição alóctone dos costumes
incorporados. Pensar como o não-índio significa abandonar, de fato, no desenvolvimento
da vida cotidiana, a ética indígena — feita de mitos, lendas, hábitos e experiências. Essa
idéia do movimento dos indígenas em direção ao que é estrangeiro pode, mesmo,
contradizer a afirmação de Darcy Ribeiro (1980 a) sobre a resistência cultural Kadiwéu.
A natureza da integração pressupõe uma idéia de harmonia no fim de seu processo.
Assim, pode-se imaginar um diálogo profícuo entre o conhecimento científico e o
indígena, pois, para isso, há grandes possibilidades. No entanto, entre os saberes que
circulam na sociedade Kadiwéu e a geografia é possível perceber características que os
diferem e que dificultam uma interação, permitindo assinalar, inclusive, a tão discutida
supremacia da ciência moderna sobre as outras formas de conhecimento. Essa é a terceira
questão que faz referência ao encontro de formas de conhecimento marcado por
dificuldades, impossibilidades, mas, também, de grandes possibilidades.
Para responder às questões pesquisadas adotam-se alguns procedimentos
metodológicos que devem ser explicitados. O primeiro deles baseia-se em uma revisão da
literatura que trata das questões relacionadas à ciência moderna, ao conhecimento indígena
e à geografia.
As discussões sobre a ciência moderna são bastante diversificadas. Devido a isso,
foram eleitos alguns críticos expoentes através dos quais será realizada uma busca
conceitual sobre o que já foi denominada de religião moderna. Os interlocutores
selecionados são, preferencialmente, Edgar Morin e Boaventura de Sousa Santos, pois
elaboram uma sistematização de conhecimentos a respeito da ciência moderna que muito
auxilia nas respostas a alguns questionamentos, como o primeiro e o terceiro, que tratam da
interação desses dois saberes: ciência e senso comum — aqui relacionado ao
conhecimento indígena. O contexto no qual se insere a geografia é de natureza
transdisciplinar. Assim, além de Edgar Morin, dialoga-se com os estudos de Cássio Hissa
que procuram abordar os desígnios da ciência geográfica. Em momentos especiais, o autor
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ainda contribui para a discussão sobre a relação entre os saberes modernos — no qual se
insere a geografia — e os saberes ditos primitivos, como o conhecimento indígena
Kadiwéu e, também, as possibilidades de um intercâmbio, de caráter transdisciplinar, entre
esses saberes, o que atende as necessidades do primeiro e terceiro questionamentos da
pesquisa.
A maior parte da bibliografia que faz referência às populações indígenas e suas
tradições são advindas da antropologia. Autores consagrados, como Claude Lévi-Strauss e
Darcy Ribeiro, auxiliam a pesquisa através de estudos etnológicos, contribuindo com os
conhecimentos produzidos sobre mitos.
A obra Do índio ao Bugre: o processo de assimilação entre os Terena, do
consagrado antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, contribui para a abordagem do tema
central desta pesquisa, pois aborda os contatos interétnicos experimentados pela sociedade
Terena, no Mato Grosso do Sul. As pesquisas de Darcy Ribeiro sobre os Kadiwéu
disponibilizam mais informações sobre o intenso contato entre os Kadiwéu e os não-índios.
Para maiores fundamentações nos caminhos dos saberes e dos mitos Kadiwéu,
recorre-se ao arcabouço teórico acumulado por antropólogos, principalmente os que
desenvolveram trabalhos investigativos com essa sociedade indígena: autores como Darcy
Ribeiro, através da obra Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza e
Jaime Garcia Siqueira Jr, em sua dissertação de mestrado desenvolvida na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, “Esse campo custou o sangue dos nossos
avós”: a construção do tempo e espaço Kadiwéu. Giovani José da Silva, um dos últimos
antropólogos a estudar os Kadiwéu, também contribui com seu trabalho ao abordar, em sua
dissertação de mestrado — intitulada A construção física, social e simbólica da Reserva
Indígena Kadiwéu —, a formação histórica da Reserva Indígena Kadiwéu, se defrontando
com a força da identidade coletiva na forma de mitos e de tradições. Os estudos desses
autores contribuem para uma melhor compreensão do processo de integração a que foi
submetida a sociedade Kadiwéu durante o contato com os não-índios e, além disso,
fornecem informações necessárias que possibilitam a reflexão sobre a segunda questão da
presente pesquisa.
Através da legislação relativa às sociedades indígenas e sua educação escolar, são
discutidas algumas deliberações, portarias e decretos oficiais que contribuíram para uma
tentativa de organização de uma escola indígena que se mantenha ancorada pelos
paradigmas da pluralidade cultural e da interculturalidade e, além disso, que seja
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como a geografia pode fazer com que a sociedade Kadiwéu encontre, na ciência, uma
aliada para a manutenção de sua cultura, transformando, assim, os conhecimentos
científicos ao mesmo tempo em que é transformada por eles. A geografia que circula no
ambiente de troca, feito de não-índios e de índios assimilados, transformar-se-ia noutro
conhecimento sem que se perdessem referências de saber geográfico, sem que se
perdessem origens de conhecimento científico. Tratar-se-ia, aqui, de pensar na
possibilidade de transformação desse saber geográfico, científico, com base no
conhecimento indígena e, simultaneamente, a transformação dos saberes indígenas com
base na ciência geográfica.
Antes de tudo, o mito é uma referência coletiva da qual se serve o indivíduo: ele se explica
no mundo e, também, a partir dele (do mito) explica o mundo no qual está inserido. Se há
uma aproximação dos saberes produzidos e reproduzidos pelas sociedades, esta se dá
através da compreensão do mito. Nesse momento da pesquisa, refletindo conceitualmente
sobre os saberes — incluindo os de natureza científica —, apresentando e discutindo o
significado de mito nas sociedades primitivas, desdobra-se a discussão acerca dos saberes
construídos pela sociedade indígena Kadiwéu.
Acredita-se que um contato mais próximo com a cultura Kadiwéu possa auxiliar o
leitor menos cônscio e confirmar as convicções do leitor mais experiente em questões
indígenas. As imagens construídas dos índios, e transmitidas aos distantes deles, deixam
impressões errôneas, bem como as imagens romanceadas de índios. Um senso comum se
forma. Para isso, em um terceiro momento do primeiro capítulo, apresenta-se uma
caracterização do lugar indígena Kadiwéu, onde se desenvolvem as tradições e a cultura
dessa sociedade indígena do Pantanal sul-mato-grossense, os contatos com não-índios e os
encontros de culturas. Nesse contexto, são também abordadas as formas de aquisição de
conhecimento dos índios. Nessa passagem da pesquisa apresentam-se, também, exemplos
de mitos e saberes desenvolvidos no lugar indígena Kadiwéu.
No Capítulo 2, busca-se, através de fontes documentais, recordar a história da
Educação Escolar Indígena quando, tanto os movimentos de organizações indígenas como
os movimentos de apoio à essa causa, deram origem às reivindicações de uma educação
com características “[...] multilingüe, intercultural, comunitária, diferenciada e específica”
(BRASIL, 1998, p. 24-25). Em seus desdobramentos, no processo de construção dessa
educação, relações foram estabelecidas entre os indígenas e os diversos atores que
promovem a Educação Escolar Indígena, tais como órgãos públicos, organizações
indígenas, organizações não-governamentais e a própria sociedade. Através de um olhar
geográfico — ao mesmo tempo científico —, procura-se compreender o que se espera da
geografia nesse contexto. Há quem possa afirmar, diante do processo secular de integração
das culturas indígenas, que o ensino formal é fundamental para a adaptação e para a
sobrevivência das sociedades que estiveram sob o intenso contato com outras sociedades.
Não se pode negar o caráter contraditório desse movimento: um saber estranho é inserido
na cultura indígena para que esta possa sobreviver.
Analisam-se algumas legislações e, principalmente, um outro documento oficial, o
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), que pretende servir de
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refletir, após a consideração da história de integrações, até que ponto as culturas indígenas
são, de fato, autônomas em relação à cultura ocidental. O que é ser índio em pleno século
XXI? O que é ser um Kadiwéu? Em um processo de integração brutal como o que
sofreram as sociedades indígenas, o que há para ser preservado? Posto isso, é preciso que
se tenha em conta que o ensino da ciência (assim como o da geografia),
independentemente das legislações e das referências normativas, deve considerar os
interlocutores (afinal, o que significa ensinar?). Portanto, ensinar geografia para os índios
(e para os Kadiwéu, com as suas particularidades) é, sobretudo, refletir sobre um saber
(científico) considerando as particularidades dos interlocutores. Os alunos, incluindo os
indígenas, aprendem e aprendem a se conhecer e ao mundo do qual fazem parte, tomam
partido, pois se sentem incluídos no processo de aprendizagem.
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As reflexões que envolvem a natureza dos saberes, a sua origem e história, os seus
movimentos processuais, exigem, sempre, bastante investimento de leitura e de escrita. Em
muitas circunstâncias eles são necessários e, quase nunca, eles são desenvolvidos da
maneira como se deseja. Há, sempre, incompletude, nesse investimento que se caracteriza
por um ir e vir, por revisões de posturas, por apropriações de conhecimentos, por rupturas
com valores arraigados e tudo isso demanda muito tempo. Este primeiro capítulo, produto
de um esforço de leitura sistemática, é apresentado como uma das matrizes referenciais da
pesquisa.
O texto, que constitui o capítulo de abertura deste estudo, assume a condição
filosófica, teórica e metodológica. Contudo, ele deve ser compreendido, apenas, como uma
síntese de um texto imaginado a ser incorporado pela pesquisa. Assim, ainda que carregue
algumas responsabilidades, papéis e funções, o texto incorpora os riscos da síntese.
Entretanto, os seus papéis, no conjunto da dissertação, devem ser antecipados de modo a,
desde já, encaminhar os desenhos da articulação necessária.
Em primeiro lugar, a discussão acerca da natureza dos saberes e, em especial, dos
saberes ditos científicos, deve cumprir uma função bastante particular, diante da
expectativa da comunicação intercultural, frente à esperança e o desejo de troca entre os
saberes — entre a ciência que se ensina nas escolas indígenas e os saberes originários
dessa cultura assimilada (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976), transfigurada etnicamente
(RIBEIRO, 1980 a). Nesse caso, a função seria a de se discutir e de pensar os caminhos
apontados, na contemporaneidade, no sentido da transformação do conhecimento moderno.
Somente a ciência moderna transformada estaria apta a se fazer presente nesse processo de
troca (HISSA, 1999, 2002, 2003; MORIN, 2001, 2002; SANTOS, 2000 a, 2000 b, 2001,
2002). Para que se discutam os caminhos dessa necessária e desejável transformação, o
capítulo cumpre uma segunda função: a de apresentar a natureza do saber que, em
princípio, se transformaria a partir de referências mais libertárias. Assim, seriam
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desenvolvidas condições mais apropriadas para a leitura crítica que deve ser encaminhada
à ciência moderna que, através das escolas indígenas, é levada para o lugar Kadiwéu.
De maneira geral, as sociedades, sejam elas modernas ou ditas primitivas, possuem
seu modo próprio de explicar o mundo em que vivem. Há quem escolha entender que
existe alguma maneira mais correta de se fazer a leitura do mundo. Mas, o mundo é feito
de complexidades.
O mundo não encaminha apenas uma única resposta para as questões e, também,
comporta, com clareza, muito mais do que uma única pergunta. O mundo é construído por
tantas realidades distintas quanto forem os olhares lançados a ele e pela conjunção de
respostas obtidas através dos olhares que constituem o mundo.
Nas sociedades modernas, o olhar da ciência é construído através do estudo da
realidade pelo uso de metodologias próprias: as científicas. No desenvolvimento da
ciência, os resultados obtidos se apresentaram supostamente mais objetivos e exatos,
promovendo um “etnocentrismo científico” (SANTOS, 2001, p. 40).
Nas sociedades tradicionais, o conhecimento originário do senso comum está ligado
às explicações da realidade. Por uma série de razões, é considerado pela ciência como
superficial, ilusório e falso. A verdade construída pelo senso comum não é a verdade da
ciência — que, por sua vez, compartimenta e fragmenta os saberes.
Boaventura de Sousa Santos desvencilhou-se da definição convencional de senso
comum, construída pela ciência. Esse autor explicita que as características dadas por ela (a
ciência) são “[...] saturadas de negatividade (ilusão, falsidade, conservadorismo,
superficialidade, enviesamento, etc.)” (SANTOS, 2001, p. 40). Ao se referir ao senso
comum, o autor observa:
6 Claude Lévi-Strauss (1981, p. 17) já havia assinalado perdas de percurso da modernidade e Marilena Chauí
volta a enfatizá-las: “[...] talvez nós tenhamos perdido inteiramente, justamente porque acreditamos na idéia
do progresso. E que foi o progresso? O progresso foi a separação de tudo [...]. O que a cultura indígena nos
ensina é que o verdadeiro progresso é [...] essa integração entre o sagrado e o profano, o humano e a natureza
e as relações de liberdade, justiça, comunidade, igualdade entre os próprios seres humanos” (CHAUÍ, apud
GRUPIONI, 1994, p. 192).
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a máquinas. Mas, segundo Bronowski (1977, p. 56), o modelo é “[...] um conceito com
propriedades definidas que se podem isolar e reproduzir no espaço e no tempo, e cujo
comportamento se pode prever”.
Como assegura Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 17), “[...] esta idéia do
mundo máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese
universal da época moderna, o mecanicismo”. O mecanicismo é definido quando o
movimento do objeto é determinado por lei causal rigorosa, independentemente do seu fim
ou da qualidade oculta para a determinação dos fenômenos naturais. A partir do momento
em que se define qual é a lei que o determina, passa-se a construção do modelo que a
imitará. No seu conceito, Bronowski, entende que
Como toda máquina, o modelo é passível de erros. Pode em algum momento auferir
um elemento novo aperiódico — a natureza pode ser imprevisível e inserir não apenas um
único elemento novo, mas múltiplos — e, com isso, destruir uma de suas engrenagens,
interrompendo o funcionamento normal e confirmando a defasagem do modelo que foi
construído. Da mesma forma que a máquina, o modelo pode se tornar obsoleto. No
entanto, o elemento novo inserido indevidamente será estudado e o modelo revisto e
reconstruído, tal como as teorias. Isso traz a idéia de que as teorias são falíveis e que
podem ser eliminadas. Afinal, “[...] as teorias científicas são mortais e são mortais por
serem científicas” (MORIN, 2002, p. 22).
As teorias ou paradigmas surgem para manter esses modelos funcionando, ou seja,
para orientar, metodologicamente, o estudo dos fenômenos. São esses paradigmas que
definem o que pode ser considerado ciência e o que não pode. Diante disso, corre-se o
risco de não ser considerado científico e, por conseguinte, não ter validade, qualquer
estudo que não siga tais paradigmas.7
7 Edgar Morin aponta uma não cientificidade presente no seio das teorias científicas: “Os diversos trabalhos,
em muitos pontos antagônicos, de Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, entre outros, têm como traço comum
à demonstração de que as teorias científicas, como os icebergs, têm enorme parte imersa não científica, mas
indispensável ao desenvolvimento da ciência” (MORIN, 2002, p. 21). Para os estudiosos da epistemologia
científica, o que faz com que um conhecimento seja ou não científico está definido na obra Estrutura das
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Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn (1992). Alan Chalmers buscou, nas palavras de Kuhn, definições
que esclarecem ainda mais essa questão. Veja-se com o autor: “A característica mais importante de um
campo de indagação quanto à distinção entre a ciência e não ciência, afirma Kuhn, é a extensão em que o
campo é capaz de sustentar uma tradição científica normal. Nas palavras de Kuhn: ‘é difícil encontrar um
outro critério que proclame de maneira tão clara um campo como ciência’” (CHALMERS, 1993, p. 147).
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Esse caráter mitológico da ciência tem afinidade com o seu sonho de objetividade.
Esse caráter mitológico é reforçado, ainda, pelo hermetismo dos discursos científicos. Com
isso, observa-se um maior distanciamento entre a ciência e a sociedade que, na
denominada sociedade da informação, poderia ser minimizado pelo desenvolvimento de
instrumentos de divulgação científica. Entretanto, isso não acontece.8
A ciência pretende ser objetiva para desvendar os fenômenos no mundo,
procurando localizar-se do alto, à distância, o que contribui para o seu processo auto-
mitificador. Com total rigor excêntrico, ela busca explicar como o mundo é e, em algumas
circunstâncias, o que deveria ser representação assume a condição de inútil reprodução —
como a cartografia de escala um “por um”, presente na caricatura desenvolvida por Jorge
Luís Borges e discutida por Cássio Hissa (2002, p. 31). Com isso, a ciência nega a sua
própria condição: a arte da representação, da interpretação, que demanda, sempre, a
liberdade nos processos criativos.
Na expectativa de que pudesse potencializar processos interpretativos, a ciência
ainda promove uma territorialização dos saberes. Limites são construídos a fim de precisar
o objeto de cada disciplina. Ao existir, deveriam proteger seu objeto de estudo de supostas
invasões de outras disciplinas. Cássio Hissa (2002) discute a natureza das fronteiras e dos
limites que expressam um certo poder da ciência ou mesmo de uma área do conhecimento,
ao mesmo tempo em se fragiliza o saber:
[...] como diz Bachelard, a teoria do objetivo deve ser construída contra o
objeto, assim também só aplicando a ciência contra a ciência é possível
levá-la a dizer não só o que se sabe de si, mas tudo aquilo que tem de
ignorar a seu respeito para poder saber da sociedade o que esperamos
que ela saiba (SANTOS, 2000 a, p. 13-14).
A ciência tece sua própria teia e muitas vezes representa perigos. São perigos que
podem refletir na construção de produtos que, ao invés de construir, destruiriam o mundo,
juntamente com todos os fenômenos a serem estudados. A ciência, que deveria existir para
se aproximar do mundo, afasta-se da sociedade.10
A crítica feita à ideologia cientificista está relacionada ao fato de que o propósito da
ciência seria o de servir a sociedade ficando, então, próxima dela. No entanto, se observa
um distanciamento entre a ciência e a sociedade que a originou, pois a orientação do uso
das ciências é definida sem o controle dessa sociedade. Faz-se necessário o caminhar para
além das reflexões sobre o mundo. Faz-se necessária uma reflexão sobre a “[...] ciência e
sobre os limites que a fraturam e, simultaneamente, a separam do mundo que busca
representar” (HISSA, 2002, p. 43).11
A ciência moderna é feita de fraturas, fragmentos que afastam o conhecimento de
outras formas de saber. Para que as distâncias pudessem ser diminuídas, imagina-se que a
ciência pudesse romper com algumas das suas tradições com base na experiência de
contato com outros saberes, que, também, seriam transformados a partir da ciência.
Apenas, assim, imagina-se a ciência integrada, democraticamente, aos saberes locais feitos
de senso comum, de mitos, de conhecimentos práticos. Como afirma Cássio Hissa (2003, s.
p.), “[...] todos os saberes se misturariam, assim como se misturariam todas as formas de
conhecimento: o religioso, o artístico. A esse movimento de transformação se acostumou
chamar de transdisciplinaridade”.
Boaventura de Sousa Santos preocupa-se com o desenvolvimento pleno tanto do
senso comum como do conhecimento científico. O autor afirma que “[...] o senso comum
só poderá desenvolver em pleno a sua positividade no interior de uma configuração
cognitiva em que tanto ele como a ciência moderna se superem a si mesmos para dar lugar
a uma outra forma de conhecimento” (SANTOS, 2000 a, p. 41). Para que isto aconteça, é
indispensável ocorrer uma ruptura com a ruptura epistemológica, quando esta rompe com
o senso comum. Tanto o senso comum como o conhecimento científico possuem
características que os afastam, mas que, também, os aproximam. O contato dos saberes não
significa, nesses termos, a exclusão de algum deles. A pergunta continua a ser feita por
Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 8-9): a ciência continuará considerando irrelevante,
falso e ilusório o conhecimento que se utiliza para dar sentido à prática da vida individual
ou coletiva? Qual é o papel do conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou
no empobrecimento prático de nossas vidas?
12 Ao sistematizar a definição de mito, depara-se com idéias elaboradas por pensadores que buscaram
apreender a natureza do mito nas culturas ditas primitivas e suas características. Entre eles está o etnólogo
Claude Lévi-Strauss, com as obras Mito e significado e Tristes Trópicos. Bronislaw Malinowski, por sua vez,
descreve o papel do mito na vida de vários povos estudados por ele de uma forma funcionalista, no qual o
38
Mesmo existindo tantos estudiosos das questões relacionadas aos mitos, ainda não
foi possível definir com exatidão o que vem a ser o mito. Embora as características deste
fenômeno, como nos diz Everardo Rocha (1996, p. 7-15), sejam claras para muitos
mitólogos que arriscariam a definir o mito como uma narrativa, uma fala. Sua difícil
localização no tempo não permite descobrir, calcular ou mensurar quando determinado fato
se transforma num mito; sua fala indireta oculta alguma mensagem, necessita de
interpretação, não de uma interpretação científica, mas de uma interpretação que reúna
todos os sentidos para decifrar suas mensagens. Para a ciência, uma outra característica do
mito é a sua inverdade, que faz dele algo inexato e que inibe qualquer possibilidade de
predição dos fatos. Além disso, para se explicar um mito há que se necessitar de outro,
com a mesma carga de significados que, aos olhos da ciência, não teriam utilidade
nenhuma. É o que se denominaria de vago contrapondo-se ao preciso da ciência (HISSA,
2002, p. 35).
Cássio Hissa contribui para a compreensão do que pode ser uma das principais
características do mito: buscar explicar a realidade. Veja-se com o autor:
mito servia socialmente, ou seja, “[...] ora funcionava como explicação que saciava a ânsia de conhecimento,
ora funcionava como satisfação de profundos desejos religiosos” (ROCHA, 1996, p. 40).
39
À medida que influências exógenas adentram uma cultura, podem, muitas vezes,
reformular os mitos, reforçando-os em sua condição de interpretador da realidade. No caso
dos Kadiwéu:
[...] a [sua] atual mitologia [...] reflete seus esforços para adaptar-se às
condições de vida que lhe foram impostas; é em grande parte uma
expressão da nova visão do mundo que vão adquirindo como povo
dominado, impedido de fazer a guerra e que tem de acomodar-se aos
meios de vida aprovados pelos seus vizinhos neobrasileiros (RIBEIRO,
1980 a, p. 92).
apud MORIN, 2001, p. 17). Com esse extermínio, saberes se perderam para sempre. Com
eles, um pouco do mundo em que se vive.
Os Kadiwéu fazem parte de uma família maior que viveu no Brasil, mais
precisamente no Chaco paraguaio: os Guaikuru. Dessa família, os Kadiwéu são os únicos
representantes. São conhecidos como índios cavaleiros, devido a suas habilidades com
cavalos adquiridos através do contato com os portugueses. Os Kadiwéu se autodenominam
Ejiwajegi13, palavra que os diferem dos animais: sou gente.
Donos da maior área indígena do centro-sul brasileiro, os Kadiwéu creditam este
feito a uma doação realizada por D. Pedro II — embora sem qualquer documento que
comprove este fato —, como retribuição à sua colaboração na guerra do Brasil contra o
Paraguai. Conforme registrado na obra de Guido Boggiani:
O fato também está registrado na memória dos próprios Kadiwéu, como se percebe
no depoimento de Durila Bernaldino, cujo nome indígena é Nigodena14:
13 Lê-se EDJIUADIGUI.
14 Nigodena é o nome indígena da mulher que, em 2005, nascida no mês de agosto, supostamente,
completará 121 anos. A anciã não afirma a idade que tem. Consta da sua certidão, que nasceu em 1902.
Guido Boggiani esteve presente, na aldeia, em 1892 — dez anos antes do registro de nascimento de
Nigodena. Entretanto, é interessante observar que ela, sem a menor intenção de forjar a lembrança de fatos,
se recorda de histórias que são anteriores ao seu nascimento — considerando que tenha nascido, mesmo, em
1902. Ela se recorda do pesquisador italiano, presente nas histórias que Nigodena narra. Além disso, ela
reconhece palavras italianas, sendo analfabeta. Nigodena: imagem viva e presente na cultura Kadiwéu, que,
entretanto, está confinada na memória dos antigos. Nigodena, atualmente, é relativamente margilinalizada. A
comunidade é indiferente à existência dos antigos que detêm a memória do povo. A escola assume o centro
do conhecimento e desloca sombras para os saberes originários do interior da própria cultura Kadiwéu. Muito
42
[...] ninguém jamais poderá tomar posse desse campo, isto vem desde
antigamente, ninguém podia entrar. Hoje é diferente, ninguém teme mais
os índios, ninguém mais respeita, nós que tememos as altas autoridades,
parece que eles que querem ser o dono do que na realidade é nosso, mas
foi uma autoridade superior de quem o capitão ganhou esta terra, como
recompensa no término de guerra contra os paraguaios. Dizia para ele: —
Tome esta terra capitão, esta será sua, se eu pagasse em dinheiro não
daria, mas esta terra durará para sempre, cuide sempre desta terra, não
deixe que ninguém a tome (SIQUEIRA JR., 1993, p. 209, grifos do autor).
Esse é o poder do mito que explica todo um modo de vida. Nesse caso, a
manipulação de um evento, transformado agora em um mito que, por sua vez, é
transmitido entre as gerações, destaca a valentia e a coragem de seus guerreiros. Os
Kadiwéu explicam que outras sociedades indígenas possuem pouca terra porque fugiram
da guerra e, assim, não foram contempladas. Mesmo que essa versão Kadiwéu dos fatos
sobre a Guerra do Paraguai seja desmentida pela ciência, não afetará em nada a vida deles,
pois são duas formas distintas de se abordar a mesma questão. Assim, pode-se dizer, ainda,
que esse suposto conhecimento científico sofreria uma reelaboração por parte do saber
indígena Kadiwéu.
Os Guaikuru, família que deu origem aos Kadiwéu, tiveram sua sociedade estudada
por vários cronistas, viajantes e antropólogos que mantiveram contato com o grupo ao
longo do tempo. Os primeiros contatos com os Guaikuru datam desde o século XVI.
Dentre os que estiveram em contato com os Kadiwéu, é importante ressaltar o colecionador
de objetos etnográficos, Guido Boggiani. Esse italiano esteve entre os índios no ano de
se perde, já. Nigodena narra contos e mitos, homenageia visitantes com cânticos através de uma linguagem
arcaica, de origem Kadiwéu, que os índios mais jovens não reconhecem.
43
1892, retornando posteriormente em 1897, quando foi morto por índios Chamacoco15. Os
momentos vividos por Guido Boggiani em 1892 estão registrados na obra Os Caduveos,
mas os registros de 1897 ainda não foram publicados e continuam sob a forma de um
diário de viagem. Em suas anotações, Guido Boggiani descreve, sem preocupação
científica alguma, o seu contato com os terrenos alagadiços do pantanal e seu comércio
com os Kadiwéu.
E os cativos:
15 Os índios Chamacoco se transformaram em cativos de famílias Guaicuru durante anos. Eles estão
incluídos nos mitos Kadiwéu, citados neste capítulo. Atualmente, ainda vivem na Bolívia, podendo-se
encontrar alguns de seus representantes, ou descendentes, no próprio território dos Kadiwéu.
16 Traduzido e adaptado do original em espanhol.
44
Darcy Ribeiro, que viveu entre os Kadiwéu, analisou profundamente a relação entre
“senhores” e “cativos”:
Nos dias atuais, os Kadiwéu continuam a valorizar este sistema “senhorial”, embora
nem todos o façam. Relações como estas não são tão visíveis quanto parecem. Estão
implícitas nos jogos, nas danças, nas relações comerciais, no luto, no nascimento, no
matrimônio e, também, no espaço escolar. Uma forma que demonstra essa relação é a
distribuição de terras.
A Reserva Indígena Kadiwéu é dividida em fazendas pela necessidade de maior
controle dos índios sobre suas terras. No entanto, percebe-se um fenômeno natural que
ocorre no período das cheias, que dura cerca de 5 meses. As fazendas de não-índios estão
situadas em áreas alagáveis do Pantanal e, em época de cheias, os rebanhos dessas
fazendas fogem para as áreas mais altas e secas que são, exatamente, as terras dos índios
Kadiwéu. Planas, altas e possuidoras de ótimos pastos, eram freqüentemente invadidas
pelos animais dos vizinhos não-índios.
18 Pau-santo é uma arvoreta da família das gutíferas (Kielmeyera coriacea), muito comuns no cerrado, de
folhas grandes e duríssimas, flores amplas e lindamente alvas ou rosadas, e frutos que são cápsulas.
46
cada criança que permanece na escola e que tenha entre 7 e 15 anos; Vale Gás, que se
constitui em um auxílio financeiro para aquisição de gás de cozinha. É válido lembrar que,
excetuando o Programa de Segurança Alimentar, para todos os outros é necessária a
retirada do recurso financeiro, através de cartões magnéticos no banco da cidade, obtendo-
se, desse modo, outros contatos intersociais. O dinheiro recebido pelos programas é
utilizado, principalmente, para compra de alimentos e vestuários, uma vez que a prefeitura
oferece o material escolar gratuitamente.
O que fez com que os Kadiwéu resistissem aos ataques e às invasões de terras por
um lado, e, pelo outro, à invasão de sua cultura por fenômenos exógenos a ela? Muitas
sociedades indígenas do Brasil, principalmente as que ficaram muito tempo expostas às
influências dos não-índios, não tiveram como continuar existindo, tornando-se extintas. No
entanto, os Kadiwéu podem ser compreendidos como uma exceção. Assimilaram o uso do
cavalo tomado dos espanhóis, ou seja,
Foi imprescindível aos Kadiwéu a assimilação de elementos novos pela sua cultura
para que sobrevivessem. Além disso, a dinâmica de sua cultura, as modificações realizadas
nos mitos, as tradições que foram inseridas — como a do cavalo — não lhes forjaram
qualquer inferiorização, muito pelo contrário: deixaram-nos mais fortes culturalmente.
Esse caráter dominador da sociedade Kadiwéu está registrado nas várias versões do
mito de criação. As versões diferem em vários pontos, mas em todas percebe-se a natureza
dominadora que foi herdada pelos Kadiwéu para subjugar, conforme o mito que procuram
reproduzir, todos os povos da face da terra. Eis o mito, recolhido por Claude Lévi-Strauss,
em 1935:
19 Em todas as bibliografias em que se encontram palavras na língua Kadiwéu, observa-se algum diferencial
na grafia. Esse diferencial é fruto do estudo que a língua obteve, durante 30 anos, iniciado em 1968, pelo
Summer Institute of Linguistic, hoje, Sociedade Internacional de Lingüística. De acordo com o Dicionário da
Língua Kadiwéu, fruto desse trabalho, a grafia correta desta palavra, para os dias atuais, é šonoenoºodite e
seu significado tanto pode ser nosso Deus como herói de lendas (SIL, 2002, p. 63).
47
Mônica Pechincha (1994), ao analisar o mito de criação dos Kadiwéu, afirma que o
desígnio do criador quis que o Kadiwéu fosse um viajante do Pantanal. Atualmente, isso é
impossível. A demarcação de seu território, em meados de 1980, completou o processo de
sedentarização dessa sociedade. Hoje o Pantanal está repleto de fazendas. Os índios não
podem mais transitar como no passado, e como Deus quis.
Assim como os Kadiwéu foram criados, os mitos explicam como foi a criação dos
outros povos e qual a utilidade deles na terra. Mônica Pechincha (1994, p. 114) afirma que
48
“[...] a posição de cada nação e seu destino histórico é um presente feito pelo criador e
assim as coisas devem permanecer”.
Quanto a inferiorização do Kadiwéu perante o não-índio, Mônica Pechincha revela
que eles não só aceitam o desígnio de viver caçando e morando em casas de palha como o
preferem, pois, “[...] aceitar tal desígnio corresponde a afirmar-se enquanto povo.
Aceitando, ele não se ressente da desproporção tecnológica frente ao branco. Tudo o que
quer é continuar a existir como índio” (PECHINCHA, 1994, p. 115).
A história — a científica —, juntamente com a antropologia, ao estudarem os mitos,
as memórias coletivas dos índios, estão, de certa forma, auxiliando demasiadamente a
geografia. Os caminhos traçados pelo território compõem-se de momentos históricos da
sociedade indígena, os mitos também são referenciados por pontos importantes do
território, podendo essa referência ser representada por um morro, um córrego, um grande
rio, uma barranca, uma aldeia antiga, o cemitério. A mitologia também está intimamente
ligada à morte, pois, para os Kadiwéu, a ampliação do espaço destinado ao cemitério não é
permitida. A explicação vinda de um deles é clara, simples e precisa: se aumentar, morrerá
mais Kadiwéu, pois caberá mais gente.
Torna-se necessário refletir o que é conhecimento para que se compreenda como o
saber indígena Kadiwéu se instala no seio dessa sociedade. Primeiramente, quando se fala
em conhecimento, entende-se uma ou várias formas de apreender os fatos, os objetos, os
fenômenos externos e também internos, na busca de explicações sobre nós mesmos. De
maneira geral, a diferenciação entre os diversos conhecimentos se dá a partir do modo
como foi realizada essa busca. O conhecimento científico, por exemplo, possui uma
maneira metódica para chegar ao conhecimento de qualquer fato, fenômeno ou ser. O
método utilizado nesse caso é o científico, que, para a realização de qualquer pesquisa,
conta com a presença de três peças fundamentais: quem pesquisa (sujeito), o que se
pesquisa (objeto) e como se faz a pesquisa (metodologia), entendendo, dessa forma, que
toda e qualquer pesquisa encerre em si um propósito, ou seja, a justificativa.
No caso do conhecimento não científico, e aqui se enquadraria o conhecimento
adquirido pelos Kadiwéu, desconhece-se o objeto de estudo. Caberia melhor dizer que esse
objeto é inexistente. O que se estuda, como, quem estuda, ou seja, qual a natureza do seu
objeto e a sua metodologia de análise? São perguntas que não serão respondidas, pois não é
um conhecimento estruturado na forma da ciência moderna.
49
Nos Kadiwéu, a força da identidade está registrada em vários mitos, mas o principal
é o de criação, que possui várias versões. No mito de criação, Aneotodooji (Deus)
lhes dá toda a força para subjugar todos os povos criados anteriormente (SIQUEIRA JR.,
1993, p. 57). Um mito que demonstra a coragem e o heroísmo dos Kadiwéu foi criado
através dos acontecimentos da Guerra do Paraguai. Já na Guerra do Paraguai, os alunos
recontam que os Kadiwéu lutaram com os paraguaios e mataram a todos. É essa
superioridade que, sublinhada nesses episódios, preside a identidade desse povo.
Conhecer a natureza desse mito, conseqüentemente desse saber, colabora para que
se entenda como a relação entre o conhecimento Kadiwéu e o conhecimento científico se
20 Fauna do Pantanal: macawan (macauã), ave que tem um canto triste e doído; lobinho, animal com
características de um lobo e que difere pelo seu pequeno porte; curicaca, ave que sempre está em dupla, tem
seu bico bem curvo, feito Íbis, para ciscar os insetos da terra. (Informações coletadas pelo autor, através de
aulas e conversas informais, 2000 e 2003).
50
dá. Não são raras as vezes que não-índios presentes em uma aldeia são questionados no
que se refere à interferência na cultura, conseqüentemente nos mitos, com o ensino de
coisas do branco. As idéias que são expostas representam o imaginário romântico na figura
do índio das literaturas. Muitas dessas idéias não colaboram para um entendimento mais
real sobre os índios de hoje, principalmente no Brasil que, como já foi ressaltado, possui
mais de duzentos povos indígenas, ocupando, tradicionalmente21, 12, 24% do território
nacional (GRUPIONI, 2002).
Frente a um número tão expressivo, muitos concordam em dizer que os índios
deveriam permanecer onde estão. Talvez, em função da exigüidade de informações, a
realidade indígena, com seus mitos, e os registros das invasões de terras por não-índios,
através da exploração de madeira, caça, pesca turística ou exploratória, não deve estar
suficientemente divulgada. Afinal, os índios não estão tão distantes da nossa sociedade
como se pensa. Vivem nas cidades, estão freqüentando as mesmas escolas que nossos
filhos, se alimentam dos mesmos produtos industrializados. Mas onde quer que estejam,
possuem uma sociedade diferente ao seu redor e isto implica em não ficar imune a esta
sociedade. Ainda trocam-se espelhos por arcos e flechas.
21 Entende-se por terras tradicionais, as terras reconhecidas, através de estudos antropológicos, como sendo
da sociedade indígena que ali vive e onde viveram seus antepassados.
51
aberta para o mundo indígena. O percurso da escolarização indígena é longo: desde 1595.
A partir das primeiras gramáticas elaboradas pelos jesuítas, introduziu-se o sistema
educativo formal nas sociedades indígenas do Brasil. Assim, pretende-se aqui, através de
um pequeno histórico da Educação Escolar Indígena no Brasil, observar os procedimentos
utilizados pelos governos, através da educação formal, para que se integrasse os índios à
sociedade nacional.
Anterior à Educação Escolar Indígena, um outro sistema educativo pôde ser
percebido nas comunidades indígenas. Construída pelos próprios índios, a Educação
Indígena difere da Educação Escolar Indígena, embora as duas devessem atender às
necessidades advindas da produção social de cada sociedade. Bartomeu Melià, um
antropólogo e padre jesuíta interessado no estudo dos processos educacionais observados
nas populações indígenas, afirmou esse caráter social da Educação Indígena e vai além,
pois contrapõe a Educação Indígena à Educação Escolar:
autodenominam halití (pessoa humana); os Xavante, awe (povo autêntico); os Bororo, boe
(gente) e os Kadiwéu, ejiwajegi (gente).
Na sociedade dos não-índios se desconhece um sistema educacional que não tenha
um vínculo com a escrita, mesmo porque a escola surgiu para atender aos anseios de uma
elite. Ao contrário disso, Bartomeu Melià mostra que uma educação pode existir sem
alfabetização. O autor assinala, ainda, que muitas sociedades indígenas se “[...] educaram
perfeitamente durante séculos sem recorrer à alfabetização, conseguindo, com meios quase
que exclusivamente orais, criar e transmitir uma rica herança cultural” (MELIÀ, 1979, p.
7). No entanto, é desconhecido o fato de que, no Brasil, alguma sociedade indígena
mantenha, exclusivamente, essa herança da oralidade e não tenha, em pleno século XXI, se
sujeitado aos desígnios de uma escola formal.
Essa herança cultural permitia o acesso irrestrito a todos os membros da
comunidade em que a oralidade imperasse, mas, ao contrário disso, com a escrita — como
ficou provado na história das sociedades —, passaria a ser uma ferramenta de poder diante
dos que não a detêm, pois, como afirma o geógrafo Paul Claval (2001, p. 70): “[...] com o
aparecimento da escrita, a situação muda: às culturas populares daqueles que continuam a
ser unicamente formados pelo gesto e pela palavra, opõem-se os conhecimentos
transmitidos por escrito dominados pelas elites”. Dessa forma, a escrita desenvolveria uma
nova camada social e, nas sociedades indígenas sem escrita, essa auferiria maior domínio
sobre as outras.
22 O antropólogo não especifica a qual educação está se referindo. Ao utilizar a expressão Educação
Indígena ao invés de Educação Escolar Indígena, termina por generalizar os sistemas educacionais existentes.
Denomina de Educação Indígena quaisquer sistemas de educação dos índios e para os índios.
57
Brasil. Publicada em 1595 pelo padre José de Anchieta, essa obra foi de suma importância,
pois serviu de instrumento para a elaboração dos catecismos que seriam criados
posteriormente.23 Para Marcio Ferreira da Silva (1994, p. 43), o “[...] colonialismo, a
Educação [Escolar] Indígena e o proselitismo religioso são práticas que têm, no Brasil, a
mesma origem e mais ou menos a mesma idade”. O autor considera a implantação de
projetos escolares civilizatórios como práticas freqüentes nos tempos coloniais e que
sempre estiveram “[...] ligadas aos métodos de controle político” (SILVA, 1994, p. 43).
Até o fim do período colonial, a Educação Escolar Indígena permaneceu a cargo de
missionários católicos de diversas ordens, por delegação tácita ou explícita da Coroa
Portuguesa. Com o advento do Império nenhuma alteração foi verificada.24
Com a solicitação do Governo Imperial, para que se promovesse a catequese e a
civilização dos índios, uma das missões presentes no Brasil desde 1612, e que permaneceu
até a República, atendeu ao pedido e se apresentou, pois já realizava trabalhos
missionários: os Capuchinhos (franceses e italianos). Os objetivos da missão estavam
explícitos:
23 Catecismo é um termo vindo do grego e trata-se de um livro elementar de instrução e ensino dos dogmas e
preceitos de uma religião. Os catecismos que seriam criados posteriormente são: Catecismo na Língua
Brasílica, em 1618, e Catecismo de Doutrina Cristã na Língua Brasílica da Nação Kiriri, em 1698 (SILVA,
1994, p. 43).
24 Segundo Márcio Ferreira da Silva (1994, p. 44), previu-se, no Projeto Constitucional de 1823, a “[...]
criação de estabelecimentos para a Catechese e civilização dos índios [...]”. A Constituição de 1824 foi
omissa no que se referiu aos índios. No entanto, dez anos depois, um ato adicional “[...] corrigiu a lacuna, e
atribuiu competência às Assembléias e ao Governo Geral para a catechese e a civilização do indígena e o
estabelecimento de colônias” (SILVA, 1994, p. 44).
25 Refere-se ao fato do Império ter o direito de proteger os índios (SGANZERLA, 1992, p. 63).
58
Os índios, apenas pela sua existência, trouxeram tantas dificuldades aos não-índios,
que esses últimos estudaram-no, pesquisaram-no, categorizaram-no. Existiam, em pleno
Império, os pensadores oficiais de índios do Imperador. Esses pensadores criaram uma
classificação das diversas sociedades indígenas em três categorias: “1a. as [sociedades] que
vivem sob as nossas vistas; a 2a. as [sociedades] que [estão] vivendo ainda no primitivo
estado de independência, todavia relacionão-se comnosco, e a 3a. as que nos hostilizão e
mostrão-se não dispostas a mudarem seo modo de existência” (BARROS, 1989, p. 186).
61
A educação formal deveria produzir uma transformação nesses índios para que
pudessem ser civilizados, ou seja, totalmente integrados. Deveria provocar uma mudança
no modo de existência dessas sociedades indígenas para assimilá-las completamente.
29 Dentre essas entidades podemos incluir a Igreja Católica, através do Conselho Missionário Indigenista
(CIMI), e organizações não-governamentais que auxiliaram na criação de organizações indígenas na Região
Amazônica.
30 Alguns antropólogos dedicados a pesquisas e ao apoio à nascente questão indígena foram os principais
fundadores das mais significativas ONG’s de caráter civil que se formaram nesse período, como é o caso da
Comissão Pro-Índio de São Paulo, Comissão Pro-Índio do Rio de Janeiro e Comissão Pro-Índio do Acre, do
Centro de Trabalho Indigenista de São Paulo, da Associação Nacional Apoio ao Índio da Bahia e do Centro
Magüta em Benjamim Constant, para citar algumas delas (MONTE, 2000).
63
A quantidade de leis, decretos, portarias, deliberações que garantem direitos aos indígenas,
principalmente a uma escola diferente da familiar do não-índio, está intrínseca na temática
indígena. Na literatura que discute a questão, percebe-se uma preocupação quanto à leitura
e a interpretação dessa legislação por parte dos atores que promoverão a escola indígena.
Espera-se que, com a legislação, os interesses dos indígenas não sejam deixados de lado.
Marcio Ferreira da Silva observa:
Setor termina por ocupar os lugares em que o Estado não atinge e, assim, as ONG’s atraem
os investimentos nacionais ou internacionais para projetos ligados à educação, ao
extrativismo, à educação ambiental e outros. Índios da Região Norte seriam mais
autênticos que os índios de outras regiões do país? A forma como mantêm suas tradições
— danças, o uso de plumagens e adornos33 — difere de acordo com a região onde se
encontram.
Outra discussão que merece uma reflexão relaciona-se com a utilização da língua
materna. O pluralismo lingüístico é tão diversificado como o pluralismo cultural. Devido a
isso, os índios têm sua própria língua materna e, em muitos casos, é a própria língua
portuguesa. Pode-se compreender melhor a questão lingüística através desse exemplo: o
Parque Indígena do Xingu tem 26 mil quilômetros quadrados, um território do tamanho da
Bélgica, onde vivem 14 etnias diferentes. Para se comunicar nessa área, o índio deve ser
fluente, ao menos, em dez idiomas xinguanos (Yawalapiti, Kamayurá, Waurá, Mehinaku,
Aweti, Kuikuro, Kalapalo, Nanukhwá, Matipu e Trumai), além da língua portuguesa
(XIMENES, 2004, p. 49).
A mesma situação pode ser percebida no Alto Rio Negro, no Estado do Amazonas,
onde se encontram 22 sociedades indígenas, cada qual com seu idioma (RICARDO, 2000,
p. 245). Em qual língua se expressar? No artigo 210, § 2o. da Constituição de 1988,
verifica-se que “[...] o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também o uso de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1998, p. 32).
Assim, a Constituição Federal representa um grande marco da história da E.E.I. no
Brasil, pois, a partir de então, percebe-se o desenvolvimento de uma reflexão sobre as
especificidades dessa modalidade de educação. José Ribamar Freire aponta:
33 Para cada etnia, os acessórios, enfeites ou itens de rituais recebem uma denominação.
66
Privilégio dos países que possuem sociedades indígenas em seu território, a E.E.I.34,
antes de ser considerada uma característica própria da educação brasileira, surgiu a partir
de discussões internacionais, cuja pauta encontravam-se os processos educacionais para
essas sociedades. Nietta Lindenberg Monte explica que:
[...] parte dos direitos sociais das Constituições Federais de vários países
latino-americanos, incorporada ao tema às Declarações e Convênios dos
organismos internacionais como Organização dos Estados Americanos
(OEA) e a Organização das Nações Unidas (ONU) e às metas das
Políticas Públicas na América, contaminou os discursos oficiais. [...]
Países com grande ou pequena população indígena passam a reconhecer,
a partir dos anos 80, uma modalidade especial de Educação, postulando
o papel que devem cumprir a diversidade e pluralidade na construção de
uma nova representação da “identidade nacional” — una e múltipla a
partir dos ideais da democracia (MONTE, 1998, p. 71).
34 Nos demais países da América Latina, esse processo educacional é denominado de Educação Intercultural
67
Bilíngüe e Etnoeducação e utilizam a sigla EIB para identificá-la (MONTE, 1998, p. 71).
68
35 Os Krenak vivem no Estado de Minas Gerais e têm Ailton Krenak como um grande líder preocupado com
os direitos indígenas, não apenas de sua comunidade, mas de todas as sociedades indígenas do Brasil.
70
prática dificultada, principalmente, pelo órgão público a que estiver subordinada a escola
indígena.36
Segundo Luís Donizete Grupioni (2002, p. 95), das 1.392 escolas indígenas
existentes no Brasil, 763 são municipais, 584 são estaduais, 11 são federais e 24 são
particulares. Nas escolas indígenas públicas, a situação do professor indígena é
contraditória, pois recebe a capacitação do governo federal, no que concerne a Educação
Escolar Indígena, para que possa realizar um trabalho educacional que seja intercultural,
bilíngüe, diferenciado e específico, mas ao colocar seu trabalho em prática, encontra os
obstáculos burocráticos que o impedem de concretizá-lo, bem como problemas em sua
própria formação.
A política pública para a E.E.I. no Brasil é elaborada pelas esferas públicas
governamentais, mas, também, dificultada por elas. Embora a legislação determine as
responsabilidades de cada nível político, percebe-se um descumprimento ou mesmo uma
negligência por parte da esfera estadual a respeito do que versam as leis.
Segundo a Resolução CEB n. 3/99 de 10 de novembro de 1999 à União cabe
legislar sobre as diretrizes e políticas para a E.E.I., além de:
De acordo com essa Resolução, não cabe ao poder federal a responsabilidade pela
oferta e pela execução da E.E.I.. Tal responsabilidade ficaria a cargo do governo estadual.
No entanto, segundo a mesma legislação, os Estados podem, em regime de colaboração,
executar as ações ou mesmo “[...] efetuar convênios com os municípios para que estes
assumam, quando for o caso, escolas indígenas em sua jurisdição” (BRASIL, 2001 c, p.
61). Muitas dificuldades surgem quando nem uma instância e nem outra assumem suas
36 Em um depoimento, uma professora cursista do Projeto Ára Verá (Curso Normal em Nível Médio)
Formação de Professores Guarani/Kaiowá, em Dourados, afirmou: “Tem professores na minha escola que
não trabalham diferenciado, dizem que não é correto e que a Secretaria Municipal de Educação não aceita
esse trabalho diferenciado. Daí que eu fico sozinha trabalhando assim. Se é para trabalhar diferenciado, todos
deveriam trabalhar assim” (Reunião Preparatória da 4a Etapa Presencial, Dourados, setembro de 2003).
71
Não obstante, a fim de ser inserida essa ferramenta nas aldeias, o MEC necessitou
de uma ampla divulgação entre os técnicos governamentais, secretarias municipais e
estaduais. A divulgação foi realizada a partir do Programa de Capacitação em Educação
Escolar Indígena para Técnicos Governamentais. O Programa reuniu, em grande encontro,
todos os agentes da E.E.I. de 26 municípios dos 78 existentes.37 Na oportunidade, foram
repassadas e discutidas algumas informações relativas à antropologia, história, lingüística e
localização geográfica dos povos indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul. Consultores
e especialistas do Ministério de Educação e Cultura (MEC) e da Secretaria de Educação
37 Dos 78 municípios do Estado do Mato Grosso do Sul, 26 contemplam populações indígenas em seus
territórios. Infelizmente, em várias reuniões que tratavam de questão indígena, principalmente E.E.I., nem
todos esses municípios estavam representados.
73
No Mato Grosso do Sul, uma sociedade indígena aumenta a lista dos excluídos do
RCNEI: os Kinikinau. Esse grupo foi dado como extinto pelo antropólogo Roberto
Cardoso de Oliveira, no livro Do índio ao bugre: o processo de assimilação dos Terena:
“[...] dentre as inúmeras tribos ou subtribos a desaparecerem ainda no presente século,
podemos apontar os Kinikináu (Guaná) e os Ofaié-Xavante” (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1976, p. 27). Os Kinikinau ressentem a não inclusão de sua sociedade, pois não estão na
lista dos povos contemplados pelo RCNEI. Entretanto já possuem dois professores
formados no Curso de Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau, realizado pela
Prefeitura de Porto Murtinho, entre 2002 e 2004. Essa sociedade está se mobilizando para
sair da invisibilidade imposta, principalmente pelo órgão indigenista oficial (FUNAI) e
recentemente, entre os dias 16 e 18 de junho de 2004 em Bonito – MS, realizaram o
Seminário: Povo Kinikinawa: persistindo a resistência.41
Essa é a pretensão almejada pelo documento. Os riscos são reais como tão real é a
possível não utilização do material por vários entendimentos. A utilização de um material
em que a sociedade não se espelha ou um material que um grupo não ajudou a construir,
poderá encontrar muitas dificuldades para ser aceito no interior de uma sociedade. Em
algumas etnias há uma transformação do Referencial em livro didático, porém o
Referencial não é um livro didático, não tem a obrigatoriedade implícita de ser cumprido,
não tem a estética de um livro didático, recheado de fotografias e cores. O exemplar do
RCNEI é único para o professor indígena, não há um RCNEI/aluno.
O que deveria ser o norteador das atividades práticas, transmuda-se em senhor,
colocando o professor índio como escravo de um documento, como comumente acontece
nas escolas dos não-índios. Se não foi no período colonial que se conseguiu escravizar os
41 Fui um dos consultores ministrantes e presenciei a força dessa sociedade como um grupo quando se
decidiu qual seria o nome a ser divulgado: Kinikinawa ou Kinikinau? A definição Kinikinau foi acertada
entre todos e publicada na Carta de Bonito, datada de 18/06/2004.
75
índios, pelo visto, o RCNEI não o fará. Devido a isso, o MEC possui um programa para
publicação de livros produzidos por índios, já com vários títulos.42
Em uma pesquisa realizada sobre o documento, os resultados são as duas
tendências teórico-metodológicas apontadas por Maria das Graças Cota na proposta de
geografia do RCNEI:
Maria das Graças Cota refere-se ao item III do RCNEI (BRASIL, 1998, p. 230) —
Sugestões de temas — que propõe iniciar o estudo de geografia a partir do local para o
global, ou seja, partir da aldeia para, depois, se estudar o mundo, como a autora observou,
numa concepção evolucionista de aprendizagem piagetiana.
É importante observar que os professores têm outras demandas, tais como quais
conteúdos da geografia devem ser trabalhados e, por isso, não há como se aprofundar,
principalmente nos cursos de formação de professores indígenas, nesta ou naquela
tendência, seja ela piagetiana, vigotskyana, montessoriana etc. A questão suscitada por
Maria das Graças Cota tem a sua relevância, porém um outro questionamento pode ser
feito e está intimamente relacionado a qual geografia ensinar e, principalmente, para que
serve a geografia para uma população indígena? Essas questões são analisadas no Capítulo
3 para que se reflita sobre a inserção da geografia nas comunidades indígenas.
42 No entanto, o MEC impõe dificuldades na publicação quando o livro foi organizado por não-índios,
mesmo produzido no contexto de um Curso de Formação de Professores. Talvez não se tenha clareza, ainda,
dos critérios utilizados pelo MEC para avaliação de livros a serem publicados ou não, nesta categoria. O
autor passou por essa experiência no início de 2004.
76
43 No capítulo anterior foi realizada uma reflexão sobre transdisciplinaridade, um movimento dos diversos
saberes para além de suas fronteiras. A geografia, através dos seus contatos interdisciplinares, também, deve
ser pensada nesses termos e a partir de tais referências (HISSA, 2002).
77
a) [...] Seja onde for que viva um povo, ele se relaciona com o seu espaço
e cria um modo de entendê-lo e explicá-lo, ou seja, a sua geografia [...]; b)
79
[...] O Brasil é formado por diferentes povos e cada um tem a sua forma
de viver e ocupar o espaço. Alguns possuem mais tecnologias, outros
menos. Uns ocupam grandes áreas, outros áreas pequenas, mas cada um
se relaciona com seu espaço e cria a sua geografia [...]; c) [...] Da vida de
cada povo nasce uma geografia. Os alunos e alunas indígenas como
todos os outros, trazem para a escola seus conhecimentos geográficos.
Esse conhecimento deve ser o ponto de partida e de chegada da geografia
na escola. No caminho, há o diálogo entre o conhecimento geográfico do
aluno e a geografia escolar não-indígena [...]; d) [...] A geografia deve ser
também um instrumento para o índio compreender melhor o mundo do
não-índio e poder dialogar com ele, descobrindo que não existe só uma
“geografia do branco”, mas várias, dependendo de quem é esse branco,
onde ele vive, como ele vive [...] (BRASIL, 1998, p. 225-229, grifos do
autor).
44 As diferenças entre a ciência e o senso comum existem e são significativas, mas não são absolutas, como
afirmou Boaventura de Sousa Santos. Se o “[...] senso comum e a ciência fossem totalmente distintos, a
81
(feitos de uma ética indígena) aos processos de adaptação, são recolhidos os traços de
incursões do conjunto que incorpora, que assimila. Um dos instrumentos poderosos de
assimilação reside no saber: saber é pensar e agir. O saber do conjunto que
incorpora/integra, a ciência é levada para as escolas indígenas, trazendo consigo sua
arrogância. No ambiente indígena, o conhecimento científico continua rompendo com o
que não se pauta em seus métodos.45
Percebe-se que a ciência suscita o conhecimento indígena a uma desintegração.
Verifica-se a modificação dos valores comunitários que, por sua vez, são rejeitados pelo
conhecimento científico. É dessa forma que a geografia poderá ser um agente de
preservação de valores indígenas? A geografia, através do seu ensino, deve encontrar
novos caminhos que não seja o da desintegração dos valores indígenas, sem abandonar o
seu caráter científico.
ciência não pretenderia transformar-se em senso comum, por outro lado, se fossem idênticos, a ciência não
poderia transformar o senso comum” (SANTOS, 2002, p. 50).
45 A inserção da ciência moderna, bem como da geografia, na cultura indígena sempre se mostra como um
momento tenso, como afirmou Boaventura de Sousa Santos: “Apesar do seu caráter cósmico, e de modo
muito semelhante à dominação e ao direito estatal, a ciência moderna só funciona em constelação com outras
formas caósmicas de conhecimento. [...] Mas a ciência também se constela com todos os outros sensos
comuns estruturais, quer em relações conflituais, quer em relações complementares. Por exemplo, a
constelação da ciência com o conhecimento próprio do espaço da comunidade é uma constelação tensa. Por
um lado, na sua pulsão hegemônica, a ciência aspira a rejeitar e a substituir inteiramente os conhecimentos
locais; a própria idéia de uma ‘comunidade científica’ sugere que a ciência se considera o único valor
identitário moderno sobre a base do qual podem florescer os ideais comunitários” (SANTOS, 2002, p. 305-
306).
82
Clifford Geertz (1989) apresenta uma série de definições para cultura.47 Dentre
elas, seguindo uma linha weberiana, em que retrata o homem como um animal amarrado a
teias de significados que ele mesmo cria, Clifford Geertz afirma:
46 Segundo Zélia Marconi e Marina Presotto (1986), mais de 160 definições para cultura já foram
observadas.
47 Concorda-se com Clifford Geertz (1978, p. 24) quando afirma que cultura é “[...] o tecido do significado,
em cujos termos os seres humanos interpretam sua experiência e orientam sua ação [...]”.
86
Clifford Geertz destaca-se por chamar a atenção dos antropólogos para o fato de
que toda etnografia não passa de interpretação e que, em última instância, o nativo é o
único que obtém dados em primeira mão, posto que é ele quem vive “a” e “na” cultura em
estudo. Os dados obtidos pelos cientistas, etnólogos etc., são, portanto, de segunda mão,
pois são recolhidos através de uma releitura da realidade que se desenvolve,
particularmente, através de revisões bibliográficas.
Tantos estudos justificam uma preocupação com a diferença:
direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos
modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois grupos” (REDFIELD; LINTON;
HERSKOVITS, apud CUCHE, 2002, p. 115).
De acordo com a antropóloga Joana Fernandes, desde a década de 1970, a
antropologia questiona a teoria da aculturação que orientou a maioria dos estudos sobre as
sociedades indígenas brasileiras, pois,
Houve, por muito tempo, um consenso entre antropólogos no Brasil de que o termo
aculturação referia-se à perda total da cultura original frente à influência de outra cultura
considerada mais forte em relação à primeira. Assim, com o passar do tempo e como
resultado dessa troca entre culturas, “[...] uma seria absorvida, assimilada pela outra
desaparecendo, portanto, enquanto sociedade” (FERNANDES, 1993, p. 17).
A teoria da aculturação, sob os diversos enfoques, ocupou-se em entender a cultura
como um sistema fechado com padrões homogêneos, com as “[...] coincidências de
conduta, manifestados pelos membros de uma sociedade e que dão ao modo de vida uma
coerência, uma continuidade e forma diferenciada” (HERSKOVITS, apud MARCONI e
PRESOTTO, 1986, p. 54). Como um sistema fechado, ao sofrer quaisquer alterações, essa
sociedade tenderia a se desestruturar, de tal forma, a ponto de desaparecer.
Desse modo, tornou-se necessário compreender como aconteciam as trocas entre
culturas. Ao discutir a aculturação, os antropólogos deveriam analisar a difusão cultural e
a função de cada um dos elementos culturais. Segundo Roque de Barros Laraia, a difusão
cultural consiste em empréstimos culturais realizados entre grupos distintos, pois “[...]
grande parte dos padrões culturais de um dado sistema não foram criados por um processo
autóctone, foram copiados de outros sistemas culturais” (LARAIA, 1999, p. 109). Através
da difusão, os elementos culturais tenderiam a se estender a outras regiões ou grupos,
dependendo das condições sociais, favoráveis ou não, a essa difusão. Além disso, esse
48 Estudos como os de Ruth Benedict (1972) compõem a gama de investigações e análises sobre culturas
88
processo poderia acontecer de maneira pacífica entre sociedades, através de uma troca
contínua de pensamentos e invenções. Por outro lado, poderia haver rejeições a certos
traços culturais, pois nem tudo seria aceito imediatamente.49
Uma questão importante a ser lembrada é que, com o passar do tempo e com a
ampliação dos estudos, os cientistas sociais foram percebendo que a idéia de padrão
cultural (pattern), elaborado por Ruth Benedict, é falha, pois repercutiu a imagem de que o
sistema cultural é simultaneamente homogêneo e fechado. Entretanto, no mundo atual, de
fluxos e interações globais, torna-se sem sentido referir-se a uma cultura pura e única.
Assim, não se poderia, por exemplo, fazer qualquer referência a uma cultura japonesa, ou a
uma cultura estadunidense, que defina todos os japoneses ou todos os estadunidenses, e,
ainda, os distinga de outras sociedades. Todas as sociedades, inclusive as ocidentais, foram
incorporando alguns valores e descartando outros valores e símbolos. À medida que as
interações culturais aumentam torna-se cada vez mais complicado classificar as culturas,
tal como em Ruth Benedict.50
No Brasil, alguns antropólogos, como Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy
Ribeiro, utilizam a idéia de que as culturas se alteram em contato com outras. Roberto
Cardoso de Oliveira, em sua obra clássica Do índio ao bugre, publicada em 1976, expôs as
idéias elaboradas para um relatório sobre os índios Terena do, então, sul do Estado de
Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul), em 1959, quando compunha a Seção de Estudos
do Serviço de Proteção aos Índios e a Divisão de Antropologia do Museu Nacional. De
acordo com a experiência que possuía na época e o conjunto de dados que recolheu,
Roberto Cardoso de Oliveira aplicou o seguinte conceito de assimilação às suas pesquisas:
“[...] [é o processo] pelo qual um grupo étnico se incorpora noutro, perdendo sua
peculiaridade cultural e sua identificação étnica anterior [...]” (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1976, p.103).
Roberto Cardoso de Oliveira iniciou seus estudos discutindo o conceito de
aculturação nas sociedades indígenas que estudou. Entre o final da década de 1950 e o
início da década de 1960 aprimorou esses estudos, mas não chegou a abandonar
completamente o conceito. As discussões sobre os contatos interétnicos se intensificaram a
partir do deslocamento de enfoque proposto pelo autor do conceito de aculturação para o
Darcy Ribeiro foi correto em sua previsão concernente ao certo grau de incremento
demográfico da população indígena após a integração à sociedade nacional. Para ele, os
grupos indígenas que se encontram integrados participam “[...] intensamente da economia
e das principais formas de comportamento institucionalizado da sociedade brasileira”
(RIBEIRO, apud CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996, p. 45) e sofrem profunda
descaracterização em suas línguas e culturas.
A importância do contexto histórico e da estrutura econômica regional foi realçada
por Darcy Ribeiro a ponto de formular um conceito específico de manipulação
simultaneamente ao conceito de aculturação. O conceito de integração foi utilizado por
Darcy Ribeiro mais como um estado do que como um processo. Na categoria dos índios
integrados, o antropólogo inseriu
51 Cf. WEATHERFORD, J. Savages and civilization. Nova York: Crown apud MATHEWS, Gordon.
Cultura Global e identidade individual: à procura de um lar no supermercado cultural. Bauru: EDUSC, 2002.
p. 31.
94
por sua vez, são aqueles capazes de distinguir, de separar o indivíduo indígena do não-
indígena.
Nos Kadiwéu, essa essência se reflete, entre outras práticas, na cerâmica. A
produção em argila se transformou. O padrão, no qual a cerâmica era produzida há tempos,
foi transformado. No entanto, fazer cerâmica para as mulheres compõe a parte que não se
altera da tradição Kadiwéu. Dessa forma, é possível referir-se ao que pertence à tradição e
ao que pertence à cultura: nem tudo o que se refere à cultura é tradição, mas tudo o que é
tradição compõe a cultura.
As índias Kadiwéu fazem cerâmicas há muito tempo — e fazer cerâmica e
desenhos envolvem questões de gênero, assim como o uso da língua.52 O primeiro registro
escrito, mais sistematizado, sobre a fabricação de cerâmica é datado de 1886. Isso significa
que, ainda nessa época, a cerâmica já era confeccionada pelas mulheres.53 No entanto, não
se têm notícias, na fase nômade, sobre tal atividade entre os Kadiwéu, o que faz acreditar
que a cerâmica começou a ser produzida quando os índios já estavam fixados em aldeias.
Através da obra de Branislava Susnik (1978), verifica-se que os Kadiwéu aprenderam a
fazer cerâmica com outra sociedade indígena: os Guaná (ancestrais dos Terena). A autora
afirma:
52 Na sociedade Kadiwéu, os homens falam uma língua e as mulheres falam outra. Mesmo que o diferencial
seja uma simples sonorização, como na expressão eu vi: JINADI (masculino) e JINAADI (feminino), ou uma
mudança total da linguagem, como é o caso da expressão Boa tarde!: ELE šOKIDI! (masculino) e ELE
AWII! (feminino). Quem ensina o pequeno Kadiwéu é a própria mãe, pois ela deve conhecer as duas versões
da língua, embora não fale a forma masculina em público. Esse procedimento deve ser respeitado e o
contrário não seria aceito pelo grupo maior. A mesma regra também deve ser seguida pelas crianças.
Informação pessoal da Profª Martina de Almeida, 2002.
53 Cf. SMITH, 1922.
54 Traduzido do original em espanhol.
95
e para a troca, hoje é transportado em ônibus para ser vendido nas cidades mais próximas à
Reserva, aproveitando a atividade turística em cidades do Estado de Mato Grosso do Sul,
tais como Campo Grande e Bonito. Desse modo, não se pode afirmar que a prática esteja
acabando ou que, com a inserção e uso de vasilhas de plástico e panelas de alumínio, as
cerâmicas Kadiwéu deixam de ser produzidas (ver fotos, em anexo). Segundo Darcy
Ribeiro,
Com o fim das incursões guerreiras, os Kadiwéu deixaram de trazer novos cativos
para as aldeias. Eram as mulheres cativas que realizavam os serviços domésticos, liberando
as Kadiwéu nobres que, assim, conseguiam tempo para a criação e produção das pinturas
corporais. Gradualmente, o corpo deixou de ser o suporte para essas pinturas pelo fato de
que isso não era bem visto pela sociedade não-índia, além de outros motivos. Por outro
lado, na passagem do século XIX para o século XX, há uma desestruturação social
Kadiwéu, pois quem fazia as pinturas eram apenas as mulheres nobres. Assim, todas as
mulheres Kadiwéu, nobres e cativas, transportaram para a cerâmica a “vontade de beleza”
com que eram feitas as pinturas corporais (RIBEIRO, 1980 a, p. 255) .
As peças ganharam novos significados, sentidos, tessituras e, também, novos
formatos. Atualmente, além da “vontade de beleza”, as índias Kadiwéu produzem
cerâmicas, também, para a subsistência das famílias. João Pacheco de Oliveira (1999, p.
117) denomina esse processo de ressignificação, ao afirmar que: “[...] operadores externos
são ressemantizados e fundamentais para a preservação ou adaptação de uma organização
social e um modo de vida indígena”. As artesãs deram outras funções às cerâmicas, ou
seja, as ressemantizaram. Continuam a fazer e são estimuladas a isso, principalmente,
porque é intrínseco ao ser Kadiwéu e ao ser mulher Kadiwéu. Pela experiência adquirida
entre os anos 2000 e 2003, na aldeia Bodoquena, pode-se afirmar que a produção de
96
cerâmica Kadiwéu vai existir por muito tempo, tal como a utilização da língua. Há, ainda,
uma questão estética, como no passado:
IBAMA recomenda aos índios que não cortem as árvores de seus territórios. Percebem-se
implícitas nessa ordem, noções de conservacionismo e biodiversidade. Porém, esses
conceitos são estrangeiros aos índios, fugindo, assim, completamente, de seus esquemas
mentais. Tanto o IBAMA como a FUNAI podem ser considerados portas de entrada para
o contato sistemático com o conhecimento geográfico, principalmente, através de imagens
de satélite e de mapas, levados para as aldeias, que indicam os limites da Reserva Indígena
Kadiwéu. Os índios, ao observarem a utilização de tais instrumentos por técnicos,
compreendem sua importância na ampliação do conhecimento e defesa da terra indígena
demarcada pelo governo federal, embora essa compreensão não os habilite a utilizá-los.
Além da FUNAI e do IBAMA, outras instituições adentram a terra indígena, como, por
exemplo, as organizações não-governamentais (ONG’s). As ONG’s vêm municiadas por
mapas, imagens de satélite e outras tecnologias, além de informações que, inevitavelmente,
(trazem consigo) representam marcas do conhecimento científico.
Nas cinco aldeias existentes na Reserva Indígena Kadiwéu, atualmente, o uso do
rádio facilita o contato intercultural. Sem o provimento de energia elétrica, existe a
possibilidade de cada família possuir, no mínimo, um aparelho, pois, a praticidade do
funcionamento à pilha difunde ainda mais a sua utilização. Através do rádio os Kadiwéu se
informam sobre os acontecimentos que envolvem as cidades da região, o Brasil e o mundo.
Em visita à aldeia São João, situada ao sul da Reserva, um professor Kinikinau55 foi
observado acompanhando, pelo rádio, programas em línguas francesa e espanhola. Muitas
dessas informações chegam até a sala de aula sob a forma de questionamentos56. Essa é
uma das formas de contato que os Kadiwéu possuem com o mundo. Esse mundo
desconhecido e de difícil compreensão é alvo de fascínio e sedução.
Na instalação das primeiras unidades escolares pelo SPI, foi introjetada, nas
comunidades indígenas, a imagem de escola como o lugar em que o conhecimento deve ser
apreendido, não através da autonomia e sim da autoridade. Os professores da época
aplicavam castigos e agressões físicas em nome da aprendizagem. Essa imagem de escola,
durante muito tempo, fez parte do “horizonte mental” dos Kadiwéu, como diria Clifford
Geertz (2002, p. 88). As escolas mantidas pelo SPI e, posteriormente, pela FUNAI,
55 Ressalta-se que esse professor teve sua formação fora da aldeia, prestou serviços militares e é casado com
uma mulher não-índia.
56 Um dos alunos questionou a relação entre o envolvimento do presidente do Senado Federal e a
manipulação do placar de votação do Senado Federal, em Brasília, e a queda das ações na Bolsa de Valores
98
de São Paulo, em 2001. Percebe-se a grande dificuldade do aluno em compreender como um fato está ligado
a outro, pois são, aparentemente, muito diferentes e desconectados.
57 De acordo com Paulo Freire (2002 b, p. 58), “Na visão ‘bancária da educação, o ‘saber’ é uma doação dos
que se julgam sábios aos que julgam nada saber”. O autor ainda completa que, nessa concepção, [...] a
99
Percebe-se que a geografia, tal como compreendida pelos indígenas Kadiwéu, está
prenhe de um caráter utilitarista, aparentemente, próxima dos saberes indígenas58. Por sua
vez, saberes indígenas são práticos, míticos e, sobretudo, estão associados à sua
sobrevivência. Pensam eles, os índios, nas escolas, sobre os seus próprios saberes?
Novamente, imagina-se que não. Convidados a pensar sobre a geografia, como imaginá-los
pensando de uma maneira descolada da forma como experimentam os seus saberes —
através da sua vivência, a partir das explicações que encontram nos seus mitos e lendas?
A geografia, para eles, deveria ser prática, deveria se somar e se transformar
naquilo que já conhecem a partir do que experimentam do seu mundo, já tão modificado.
Somente assim a geografia teria alguma representação entre os Kadiwéu.59 A ciência
geográfica, diante disso, perde muito do seu significado — desejando manter, a todo custo,
sua integridade, como se o diálogo com o saber indígena pudesse desviá-la de seus
propósitos e, ainda, negar a sua própria natureza e a sua condição científica (HISSA e
SOUZA, 2004).
Também entre os Kadiwéu, quanto mais próximo do seu cotidiano estiver a matéria
que se estuda em sala de aula, mais espontânea será a assimilação do conhecimento.
Afinal, a vida dos Kadiwéu, desenvolvida através de mitos, torna-se muito mais simples do
que a existência pensada a partir dos jogos intelectuais da ciência moderna. Assim, como
em qualquer disciplina, há os momentos em que o conhecimento pode ser utilizado
diretamente, no dia-a-dia da comunidade. Existem outros, entretanto, em que a praticidade
imaginada pelos estudantes, está ausente implicando em dificuldades e desinteresses,
inerentes ao processo de aprendizagem.
Como exemplo de conteúdos cujo conhecimento torna-se pouco prático entre os
Kadiwéu, cita-se o ensino de mapas. O mapa, como objeto em si, corresponde, muito
educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos [...] (FREIRE, 2002 b, p.
59).
58 Esse caráter utilitarista não seria decorrente de uma postura que explicita a “transfiguração étnica”?
59 Para que a imagem de ciência pudesse encontrar alguma representação nos lugares indígenas, incluindo as
salas de aula indígenas, seria necessário que esse conhecimento (científico) se preparasse para o referido
movimento. Para tanto, os índios deveriam se sentir estimulados, habitualmente, a desenvolver mapas
mentais, de natureza teórica, assim como de caráter temático, de modo a conduzir significados ao
conhecimento que se transmite e se discute nas salas de aula. Os professores, portanto, também, seriam um
instrumento desse processo e, para isso, deveriam se preparar, também, rotineiramente, para esse processo.
Entretanto, a ciência e os professores se dirigem para a sala de aula e lá se posicionam, do alto, como se nada
houvesse a trocar. Essa posição hierárquica dos professores e da ciência é, por sua vez, reforçada e legitimada
pelos indígenas que, na sua condição de assimilados, nada mais fazem do que ratificar a demanda pelo ensino
tradicional. Nessa postura, nada há de prático, nada há de interessante. Pelas mesmas razões nada pode ser
100
dito a favor da existência de trocas interculturais ou da existência de uma geografia indígena. Nada se
transforma na sala de aula, onde pouco movimento acontece.
60 Refere-se à metodologia tradicional, as aulas ministradas, apenas, entre quatro paredes, e que são baseadas
unicamente no livro didático de geografia, não importando se o conteúdo está inserido no contexto
sociocultural do aluno. A utilização do livro didático se limita a respostas de questionários, sem um maior
aprofundamento dos conceitos inerentes à geografia. Os professores que concluíam a sua formação em
101
Mas, e esse saber indígena? Poder-se-ia imaginar, também, que o saber indígena
absorveria a criticidade da ciência moderna, continuando a ter a liberdade de captar a
profundidade das relações entre pessoas e entre pessoas e coisas, de reproduzir-se
espontaneamente no suceder do cotidiano da vida, de ser retórico e metafórico e de não
ensinar, mas persuadir (SANTOS, 2001).
A liberdade, também, deveria estar presente no ensino. O trabalho de campo,
mesmo que venha ocorrer no jardim da escola, deveria, como qualquer aula, estar pleno de
criatividade. Mesmo os cientistas, diante de métodos científicos rígidos, podem ser
criativos e ótimos resultados serem obtidos em suas pesquisas. Sem ferir códigos, regras e,
principalmente, o paradigma a que estão subordinados:
escolas de não-índios absorveram este modelo de escola e de metodologia. Assim, acreditando, talvez, que
seja a única e a mais correta, reproduzem-na no interior da escola indígena.
61 Não domina, mesmo sendo tão próximo do conhecimento que se pretende ensinar. Não se trata, portanto,
de uma carência específica dos indígenas. Os professores não-índios, de qualquer instituição de ensino,
apresentam a mesma “performance”.
102
62 Essa concepção do trabalho de campo como um passeio não é exclusividade de pais de alunos Kadiwéu.
A maioria dos professores de geografia, em escolas de qualquer localidade, se ressente do mesmo problema.
Os pais, sem o conhecimento da necessidade de uma atividade extra-classe, como o trabalho de campo,
tomam-na como desnecessária, como excursões sem finalidade didática.
63 Cf. SOUZA; JOSÉ DA SILVA; PIRES, 2002. Para incentivar a produção de material didático próprio,
bem como livros a serem utilizados da 1a. a 4a. séries, foi elaborado um projeto intitulado: Construindo com
as próprias mãos: o ensino de artes, geografia e história na escola Kadiwéu. Esse projeto teve como objetivo
a produção de livros didáticos pelos professores Kadiwéu. Foi ganhador de dois prêmios nacionais: a) II
Prêmio Mostra PUC-Rio, promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em agosto de
2002, e b) Segundo Prêmio Educar para a Igualdade Racial, promovido pelo Centro de Estudos e Relações de
Trabalho e Desigualdades (CEERT), em setembro de 2004.
64 Os professores indígenas deveriam fazer uso dos vários incentivos do governo federal à elaboração de
projetos que possibilitem a construção de livros didáticos que propiciem estudos do lugar Kadiwéu e não
apenas os estudos da cultura nacional, como retratam os livros enviados pelo MEC.
103
65 O assoreamento de cursos d’água, citado como conteúdo nas aulas de geografia do Ensino Fundamental,
por exemplo, é estudado em livros, mas não existia nenhuma correspondência com os problemas reais. Por
isso, a surpresa dos alunos em saber que poderia haver uma conexão entre a escola e o dia-a-dia.
66 Tive a oportunidade de participar como professor ministrante do curso de geografia em dois projetos de
formação de professores: o primeiro, entre os índios Kadiwéu e Kinikinau no Projeto Kadiwéu e Kinikinau
— Formação de Professores Kadiwéu e Kinikinau, em Porto Murtinho, o segundo, entre índios Guarani-
104
Como se pode ensinar um professor a ministrar aulas de geografia sem que ele conheça os
conceitos que são inerentes à disciplina?
Os professores indígenas já compreendem os limites teóricos e metodológicos do
RCNEI, pois, como referência, o documento nunca se tornou suficiente para atender às
necessidades em sala de aula. Como orientação metodológica e não conteudista, ele não
serve como livro didático. Além disso, a realidade encontrada no RCNEI também difere da
realidade dos Kadiwéu. As comunidades indígenas da Região Norte tornaram-se a
referência do RCNEI, sendo que as realidades divergem quando se trata das populações
indígenas do Centro-Sul brasileiro — tal como os livros didáticos, que possuem o caráter
de universalizar os conteúdos, embora, termine por generalizá-lo.
No RCNEI é possível verificar a exigência dos conceitos de geografia nas diversas
sugestões. Cita-se, apenas uma delas:
leitura a ser feita. Novamente se questiona a natureza dessa geografia indicada pelo
documento oficial afirmando a existência de várias geografias.
A partir da leitura e interpretação dos diversos depoimentos, anotados em encontros
informais com os estudantes e professores da Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” –
Pólo, é possível afirmar que a geografia inserida entre os Kadiwéu nunca demonstrou
sinais de que poderia ser algo tão diferente da geografia moderna. Ao se apresentar em um
ambiente com particularidades como o indígena, esta ciência mal cumpre as suas
tradicionais promessas. No que se refere ao diálogo com outras formas de saber e à sua
integração com outros discursos, tampouco se cogita a sua existência, mesmo como
promessa: “A geografia tem essa ambição de querer reunir tudo — a economia, a cultura, a
sociedade, as características físicas de um lugar”, já afirmava Milton Santos (apud HISSA,
2002, p. 274). A ciência é complexa. Todos devem se preparar para o seu estudo. Por que
deveria ser diferente nas denominadas escolas indígenas?
Entrevistados Depoimentos
A Geografia é o desenho das coisas que a gente encontra na nossa aldeia.
B Os ecalailegi conhecem tudo e nós precisamos conhecer o que eles já sabem.
A gente escuta no rádio as coisas acontecendo, mas nós não sabemos onde é o lugar que aconteceu.
C Aquela bomba que fez o prédio cair. Eu sei que é num lugar bem longe que tem o nome de Estados
Unidos, mas nós não sabemos onde fica.
No meu livro que eu trabalhei na 2ª série, lá fala que tenho que ensinar as coisas do bairro onde a
D criança mora. Mas nós não temos bairro na aldeia. E lá no bairro que tá no livro tem prédio, a
estrada não é de terra, tem avião, tem trem. Essas coisas que não chegou aqui.
E Eu quero aprender geografia para saber das minhas coisas. Não quero ficar sabendo só as coisas
dos brasileiros.
Os índios precisam aprender geografia para conhecer o sistema do branco, pois os índios sabem que
não sabe tudo. Esse negócio de mapa, por exemplo, eu aprendi agora. Já tinha visto na FUNAI um
F mapa da minha terra, mas só via uns rabiscos. Agora eu sei, eu aprendi, por isso que é importante
aprender geografia, para conhecer o que o branco conhece e não ser explorado mais.
G Meu pai diz essas coisas de geografia. Diz que quando ele foi na escola era muito difícil pra ele
entender o que a professora mostrava pra ele.
H Eu não entendo esse negócio de escala, professor! Não tem uma coisa mais fácil não?
I Como eu vou poder desenhar a minha escola olhando de cima? Eu não sou passarinho para voar lá
em cima e olhar.
J A geografia fala para nós o lugar que é nosso até onde ele vai, até onde nós podemos chegar.
Depois desse lugar não é mais nosso, é dos outros.
K Eu não sei por que minha terra tem cerca. Quando eu nasci já tinha muita cerca na minha terra.
L É muito importante aprender geografia porque nós aprendemos a preservar o nosso lugar.
M Nós temos que saber para que as coisas servem, as águas, os matos, os bichos. Porque nós
precisamos cuidar de tudo isso que tá aqui que é pra não acabar.
N A geografia serve para nos ensinar a fazer mapas para nos localizarmos na nossa aldeia.
A geografia estuda o lugar das coisas neste mundo. Onde estão as águas, as matas, as terras boas
O para plantar, para caçar. Onde estão os rios cheios de peixe e a época de pescar.
67 Diante das anotações que envolvem o ensino da geografia nas escolas indígenas, uma interrogação
merece, também, ser encaminhada com destaque, ainda que com a exclusiva finalidade de reflexão: a
geografia não é, ao longo da sua história, quase sempre banalizada em todas as instituições, em todos os
níveis de ensino? Diversas obras referenciam a interrogação que, assim, não é destituída de fundamento.
Talvez, o mais incisivo questionamento histórico tenha origem na obra de Yves Lacoste (1976). Em grande
medida, ele continua atual.
68 Através de contatos com o corpo de professores que atuam na Escola Municipal Indígena Ejiwajegi,
obtém-se, ao longo do período 2000-2003, algumas informações que dizem respeito ao ensino de várias
outras disciplinas. O ensino da educação física apresenta-se como a exceção, diante da motivação dos
estudantes indígenas e tendo como referência a dificuldade de troca entre professores e estudantes, assim
como o obstáculo à absorção dos conteúdos. Todas as outras disciplinas encontram dificuldades nas salas de
aula.
109
fruto do importante diálogo entre professores e alunos, entre saberes, especialmente nesse
momento em que o conhecimento é discutido em sala de aula. Ensinar é ensinar e
aprender.
A geografia entre os Kadiwéu ainda é utilizada em sua forma tradicional, da mesma
maneira como ela se apresenta ao mundo: como um dicionário de lugares, um atlas que
responde as questões meramente informativas. É o que se observa através do aluno C, em
seu depoimento: “A gente escuta no rádio as coisas acontecendo, mas nós não sabemos
onde é o lugar que aconteceu. Aquela bomba que fez o prédio cair. Eu sei que é num lugar
bem longe que tem o nome de Estados Unidos, mas nós não sabemos onde fica”. Da forma
como o conhecimento está empregado, é possível que os meios de comunicação cumpram
melhor esse papel de caráter meramente informativo ou mesmo os livros didáticos
utilizados pelos professores Kadiwéu. Trata-se, essa, de uma discussão que já atravessa
décadas, e ainda, pelo menos nas salas de aula, não se resolve. Veja-se o questionamento
histórico de Yves Lacoste (1976, p. 6, tradução e adaptação do autor)69, ao se referir a uma
geografia desprestigiada em função daquilo que aborda e em função de como aborda:
“Outrora, talvez, ela [a geografia] teria servido para alguma coisa, mas, hoje, a televisão, as
revistas, os jornais não apresentam melhor todos os países, e o cinema não mostra bem
melhor as paisagens?” As interrogações do geógrafo francês podem, ainda, muito bem,
experimentar a transposição histórica para uma avaliação do que se tem feito da geografia.
Além disso, o desenvolvimento tecnológico, ainda em curso, que permite a transmissão ao
vivo de determinados fenômenos, atualiza o questionamento de Yves Lacoste. Apesar de
haver experimentado um enorme avanço teórico, ao longo dos últimos 30 anos, a geografia
sempre careceu, nas salas de aula, de posturas mais críticas e de uma formação mais
aprofundada.
Existe incompatibilidade concernente aos livros didáticos e o ambiente escolar no
qual estão inseridos, conforme a leitura que se faz do depoimento da professora, de origem
Kadiwéu: “No meu livro que eu trabalhei na 2ª série, lá fala que tenho que ensinar as
coisas do bairro onde a criança mora. Mas nós não temos bairro na aldeia. E lá no bairro
que tá no livro tem prédio, a estrada não é de terra, tem avião, tem trem. Essas coisas que
não chegou aqui”. Os mesmos livros recebidos pelas escolas situadas nas cidades são
enviados, pelo governo federal, para as escolas das aldeias. Não obstante, isso é passível de
ocorrer em outros lugares que não sejam as aldeias, pois ocorre nas escolas das zonas
rurais, por exemplo. Entretanto, sabe-se que a deficiência de material didático específico
sobre os lugares, de um modo geral, deve ser compreendida como um importante obstáculo
para o ensino fundamental. Ressalta-se que esta questão merece maior atenção quando se
trata de professores em processo de formação, como os indígenas, pois, em muitos casos,
eles também enfatizam os livros didáticos em suas práticas de ensino cotidianas. Os livros
didáticos são o seu roteiro, muitas vezes o único a ser seguido. Inevitavelmente, em muitos
casos, torna-se, a única fonte de pesquisa. Para que tal situação possa ser modificada, todos
os professores — indígenas ou não — devem ser aqueles que, a partir da prática da leitura
e da pesquisa, elaboram os seus próprios roteiros de trabalho em sala: isso pressupõe uma
autonomia intelectual que poucos desenvolvem e compartilham, mesmo nas salas de aula
das universidades (HISSA, 1999, 2002). Existem os programas que incentivam os
professores a elaborarem livros específicos, como os das escolas indígenas, embora, ainda,
não sejam acessíveis à todos. Além da questão do livro didático, é importante perceber que
a geografia que se ensina para os Kadiwéu aborda problemas como a geografia ensinada
nas escolas de todo o país, mesmo que ocorra de uma forma precária, superficial e
enviesada, a partir dos livros didáticos.
Para os Kadiwéu, a geografia é a disciplina dos mapas. O relato do estudante N
ressalta, aqui, a referida imagem da disciplina: “A geografia serve para nos ensinar a fazer
mapas para nos localizarmos na nossa aldeia”. Esta é uma reflexão importante a ser
realizada, pois há muito tempo as sociedades indígenas têm travado contato com este tipo
de ferramenta, seja no ambiente escolar, seja no momento da demarcação de suas terras. É
certo que os índios são capazes de construírem mapas mentais complexos. Dessa forma, a
cartografia poderia incorporar essa capacidade indígena e, simultaneamente, encaminhar
possibilidades de diálogo com os saberes indígenas. Os Kadiwéu não possuem a
compreensão do que se define por mapas mentais, pois se trata de um conceito tão
estrangeiro como a ciência. Mas, alguns deles, em sala de aula, já fazem uso de mapas,
uma ferramenta igualmente estrangeira no lugar. Entretanto, os indígenas não
confeccionam mapas. Os professores, também, não. O depoimento reforça a leitura que se
faz sobre a expectativa ingênua do estudante indígena, estimulada, por seu turno, pela
própria cultura moderna, não-índia, presente nas salas de aula através do ensino da
geografia. Mais uma vez é possível avaliar que tanto professores como alunos ainda não
absorveram as informações acerca da utilização de mapas nos estudos geográficos.
111
O “lugar das coisas neste mundo”, “as terras boas para plantar e para caçar” já são
conhecidos dos indígenas. Como é possível observar no relato do aluno O: “A geografia
estuda o lugar das coisas neste mundo. Onde estão as águas, as matas, as terras boas para
plantar, para caçar. Onde estão os rios cheios de peixe e a época de pescar”. As roças estão
próximas aos leitos de rios e córregos, os animais estão dentro das áreas de matas e
florestas. Percebe-se que os depoimentos estão carregados de “respostas forjadas” e
refletem a natureza da geografia levada para a escola indígena e como esse conhecimento é
trabalhado nas salas de aula. É possível verificar que os conceitos da geografia ainda não
foram absorvidos pelos Kadiwéu, talvez como decorrência da formação incompleta dos
profissionais. Os Kadiwéu possuem o domínio sobre a natureza que os cerca. No entanto,
faltam-lhes a criticidade para compreender que, entre essa natureza e eles próprios, existe
uma sociedade que insere-lhes tecnologias produzindo uma rápida degradação no ambiente
Kadiwéu. Na medida em que os problemas vão surgindo, como degradação e compactação
do solo, assoreamento de rios e córregos, os Kadiwéu também percebem que essa natureza
é finita. A geografia pode auxiliar nesse processo municiando os índios com as
informações pertinentes a esses problemas ambientais. Essas informações, juntamente com
os seus próprios saberes, podem fazer com que os Kadiwéu elaborem uma leitura
relativamente mais crítica sobre o quadro ambiental instalado no seu território, advindo
desse diálogo possíveis soluções. Entretanto, como fazê-lo?
“É muito importante aprender geografia porque nós aprendemos a preservar o
nosso lugar”; “Nós temos que saber para que as coisas servem, as águas, os matos, os
bichos. Porque nós precisamos cuidar de tudo isso que tá aqui que é pra não acabar”. Os
relatos dos alunos L e M, por seu turno, permitem verificar o sentido utilitarista que é
destinado à disciplina. Quando se é encaminhado o questionamento sobre que é geografia,
o estudante devolve para que serve e porque é importante estudar a disciplina. A
geografia, para isso, inserida nos ambientes escolares, deveria procurar o diálogo de modo
a se fazer compreender e, sobretudo, se deixar apreender para os índios. Somente assim,
através do intercâmbio, seria possível imaginar uma apropriação da geografia pelos índios
que derivasse de uma transformação da ciência — nos moldes apresentados por
Boaventura de Sousa Santos — com base nos saberes indígenas. Entretanto, tal
“movimento” não edificaria uma “nova disciplina”. Tal movimento deveria ser o da
disciplina em qualquer ambiente: na cidade, nas metrópoles, nas universidades, nas escolas
públicas, nas particulares, nas favelas, nas escolas rurais. A geografia se transformaria,
112
assim, nas salas de aula, naquilo que sempre deveria ter sido: uma disciplina científica
“que se ensina” a partir do conhecimento com o qual procura dialogar (HISSA e SOUZA,
2004).
“Os ecalailegi conhecem tudo e nós precisamos conhecer o que eles já sabem”; “Eu
quero aprender geografia para saber das minhas coisas. Não quero ficar sabendo só as
coisas dos brasileiros”; “Os índios precisam aprender geografia para conhecer o sistema do
branco, pois os índios sabem que não sabe tudo. Esse negócio de mapa, por exemplo, eu
aprendi agora. Já tinha visto na FUNAI um mapa da minha terra, mas só via uns rabiscos.
Agora eu sei, eu aprendi, por isso que é importante aprender geografia, para conhecer o
que o branco conhece e não ser explorado mais”. Esses depoimentos, dos alunos B, E e F,
não estão se referindo diretamente à geografia, mas ao processo do contato com saberes
estrangeiros. Devido a esse processo, os Kadiwéu sentem-se compelidos a se adaptar, a
pensar como o conjunto que os absorve. Dos saberes indígenas — feitos de uma ética
indígena — aos processos de adaptação, são recolhidos os traços de incursões do conjunto
que incorpora, que assimila. Um dos instrumentos poderosos de assimilação reside no
saber: saber é pensar e agir. O saber do conjunto que incorpora / integra, a ciência é
levada para as escolas indígenas. A geografia, mais de meio século presente entre os
Kadiwéu, reproduz os conceitos e valores da cultura que a originou, e, de modo algum,
deixou de existir como geografia moderna, tal como sistematizada a partir do século XIX.
Por sua vez, o encontro entre os saberes científico e indígena é constituído de
desencontros.
Os referidos desencontros, reflexo de um conjunto de contradições, de despreparos,
de equívocos, no momento impossibilitam uma confluência entre a geografia e os saberes
que circulam na sociedade Kadiwéu. A geografia, em função da sua proximidade com a
vida cotidiana dos indígenas, poderia exercer um poderoso papel de integração e de
democratização, especialmente desses grupos que vivem sob o domínio do preconceito.
Refere-se, aqui, à possibilidade de transformação do saber geográfico com base no saber
indígena e, simultaneamente, à transformação dos saberes indígenas com base na ciência
geográfica. A geografia, assim, seria dotada de maior praticidade — porque trabalhada sob
a referência dos práticos saberes originários da cultura indígena. Os saberes indígenas, por
sua vez, seriam dotados de maior criticidade — porque trabalhados sob a referência do
conhecimento científico. Não é o caso, portanto, de se pensar de forma maniqueísta: a
geografia a ser transportada para a cultura indígena jamais deixaria de ser geografia,
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
sentir índios, e, principalmente, também, de certa forma, garantem sua identidade indígena.
Índios, agora, feitos, também, de uma cultura estrangeira, índios transfigurados.
A referida transfiguração étnica, tal como Darcy Ribeiro apresentou o conceito, é
parte integrante de um amplo processo. Hoje, a escola, oficializada pela cultura não-índia,
orientada por parâmetros nacionais originários do Ministério da Educação e do Desporto,
está presente na aldeia. Trata-se de uma presença definitiva que resulta em transformações
definitivas. Diante disso, seria imprescindível pensar a natureza da escola e, com isso, o
caráter do ensino que se carrega para as aldeias. Assim, inevitavelmente, pensa-se na
formação dos professores, na indispensável transformação da ética do ensino que, por sua
vez, está relacionada à ética da ciência: um novo saber, um novo homem.
Para que haja mesmo uma transformação dos saberes científicos e dos saberes
indígenas, é preciso que a própria ciência seja transformada a partir de uma ruptura
consigo mesma, à luz de referências mais libertárias, diante da complexidade do mundo.
Entretanto, muitas são as dificuldades encontradas para o desenvolvimento desse processo,
algumas delas de ordem cultural e política. Além disso, a maneira tradicional como se
desenvolve o ensino das disciplinas científicas nas comunidades indígenas, a partir das
sugestões do RCNEI, também contribui para dificultar a consolidação do processo de
trocas entre os saberes. O que se observa é uma escola tradicional, de práticas tradicionais,
feitas de formação tradicional, para índios, inserida em uma cultura em franca
transformação.
Percebe-se, por exemplo, que os índios têm o domínio da natureza que os cerca. À
geografia caberia aprimorar esse domínio, dotando os indígenas de conhecimentos mais
aprofundados e de criticidade. Os índios, despreparados diante do avanço tecnológico que
adentra o seu território, deparam-se com uma rápida degradação ambiental. A geografia os
auxiliaria, também, com informações necessárias para que, através dos próprios saberes,
pudessem elaborar uma leitura mais crítica sobre o quadro ambiental instalado no seu
território. Entretanto, como fazê-lo? A geografia, para isso, inserida nos ambientes
escolares, deveria procurar o diálogo de modo a se fazer compreender e, sobretudo, se
deixar apreender para os índios. Somente assim, através do intercâmbio, seria possível
imaginar uma apropriação da geografia pelos índios que derivasse de uma transformação
da ciência — nos moldes apresentados por Boaventura de Sousa Santos — com base nos
saberes indígenas. Entretanto, tal movimento não edificaria uma nova disciplina. Tal
movimento deverá ser o da disciplina em qualquer ambiente: na cidade, nas metrópoles,
119
nas universidades, nas escolas públicas, nas particulares, nas favelas, nas escolas rurais. A
geografia se transformaria, assim, nas salas de aula, naquilo que sempre deveria ter sido:
uma disciplina científica que se ensina a partir do conhecimento com o qual procura
dialogar.
Apesar de séculos de contato com os não-índios, entre os Kadiwéu ainda há o que
ser preservado: a língua indígena, os rituais, as danças, os mitos, a musicalidade e,
principalmente, as histórias do lugar indígena Kadiwéu. São esses alguns dos sinais que
Manuela Carneiro da Cunha denominou de diacríticos, que identificam os índios, e que,
ainda, permitem que os mesmos se auto-identifiquem como índios. São esses sinais —
traços de identidade —reforçados diariamente, no contexto do contato que lhes restaram.
Aos Kadiwéu também restou o território. No entanto, a área que ocupam
atualmente para reproduzir suas tradições, lhes pertence exatamente por essa característica
mantida: trata-se de uma sociedade indígena. É isso que o Kadiwéu tem de mais
importante e é esse o risco que se corre: a perda do território, carregada da sua cultura.
Afinal, não teria sentido, na contemporaneidade, reservar mais de meio milhão de hectares
para índios sem identidade. Esse tema poderia ser posteriormente estudado a partir da
reflexão sobre o conceito de território entre os Kadiwéu.
120
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ANEXOS
128
Foto 16 – Grupo de alunas prontas para a dança no dia do índio, juntamente com professores José
Luiz de Souza e Giovani José da Silva, em 2000
Mapa 01
Fonte: Europa Multimedia – 2001 Autor: José Luiz de Souza/ CEEI/ SEMEEL/ PM/ 2001
133
Mapa 02
RESERVA
INDÍGENA
KADIWÉU
Base cartográfica Mapinfo, Brasil 1991 Org. José Luiz de Souza, 2005.
OASIS, 2004
134
Mapa 03
SEM ESCALA
Terra Indígena
Mapa 04
MAPA 05
Fonte: PLANO de Conservação da Bacia do Alto Paraguai – PCBAP/ Projeto Pantanal, Programa Nacional do Meio Ambiente. Brasília: PNMA, 1997, p. 898.
Base cartográfica 1991
Autor: José Luiz de Souza/ UFMG/ CAPES, 2004.