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NA APRESENTAÇÃO PÚBLICA DO MEU LIVRO "O HOMEM E A ORDEM SOCIAL E POLÍTICA"

1. Se tenho que dizer algumas palavras, como é certo que tenho e o coração mo pede, as primeiras serão
de agradecimento.
Agradecimento, antes de mais, ao Dr. Henrique Mota, que, por um milagre de afecto e de apreço,
considero já um velho amigo, velho sendo ele pouco mais que um jovem. A ele e à sua editora devo, muito
reconhecido, a publicação deste meu livro, que não é mais que a sequência de um outro publicado há anos e
onde procuro tão-somente divulgar a doutrina social da Igreja, em matéria tão indiscutivelmente relevante.
Agradecimento, em segundo lugar, aos que tiveram a amabilidade, de alguns sei eu com sacrifício, de
aceitarem o convite que a Principia lhes enviou, convocando-os para estarem comigo, certamente como sinal
de uma amizade vinda em alguns casos de há tantos anos e que, por isso, nos dá a apetecida garantia de
sempre constituir nosso património compartilhado. Pensando nesta amizade, recordo, com certa comoção,
os versículos do salmo 133: Vede quanto é bom e agradável viverem unidos os irmãos; é como o orvalho que
desce da montanha, anunciando com a sua frescura cada manhã de cada dia, dos dias que Deus nos permite
ir vivendo nesta "terra dos homens", como intitulou Saint-Exupéry uma das suas narrativas.
Agradecimento, em terceiro lugar (mas, com inteira sinceridade, não sei se é o primeiro), ao Prof. Mário
Pinto, a quem me ligam laços de enorme e esta, sim, já antiga estima e admiração, pela obra de excepcional
valia que tem realizado e pela doutrinação, nunca interrompida, que todos lhe devemos. Tenho-o presente
em vários passos do meu livro. Antes disso, porém, já o tinha presente in petto (como os futuros cardeais
cujo nome o Papa guarda em segredo) pelo muito que sempre aprendi dos seus trabalhos literários. Estou-
lhe gratíssimo, e não serei capaz de lho pagar, pelas gratas palavras que acaba de proferir a meu respeito
acerca das páginas que escrevi.
2. O ponto de partida e de chegada do livro que hoje se apresenta é muito simples: o homem, "princípio,
sujeito e fim de todas as instituições sociais" (Gaudium et Spes). Parecerá uma afirmação pacífica e de todos
sobejamente conhecida. Mas para quem viveu os anos que eu já vivi, contemporâneo das mais variadas
transformações sociais, ou para quem, não sendo contemporâneo delas pessoalmente, conhece pela história
a existência dos regimes totalitários, alguns ainda bem perto das gerações mais novas, os quais
desencadearam no mundo a opressão e a morte de tantos milhões de homens e mulheres, por mera
fidelidade às suas convicções (a tal ponto que, em relação aos cristãos, o século XX foi o das mais vastas e
cruéis perseguições, surpreendentemente superior à chamada grande perseguição romana decretada pelos
imperadores Galério e Diocleciano em Fevereiro de 303, completaram-se há meses exactamente dezassete
séculos); para quem foi contemporâneo ou então conhece pela história estes horrores, em que as sociedades
eram estruturadas ou configuradas pela vontade libérrima dos donos do poder e em que, por consequência,
o ser humano era a vítima fácil dos tiranos; - desejar uma ordem social e política a partir do homem e do
respeito dos seus direitos e deveres, não é a redundância ou a vulgaridade que possa, à primeira vista,
imaginar-se.
O homem é de uma dignidade transcendente. Logo que gerado no seio materno, não o é para viver na
terra mais ou menos tempo e logo ser esquecido. Jamais poderia encontrar-se na pena de um escritor cristão
o que escreveu Sartre: "A morte não é nunca aquilo que dá sentido à vida; é, pelo contrário, aquilo que, em
princípio, a priva de todo e qualquer significado. Se devemos morrer, a nossa vida carece de sentido, porque
os seus problemas não receberão jamais nenhuma solução". Quem dentre os cristãos poderia subscrever
semelhante afirmação? Nós, logo desde o início da nossa vida no seio das nossas mães, já somos imortais. A
morte não é uma interrupção brutal, se não absurda, que priva de sentido quanto sonhamos e fazemos, nem
toma vã a sede de felicidade que inseparavelmente nos acompanha. É apenas a entrada numa outra fase da
vida, que transfigura e prolonga eternamente a deste mundo. E se livremente, enquanto peregrinamos na
Terra, escolhemos Deus "como nossa herança", é para sempre sob o olhar de Deus que a continuaremos a
viver.
Nisto reside a grandeza da nossa vocação: no uso da nossa liberdade, entre tantas armadilhas,
escolhendo e praticando o bem, somos atirados para os braços de Deus. E observa com estranheza Santo
Agostinho que "se entretêm os homens a contemplar, admirados, a altura dos montes, e as ondas
imponentes do mar, e os largos cursos dos rios, e a amplitude do oceano, e o giro das estrelas e, entretanto,
se deixam a si mesmos, e não se maravilham de si". E é de si que, sobretudo, se deveriam maravilhar.
Porque foram criados, não só irrepetíveis, mas imortais, participantes da própria eternidade de Deus.
3. O homem, é certo, não existe para viver sozinho. É, por natureza, relacional. A fim de nos realizarmos,
e atingirmos a medida para que Deus nos criou, e podermos extrair de nós os preciosos dons que Deus nos
concedeu para que os ponhamos a render, todos precisamos de todos, e foi por isso que Ele também nos
enriqueceu, não somente com o dom da liberdade, mas com a faculdade e a necessidade imperiosa do amor.
O amor é o vínculo que nos obriga a precisar dos outros e os outros de cada um de nós. O mesmo Santo
Agostinho, noutro passo, diz isto numa bela síntese: "Todo o homem é próximo de todo o homem". E Jesus
diz ainda melhor no Evangelho de São Mateus: "Vós sois todos irmãos."
Por esta razão é que o homem não pode viver senão integrado numa sociedade política e,
consequentemente, num Estado, sem o qual não seria senão, como conclui Aristóteles, no seu tratado sobre a
Política, ou "um bicho ou um deus", mais simplesmente, digo eu, sofrendo de qualquer anormalidade digna
de dó.
O Estado é, pois, indispensável para a completa realização temporal do homem. Mas não é um absoluto,
que pesa sobre os cidadãos, os asfixia ou os esmaga. Nem o Estado, nem a sociedade civil que o Estado gere,
nem as sociedades menores ou intermédias em que a sociedade civil se decompõe. De cima a baixo,
nenhuma instituição de maior ou menor poder, mormente o Estado (o qual é o que está mais exposto à
tentação de um poder incontrolável), nenhuma instituição, repito, é dona daqueles que a constituem como
seus membros. Todas, sem excepção seja de que ordem for, são puramente servidoras do homem, de acordo,
como é evidente, com os fins de cada uma. Em relação ao Estado é possível assinalar diversos limites ao seu
poder; e o mesmo sucede em relação às demais instituições. No entanto, os diversos limites que é lícito
definir para qualquer delas convergem, todos, para este limite supremo: serem serviço e condição da feliz
realização do homem, da normal fruição dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres, direitos e
deveres inscritos na sua própria natureza e, por conseguinte, anteriores e superiores a qualquer instituição
social.
4. Alain Finkielkraut, no seu magnífico ensaio sobre o século XX - A humanidade perdida -, excelentemente
traduzido por Pedro Tamen, refere o velho e ainda digno de ser lido O zero e o infinito, de Arthur Koestler,

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um best-seller de há cerca de cinquenta anos, para contar o seguinte: o herói do livro, Rubachov, "atirado
para a prisão por Estaline (...), medita na sua cela sobre a falência ou estagnação da Revolução e depois,
rendido, ou antes, por já não ter força física, nem moral, nem intelectual, para se subtrair de vez à lógica de
que é vítima depois de ele mesmo a ter aplicado implacavelmente, (...) aceita confessar-se culpado no seu
processo. Culpado de quê? 'Culpado de me ter deixado levar por impulsos sentimentais e, portanto, de me
ter encontrado em contradição com a necessidade histórica.' E Rubachov especifica diante do seu
magistrado instrutor: 'Dei ouvidos às queixas dos sacrificados, não ouvindo os argumentos que
demonstravam a necessidade de os sacrificar. (...) Confesso-me culpado de ter posto a ideia do homem acima da
ideia da humanidade'."
A convicção de Rubachov não era apenas um postulado doutrinal do comunismo soviético. É a de
muitos, ainda agora, até em regimes mais ou menos aproximados da democracia. Não temos já, pelo menos
nas áreas do mundo em que habitamos, condenações pelo motivo por que foi condenado o personagem do
romance de Arthur Koestler: o ter posto a ideia do homem acima da ideia da humanidade. Mas temos, igualmente,
no mundo ocidental a que pertencemos, em que o todo parece cada vez estar mais longe das partes ou
elementos que o englobam, um Estado cada vez mais concentrado, cada vez mais burocratizado e, portanto,
mais longe das pessoas, onde reina, porventura menos consciente mas mais difusa, a falsa convicção de
Rubachov de que a ideia da humanidade está, de facto, acima da ideia do homem.
Oiça-se o que se diz à nossa volta. Fala-se de interesses da colectividade, de sistemas, de planificações,
de estatísticas, e assim por diante, expressões todas elas que visam agrupamentos, que visam a humanidade
ou segmentos dela, esquecendo por completo que o homem real é concretamente cada um de nós. E que é
da felicidade de cada um de nós que depende a felicidade e o êxito, e até a justificação, das instituições. Já
houve quem se queixasse, e não só um político, mas muitos cidadãos que não deixam de estar atentos ao
que se passa no nosso país, que se fala demasiadamente de números, mas raramente de pessoas. No entanto,
é o bem das pessoas, de cada pessoa, que, no fundo, importa garantir. A partir daí é que poderá construir-se
o que faltar, e é imenso.
5. Paulo VI afirma, na Populorum Progressio: "É necessário promover um humanismo total. E que vem ele
a ser senão o desenvolvimento integral do homem e de todos os homens?" Como se vê, está nestas breves
linhas a súmula exacta da doutrina
social da Igreja, pois que não existe qualquer sociedade humana autêntica sem o desenvolvimento
simultâneo do homem em si mesmo e de todos os homens no seu conjunto.
Primeiro. O homem individual, não apenas o homo oeconomicus, ou seja, aquele que necessita de ter uma
casa, de se alimentar e se vestir, mas o homem completo, carnal e espiritual, como diria Péguy, ou, por
outras palavras, aquele a quem se tome acessível tudo aquilo de que precisa para viver uma vida, não de
escravo ou de miséria, mas verdadeiramente humana, "tal como o alimento, o vestuário, a habitação, o
direito de escolher livremente um estado de vida e de constituir família, o direito à educação, ao trabalho, à
boa fama, ao respeito, a uma informação conveniente, a agir segundo a recta norma da sua consciência, à
protecção da vida privada e à justa liberdade, inclusive em matéria religiosa", como refere, sem cuidar de ser
exaustivo, o Concílio Vaticano II. O qual, no entanto, acrescenta de imediato este parágrafo extremamente
significativo: "A ordem social e o seu progresso devem subordinar-se constantemente ao bem da pessoa,

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visto que a ordem das coisas deve submeter-se à ordem das pessoas e não o contrário. (...) Esta ordem deve
desenvolver-se dia-a-dia, fundar-se na verdade, edificar-se na justiça, vivificar-se no amor; e, além disso,
encontrar um equilíbrio cada vez mais humano na liberdade". Claro que, para conseguir a realização deste
saudável ordenamento social, não referido, em abstracto, a uma vaga humanidade sem efectiva consistência,
mas ao homem concreto, que é este ou aquele homem vivo e real, "haverá que proceder, simultaneamente, à
renovação dos espíritos e a profundas reformas sociais", refere ainda, como exigência irreprimível, o
Vaticano II. Uma sociedade, um Estado, como serviço de todos e cada um dos homens e mulheres que nele vivem -
eis o que a Igreja reclama.
É evidente que a sociedade não é exclusivamente instrumento ao serviço do homem. Fazendo parte
dela, o homem não se limita a receber o que ela lhe dá em possibilidades de crescimento pessoal e de
segurança, mas tem a obrigação de, por sua vez, contribuir, com sua participação, com seu esforço, com sua
atenção às dificuldades colectivas, para que ela, verdadeiramente como sociedade, viva do empenho dos
seus membros e tenha maior capacidade de resposta, adequada e oportuna, aos problemas para resolução
dos quais as pessoas que a formam se congregam. Não somente, portanto, a sociedade serve o homem; mas
também o homem serve a sociedade, e serve-a a fim de que ela se tome mais sólida e melhor o sirva.
Segundo. Paulo VI, como referi, acrescenta que a acção política não pode limitar-se a promover o
desenvolvimento integral do homem individual, mas, por igual, se deve empenhar no desenvolvimento de
todos os homens. Esta distinção não é, de modo algum, mero jogo de palavras: o homem todo, todos os homens.
O desenvolvimento do homem todo é o do homem singular na totalidade das suas carências, as do corpo
como as do espírito, respondendo assim a Igreja a esta civilização predominantemente, e com tanta
frequência grosseiramente, materialista e consumista. Por seu lado, o desenvolvimento de todos os homens
é o que não há-de conceber-se relativamente apenas a uma fracção da população mundial, geralmente já
privilegiada, mas o que se alarga, de modo estável, ainda que não tão rapidamente quanto desejaríamos, a
todos os homens, sejam quais forem os países ou os continentes em que habitam. E, chegados a este ponto, é
dever, a que não é possível furtar-me, reconhecer que vários países, até recentemente excluídos dos
benefícios do desenvolvimento, provam que felizmente os bens materiais, talvez ainda escassos mas já
manifestos, começam a circular por espaços mais amplos, atingindo com um pouco mais de bem-estar novas
áreas. O abismo, contudo, entre ricos e pobres não cessa de ser a chaga mais dolorosa do mundo em que
vivemos. Não estranhemos, pois, que a Igreja queira, logo desde os primeiros séculos da sua história, que a
riqueza se distribua o mais equitativamente possível por todos, a fim de que todos possam justamente
considerar-se aquilo que Deus deseja que constituam uma família. "Os que tendes abundância ide ao
encontro dos famintos", advertia logo nos meados do século II o Pastor de Hermas.
"O pedido de uma existência qualitativamente mais satisfatória e mais rica – afirma João Paulo II - é, em
si mesmo, legítimo." Mas este mesmo princípio vale para todos. Deus coloca o mundo nas mãos dos
homens, e não de alguns apenas, para que o tomem fecundo e mais perfeito. Por isso, "a Sagrada Escritura -
afirma também João Paulo II - nos fala continuamente do compromisso activo a favor dos irmãos e
apresenta-nos a exigência de uma corresponsabilidade que deve abarcar todos os homens". E o Papa diz
ainda que "esta exigência não se restringe aos limites da família, nem sequer da Nação ou do Estado, mas
abarca ordenadamente a humanidade inteira, de modo que ninguém se pode considerar alheio ou

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indiferente à sorte de outro membro da família humana. Ninguém pode afirmar que não é responsável pela
sorte do próprio irmão".
A aplicação sem reservas desta doutrina faria que houvesse seguramente menos ricos e seguramente
menos pobres. Doutrina que resulta de uma outra, antiquíssima no ensino da Igreja, qual é a do destino
universal dos bens, que Lactâncio (segunda metade do século III, princípios do século IV), nas suas De
divinis institutionibus, apresenta energicamente nestes termos: "Deus entregou a terra em comum a todos os
homens com o desígnio de que todos usufruíssem dos bens que ela produz em abundância, não para que
cada um, com avareza exasperada, reivindicasse para si todas as coisas, nem para que alguém se visse
privado daquilo que a terra produzia para todos".
As palavras de Lactâncio, semelhantes às dos demais autores da Patrística, traduzem claramente a ideia
de que os bens, mesmo os privados, jamais perdem a sua finalidade social, o que, entre outras
consequências, justifica a opção preferencial da Igreja pelos pobres, tão insistentemente ensinada pelo
magistério eclesiástico. "A Igreja - novamente cito João Paulo II - está consciente, hoje mais que nunca, de
que a sua mensagem social encontrará credibilidade, primeiro no testemunho das obras e só depois na sua
coerência e lógica interna. Desta convicção provém também a sua opção preferencial pelos pobres, que
nunca será exclusiva nem discriminatória relativamente aos outros grupos. Trata-se de uma opção que não
se estende apenas à pobreza material, dado que se encontram, especialmente na sociedade moderna, formas
de pobreza não só económica mas também cultural e religiosa. O amor da Igreja pelos pobres, que é decisivo
e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo em que, apesar do progresso técnico-
económico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas".
O cerne do problema não está, pois, na apropriação dos bens materiais. Está na sua justa distribuição,
recorrendo sem dúvida aos mecanismos sociais e económicos adequados, um dos quais é o justo salário dos
trabalhadores, mas principalmente na vontade empenhada e séria de os responsáveis pela direcção do país,
nos seus vários escalões, pensarem nos mais desfavorecidos, tomando medidas eficazes de solidariedade
que possibilitem a todos, próximos e distantes, os bens pelo menos requeridos para que possam viver
condignamente. É do mesmo João Paulo II esta severa chamada de atenção: "Os pobres não podem esperar".
6. O homem, por si mesmo superior ao Estado, não deixará de se tomar escravo dele, se o Estado, com
os longos braços que estende para a sociedade civil e com que procura assenhorear-se dela, isolar de
preocupações morais a sua actividade. Não ignoramos que o Estado é laico, e concordamos que o seja. Um
dos primeiros e mais autorizados a dizê-lo foi Pio XII, no longínquo ano de 1958: "Alguns (...) preocupam-se
porque temem que o cristianismo deixe a César o que é de César. Como se dar a César o que lhe pertence
não fosse um mandamento de Jesus; como se a legítima, sã laicidade do Estado não fosse uma das
exigências da doutrina católica; como se não fosse tradição da Igreja o esforço contínuo para manter
separados e ao mesmo tempo unidos os dois Poderes, segundo os rectos princípios; e como se, pelo
contrário, a mistura entre o sacro e o profano se não tivesse verificado com mais vigor na história quando
uma parte dos fiéis se separou da Igreja". Conforta-me lembrar esta declaração em particular neste instante
em que um certo fundamentalismo, mesmo de países ocidentais, invoca o choque de civilizações, para
justificar despropositadamente, com motivos de ordem religiosa, decisões, inclusive militares, que, de sua
natureza, são simplesmente políticas e até politicamente controversas. Uma das grandes conquistas do

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tempo moderno é o da laicidade. Mas a laicidade somente significa que Estado e Igreja se movem em planos
distintos. Que a César pertence o que é de César e que a Deus o que é de Deus, como, há dois mil anos,
Cristo solenemente e definitivamente proclamou. O Estado português, todavia, impondo-se a si mesmo o
dever de que "não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas,
estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas", vai muito mais longe que a laicidade. Diz-se completamente
estranho, não apenas às motivações religiosas, como às de natureza filosófica, estética e ideológica,
adjectivos estes onde cabem todas as razões que dão sentido à existência humana, criando assim, antes de
mais com uma educação vazia de princípios, uma sociedade sem rumo, do que todos nós nestes últimos
meses, e tão-somente num ou noutro aspecto, somos testemunhas.
Mas não é apenas nestes vários domínios que o Estado se impõe silêncio e em relação aos quais se
confessa alheio. É também no domínio moral, não porque o afirme expressamente, mas porque o pratica.
Basta atentarmos no modo como usualmente os legisladores se preocupam com as razões de ordem moral
que porventura subjazem a certas medidas legislativas. E valho-me a propósito da seguinte pertinente
observação do Papa: "Não se trata apenas do escândalo do aborto, mas de diversos aspectos de uma crise
dos sistemas democráticos, que às vezes parece terem perdido a capacidade de decidir segundo o bem
comum. As questões levantadas pela sociedade não são examinadas à luz dos critérios de justiça e
moralidade, mas antes na base da força eleitoral ou financeira dos grupos que as apoiam".
Assegurar a legitimidade das leis é necessário; assegurar, porém, a conformidade delas com os preceitos
irremovíveis da moral natural, isto é, daquela que radicalmente contribui para a realização do homem, não é
menos necessário, e exige que o Estado, se é, como a Igreja o concebe, servidor do homem, o tome em conta.
Não pode invocar a obrigação constitucional de manter silêncio, de ficar alheio ou indiferente, porque o
acatamento da ordem moral não é de todo uma questão filosófica, nem estética, nem ideológica, nem, se o
quisermos, propriamente religiosa, ainda que estreitamente congénere dela. Trata-se de alguma coisa que
respeita à própria construção de um homem verdadeiro e bom. Nos seus princípios fundamentais, é uma
realidade inscrita indelevelmente na própria consciência.
Quando, pois, as leis positivas do Estado olham apenas à necessidade de resolver esta ou aquela questão
que as condições sociais tornam mais premente, ou que a opinião pública, quer espontaneamente quer
movida por interesses que se escondem por detrás dela, mais discute, mesmo que ponham em causa
essoutras leis, invioláveis, inscritas no âmago da nossa consciência, como as que respeitam ao direito à vida
e aos demais direitos fundamentais (que, aliás, todos repousam no direito à vida), não fazem mais que abrir
caminho ao permissivismo e ao afundamento progressivo da sociedade. Pensemos nessa aspiração
desenfreada de ostentação e de riqueza, com a sua consequência imediata que é a corrupção ou então o
desperdício, nesse "fosso" (é o termo mesmo do Papa) que separa os poderosos dos socialmente menos
favorecidos, nessa preocupação obsessiva e doentia do sexo, origem inclusive de aberrações odiosas, de que
só conhecemos a ponta do icebergue, mas que são, na base, uma sociedade já em grande parte apodrecida;
pensemos nisto, sim, e depressa concluiremos a razão por que João Paulo II nos exorta, a nós globalmente
mas sobretudo aos políticos: "Esforçai-vos por que as leis e os costumes não se voltem contra o sentido
transcendente do homem, nem contra os aspectos morais da sua vida".

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7. E eis o fio condutor do livro hoje aqui apresentado. A Igreja, que olha com desconfiança o gigantismo
do Estado, não pretende também que se restaure o velho Estado mínimo, tão caro ao primitivo liberalismo,
de resto hoje impossível nesta era de uma socialização que só não crescerá indefinidamente pelo tão urgente
quanto possível recurso ao princípio da subsidiariedade, a qual é a maior defesa de cidadãos participativos e
livres. O Estado visa, em relação à sociedade civil, às sociedades menores e ao próprio homem, fins
absolutamente indispensáveis, e os cidadãos assumem, para com ele, deveres de obediência, de cooperação
e de respeito que lhes não é legítimo pôr entre parêntesis. Porque, assegurando o bom funcionamento da
sociedade, e sendo esta indispensável ao homem, este, no fundo, como já disse, deve ao Estado uma parte
incalculável da sua realização como homem.
Mas há uma outra parte em que nem o Estado, nem muito menos qualquer outra instituição, têm
qualquer direito de intervir, ainda mesmo que a título de serviço. Falo da consciência. Falo das últimas
motivações da nossa liberdade. Falo daquilo que já hoje parece a muitos um arcaísmo: o estrato mais
profundo da nossa personalidade, do nosso eu. No meu livro trago à colação o romance ou xácara A Nau
Catrineta, que Garrett recolheu no seu precioso Romanceiro. O Demónio, na figura de um gajeiro, promete
trazer a nau a porto seguro se o capitão lhe der a alma. É um diálogo de grande dramatismo, flor da nossa
antiga e praticamente ignorada poesia popular. Transcrevo as duas quadras que o resume: "Que queres tu,
meu gajeiro,! Que alvíssaras te hei-de dar?" "Capitão, quero a tua alma! Para comigo a levar".! "Renego de ti,
Demónio,! Que me estavas a atentar!/ A minha alma é só de Deus;/ O corpo dou eu ao mar". Se, na
verdade, há uma parte de nós prisioneira da história quotidiana que partilhamos com os demais e se, em
muitos aspectos, não passamos de uma simples molécula do organismo social, outra parte de nós existe que
emerge acima dos acontecimentos e das coisas e não depende senão d'Aquele que é, a um tempo, a nossa
origem e o nosso fim. Que força e transcendência a desta pequena frase, talvez a mais profunda da
sabedoria popular: "A minha alma é só de Deus"! Sim, a minha consciência, a nascente profunda das minhas
decisões, as razões mais íntimas e secretas da minha vida.
É com esta estupenda resposta do capitão que desejo significar a intenção primária do que escrevi. O
homem está mergulhado na vida social e política, porque precisa dos outros, da sociedade e do Estado, para
conseguir atingir o nível da humanidade para que foi criado. Está, pois, no mundo, mas não por tudo
quanto ele é. No que existe nele de mais pessoal e próprio está fora do mundo. "Não sois do mundo - a
afirmação é de Cristo - pois a minha escolha vos separou do mundo". Ora, visto que Jesus nos escolheu, nós
somos d'Ele. Somos de Deus. Não somos de nenhum outro homem, por mais poderoso que seja ou se
considere, não somos de nenhuma das sociedades a que pertencemos, não somos do Estado, embora
precisemos de todos eles, como todos eles precisam também de nós, numa rede admirável de permutas
recíprocas, a que damos o esplêndido nome de solidariedade. Naquilo que nos identifica substancialmente
como pessoas não somos, enfim, de nada e de ninguém. A nossa alma é só de Deus.
É aqui, aqui exclusivamente, que reside o fundamento último da nossa dignidade.

Lisboa, 5 de Junho de 2003

+ António dos Reis Rodrigues


Bispo tit. de Madarsuma

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